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Ciências & Cognição

versão On-line ISSN 1806-5821

Ciênc. cogn. vol.7 no.1 Rio de Janeiro mar. 2006

 

Artigo Científico

 

O "mal-estar docente" como fenômeno da modernidade: os professores no país das maravilhas

 

The "teacher burnout" as a phenomenon of the modernity: the teachers in the wonderland.

 

 

Eloiza da Silva Gomes de Oliveira

Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Rio de Janeiro, RJ, Brasil

 

 


RESUMO

O artigo aborda manifestações do "mal-estar docente" - desinteresse, apatia, desmotivação - e "sintomas psicossomáticos" (angústia, fobias, crises de pânico) e apresenta resultados de entrevistas realizadas com 120 professores do Rio de Janeiro, sobre aspectos como as causas da insatisfação com a profissão. Usamos como metáfora Alice no País das Maravilhas, conto escrito em 1845 por Lewis Carroll, para descrever as causas destas manifestações, subsidiando intervenções da Psicologia da Educação para minimizar este quadro. O referencial teórico abrange a obra de Freud, com os conceitos de sublimação e transferência libidinal para instituições; Marx, com as noções de alienação e fetichismo; e Dejours, com trabalhos relativos às estratégias coletivas de defesa utilizadas no trabalho, a alienação e a virilidade. Dentre os fenômenos sociais e políticos indicadores do "mal-estar docente" escolhemos dois, bastante característicos: a proletarização do professorado, que o aproxima das condições de trabalho da chamada "classe proletária" e a feminização do magistério. © Ciências & Cognição 2006; Vol. 07: 27-41.

Palavras-chave: mal-estar docente; estresse; classe proletariada; profissões femininas.


ABSTRACT

The article approaches frequent manifestations of the "teacher burnout" - indifference, apathy, motivation lack - and psychosomatic symptoms (anguish, phobias, panic crises), and presents results of a survey accomplished with 120 teachers of Rio de Janeiro, on the causes of the dissatisfaction with the profession. We used as metaphor Alice in the Country of the Marvels, story written in 1845 by Lewis Carroll, to describe the causes of these manifestations, subsidizing interventions of the Education Psychology to minimize this situation. The theoretical references includes Freud's work, with the sublimation concepts and transfer libidinal for institutions; Marx, with the notions of alienation and fetishism; and Dejours, with works relative to the collective strategies of defense used in the work, the alienation and the virility. Among the indicative social and political phenomena of the "teacher burnout" we chose two, quite characteristic: the teacher as member of the proletarian class, which approximates him of the "proletarian class" work condition, and the teaching as feminine profession. © Ciências & Cognição 2006; Vol. 07: 27-41.

Keywords: teacher burnout; stress; proletarian class; feminine profession.


 

 

Introdução

Está distante o tempo em que os professores sentiam-se felizes como a Alice de Lewis Carroll, na sua entrada no "País das Maravilhas". Esta afirmação, longe de ser irônica, sintetiza um fenômeno que afeta não apenas os docentes, mas os trabalhadores em geral. Utilizando a metáfora escolhida para dar título a este texto, extraída da obra escrita em 1845, logo eles se deparam com um "coelho-relógio" apressado, sempre atrasado, sempre correndo e dizendo".. é tarde, é tarde...". Trata-se da longa jornada de tra-balho, geralmente assumida pelos professores para manter as condições mínimas de sobrevivência diante dos salários aviltados, e leva-os a trabalhar em várias escolas, em múltiplos turnos, em extensos horários que vão da manhã à noite.

Ficam distantes coisas essenciais como a continuidade da formação, as indis-pensáveis atividades culturais - estas também negadas pela elitização, expressa em preços dissociados da realidade dos trabalhadores brasileiros e pela regionalização com que são realizadas - o lazer, o ócio, o pleno gozo do tempo livre. Em um diálogo com o "Chapeleiro Maluco", personagem do enredo, a perplexa e assustada Alice ouve uma profunda reflexão sobre o tempo, que pode ilustrar estas nossas reflexões: "Se você conhecesse o tempo como eu conheço, disse o Chapeleiro - não falaria em desperdiçá-lo como se fosse uma coisa. É um senhor." (Carroll, 1845/1998: 94).

