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Mental

versão impressa ISSN 1679-4427

Mental vol.9 no.16 Barbacena jun. 2011

 

ARTIGOS

 

Produção de subjetividade e estratégias de inserção social para usuários em um Centro de Atenção Psicossocial, na Bahia

 

Production of Subjectivity and social insertion strategies for users in a Psychosocial Attention Center, in Bahia, Brazil

 

 

Mônica LimaI; Vládia Jamile dos Santos JucáII; Lívia SantosIII

IPsicóloga, Doutora em Saúde Coletiva pelo Instituto de Saúde Coletiva (ISC) da Universidade Federal da Bahia (UFBA), Professora Adjunta do Instituto de Psicologia da UFBA, Pesquisadora do Núcleo Interdisciplinar em Saúde Mental do ISC da UFBA e do Laboratório de Estudos de Vínculos e Saúde Mental (LEV/IPS)
IIPsicóloga, Doutora em Saúde Pública pelo ISC da UFBA, Professora Adjunta do Instituto de Humanidades, Artes e Ciências da UFBA, Pesquisadora do ISC da UFBA
IIIPsicóloga, Bolsista de Iniciação Científica da UFBA (PIBIC/FAPESB)

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo reflete sobre a produção de subjetividade de usuários com acesso a estratégias de inserção social e relações cotidianas com os profissionais de saúde, em um Centro de Atenção Psicossocial (CAPS). Foram utilizadas a epistemologia qualitativa e o conceito de subjetividade de Fernando González-Rey. Realizaram-se entrevistas semiestruturadas com usuários, familiares e profissionais do CAPS, além de registro em diário de campo das observações participantes. Os dados foram expostos em dois eixos: organização interna do CAPS e relação com a rede pública de saúde; estratégias de inserção social intra e extramuros. Há mudanças subjetivas individuais dos envolvidos no desafio de construir esse modelo substitutivo, que apesar de todas as dificuldades, proporciona aos usuários acesso a estratégias que se opõem ao isolamento e à exclusão social.

Palavras-chave: Subjetividade; inclusão social; CAPS; reforma psiquiátrica; saúde mental; epistemologia qualitativa.


ABSTRACT

This article discusses the production of subjectivity of users with access to social insertion strategies and day-to-day relations with the health professionals in a Psychosocial Attention Center. A qualitative epistemology approach and Fernando González-Rey's concept of subjectivity were used. Semi-structured interviews were used with users, family members, and professionals, as well as a field diary to register the participant observations. The data were illustrated from two perspectives: internal organization of the service and its relation with the public health system; and indoor and outdoor social insertion strategies. There are individual subjectivity changes of the people involved in the challenge of building this substitute model, which, regardless all difficulties, offers users access to strategies opposed to isolation and social exclusion.

Keywords: Subjectivity; social inclusion; psychiatric reform, mental health, qualitative epistemology.


 

1 INTRODUÇÃO

Embora Canguilhem (1972 apud BERNARDES, 2007) tenha descrito o advento da Psicologia como ciência da subjetividade a partir das transformações das ciências naturais já no século 18, percebe-se - a partir da primeira década do século 21, no campo da Psicologia Social no Brasil - a intensificada retomada do conceito de subjetividade como central para a compreensão da relação indivíduo-sociedade. Busca-se, então, problematizar a complexidade constituinte da produção singular em situações concretas de vida, de violação de direitos humanos, de desigualdade social, de relações raciais, de discriminação, de exclusão social e no campo das políticas públicas (MOLON, 2003; SILVA, 2003; FURTADO; GONZÁLEZ-REY, 2002; GONÇALVES, 2010). Em detrimento da riqueza de uma revisão exaustiva sobre a temática da subjetividade e de sua relação com a inserção social, este artigo, a partir de dados empíricos, descreve algumas tecnologias de cuidado utilizadas com objetivo de promover a inserção social de pessoas em sofrimento mental vinculadas a um Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) da Bahia e analisa as implicações nos processos de subjetivação dos usuários daí decorrentes.

Neste artigo, buscou-se refletir sobre como a presença e o envolvimento dos usuários com as estratégias concretas e relações cotidianas com os profissionais de saúde, supostamente mais sensíveis à inclusão social, produzem modos de perceber, sentir e orientar suas vidas. Desse modo, exploraram-se as vivências dos sujeitos envolvidos com o CAPS por meio de relatos de situações e casos concretos. Além disso, apresentam-se indicadores que abrangem três domínios das estratégias de inclusão social: o do serviço - o CAPS em questão; o da família dos usuários e do território vivido.

Este artigo é um dos frutos da pesquisa "Articulando experiências, produzindo sujeitos e incluindo cidadãos: um estudo sobre as novas formas de cuidado em saúde mental na Bahia e em Sergipe, Brasil" (NUNES et al. 2005)1, a qual se utilizou de uma rica diversidade teórico-metodológica, brevemente, retratada na seção seguinte. Parte-se do pressuposto de que a presença de usuários em modelos substitutivos - considerando a qualidade das tecnologias empregadas pelos profissionais que cumprem as finalidades de inserção social e de ampliação da autonomia dos mesmos, particularmente, no território - faz dos CAPS cenários de produção de subjetividade, quando oportunizam vínculos dos usuários com a rede de apoio. Os CAPS podem se particularizar ao implementarem:

práticas [...] que se caracterizam por acontecerem em ambiente aberto, acolhedor e inserido na cidade, no bairro. Os projetos desses serviços, muitas vezes ultrapassam a própria estrutura física, em busca da rede de suporte social, potencializadora de suas ações, preocupando-se com o sujeito e sua singularidade, sua história, sua cultura e sua vida quotidiana. (BRASIL, 2004, p. 14).

