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Mental

versão impressa ISSN 1679-4427

Mental vol.9 no.16 Barbacena jun. 2011

 

ARTIGOS

 

Clínica e crítica na trajetória freudiana da Neurologia à Psicanálise

 

Clinic and critique in Freud's course from Neurology to Psychoanalysis

 

 

Clovis Eduardo ZanettiI; Richard Theisen SimankeII

IDocente da Graduação em Psicologia do Centro Universitário Filadélfia (UNIFIL) e da Pós-Graduação em Psicanálise da Faculdade Pitágoras, Psicólogo, com Especialização em Psicanálise pela Universidade de Marília (UNIMAR), Mestre em Filosofia pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar)
IIProfessor Associado da UFSCar, Professor e orientador de Mestrado e Doutorado do Programa de Pós-Graduação em Filosofia e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFSCar, Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq (Nível 1-D)

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo pretendeu reconstituir e analisar as reflexões clínicas e epistemológicas de Freud que o levaram da Medicina à Psicanálise, partindo do diagnóstico clínico diferencial entre as patologias orgânicas e as doenças neuróticas iniciadas no artigo Histeria (1888). A seguir, aborda o exame crítico do conceito neurológico de representação em Sobre a concepção das afasias (1891), que acaba por abrir um novo campo de investigação e lançar as bases de uma nova concepção de corpo desde a perspectiva de sua representação neuropsicológica. Esses desenvolvimentos culminam no ensaio de 1893, sobre as paralisias orgânicas e histéricas, no qual as teorizações sobre o afeto, a linguagem e a representação convergem para dar conta da possibilidade de uma causalidade psíquica dos sintomas somáticos da histeria.

Palavras-chave: Freud; histeria; representação; corpo; linguagem; afeto.


ABSTRACT

This paper aimed to reconstruct and analyse Freud's clinical and epistemological reflections which led him from Medicine to Psychoanalysis, starting from the differential clinical diagnosis between organic pathologies and neurotic diseases sketched in the article Hysteria (1888). Next, it approaches the critical examination of the neurological concept of representation in On Aphasia (1891), which opens a new field of investigation and sets the ground for a new concept of body from the perspective of its neuropsychological representation. These developments culminate in the 1893 essay on organic and hysterical paralyses in which theorizations on affect, language, and representation converge to account for the possibility of a psychical causality of somatic symptoms of hysteria.

Keywords: Freud; hysteria; representation; body; language; affect.


 

1 INTRODUÇÃO1

O problema da relação do corpo com a formação de sintomas neuróticos constitui o ponto de partida e a própria base sobre a qual se erigiram as questões fundamentais da metapsicologia freudiana. A sintomatologia da histeria, como é apreendida nos textos iniciais de Freud, não deixa dúvidas a respeito da importância dessa relação. No entanto, essa não é uma relação simples, comportando muitas nuanças que dizem respeito a teorizações especificamente freudianas. Pretendemos reconstituir e analisar aqui o trajeto realizado por Freud que, partindo da distinção clínica entre patologias orgânicas e doenças neuróticas iniciadas no artigo Histeria (FREUD, 1988 [1888]), acaba por abrir o campo e lançar as bases de uma nova concepção de corpo, sustentada por uma teoria freudiana da representação, distinta da ideia de organismo, definida desde o ponto de vista da ciência anatomopatológica.

Com esse propósito, será examinado o texto Tratamento psíquico (FREUD, 1988 [1890]), a partir do qual se pode colocar a seguinte questão sobre a relação entre os estados afetivos e a formação dos sintomas histéricos: como uma representação afetiva, sob a forma de um pensamento excluído, pode passar para a inervação somática e, ainda assim, continuar a ser um pensamento? (DAVID-MÉNARD, 2000).

Este artigo teve também por objetivo reconduzir essa problemática àquele que consideramos seu momento crítico, a saber, o exame do conceito de representação realizado no ensaio Sobre a concepção das afasias (FREUD, 1973 [1891]), mais especificamente, a questão que nele se formula sobre como o corpo é representado no córtex cerebral. Nesse ensaio, é possível avaliar o sentido e a natureza do conceito de representação manejado por Freud na análise da formação dos sintomas.

A última etapa deste estudo é dedicada ao artigo Algumas considerações para o estudo comparativo das paralisias motoras orgânicas e histéricas (1988 [1893]), no qual Freud reorganiza os resultados obtidos nesse trajeto e avança na compreensão daquilo que a histeria revela sobre a forma particular como o corpo é apreendido quando se trata de sua representação psíquica.