No país não tão maravilhoso dos mestres estão representados também outros elementos do conto de Carroll, indicadores de conteúdos relacionados ao tempo, como o interminável chá do "Chapeleiro Maluco" e da "Lebre de Março", acompanhado pelo Arganaz (um rato do campo) - bêbado ou sonolento - que habita o próprio bule em que é servido o chá. Ritual de desmotivação e falta de sentido, pode ser comparado, em certos aspectos, à representação que os professores fazem do seu trabalho, envolto em rotina e cansaço, expondo claramente o fenômeno da alienação.

O conceito de alienação apresenta marcante caráter histórico, pois tem aplicação analítica numa relação mútua entre sujeito, objeto e circunstâncias concretas específicas. Os processos alienantes da vida humana, no entanto, foram edificados em estruturas atem-porais e mistificadoras, apartadas dos processos sócio-econômicos concretos, como estudou Marx de forma primorosa. A alienação tem relação direta com o trabalho, e dela falaremos mais adiante.

Esta alienação pode apresentar-se como tédio, sentimento de eterna repetição de tarefas, que Oliveira (2003) chamou de "Síndrome de Sísifo". Estudando as represen-tações sociais dos professores em relação ao próprio trabalho, a autora encontrou uma rede representacional, inconscientemente compar-tilhada pelos membros desse grupo, determinante de atitudes como considerar a escolha do magistério como um dom, ou uma missão, ou ainda envolver com uma tonalidade "gloriosa" as tarefas cotidianas. Ao mesmo tempo, estavam presentes a tendência ao sacrifício e a temática da repetição, da rotina, do cansaço, da interminabilidade do trabalho docente, que permitiram a analogia com o mito de Sísifo - o mítico penitente grego, condenado por Zeus a rolar diariamente uma enorme pedra para o cume de uma montanha; ao final do dia a pedra "voltava" à base da montanha, tornando a tarefa interminável e eterna. A autora afirma:

É esse o herói com o qual o professor, inconscientemente, se identifica. Embora dono do saber, da argúcia, da inteli-gência, tem um "duplo" perverso que o arrasta para o erro. Em função disso, cai nas garras da "moîra" (o destino cego), sendo punido pelos deuses com um castigo terrível, o trabalho de Sísifo (Oliveira, 2003: 213).

Voltando à história de Alice e à sua bela galeria de personagens, com o "Gato de Cheshire", dotado do poder aparecer e desapa-recer parcial ou totalmente, pleno de sarcasmo e ironia, podemos estabelecer uma correlação à realidade educacional que o professor encontra.

Embora dotada de características tradi-cionais e perpetuadoras, ela parece mutável a cada "modismo" educacional, que invade de forma avassaladora as escolas - quase sempre pela mão dos documentos legais. Ela pode tornar-se tão incongruente, para a percepção e a compreensão dos docentes, quanto o Gato, nos momentos em que se transforma, nas ilustrações da obra, em uma grande boca, escancaradamente sorridente e loquaz.

Este quadro leva os professores a sentirem-se desorientados e acentua-lhes a tendência à alienação. Talvez sejam com o "Gato de Cheshire" os diálogos mais ricos da viagem de Alice, como o que apresentamos a seguir, e que é utilizado com freqüência para ilustrar o conflito entre a Ciência e a Ética. No caso dos professores, entre as sérias questões ligadas à formação e outras, não menos sérias, provenientes dos embates de valores realizados na atualidade:

" - Por favor, que caminho devo tomar para sair daqui?

- Isso depende muito bastante de onde você quer chegar, disse o Gato.

- O lugar não me importa muito..., disse Alice.

- Então, não importa que caminho que você vai tomar, disse o Gato.

-... desde que eu chegue a algum lugar - acrescentou Alice em forma de explicação.

- Oh! Você vai certamente chegar a algum lugar, disse o Gato, se caminhar bastante." (Carroll, 1845/1998: 84)

Uma última referência, indispensável na construção desta metáfora, refere-se ao encontro com a "Rainha de Copas", criada por Carroll. Emblematicamente, pode ser criada uma analogia com a relação entre o professor e a autoridade.