Contou-se com a inspiração das contribuições de Fernando González-Rey, no campo da Psicologia Social, no que diz respeito à proposta da epistemologia qualitativa (GONZÁLEZ-REY, 2002a, 2003a, 2003b, 2005 como orientadora da coleta e análise dos dados, uma perspectiva sensível aos estudos sobre a subjetividade (GONZÁLEZ-REY, 2002b, 2005, 2007).

Em relação à adoção da epistemologia qualitativa, em sua especificidade no campo da produção do conhecimento, a subjetividade como definida pelo autor surge em "um cenário facilitador que tem como elemento central o diálogo, e não a aplicação direta de um instrumento" (GONZÁLEZ-REY, 2003a, p. 173), por entender que a:

subjetividade é um sistema em desenvolvimento permanente, implicado sempre com as condições de sua produção, embora com uma estabilidade que permite definir os elementos de sentido constituintes das configurações dominantes do sujeito em relação às principais atividades e posições que ocupam em cada momento concreto da vida. (GONZÁLEZ-REY, 2003a, p. 173).

Na direção adotada para a realização da pesquisa, concorda-se com o referido autor que não há pretensão de neutralidade dos pesquisadores e objetivação dos sujeitos entrevistados ou situações observadas na coleta dos dados, uma vez que se buscou intencionalmente distanciar-se da epistemologia positivista (concepção quantitativa-instrumental) (GONZÁLEZ-REY, 2003a; 2003b, 2005). Esta tende a restringir as possibilidades de interpretação do pesquisador e, muitas vezes, impedir a inclusão de aspectos novos e diferentes dos previstos sobre o objeto estudado, porque concentra-se apenas em categorias excessivamente pré-definidas: "a padronização da informação [...]  impede o estudo do singular" (GONZÁLEZ-REY, 2003a, p. 168).

Este artigo divide-se em três partes. Na primeira, situa-se o recorte do artigo na pesquisa maior, desenvolvida pelo Grupo de Pesquisa do Núcleo de Estudos Interdisciplinares em Saúde Mental (NISAM) do Instituto de Saúde Coletiva (ISC) da Universidade Federal da Bahia (UFBA), apresentando algumas considerações teórico-metodológicas que a orientaram. Na segunda, apresentam-se os resultados e discussões organizados em dois eixos centrais: 1) organização interna dos CAPS e relação com a rede pública de saúde; 2) estratégias de inserção social intra e extramuros utilizadas pelos profissionais dos CAPS investigados. Por fim, na última parte (conclusões), destacam-se pontos de partida mais do que de chegada, por compreender-se que a novidade da implantação dos CAPS e dos demais modelos substitutivos de cuidado, no Brasil, não superam, isoladamente nem com a urgência necessária (LIMA; JUCÁ; NUNES, 2010), nem mesmo outras proposta de cuidado mais inclusiva fora do Brasil (FONTES; FONTE, 2010) os séculos de subjetividade social (GONZÁLEZ-REY, 2003b) constituídos por representações negativas da loucura e do louco, muito menos a discriminação e exclusão social a que as pessoas com transtornos mentais têm sido submetidas ao longo da história da humanidade (FOUCAULT, 1987).

 

2 MÉTODOS DE COLETA E ANÁLISE DOS DADOS

A pesquisa maior de onde se origina os dados do presente artigo, em sua vertente etnográfica, realizou-se em dois momentos, fundamentalmente entre os anos de 2006 a 2008. A primeira fase foi denominada semi-intensiva (2006-2007). O objetivo principal desse momento foi conhecer, de modo mais abrangente, o funcionamento dos serviços, as conquistas realizadas e as principais dificuldades vivenciadas pelas equipes. Essa fase da equipe foi desenvolvida em três semanas, nas quais, além das entrevistas e grupos focais, realizávamos um período de observação sistemática, sobretudo acerca das atividades desenvolvidas nos CAPS.

Em termos de técnicas de coleta de dados empregadas, foram realizadas entrevistas com gestores (secretários de saúde), coordenadores dos CAPS, usuários e grupos focais com profissionais e com familiares.  Nesse momento, foram estudados 11 CAPS, sendo 7 na Bahia e 4 em Sergipe. Em Aracaju, foram estudados CAPS correspondentes a cada uma das modalidades: tipo I, tipo II, tipo III, infanto-juvenil (CAPsia) e CAPSad, para dependentes de álcool e de outras drogas. Na Bahia, todas as modalidades foram estudadas, à exceção do CAPS III, situado em um dos municípios escolhidos para o estudo, no qual o acesso ao serviço e à equipe nos foi negado. Tentou-se contemplar, na Bahia, também certa representatividade regional, não no sentido epidemiológico do termo, mas na perspectiva de integrar, no referido grupo de estudo, CAPS situados em macrorregiões distintas. Buscou-se, com isso, obter alguma diferenciação, principalmente em termos culturais e demográficos, tendo sido observadas também distinções sociais e econômicas.