 

2 AS PRIMEIRAS HIPÓTESES SOBRE A NATUREZA DO FENÔMENO HISTÉRICO

O artigo Histeria (FREUD, 1988 [1888]) - que é uma das quatro contribuições de Freud para enciclopédia médica de Villaret (as outras teriam sido sobre cérebro, afasia e paralisias e paresias infantis) - permite perceber, a princípio, as consequências clínicas e as primeiras intuições teóricas decorrentes do encontro do jovem neurologista Freud com o trabalho clínico de Charcot em Paris, em 1886. A histeria é definida aí como uma neurose stricto sensu, ou seja, uma enfermidade do sistema nervoso, que, no entanto, não apresenta alterações anatômicas e repousa inteiramente em modificações fisiológicas. Segundo o autor, sua essência deveria expressar-se mediante uma fórmula que levasse em conta as alterações na distribuição da excitabilidade entre as partes que compõe o sistema nervoso. Tal fórmula, ainda a ser construída, teria a função de fundamentar e justificar - e, ao mesmo tempo, sintetizar - a recente sistematização da sintomatologia da histeria organizada por Charcot em um quadro nosográfico distinto dentro do conjunto das doenças nervosas. Essa fora uma tarefa inaugural e de extrema importância para o pleno reconhecimento da histeria no campo das doenças nervosas e que, ao mesmo tempo, abriu caminho para uma redefinição das neuroses como afecções psicológicas, processo no qual Freud certamente desempenhou um papel de destaque.

A primeira tarefa a que ele se propõe, então, é mostrar como é possível um diagnóstico diferencial da histeria e, em segundo lugar, notar que dessa distinção rigorosa pode-se extrair os primeiros elementos para uma fórmula etiológica que explique a especificidade da formação dos sintomas por meio das peculiaridades da distribuição da excitação dentro do sistema nervoso.

Os sintomas aí analisados, que compõem o quadro nosográfico típico da histeria, são: ataques convulsivos, presença das zonas histerógenas (regiões do corpo cuja estimulação pode desencadear a manifestação de um sintoma ou mesmo um ataque histérico completo), perturbações da sensibilidade, paralisias, contraturas e perturbações psíquicas. O que distingue e caracteriza, em geral, todos esses sintomas como histéricos é o fato, clinicamente estabelecido, de que, em todos eles, há uma grande liberdade em relação à regra anatômica. As anestesias histéricas, diferentemente das orgânicas, por exemplo, não interferem nas atividades motoras, além de que podem, mesmo que sua extensão e intensidade sejam muito acentuadas, escapar inteiramente ao conhecimento e à percepção do paciente (FREUD, 1988 [1888]). Outro exemplo: as convulsões histéricas, diferentemente das epiléticas, não apresentam aumentos de temperatura e seus movimentos relativamente coordenados contrastam fortemente com a brutalidade cega dos ataques na epilepsia. Há também, como uma característica distintiva desses ataques histéricos, uma fase alucinatória que Charcot denominara de fase das "atitudes passionais" (attitudes passionnelles), a qual exibe posturas, ações e palavras que correspondem ao conteúdo psíquico de cenas que são alucinadas durante o ataque, o que não ocorre, em absoluto, na epilepsia. Com relação às paralisias histéricas, não há uma preferência pelo segmento distal do membro afetado, como acontece nas orgânicas. Enfim, Freud aponta inúmeras outras distinções diagnósticas, mas, para nossos propósitos, é suficiente destacar que todos os sintomas encontrados na histeria são caracteristicamente móveis, isto é, podem alterar-se de uma forma que, de saída, afasta toda a conjectura sobre uma lesão anatômica em sua origem, ao menos como condição suficiente. É justamente essa mobilidade que sugere a presença de uma alteração no fluxo das excitações como base desses fenômenos e também o que explica a potencial de eficácia da terapêutica hipnótica - recusada por Charcot, mas admitida por Freud -, uma vez que a sugestão sob hipnose poderia atuar nessa distribuição por meio de uma mediação psíquica.

A partir da consideração dos sintomas psíquicos da histeria, Freud introduz, já em 1888, as primeiras hipóteses e postulados sobre os quais irão se edificar os conceitos fundamentais de sua futura metapsicologia:

As alterações psíquicas, que é preciso postular como base do status histérico, se desdobram por inteiro no âmbito da atividade encefálica inconsciente, automática. Talvez ainda se possa destacar que, na histeria, a influência dos processos psíquicos sobre os processos físicos do organismo está aumentada, (como em todas as neuroses), e que os pacientes histéricos trabalham com um excedente de excitação no sistema nervoso, o qual se exterioriza ora inibindo, ora estimulando, e que se desloca com grande liberdade dentro do sistema nervoso. (FREUD, 1988 [1888], p. 54)

As alterações psíquicas assinaladas como características do estado histérico são designadas, antes de tudo, como alterações no decurso e nas associações entre representações, inibições da atividade voluntária e a acentuação ou sufocação de sentimentos. Assim, já no seu ponto de partida, o psíquico é referido, fundamentalmente, à esfera representacional. Esta, por sua vez, teria por base uma atividade cerebral inconsciente, a qual responderia pelas modificações funcionais na distribuição sobre o sistema nervoso, tanto de quantidades estáveis de excitação, como ocorre no estado de saúde normal, quanto do excedente verificado nos transtornos histéricos (FREUD, 1988 [1888], p. 54).