Embora ressentidos de uma arbitrariedade genérica, à qual não sabem dar nome, eles falam em um "sistema", em um "governo", em "autoridades" que sempre prejudicam o ensino e a categoria docente - lembrando os gritos de "Cortem-lhe a cabeça!", da Rainha - não conseguem definir claramente os opositores e os riscos.

Diante deles, alguns professores fazem o mesmo que Alice diante da Rainha de Copas: temem e fogem desesperadamente, através de mecanismos de defesa que abordaremos mais adiante. Outros buscam um pouco dessa autoridade tirânica, incorpo-rando-a à prática docente, tornando-se rígidos e severos no cotidiano da sala de aula.

Concluindo esta introdução, destacamos o dom de "crescer e encolher", obtido por Alice através da oralidade, ao ingerir certos alimentos. Simbolicamente, o professor "cresce" quando acredita que o seu ofício é um chamado divino, uma doação, uma missão, ou quando espera uma glori-ficação futura através da gratidão dos alunos, ou das marcas deixadas na vida de cada um.

Ao contrário, "apequena-se" ao aceitar a proletarização do seu trabalho ou quando, imerso nas rotinas do cotidiano, abre mão da crítica, da reflexão, da sua condição de pro-dutor de conhecimento e de pesquisador na própria ação.

Assim caminhou Alice, até descobrir que tudo não passava de um sonho. No caso da profissão docente, e por isso ressaltamos de início que a alegria ficava na entrada do "reino do magistério", trata-se de uma dura realidade. O universo do trabalho no Brasil, nos dias de hoje, tem uma dureza - às vezes revestida de perversidade - que merece atenção especial das Ciências Humanas. No caso da Psicologia da Educação, parece-nos necessário iniciar a discussão das possibi-lidades de intervenção, prioritariamente de cunho preventivo, na redução do "mal-estar docente" e das suas manifestações.

 

O sofrimento no trabalho, segundo Freud, Marx e Dejours

Na impossibilidade de abordar um leque mais extenso de autores que tratam do assunto - e não são poucos que o fizeram de forma brilhante - escolhemos três que nos parecem bastante significativos.

O primeiro deles - Freud - não escreveu textos especialmente dedicados ao tema, mas não deixou de reconhecer a centralidade do investimento da libido humana nesta área. Perguntado uma vez sobre o que seria central na vida do ser humano, não hesitou em, responder: "amar e trabalhar".

A título de ilustração, escolhemos dois conceitos de Freud que exemplificam o que acabamos de dizer.

A sublimação, estudada por Freud como um mecanismo de defesa, consiste no fato de atividades humanas que não possuem qualquer relação aparente com a sexualidade (e aqui se pode incluir a criação artística, a investigação científica e o próprio trabalho), terem as pulsões sexuais e agressivas como sua força motriz.

Trata-se de uma derivação ou desvio da libido para um alvo não sexual, ou que expressa objetivos socialmente valorizados.

Em "O Futuro de uma Ilusão" Freud (1927/1997) considera que todo indivíduo é virtualmente inimigo da civilização, embora acredite que esta é de interesse humano universal, por isso afirma que o homem não é espontaneamente amante do trabalho. Enuncia um conceito de civilização que abrange tudo aquilo em que a vida humana se elevou acima de sua condição animal e difere da vida dos animais.

Assim, a civilização inclui todo o conhecimento e capacidade que o homem adquiriu com o fim de controlar as forças da natureza e extrair a riqueza desta para a satisfação das próprias necessidades e inclui tudo que é necessário para ajustar as relações dos homens uns com os outros e, especial-mente, a distribuição da riqueza disponível.

Em outra obra - "Mal-estar na Civilização" (1930/1997) Freud afirma que nós, homens civilizados, trocamos nossas possibilidades de felicidade por uma parcela de segurança.

A vida, segundo o autor, proporciona ao homem muitos sofrimentos, decepções, tarefas impossíveis de serem realizadas. Aspectos sócio-culturais, como o trabalho, são renúncias pulsionais coletivas em prol da sociedade, constituem uma medida paliativa na função de evitar do sofrimento (desprazer), fazem parte da sujeição ao princípio da realidade.