Na segunda etapa da pesquisa (2007-2008), o principal intuito foi promover um aprofundamento do trabalho de investigação em três CAPS previamente selecionados, a partir de critérios como: tempo superior a um ano de funcionamento, presença de uma equipe atuante, disponibilidade do serviço em receber os pesquisadores e fácil acesso (não poderia ser um CAPS distante da capital, pois essa fase da pesquisa tem duração de um ano e não contamos com pesquisadores que poderiam se afastar durante todo esse tempo de Salvador). Nessa fase, a pesquisa adquiriu uma configuração etnográfica, por meio da qual os pesquisadores buscam uma imersão maior nos serviços, acompanhando as atividades a partir de observação participante e relatando-as em diários de campo, bem como realizando entrevistas com usuários, profissionais e membros das comunidades nas quais os serviços são localizados. Os dados analisados neste artigo referem-se, principalmente, a essa fase da pesquisa.

A proposta com os usuários selecionados, em particular, foi resgatar suas histórias de vida para compreender os impactos trazidos pelo adoecimento em suas respectivas trajetórias e os efeitos que suas inserções em atividades promovidas nos CAPS têm produzido sobre suas existências; porém, algumas reflexões, inevitavelmente, são frutos do manejo de dados da primeira fase, sendo necessário o registro dessa advertência metodológica.

2.1 Contexto e sujeitos da pesquisa

Entre os 11 CAPS estudados, foi definido um situado em município próximo a Salvador, para o trabalho de campo realizado particularmente pelas duas pesquisadoras e pela bolsista de iniciação científica (CNPq), co-autoras deste artigo. O trabalho de campo ocorreu por meio da realização de visitas iniciais de ambientação no CAPS pesquisado, realizando-se observações difusas que produziram os primeiros indicadores para a elaboração de um roteiro mais sistemático de observação participante, que incluiu participação dos pesquisadores em oficinas terapêuticas e de renda, atividades de lazer (jogos de dominó, por exemplo), feiras de artesanato, vistas domiciliares. Foram cinco meses de observação, sendo que as impressões obtidas foram anotadas em um diário de campo.

Também foram realizadas, no total, cinco entrevistas narrativas com usuários do serviço. Ainda que centrada no relato de experiências pessoais, tal técnica de coleta de dados preza pelos acontecimentos sociais e institucionais que permeiam suas histórias de vida, definidos pelos informantes e encorajados pelo entrevistador, em um diálogo orientado por um roteiro flexível (BAUER; JOVCHELOVITCH, 2002). Foram feitas duas entrevistas semiestruturadas com familiares de usuários e uma entrevista com uma funcionária do CAPS. Os últimos sujeitos eram encorajados a narrarem a história dos usuários do seu ponto de vista, a partir das experiências compartilhadas direta ou indiretamente com eles. Cabe destacar que na construção dos instrumentos e estratégias de coleta considerou-se que:

os processos de definição dos indicadores e de construção da informação representam dois momentos permanentes da pesquisa qualitativa que se relacionam ativamente entre si e que acompanham todo o desenvolvimento da pesquisa. (GONZÁLEZ-REY, 2003a p. 181).

Contudo, uma vez inserido em um grupo de pesquisa, foram também utilizadas para a construção deste artigo entrevistas previamente obtidas pela equipe, antes dessa imersão de cinco meses. Assim, além de todo o material anteriormente produzido sobre o CAPS estudado ter sido cuidadosamente lido, utilizaram-se também entrevistas com a primeira coordenadora do CAPS, com o atual coordenador e fez-se a transcrição de dois grupos focais - um com familiares e outro com profissionais. Posteriormente, foram realizadas leituras exaustivas dos referidos materiais, interpretando-os de acordo com a fundamentação teórica adotada.

Adotou-se maior riqueza de estratégias de coletas e diversidade de entrevistados a fim de conhecer as concepções e experiências concretas de todos os sujeitos envolvidos no CAPS acerca do sofrimento mental e da sua relação com a inserção social dos usuários e a construção da cidadania, levando-se em conta as diretrizes político-clínicas prescritas para esse tipo de dispositivo de saúde mental.

Por fim, buscou-se desenvolver um cenário de pesquisa (GONZÁLEZ-REY, 2003a) que produzisse implicação dos participantes no processo da pesquisa, a partir da criatividade do pesquisador para definir um espaço possível de inter-relação com os sujeitos pesquisados (por exemplo, participar do jogo de cartas para começar um vínculo com os usuários), além de proporcionar a "criação de um espaço de diálogo", o que requer "participação voluntária" do pesquisador e "plena consciência das situações" concretas a serem enfrentadas ao longo do trabalho de campo (GONZÁLEZ-REY, 2003a, p. 177).

2.2 Análises dos dados: a perspectiva da teoria da subjetividade

O referencial teórico adotado neste recorte específico foi a teoria da subjetividade de González Rey, que compõe a perspectiva histórico-cultural da Psicologia Social. O ponto de partida para essa escolha teórica é de que os princípios de valorização da singularidade, da experiência única dos sujeitos - que possui ou não lugar em determinados espaços sociais - e do processo de construção da cidadania e da inclusão social são compartilhados entre as diretrizes que compõem os fundamentos recomendados para os CAPS e compatíveis com as teorizações do referido autor, que propõe um caráter constituinte entre as dimensões individuais e sociais da subjetividade, expressas nos conceitos de subjetividade individual e social (GONZÁLEZ-REY, 2002a; 2002b, 2004, 2005, 2007).