Segundo essa hipótese, pode-se presumir que os fatores que melhor respondem à formação desse excedente de excitação dentro do órgão mental são aqueles relacionados à vida sexual, pois é preciso admitir o importante papel desempenhado por suas constelações funcionais na etiologia das neuroses, isso devido à elevada significação psíquica desta função. Embora isso seja reconhecido, Freud ainda está longe de atribuir uma etiologia sexual à histeria e chega a observar, seguindo Charcot, que a importância da sexualidade nessa neurose é às vezes exagerada. A sintomatologia da histeria seria, assim, uma demonstração de como a formação deste "excedente de estímulo é distribuído por intermédio das representações conscientes e inconscientes" (FREUD, 1988 [1888], p. 63). Em seguida, passando para a questão do tratamento da histeria, afirma que este deveria:

(...) reconduzir o enfermo, hipnotizado a pré-história psíquica do padecer, e compeli-lo a reconhecer a ocasião psíquica à raiz da qual se originou a perturbação correspondente. Esse método é mais adequado por que imita fielmente o mecanismo segundo o qual se originam e dissipam as perturbações. (FREUD, 1988 [1888], p. 62).

É primeiramente no plano clínico que a noção de inconsciente começa a se impor, antes que as dificuldades conceituais envolvidas na sua formulação comecem a ser enfrentadas (SIMANKE, 2006). Cada vez mais se impõe a Freud a ideia de que a existência e a eficácia de um inconsciente psíquico e representacional sejam absolutamente essenciais ao conjunto dessas hipóteses que visam explicar a sintomatologia clínica da histeria. No entanto, o sentido e a natureza da noção de representação com que Freud trabalha nesse momento, em 1888, ainda estão longe de serem claros e explicitamente tematizados. Mesmo assim, os sintomas da histeria dão indícios que se trata: 1) da representação do corpo no córtex, enquanto uma atividade cerebral inconsciente; 2) de uma representação que não pode ter por base as regras anatômicas da distribuição da energia nervosa; 3) de um processo que tenha a ver com a significação psíquica atribuída as funções corporais representadas.

 Neste sentido, seu estatuto estaria já mais próximo do domínio funcional do que do morfológico, como indica a ideia de atividade e de modificações da distribuição sobre o sistema nervoso de quantidades móveis de excitação devido a causas não orgânicas. Segundo Kenneth Levin, essa alternativa entre uma apreensão funcional ou morfológica dos fenômenos nervosos fora amplamente debatida pela Neurologia e Psiquiatria do século 19. A controvérsia girava em torno "da utilidade relativa da Anatomia Patológica (acompanhar os pacientes até a autópsia a fim de correlacionar sintomas com dados anatômicos) e da Fisiologia (enfatizar a experimentação em animais de laboratório, com a finalidade de investigar os modos de funcionamento em lugar da estrutura) para a elucidação da natureza dos processos patológicos" (LEVIN, 1980, p. 12). Como torna evidente esse texto de 1888, Freud opta claramente por esse segundo o estilo de abordagem.

Se as causas devem ser buscadas no "representar inconsciente" (FREUD, 1988 [1888], p. 62) por meio da recondução do paciente à pré-história psíquica da doença até a ocasião traumática que deu origem aos sintomas, o conceito de representação também deverá comportar uma função mnêmica capaz de explicar a eficácia póstuma desses eventos.  No entanto, até esse momento, esses desdobramentos permanecem implícitos neste ponto de vista ainda neurológico, porém, não obstante, já decididamente funcional. Os desenvolvimentos futuros mostrarão qual é a noção de representação que Freud toma por referência, ao mesmo tempo em que irá submetê-la a um exame crítico decisivo que resultará numa reformulação de seu estatuto conceitual, adequando-o aos novos problemas e necessidades colocados pelas características clínicas da neurose.

 

3 O TRATAMENTO PSÍQUICO E A INTRODUÇÃO DA NOÇÃO DE AFETO

O texto Tratamento psíquico, publicado no ano de 1890, ilustra de forma bastante representativa o rendimento clínico e teórico obtido por Freud nestes primeiros anos de seu trabalho com as neuroses. Esse texto pode ser considerado como o contraponto clínico do ensaio crítico especulativo Sobre a concepção das afasias, de 1891 (BIRMAN, 1993).

As duas principais questões aí abordadas são: 1) o lugar e o sentido dado à palavra enquanto recurso terapêutico primário; e 2) a introdução da noção de afeto enquanto elo de mediação e eficácia entre processos psíquicos e corporais. Nesse texto sobre o tratamento, a formação de um excedente de excitação assume a forma de um estado afetivo que nada mais é do que a expressão emocional de uma vivência psíquica. Freud observa que o afeto, apesar de constituir um estado mental, tem a capacidade de provocar no corpo uma série de reações conforme seu conteúdo e que, nas neuroses, essa capacidade encontra-se intensificada, provocando a formação dos sintomas.