 A perspectiva adotada destaca que o processo de construção da subjetividade humana constitui-se por meio de relações dialéticas entre os domínios social e o individual, estabelecendo-se num processo complexo, onde as instâncias simbólicas e afetivas dos indivíduos são concebidas como inseparáveis. A noção de subjetividade, nesta abordagem, refere-se aos processos e organizações que possuem uma qualidade particular, distinta de outros âmbitos da realidade humana, qualidade esta que é produzida (e produz) tanto sujeitos quanto espaços sociais. Nesse sentido, percebe-se que:

(...) esta subjetividade, ao estar definida pela qualidade particular de um tipo de fenômeno, deixa de estar referida a atributos coisificados, referidos a outros processos fisiológicos, sociais ou comportamentais. (GONZÁLEZ-REY, 2007, p. 141).

Assim, pode-se dizer que aspectos e configurações subjetivas têm lugar em indivíduos e instituições, não se remetendo a conteúdos intrapsíquicos, isolados de uma vinculação social. Dito de outra forma, a existência concreta dos indivíduos tem lugar numa sociedade que possui significados culturais próprios. Compreende-se, nesse contexto, que a cultura não possui uma trajetória única, mas constitui-se numa rede complexa e heterogênea de significados construídos socialmente pelas pessoas, uma vez que a sociedade é composta de indivíduos (GEERTZ, 1989). Assim, o sujeito que está inserido em um dado espaço sociocultural pode se identificar e apropriar-se dele, mantendo seus significados hegemônicos, mas, por outro lado, é capaz de elaborá-los e, refletindo sobre os mesmos, oferecer elementos próprios, singulares, que fornecem a estes significados compartilhados variações pessoais.

Nisso consiste o processo de formação dos sentidos subjetivos (GONZÁLEZ-REY, 2005) - principal unidade de significação da subjetividade individual, ou seja, a apropriação ativa do sujeito em relação às concepções culturais existentes. O sentido subjetivo representa, então, uma acepção ontológica diferente para o entendimento da psique como produção cultural (GONZÁLEZ-REY, 2002a, 2005, 2007).

A subjetividade individual constitui-se na elaboração e organização dos sentidos subjetivos por meio de configurações subjetivas, que são mantidos e transformados a partir das atividades e experiências humanas por processos psicológicos: pensamento, linguagem e emoções (BORRIONE, 2004). Nas palavras do próprio González-Rey (2007, p. 137):

a ação e a comunicação humana são fontes permanentes de sentidos subjetivos, que nem sempre são compatíveis com os sentidos subjetivos dominantes nas configurações subjetivas que caracterizam a personalidade do sujeito antes de uma atividade ou evento concreto de sua vida.

Do ponto vista da análise realizada das narrativas, considerando-se as noções apresentadas, por meio de uma atividade concreta (por exemplo, uma oficina terapêutica ou de geração de renda), um indivíduo-usuário de um CAPS pode elaborar sentidos subjetivos novos, os quais podem ser incompatíveis com suas configurações subjetivas anteriores ou não compartilhados por todos de um mesmo grupo ou instituição. É admissível que essa elaboração possa se estabelecer numa configuração subjetiva que promova uma maior autonomia desse indivíduo ou o faça produzir novos sentidos acerca das experiências vividas, permitindo um enfrentamento mais ativo e satisfatório para as implicações socioculturais do ser/estar uma pessoa com transtorno mental. É evidente que isso se constitui em uma possibilidade, uma vez que as pessoas não iniciam suas experiências de maneira neutra: trazem consigo uma subjetividade individual formada por configurações subjetivas mais ou menos hegemônicas. No entanto, o destaque dado na citação abaixo ressalta a construção dos sentidos subjetivos em sua dimensão mais original e não se restringem ao desdobramento de um estado em outro:

os processos de subjetivação que surgem nessas experiências não estarão definidos por essa produção subjetiva inicial, mas sim pelo desenvolvimento que tome a expressão diferenciada dessas pessoas dentro da atividade que realizam. (GONZÁLEZ-REY, 2007, p. 138).

Desse modo, fica claro que estamos lidando com processos e fenômenos complexos, agravando-se o fato de que a subjetividade individual tem lugar num contexto social caracterizado também por aspectos e configurações subjetivas. Os sentidos que demarcam a produção subjetiva num dado espaço social formam parte da subjetividade social (GONZÁLEZ-REY, 2004). A subjetividade social, por sua vez, pode ser entendida como o produto de processos de significação e sentido que particularizam os ambientes sociais e que delimitam e mantêm os espaços sociais em que vivem os indivíduos, por meio da perpetuação dos significados e sentidos que os caracterizam.

Nesta perspectiva, cuidar de uma pessoa no CAPS não poderá ser, a princípio, igual a tratá-lo no hospital psiquiátrico (de fato, são inúmeras as narrativas dos sujeitos da pesquisa que diferenciam e opõem os dois sistemas, avaliando o CAPS como muito melhor do que o hospital psiquiátrico), nas repercussões que produzem na subjetividade.

Entretanto, para avançar-se teórico-empiricamente, é necessário considerar que a produção subjetiva em sistema de não isolamento e descentrada exclusivamente da remissão de sintomas (supostamente CAPS) seja um ponto de partida significativo como cenário de produção de subjetividade que conduza a maior autonomia e inserção social dos usuários. Contudo, é crucial compreender que a qualidade da interação entre os sujeitos será a condição concreta para construção de processos subjetivos antimanicomialistas.

González Rey (2005) entende que podem existir diferentes subjetividades sociais características de espaços sociais específicos, muitas vezes contraditórios e heterogêneos, mas que, de maneira geral, são responsáveis por constituir a sociedade. Contudo, nessa perspectiva, sempre se enfatiza o papel ativo do sujeito, capaz de promover rupturas na subjetividade social por meio dos processos individuais de subjetivação e atividade. De modo operacional, apresentam-se, na seção seguinte, as análises das narrativas a partir dos indicadores, entendidos como:

aqueles elementos que adquirem significação graças à interpretação do pesquisador, ou seja, sua significação não é acessível de forma direta à experiência, nem aparece em sistema de correlação. (GONZÁLEZ-REY, 2002a, p. 112).

Nesta perspectiva, os resultados e discussões foram organizados a partir de dois eixos: 1) organização interna do CAPS e relação com a rede pública de saúde; 2) estratégias de inserção social intra e extramuros dos CAPS.

 

3 RESULTADOS E DISCUSSÃO

3.1 Organização interna do CAPS e relação com a rede pública de saúde

O CAPS no qual esta pesquisa se desenvolveu - um CAPS II (instituição que presta atendimento diurno a adultos com transtornos severos e persistentes) - é considerado uma referência para o tratamento de transtornos mentais em seu município. Assim como a maior parte dos CAPS da Bahia, esse serviço é financiado por meio da Autorização de Procedimentos de Alto Custo (APAC). No caso específico do CAPS estudado, uma parte dessa verba é enviada para uma cooperativa, a qual, por sua vez, paga os salários dos profissionais. Como se convive com dificuldades de financiamento para manter as atividades realizadas, principalmente para a compra de material para as oficinas, algumas estratégias foram desenvolvidas a fim de se atenuar essa questão. Dessa forma, era realizado, uma vez por mês, no dia da assembleia dos usuários, um bazar com materiais doados para se conseguir a verba referente a outras ações do CAPS (atividade esta que, atualmente, não ocorre mais); outra parte do financiamento das atividades provém da venda dos produtos da oficina de geração de renda. A alimentação dos usuários e, eventualmente, de algum familiar, bem como os medicamentos utilizados, eram subsidiados pela prefeitura do município.

No tocante à relação com outros dispositivos de saúde do território de abrangência, percebe-se que, apesar de o CAPS possuir contatos com o Programa de Saúde da Família e hospitais da região, essas parcerias se dão de modo informal, por meio do esforço dos profissionais do serviço, o que, apesar de se constituir em um avanço - uma vez que, de fato, são mantidas relações de comunicação e encaminhamentos para outros serviços, considerando-se também a situação de outros CAPS na Bahia (NUNES et al., 2005; LIMA; JUCÁ; NUNES, 2010) - esse contato caracteriza-se por ser frágil, já que, mudando-se o quadro de funcionários (o que é muito comum), por exemplo, o trabalho empreendido nesse sentido tende a se perder, sendo necessário, então, iniciar um novo processo de aproximação. Dessa forma, esse pode ser considerado um desafio para o CAPS: consolidar, no que diz respeito aos dispositivos de saúde, uma rede de saúde mental no município. Isso fica claro no discurso da primeira coordenadora do CAPS (a instituição sofreu, por três vezes, durante o período estudado, mudanças na gestão, além de algumas mudanças na equipe):

[o desafio] É sair de dentro do CAPS. É possibilitar a intersetorialidade, possibilitar a capacitação de outras equipes, de estar fortalecendo o matriciamento, mas executando ele, fazendo com que isso seja uma coisa forte, que a gente conhece redes aí fora de muitos anos de saúde mental que existe e não funciona.

Considerando-se as mudanças relatadas na coordenação do CAPS, é pertinente afirmar que, durante a primeira gestão, os aspectos clínicos da atenção aos usuários foram enfatizados. Ou seja, de acordo com os princípios da reforma psiquiátrica de conjugação de cuidados clínicos e reabilitação psicossocial (BRASIL, 2004) para o tratamento dos usuários do CAPS, as questões voltadas para o diagnóstico dos transtornos e acompanhamento psicopatológico e discussão dos casos clínicos constituíam-se como mais presentes dentro do serviço, que se revertia numa maior quantidade de reuniões de profissionais em torno dessa questão. Contudo, a atual gestão evidencia na sua prática as características mais políticas da reorganização da assistência à saúde mental. Assim, a problemática do diagnóstico, da valorização dos aspectos clínicos, não se está constituindo como fator tão relevante quanto na primeira gestão, sendo que o atual campo de significação hegemônico, ou seja, a subjetividade social deste CAPS, orienta-se atualmente no sentido de oferecer maiores ganhos de autonomia para o usuário, voltando-se mais para questões sociais do que individuais. Isso fica claro na fala do atual coordenador:

a rede [deve se] estabelecer como algo extremamente mais fluida. Não como essa rede que parece rede de futebol, nem rede de pescar. É uma outra rede. Que os nós se desfaçam e a ação se faça pela presença de pessoas. Então, é preciso mesmo o que estou chamando uma concepção nômade, que é muito difícil em um bocado de gente que está metido neste negócio de reforma, de atenção básica, de PSF, por conta da estratificação dos profissionais e das práticas [...]. Sou contra repartimentos. Álcool, droga, menino, velho, doido, histéricos, como dizem aí, neuróticos, piromaníacos.