Segundo Freud, a expressão "tratamento psíquico" significa uma intervenção (seja em perturbações mentais ou corporais) com recursos que, de maneira primária e imediata, influem sobre a mente humana: "Um recurso desta índole é, sobretudo, a palavra, e as palavras são, com efeito, o instrumento essencial do tratamento mental" (FREUD, 1988 [1890], p. 115). Como os principais elementos mediadores das relações e da influência recíproca entre os seres humanos, as palavras teriam estado, inicialmente, a serviço das práticas curativas sacerdotais. Freud, por outro lado, situa seu trabalho como parte da recente reordenação do campo da medicina, em razão de sua inserção no domínio das ciências naturais. Cabe então, afirma o autor, tornar compreensível o modo como à ciência pode devolver à palavra uma parte de seu préstimo curativo. Para tanto, seria necessária uma reformulação da orientação bastante difundida pelos progressos da medicina moderna que restringira seu interesse ao corporal. A falta de autonomia clínica e conceitual do domínio psíquico que essa restrição do interesse médico acarreta é, então, problematizada e discutida, e a avaliação de Freud é que ciência médica seguiria uma orientação excessivamente unilateral:

É verdade que a medicina moderna teve ocasião de estudar os nexos entre o corporal e o mental, nexos cuja existência é inegável (...). A relação (...) é de ação recíproca; mas (...) a ação do mental sobre o corpo não era vista com bons olhos pelos médicos. Pareciam temer que, se concedessem certa autonomia à vida mental, deixariam de pisar no seguro terreno da ciência. (FREUD, 1988 [1890], p. 116, grifo nosso).

Contudo, como o próprio trabalho freudiano demonstra, houve modificações importantes nessa orientação, causadas pela própria experiência clínica com determinado tipo de transtornos que se tornaram um grande desafio a prática médica. Freud dá alguns exemplos desses quadros clínicos: pacientes que não podem realizar trabalhos intelectuais devido a dores de cabeça e por impossibilidade de concentração; aqueles que têm dores nos olhos quando leem; aqueles cujas pernas se cansam excessivamente quando caminham; os que sofrem de dores dispersas e imprecisas; os que padecem de transtornos digestivos com sensações penosas, de espasmos, de insônia etc. As provas clínicas de que as causas não se encontram em lesões orgânicas se encontram no fato de que esses sintomas exibem grande variabilidade, podendo ocorrer substituições, mudanças repentinas de localização e, até mesmo, em alguns casos, uma alteração nas condições de existência que pode por fim a essas afecções, sem que elas deixem qualquer sequela. Freud prossegue:

Tais estados têm recebido o nome de nervosismo (neurastenia, histeria) e têm sido definidos como enfermidades meramente funcionais do sistema nervoso. [...] Ao menos em alguns desses casos, os signos patológicos não provêm senão de um influxo alterado da ação de suas mentes sobre seus corpos. Portanto, a causa imediata da perturbação deve ser buscada em suas mentes. (FREUD, 1988 [1890], p. 117, grifo nosso).

Freud observa, na continuidade, que a experiência cotidiana fornece exemplos irrefutáveis da influência mental sobre o corpo, como no caso da assim chamada "expressão das emoções" (FREUD, 1988 [1890], p. 118). As expressões emocionais exteriorizam estados mentais por meio da tensão ou relaxamento dos músculos, das alterações cardíacas e respiratórias, do afluxo sanguíneo do interior do corpo para os vasos da pele, do modo de emprego do aparelho fonador, das posturas, em geral, e dos comportamentos das mãos e dos olhos, em particular; ou seja, grande parte das atividades psíquicas exibe consequências corporais. Dentre todas essas manifestações, Freud destaca aqueles estados psicológicos denominados afetos. Os estados afetivos - tais como o medo, a ira, as dores anímicas e o prazer sexual - são os melhores exemplos da intensa e significativa co-participação do corpo na expressão de estados mentais. Nos casos mais graves - como, por exemplo, na persistência de estados afetivos de natureza depressiva -,  a nutrição do corpo é rebaixada, os cabelos embranquecem, a gordura corporal vê-se reduzida e produzem-se alterações patológicas nas paredes dos vasos sanguíneos.  O inverso também pode ocorrer: sob a ação de afetos de felicidade, o corpo floresce, dando sinais de renovação e revitalização. Portanto, poder-se-ia concluir que:

Os afetos em sentido estrito se singularizam por uma relação muito particular com os processos corporais; mas, a rigor, todos os estados mentais, incluindo os que habitualmente consideramos "processos de pensamento", são em certa medida afetivos (...). Até mesmo a tranqüila atividade de pensar em "representações" provoca, segundo seus conteúdos, excitações permanentes sobre os músculos lisos e estriados. (FREUD, 1988 [1890], p. 120, grifo nosso).

As manifestações afetivas apresentam-se, assim, como a principal evidência de uma continuidade entre o corporal e o mental que, por um lado, fundamenta teoricamente a possibilidade de um tratamento psíquico, mas que, por outro, vai exigir extensas reformulações conceituais, com consequências para a própria concepção psicanalítica sobre a natureza do mental.