A preeminência dessa perspectiva não impede que outros atores sociais da instituição - mais precisamente, alguns profissionais - discordem desse conjunto de significações hegemônicas: conforme se discutiu, os sujeitos, vistos no referencial teórico adotado como seres criativos e reflexivos, são capazes de produzir construções subjetivas com sentidos que entram em contradição com as tendências dominantes em seus processos atuais de subjetivação. Desse modo, pode-se dizer que existe, no CAPS, um campo de significações em conflito; contudo, percebe-se a prevalência da valorização do âmbito social sobre a esfera individual. Assim, as concepções reinantes em relação à reinserção psicossocial transitam mais em torno da questão da cidadania do que de uma positiva estabilidade nos quadros clínicos dos usuários ou de uma possível cura terapêutica.

3.2 Estratégias de inserção social intra e extramuros no CAPS

No CAPS pesquisado, existe uma grande variedade de estratégias técnico-assistenciais que visam à inserção social. Uma delas é a existência de oficinas e grupos terapêuticos, que são muito diversos, bem como o modo de sugestão e direcionamento dos mesmos, e envolvem circunstâncias mais e menos estruturadas, observando-se a grande hegemonia da falta de estruturação das atividades. Um técnico do serviço assim relata:

Eu faço grupos relâmpagos. Reúno dois, três. Pode ser aqui, pode ser lá. A mulher da Vigilância Sanitária me perguntou onde era a sala do médico: aqui não tem sala, não. Posso atender em qualquer lugar. Pergunte ao pessoal o que é que eles acham disso.

Desse modo, em geral, as oficinas e os grupos não funcionam de acordo com "grades", como em outros CAPS (NUNES et al., 2005), isto é, com esquemas pré-definidos - a própria existência de uma grade de atividades não é bem vista pela maioria dos profissionais, sob o pretexto de se engessar o tratamento ali realizado, como relata uma técnica:

Aí foi horrível, foi horrível, foi horrível porque queriam a grade e a gente não queria grade porque a gente não sabia trabalhar com grade, ficar preso na grade.

Dentro desses moldes ainda existem as oficinas de culinária, de autocuidado, oficinas expressivas (de expressão plástica e atividades musicais), as relacionadas à sexualidade (onde se distribuíam preservativos), alfabetização, leitura e conhecimentos gerais, entre outras propostas, que, atualmente, ocorrem de modo esporádico e, conforme foi indicado, não estruturado, utilizando-se para compô-las as pessoas que estivessem no CAPS no momento do acontecimento das mesmas.

Dentre as oficinas, as destinadas à geração de renda possuem uma característica peculiar. Elas se constituem em grupos mais estruturados, em geral com as mesmas pessoas, que ocorrem dentro de lugar, dia e horários específicos e permanentes. Assim, foi criado o núcleo de geração de renda, no qual são feitas oficinas de bonecas, biscoitos, flores, costura, tapetes, fuxico, bijuteria, entre outros artigos, com predomínio de atividades consideradas femininas. Percebe-se também uma preocupação no sentido de conjugar a qualidade dos produtos gerados e a questão da atenção aos usuários no que se relaciona à conquista de autonomia, de modo que se possa fugir do nexo de se produzir a fim de acatar as cobranças do mercado, reafirmando, assim, a proposta de construção de cidadãos, reflexo da valorização de ganhos para o usuário nas questões sociais, algo que vem norteando as ações desse CAPS.

Outra estratégia utilizada no modelo CAPS é a ocorrência das assembleias. Elas representam uma possibilidade de desenvolvimento político e construção da cidadania, principalmente para os usuários e familiares que nelas podem discutir os principais aspectos relacionados aos seus problemas cotidianos, assumindo posicionamentos e buscando concretizar os seus direitos. De acordo com o referencial teórico adotado, agir desse modo é "ser sujeito":

o sujeito emerge na ação que vai mais além das normas formais estabelecidas, na possibilidade de gerar espaços próprios de subjetivação que lhe permitam um desenvolvimento diferenciado nos espaços da subjetividade social. (GONZÁLEZ-REY, 2007, p. 144).

González-Rey (2005) já havia definido que a categoria sujeito implica, necessariamente, a participação ativa do indivíduo em uma prática social. No CAPS estudado, nas assembleias - que eram mensais e ocorriam dentro do próprio CAPS - utilizava-se uma tática pelos profissionais para intensificar a participação das famílias dos usuários: realizava-se, no mesmo dia, um bazar (aquele que atualmente não está mais ocorrendo), no qual acessórios, roupas e sapatos usados eram doados ao serviço e vendidos por preços simbólicos. Um aspecto importante que ocorria nessas assembleias era que os usuários, em várias ocasiões, exerciam a função de coordenadores, o que implicava estabelecer, com a ajuda dos outros, a pauta e auxiliar na organização das deliberações. Pode-se ressaltar o potencial que essa participação tem em gerar novos sentidos subjetivos para os usuários que ativamente interferem na configuração de assembleia nesses moldes. Dessa forma, o processo de ser sujeito, de ser cidadão, alcançando uma apropriação ativa de suas experiências, atuando com um agente sobre a realidade vivida pode ser fomentado e facilitado, com o auxílio de outros sujeitos, técnicos e familiares, por exemplo.

No tocante às atividades extramuros, impulsionadas pelo CAPS estudado, conforme foi discutido, ainda há certa dificuldade em realizar atividades comunitárias que promovam e expandam mais o serviço. Contudo, muitas ações têm sido feitas nesta direção, sendo que uma ação externa que se sobressai é a participação do núcleo de geração de renda em feiras no município, em faculdades e manifestações envolvidas na luta antimanicomial. A prática do lazer assistido por profissionais também é relativamente frequente, como idas ao teatro, ao circo, a projetos artísticos como shows e manifestações folclóricas específicas da cultura local.

O conjunto dessas estratégias técnico-assistenciais de cuidado que tem lugar na unidade em questão produziram uma diminuição dos internamentos em hospitais psiquiátricos. Isso é evidenciado na seguinte fala de um técnico do serviço:

A gente tem alguns usuários aqui que só viviam internado, internando, internando, internando. E hoje a gente tem esses que só viviam assim - na sexta-feira a gente tava conversando com um grupinho, e aí exatamente tentando ver isso. Então têm alguns que já têm seis meses, mais de seis meses [...] sem se internar e só viviam lá.

Uma usuária compara o tratamento que recebeu nos hospitais psiquiátricos - já foi internada mais de três vezes em diferentes serviços - com os cuidados que recebe atualmente no CAPS e assim se expressa:

Ave Maria! Isso aqui é um céu pro hospital, minha filha! Isso aqui chama céu pro hospital. No hospital é muita, muita humilhação, muita humilhação mesmo! Eles humilha a gente. Ó, por mais que agrade, por mais que trate bem, eles humilham. Minha mãe agradava tanto aquelas menina. Naquele tempo 10 reais era o que é hoje 50. Minha mãe dava 10 reais adoidado lá.

Durante o tempo em que se realizou a pesquisa, percebeu-se que essa comparação é bastante comum entre os usuários que já foram internados em hospitais, sendo, muitas vezes, alvo de práticas iatrogênicas e que agora recebem um tratamento considerado mais humanizado no CAPS. Contudo, as próprias atividades desenvolvidas no serviço são enfatizadas como um fator benéfico para o usuário, o que se observa no seguinte discurso da mesma usuária citada acima:

E se eu tivesse em casa, eu já tinha tido uma crise, num tive por causa do CAPS. Porque em casa, eu ia ficar muito ansio... ociosa, muito ociosa mesmo, então sem fazer nada. Aí ia acabar dando uma crise. E aqui eu tenho atividade, já é uma boa, né?

Percebe-se na narrativa dessa usuária que ter o CAPS como referência, participar de uma oficina ali oferecida produz um novo sentido de cuidado, sendo protegida de uma possível crise. Esse resgate relatado (mesmo que parcial) de uma condição ativa, que pode ter-se perdido e/ou agravado em decorrência da experiência do sofrimento mental atrelada à internação em hospitais, encontra outra configuração para mudanças subjetivas. Desse modo, é possível considerar que, apesar das dificuldades encontradas pelos sujeitos sociais no enfrentamento dos transtornos mentais, particularmente daqueles que sofrem diretamente com a exclusão social, os novos modos de cuidado mostram-se promissores no sentido de promover maiores ganhos de autonomia por parte dos usuários, mesmo que esses ganhos sejam sutis, como atesta a primeira coordenadora do CAPS (referindo-se a um usuário):

Ele não sentava na mesa para comer, hoje ele se senta, tem alguns ganhos que para a equipe não fica tão atenta, mas para a família é uma coisa muito presente. Então assim, essas entrevistas [referência ao diálogo proporcionado pelo processo de coleta dos dados] nos possibilitou isso até de poder estar observando que para a gente não é tão ganho, mas pelo fato dele estar podendo vir, de querer vir, já acordar de manhã e dizer: "minha mãe, vamos para o CAPS,  hoje é dia de ir...", mesmo ele ficando aqui sem fazer nada,  mas ele quer vir , ele senta na mesa, hoje ele é mais tranqüilo.

Esta narrativa demonstra veemente, por menção espontânea, o caráter atribuído por González-Rey (2003a, p. 177) à pesquisa qualitativa, definida como aquela que se:

remete à intimidade do sujeito e o envolve em situações que são muito sensíveis para ele/ela, mas que, por sua vez, lhes oferece possibilidades de se colocarem de forma diferente diante da vida, permitindo-lhes novas opções através das situações produzidas pela pesquisa.

Isso porque a pesquisa qualitativa permite que os sujeitos da pesquisa expressem sentidos ou produzam novos ao ressignificarem suas ações cotidianas, sejam de trabalho sejam de cuidado ou da vida em geral. Não é incomum que os próprios entrevistados se deem conta de aspectos e dimensões das temáticas pontuadas a partir de uma técnica de coleta de dados sensível à produção subjetiva.

O sentido positivo atribuído às estratégias de cuidado do modelo CAPS também é feito pela mãe de um usuário da unidade pesquisada. Nesta declaração, ela comenta sobre as dificuldades advindas do transtorno mental para o usuário e a família, mas afirma que, com o auxílio do serviço, tem conseguido enfrentar melhor essas questões:

(...) eu tô gostando do tratamento do CAPS pelo menos é um lugar mais aberto (...) hoje nós... porque o sanatório gente parece... aparentemente parece a solução do nosso problema, mas não é porque uma mãe ela sempre tem aquele coração de mãe, né, então precisa saber como é que o filho está, como é que está sendo querido,  se está sendo bem tratado ou não, né. E ali era uma prisão para ele, [...] eu acho que a solução não é prender, a solução é cuidar, e é o cuidar com amor, eu acho que é fonte fundamental pra todas as coisas. Eu creio que esse amor que tem nos ajudado e temos que fazer vencer e superar todas as coisas, porque eu tenho lutado muito com meu filho há muito tempo, cheguei a ponto de perder tudo, perder casamento e tudo, mas eu estou vencendo, acreditando de estar sendo vencedora.