 

4 EXAME CRÍTICO DO CONCEITO DE REPRESENTAÇÃO

O trabalho crítico realizado no ensaio Sobre a concepção das afasias (FREUD, 1973 [1891]) pode ser considerado, de certa maneira, como uma etapa desse movimento interno da obra freudiana voltado para a investigação da histeria. Com efeito, Freud só conseguirá dar sequência a essa investigação a partir dos resultados obtidos nesse ensaio, a principal evidência disso é a postergação da conclusão do estudo sobre as paralisias orgânicas e histéricas, que só é publicado em 1893 e claramente incorpora os resultados obtidos na reflexão sobre os distúrbios da linguagem em 1891. No entanto, de acordo com os objetivos deste trabalho, concentraremos nossos comentários naquilo que diz respeito à elaboração de uma teoria freudiana da representação, que encontra ali seu momento crítico2. Trata-se de evidenciar como, de acordo com a teoria desenvolvida por Freud nesse ensaio, não haveria uma diferença de natureza entre corpo (ou cérebro) e representação: ambos, considerados desde um ponto de vista funcional, serão, desde então, concebidos como dois níveis de organização (ou de reorganizações sucessivas) de processos dotados, em última instância, de uma mesma natureza material. Essa teorização sobre a natureza material compartilhada pelo corpo e pela representação é o que concederá inteligibilidade à ação recíproca entre o psíquico e o corporal na formação dos sintomas histéricos.

Freud estende o exame crítico da teoria das afasias de Carl Wernicke - seu objetivo inicial em 1891 - para os fundamentos da mesma na doutrina de Meynert sobre a organização e funcionamento cerebral.  No que diz respeito ao conceito de representação, o problema assume a forma da seguinte questão: de que modo se encontra representado o corpo no cérebro e, mais especificamente, no córtex cerebral? Segundo Freud, Meynert entende essa representação como uma verdadeira projeção: uma representação ponto por ponto da estimulação corporal no córtex cerebral, incluindo músculos, áreas da pele, glândulas, vísceras, as afecções dos órgãos sensoriais, etc. - ou seja, o conceito de uma representação completa e topograficamente exata do corpo no órgão cerebral (FREUD, 1973 [1891], p. 64). 

Esse conceito de projeção (Projektion) se apoia na suposição da existência de feixes de fibras projetivas que refletem a periferia corporal no córtex. Porém, argumenta Freud, investigações sobre a anatomia cerebral teriam mostrado que nenhum feixe de fibras chega da periferia do corpo até as partes superiores do cérebro sem haver antes entrado em diversas conexões com a substância cinzenta da medula espinhal e dos núcleos subcorticais.

Freud toma como ponto de partida para a refutação dessa ideia de projeção os resultados dos estudos empíricos de Henle. Suas pesquisas teriam evidenciado que o número de fibras que partem da periferia do corpo para a medula espinhal não é o mesmo que vai da medula até o córtex cerebral: neste último trajeto, haveria uma redução do número de fibras. Por conseguinte, a relação da medula com a periferia sensório-motora do corpo é diferente de sua relação com o cérebro, e somente no segmento que vai até a medula existiriam os pré-requisitos para uma projeção.

Portanto, é adequado empregar termos diferentes para esses dois tipos de representação no sistema nervoso central. Se chamarmos "projeção" o modo como a periferia está refletida na medula espinhal, sua contraparte, no córtex, cerebral poderia ser convenientemente chamada de "representação" (Repräsentation). (FREUD, 1973 [1891], p. 66).

Esse argumento a favor de um novo conceito de representação (Repräsentation) se apoia na consideração crítica de que a ideia de Meynert de que um feixe de fibras aferentes retenha sua identidade no trajeto até o córtex, mesmo depois de haver atravessado um grande número de núcleos e estabelecido numerosas interconexões, é insustentável. Freud afirma a impossibilidade de conceber que essa fibra permaneça funcionalmente idêntica - isto é, que a significação funcional do processo que ela transmite seja a mesma -, devido à consideração de que a mielinização avança gradualmente de um núcleo a outro e que, para cada feixe de fibras aferentes, emergem três ou mais feixes eferentes desde um só núcleo. Estas frequentes interrupções e arborizações que o feixe sensorial aferente sofre na passagem pelos núcleos de substância cinzenta permitem supor que haja uma mudança no significado funcional dessa fibra ao longo deste trajeto a cada vez que ele emerge de um desses núcleos (FREUD, 1973 [1891]). Freud dá como exemplo do nervo óptico: em seu trajeto, uma fibra nervosa transporta uma impressão retiniana até um gânglio (tubérculo quadrigêmeo anterior); daí em diante, outra fibra vai deste gânglio até o córtex occipital. Nesse gânglio, ocorre também um entrecruzamento de fibras aferentes, no qual a impressão retiniana se associa a uma impressão muscular do movimento dos olhos; o mesmo acontece com as sensações dérmicas e musculares em geral, e assim por diante. Portanto, aquilo que chega ao córtex não é, de forma alguma, algo simples, mas uma multiplicidade de associações entre diversas impressões sensoriais que determinam a alteração qualitativa e o ganho complexidade que alteram profundamente o significado funcional dos processos durante esse percurso. Com isso, seria necessário concluir:

(...) que os feixes de fibras que chegam ao córtex cerebral depois de haverem passado por outras massas cinzentas mantêm alguma relação com a periferia do corpo, mas não refletem uma imagem topograficamente exata dele. Contém a periferia do corpo da mesma maneira que - para tomar um exemplo do tema que nos interessa aqui - um poema contém o alfabeto, ou seja, uma disposição completamente diferente que está a serviço de outros propósitos, com múltiplas associações dos elementos individuais, nas quais alguns podem estar representados várias vezes enquanto outros podem estar completamente ausentes. (FREUD, 1973 [1891], p. 68).