 

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O CAPS tende a ser uma das unidades de subjetividade social para o cuidado do louco operando em modo psicossocial (COSTA-ROSA, 2000), uma vez que apresenta "conjunto amplo de dispositivos de reintegração sociocultural, além da medicação" [com destaque para a oficina de geração de renda]; "atribui importância ao sujeito para a mobilização do tratamento" e "enfatiza a reinserção social do indivíduo" (COSTA-ROSA, 2000, p. 154). Essa tendência de operar em modo psicossocial é reforçada quando da comparação do CAPS com hospital psiquiátrico pelos entrevistados, ressaltando-se o sentido positivo atribuído ao primeiro, por apresentar características contrárias ao isolamento e tratamento centrado na remissão sintomatológica.

Quanto ao eixo de organização interna do CAPS e à relação com a rede pública de saúde, foi possível identificar que diferentes modelos de gestão ocasionam dinâmicas de integração diferentes com a rede pública de saúde; aquela rotulada como abordagem clínica é acompanhada por esforços de cuidado mais internos ao CAPS. Por sua vez, foi visível, apesar dos obstáculos e desafios encontrados, que há potencialidade para a produção de inserção social quando enfatizada a abordagem psicossocial.

Segundo Saraceno (2001b, p. 151), a abordagem ética em saúde mental deve fornecer "oportunidades de trocas materiais e simbólicas [que] são oportunidades precedentes na construção da capacidade relacional do sujeito". O sujeito louco está alijado previamente do poder de troca, não só pela sua condição de diferente, mas, principalmente, pela negatividade que acompanha a representação social da loucura. Neste terreno, o projeto de reabilitação psicossocial do autor tende a prezar muito mais pela reconstrução da cidadania e do poder contratual do sujeito em três cenários principais - habitat, rede social e trabalho (SARACENO, 2001a, 2001b) - e pela descrença quanto aos possíveis efeitos substanciais da clínica para os pacientes. Nesta direção, ele concluiu que as "práticas terapêuticas que nos últimos 100 anos derivaram dos modelos da clínica são altamente insatisfatórias" (SARACENO, 2001b, p. 150).

Em relação ao eixo das estratégias de inserção social, há diversidade de ofertas, embora exista o perigo de que ações exclusivamente realizadas dentro do CAPS evitem o manejo dos desafios para o processo de inclusão social que só podem aparecer fora dele. Resta destacar que os sentidos subjetivos individuais descritos no corpo do texto, do ponto de vista do usuário, podem ser analisados como positivos para a inserção social por proporcionarem ganhos, ainda que muito sutis, para os usuários quando estes têm oportunidade de participar de algum tipo de cuidado que possibilite maior trânsito em cenários de trocas simbólicas e de bens (SARACENO, 2001a; KINOSHITA, 2001). Nesse sentido, Kinoshita (2001) adverte para análise crítica de estratégias e/ou ações terapêuticas, no sentido de que não se deve perder de vista o "poder contratual" de cada sujeito, uma vez que:

no universo social, as relações de trocas são realizadas a partir de um valor previamente atribuído para cada um indivíduo dentro do campo social, como pré-condição para qualquer processo de intercâmbio. (KINOSHITA, 2001, p. 55).

O empréstimo de poder contratual do cuidador por meio de estratégias de inserção social - particularmente do profissional de saúde - para o louco deve redimensionar sua posição para troca de bens, a troca de mensagens e a troca de afetos, uma vez que o objetivo de ações de cuidados em saúde mental é restituir o poder contratual dos usuários (KINOSHITA, 2001).

Por fim, pode-se sintetizar que o conjunto das narrativas produzidas, algumas delas destacadas ao longo deste texto, remete a mudanças subjetivas individuais de usuários, familiares, profissionais e gestores envolvidos diretamente no desafio de construir um modelo substitutivo, que, apesar de todas as dificuldades, proporcionam às pessoas em sofrimento mental e social um cuidado que se opõe ao isolamento e à exclusão social e que tem como objetivo a inserção social:

a condição do sujeito individual se define somente dentro do tecido social em que o homem vive, no qual os processos de subjetividade individual são um momento da subjetividade social, momentos que se constituem de forma recíproca sem que um se dilua no outro, e que têm de ser compreendidos em sua dimensão processual permanente. (GONZÁLEZ-REY, 2003b, p. 206).

As palavras González-Rey, destacadas na citação anterior, permitem, certamente, ressaltar que as mudanças subjetivas individuais que se remetem à autonomia e ao exercício da cidadania não podem ser produzidas em espaços sociais excludentes (subjetividades sociais excludentes), com base no isolamento e na tutela como meios de tratamento. Mais uma razão para aprimorarmos a capacidade de inclusão social das pessoas em sofrimento na rede de modelos substitutivos antimanicomais.

 

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Artigo recebido em: 05/09/2009
Aprovado para publicação em: 07/03/2010

 

 

1 O Núcleo Interdisciplinar em Saúde Mental (NISAM/ISC-UFBA) agradece ao CNPq pelo apoio ao referido projeto do Edital MCT-CNPq/MS/SCTIE-DECIT/CT-Saúde 07/2005.

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