O princípio subjacente a essa reordenação é puramente funcional, e as relações topográficas se manteriam na medida em que se ajustassem às funções. Isso significaria assumir que: 1) não há relações topográficas pré-estabelecidas - essas seriam constituídas como decorrência do exercício das funções; 2) as mudanças no significado funcional dos processos ocorrem de acordo com as sequências associativas estabelecidas pela experiência.

A primeira representação do corpo diz respeito, antes de tudo, à importância funcional da parte representada. É um modo de representação que admite variações, pois as partes do corpo a serem mais ou menos intensa ou detalhadamente representadas seriam selecionadas de acordo com a importância que adquirem no decorrer dos processos. É importante notar que a representação do corpo que resulta desse processo material é destituída de uma significação a priori. A significação do corpo constrói-se a posteriori, mediante a associação entre as representações - processo em que, a partir de certo momento, as representações de palavra (isto é, a linguagem) desempenharão um papel crucial. Também é importante observar que o processo de formação de uma representação pode ser, desde já, pensado como algo distinto e independente daquilo que se experimenta enquanto consciência.

Com essa argumentação, Freud recusa qualquer possibilidade de se pensar a representação como cópia ou espelhamento do objeto externo percebido; no limite, essa concepção vai impedir que se conceba o domínio mental como um todo como um duplo psíquico de um processo físico ou neurológico (SIMANKE, 2006). A representação passa ser, antes de tudo, uma construção psíquica, produto de uma sucessiva recriação da informação sensorial, segundo princípios associativos que, no seu estágio final e mais elevado, dá lugar a uma Repräsentation ou, segundo o símile que Freud sugere, um poema neurológico, expresso na afirmação de que o córtex contém os estímulos periféricos como um poema contém o alfabeto (RIZZUTO, 1993).

Contrapondo a noção dinâmica de processo à noção estática de localização, Freud torna-se capaz de refutar a hipótese da existência de centros anatômicos especializados da linguagem. O processo, segundo a apropriação que Freud faz desse conceito de Hughlings Jackson (CAROPRESO, 2008b), é algo que se difunde amplamente por todo o córtex, deixando atrás de si modificações permanentes (traços mnêmicos), não havendo, portanto, necessidade de se postular a existência de centros estáticos e de vias de condução diferenciadas. Essas modificações processuais permitem que haja uma possibilidade de recordação, pois, segundo esse raciocínio, a cada vez que o processo tornar a ocorrer, suscitando os mesmos estados corticais, o evento psicológico concomitante surge novamente, sob a forma rememoração. Assim, a cada emergência de uma representação psíquica simples corresponderia uma rede associativa neurológica complexa.

Freud, portanto, apoiando-se no conceito de representação e de hierarquia funcional de Jackson e na influência das ideias de Stuart Mill (HONDA, 2002), pode sustentar que, nessa passagem do simples ao complexo - e, anatomicamente, da periferia ao córtex - são produzidas diferenças funcionais qualitativas que afetam progressivamente a significação dos processos. Portanto, a definição mesma de processo pode ser pensada como comportando uma sucessão de recriações associativas que dá ensejo à emergência de propriedades distintivas, que não se encontram nos elementos individuais, ultrapassando, assim, a ideia da existência de séries paralelas de processos físicos e mentais e da inexistência de uma relação causal entre eles.

Mesmo que Freud não assuma, de imediato, as consequências de sua crítica, é possível reconhecer que tenha chegado, mesmo que inadvertidamente, a uma solução emergentista para o problema mente-cérebro (ZANETTI, 2006). Assim, a ideia de emergência se insinua aí enquanto uma possibilidade de interpretação do conceito de representação (Vorstellung) ao longo desse ensaio, a qual consistiria então:

(...) no conjunto de propriedades distintivas que os processos corticais adquirem ao se verem organizados de uma determinada maneira, no nível mais evoluído e de maior complexidade e flexibilidade, segundo os princípios jacksonianos; haveria, então, uma diferença funcional entre o neurológico e o mental, mas não mais uma diferença essencial ou de natureza, abrindo caminho para a formulação de uma psicologia materialista, como a que Freud vai empreender no Projeto e que não deixa de ser a meta e o horizonte de toda a metapsicologia. (SIMANKE, 2006, p. 89, grifo nosso).

Essa conclusão também pode ser estendida à relação do psíquico com sua base corporal. Apreendidos no seu registro funcional - e não anatômico -, corpo e representação fazem parte de um único processo material, que adquire significações distintas ao longo do seu desenvolvimento. Contudo, a desvinculação entre o psíquico e a consciência somente se consuma, em 1895, no Projeto de uma psicologia (CAROPRESO, 2008a), permitindo que a representação possa produzir toda uma série de efeitos descritos em termos psicológicos, mesmo sem aceder à consciência.

 

5 O CORPO NO CONTEXTO DE UMA CLÍNICA DO AUDÍVEL

No seu trabalho subsequente, Algumas considerações para o estudo comparativo das paralisias motoras orgânicas e histéricas (1988 [1893]), Freud avança na compreensão daquilo que a histeria revela sobre a particularidade com que o corpo é apreendido quando se trata de sua representação psicológica.

Segundo Freud, a clínica nervosa reconhece duas classes de paralisias motoras que estariam em perfeito acordo com os dados da anatomia do sistema nervoso. São elas: 1) a paralisia periférico-espinhal (paralisia de projeção); e 2) a paralisia cerebral (paralisia de representação). Com a Projektion, se trata da relação ponto a ponto que a estimulação periférica manteria com medula espinhal; com a Repräsentation, da relação entre as terminações sensoriais periféricas e o córtex, mediada por sucessivos processos de seleção, recombinação e organização das conduções nervosas nos núcleos intermediários (SIMANKE, 2006).

Com base nessa distinção, Freud dá continuidade ao exame clínico comparativo entre essas paralisias orgânicas e as paralisias histéricas iniciado no artigo Histeria. Diante das evidências, "pode-se sustentar que a paralisia histérica é também uma paralisia de representação, mas de um tipo especial de representação cuja característica deve ser descoberta" (FREUD, 1988 [1893], p. 200, grifo nosso).

Freud se propõe a elucidar essas questões interrogando-se sobre a natureza da lesão que estaria em jogo nas paralisias histéricas. Segundo Charcot, afirma Freud, trata-se, na histeria, de uma lesão cortical; no entanto, essa lesão é de natureza exclusivamente dinâmica ou funcional, ou seja, um tipo de lesão em que não se pode detectar nenhuma alteração tecidual por meio da autópsia. Charcot acreditava que essa lesão dinâmica possa decorrer de perturbações funcionais perfeitamente localizáveis, tais como edemas, anemias ou hiperemias; todavia, Freud observa que essas perturbações listadas por Charcot, apesar de transitórias, são ainda autênticas lesões orgânicas.

Afirmo o contrário que a lesão das paralisias histéricas deve ser por completo independente da anatomia do sistema nervoso, uma vez que a histeria se comporta, em suas paralisias e outras manifestações, como se a anatomia não existisse ou como se não tivesse nenhuma noticia dela. (FREUD, 1988 [1893], p. 206, grifo do autor). 

 A sintomatologia histérica ignora a distribuição anatômica das inervações. Eis a tese que Freud quer introduzir, aderindo, de forma plena, como ele mesmo reconhece, às concepções de Pierre Janet a favor da particularidade com que o corpo é representado do ponto de vista psicológico. A histeria "toma os órgãos pelo sentido comum, popular, dos nomes que eles têm: a perna é a perna até sua inserção no quadril" (FREUD, 1988 [1893], p. 202). Portanto, não há razão, por exemplo, para que uma paralisia histérica do braço atinja parte da face, como é esperado na paralisia orgânica, e o mesmo desconhecimento se passa com as anestesias e os outros sintomas.

Para apreender a particularidade da formação dos sintomas na histeria, é necessário revisitar essa noção de lesão funcional, extraindo-a do âmbito da anatomia para o da psicologia das neuroses. Nessa acepção, a lesão, enquanto alteração de uma propriedade funcional (como uma diminuição da excitabilidade ou de uma qualidade fisiológica constante) passa a estar correlacionada com a dinâmica dos nomes com que o corpo é representado, de acordo com a experiência perceptual de cada paciente, e partilhado com seus semelhantes:

Afirmo, com Janet, que (...) essa concepção não se funda em um conhecimento profundo da anatomia nervosa, mas sim em nossas percepções tácteis e, sobretudo, visuais. (...) A lesão da paralisia histérica será então, uma lesão da concepção de braço; a idéia de braço, por exemplo. (FREUD, 1988 [1893], p. 207, grifo nosso).

Freud afirma, nesse momento, que a concepção ou representação (Vorstellung) - resultante da reorganização cortical dos processos - designa a tomada dos órgãos pelo sentido comum dos nomes que recebem. O que discernimos anteriormente como o processo de representação (Repräsentation) - a reorganização que ocorre entre a periferia e o córtex - antecede e prepara o caminho para essa representação do corpo pelo nome. Assim, as conclusões da reflexão freudiana sobre a relação entre o corpo, o cérebro e a mente, se refletem agora na sua concepção da representação, no sentido psicológico de ideia, sem solução de continuidade. Com isso, ele está propondo que a apreensão sensorial (táctil e visual) do corpo que resulta numa Objektvorstellung (representação de objeto) deva preceder a sua nomeação através da associação com as representações de palavra, que é uma aquisição mais tardia. O ato da nomeação se faz, portanto, por meio da associação entre impressões corporais periféricas, representadas por meio de suas imagens tácteis e visuais, e as impressões linguísticas sonoras, representadas pelas imagens acústicas.

Segundo Freud, a representação de objeto, tal como a de palavra (Wortvorstellung), também tem por base um intrincado processo associativo, ou seja, sua emergência psicológica também é precedida por uma progressiva reorganização funcional do material sensorial bruto ao longo do trajeto da periferia do corpo ao córtex. Porém, trata-se ainda de uma referência extralinguística, integrada por uma diversidade indefinida de impressões que, a princípio, precede a formação de palavras, e sua emergência como processo psíquico é absolutamente independente da constituição das associações linguísticas (RIZZUTO, 1993). Daí a aproximação estabelecida por Freud entre essa concepção de objeto e o conceito de "coisa" (Ding) ambas extraídas da filosofia de Stuart Mill (ZANETTI, 2007). Segundo essa aproximação, a representação de objeto comportaria sempre um resto que se subtrai ao processo de significação por meio da associação com as representações verbais. Portanto, a nomeação da experiência com o corpo nunca tem fim, ela se faz a partir de um aparelho de linguagem organizado em torno de uma relação aberta com a experiência sensorial.

A lesão funcional da qual resulta a paralisia histérica deve, então, incidir, não sobre o corpo anatômico, mas sim sobre sua representação psíquica. Trata-se, em suma, da lesão de uma representação:

Considerada psicologicamente, a paralisia de braço consiste no fato de que a concepção de braço não pode entrar em associação com as outras idéias que constituem o eu, do qual o corpo do indivíduo forma uma parte importante. A lesão seria, então, a abolição da acessibilidade associativa da concepção de braço. Essa se comporta como se não existisse para o jogo das associações. (FREUD, 1988 [1893], p. 208, grifo nosso).

Com a introdução dessa noção de abolição da acessibilidade associativa, Freud pretende demonstrar que a representação psíquica (Vorstellung) pode estar inacessível (como se não existisse), sem que seu substrato material correspondente esteja lesionado ou destruído. Para isso reintroduz a noção de afeto: 

Se a concepção de braço está envolvida numa associação de grande valor afetivo, será inacessível ao livre jogo das outras associações. O braço estará paralisado em proporção à persistência desse valor afetivo ou da sua diminuição por meios psíquicos apropriados. (FREUD, 1988 [1893], p. 208).

Assim, conclui Freud, a representação de braço, mas precisamente sua representação de movimento, existe no substrato material, mas não está acessível aos impulsos conscientes, e isso se dá devido ao alto valor afetivo relacionado com a recordação de um evento traumático com que está envolvida numa associação inconsciente. Uma hipótese perfeitamente coerente com o método de tratamento proposto, que visa liberar o membro ou a função histericamente paralisada, por exemplo, ab-reagindo à intensidade afetiva de sua representação através de um trabalho psíquico associativo. A histeria toma o corpo através de sua representação e desconhece completamente o saber adquirido pela ciência anatomopatológica. Trata-se de um corpo libidinalmente construído, a partir da experiência da relação com o outro, muito diferente, portanto, do corpo revelado pelo cadáver na autópsia ou pelo isolamento funcional do órgão no laboratório.

 

6 CONCLUSÃO

Assim, tendo em vista o ponto de partida freudiano no interior de uma tradição médica constituída historicamente sobre a clínica do visível, no momento em que Freud elege a escuta do discurso afásico e histérico como objeto de sua pesquisa, executa um movimento que o levará a uma ruptura com essa tradição. O mais significativo dessa ruptura seria que ela "é produto de uma crítica de natureza epistemológica dos métodos, dos conceitos e dos objetos tipicamente médicos que foram seu ponto de partida" (SIMANKE, 2004, p. 7). Portanto, resulta do movimento próprio de um trabalho que pretende abrir o domínio e estabelecer as bases de uma nova disciplina no campo do saber - fundamentado, metodologicamente, numa clínica do audível, e não mais do visível (NASSIF, 1977). Dessa trajetória foi possível destacar o estatuto inédito que o corpo adquire, a partir de uma clínica da escuta e de uma teoria da representação, cujo enraizamento material torna inteligível a passagem de um pensamento e de sua carga afetiva para a inervação somática - movimento crítico e clínico que confere uma armação conceitual capaz de vincular, de maneira indissociável, corpo e representação. E isso em plena concordância com uma terapêutica na qual o sintoma advém no lugar do traumático, e o tratamento visa à articulação de uma fala capaz traduzir e liberar o afeto de uma vivência sem palavras.

 

AGRADECIMENTOS

Os autores gostariam de agradecer ao CNPq, que apoiou este trabalho sob a forma de Bolsa de Mestrado concedida a Clovis Eduardo Zanetti e de Bolsa de Produtividade em Pesquisa concedida a Richard Theisen Simanke.

 

REFERÊNCIAS

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Endereço para correspondência:
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Artigo recebido em: 28/07/2009
Aprovado para publicação em: 21/02/2011

 

 

1 O presente artigo é parte dos resultados obtidos pela pesquisa de mestrado Corpo, representação e o domínio do real: a constituição do conceito de realidade psíquica em Freud (ZANETTI, 2006), realizada junto ao Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal de São Carlos, orientada pelo Prof. Dr. Richard Theisen Simanke.
2 Para um exame mais detalhado do problema específico das afasias nesse ensaio, remetemos o leitor aos trabalhos de Nassif (1977) e Caropreso (2008).

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