O sofrimento ameaça o homem em três direções: o próprio corpo, fadado à decadência; o mundo externo, que pode voltar-se contra ele com forças de destruição e; o relacionamento com os outros, colocado como talvez sendo a fonte do sofrimento mais penoso. A defesa imediata contra este sofri-mento seria o isolamento, porém que o melhor caminho é o de tornarmo-nos membros da comunidade humana.

Assim sendo, a relação entre o trabalhador e a organização do trabalho ocorre não apenas no plano consciente, mas em uma dimensão imaginária. Trata-se, segundo Freud, de uma relação que envolve "dor", no sentido da ferida narcísica que provoca.

Conseqüentemente, a demonstração de excessivo zelo pelo trabalho, assim como a necessidade de referências de gratidão e elogios, por parte dos alunos, podem significar tentativas de minimizar as duras condições de trabalho do magistério.

Em obra bastante conhecida, em que estuda um caso clínico de paranóia - o Caso "Schreber" (1910/1981) - Freud fala de um tipo especial de transferência, que o ser humano desenvolve em relação às instituições com as quais tem algum vínculo. Isto faz com que se relacione com elas, de forma antropomorfizada, atribuindo-lhes sentimen-tos, qualidades humanas, quase vida própria.

O mesmo acontece com os professores, em relação à escola: falam dela como se fosse a "segunda casa", "um verda-deiro lar", e estabelecem com os compa-nheiros de trabalho e com os alunos relações fraternas e "quase parentais", naturalmente permeadas por ambivalências de amor e ódio e por outros sentimentos e fantasias, presentes no relacionamento familiar.

Trata-se de uma "faca de dois gumes": da mesma forma que tais relações podem amenizar as agruras das condições de trabalho, geradoras do mal- estar docente, podem agravá-lo, com uma maximização de sentimentos de dor e de culpa, por exemplo.

Freud apresenta, em outro texto, o excesso de trabalho como uma das causas do enfraquecimento da intensidade da pulsão e do próprio Ego. Destaca, no mesmo texto, a tendência, nesse caso, a buscar satisfações substitutivas por outros meios. Esta tentativa, no entanto, não é bem sucedida. O autor critica a Psicanálise, por ter atribuído, a tais fatores, pouca importância no desenca-deamento da doença psíquica.

"Aqui temos uma justificativa da pretendida importância etiológica de fatores não específicos, como o excesso de trabalho, os choques (emocionais) etc. A esses fatores se tem concedido aceitação geral, mas têm sido deixados em segundo plano pela Psicanálise. É impossível definir a saúde, exceto em termos metapsicológicos, quer dizer, pela referência às relações dinâmicas entre os fatores do aparelho psíquico que têm sido reconhecidos - ou (se preferem) deduzidos ou conjecturados." (Freud, 1937/1981a: 3346)

No segundo autor destacado - Marx - é grande a amplitude de abordagem das questões relativas ao trabalho, já que este é uma das categorias marxistas. Tentaremos, abreviadamente, situar a relação do homem com o trabalho, para comentar o trabalho docente neste contexto.

A temática central das obras de Marx é a questão da "barbárie capitalista", da exploração do homem pelo homem, buscando clarear caminhos que levem à sua superação.

O trabalho é visto por Marx em dois sentidos diferentes. O primeiro, surgido nos primeiros escritos marxistas e que podemos chamar de "antropológico", mostra o homem como dependente do seu próprio meio. Assim o apresenta o autor, nos "Manuscritos Econô-micos Filosóficos" (1884/1974: 40):

"O homem é imediatamente ser natural. Como ser natural, e como ser natural vivo, está, em parte, dotado de forças naturais, de forças vitais, é um ser humano ativo; estas forças existem nele como disposição e capacidade, como instintos (...) é um ser que padece, condicionado e limitado (...) isto é, os objetos de seus instintos existem exteriormente, como objetos indepen-dentes dele; entretanto esses objetos são objetos de seu carecimento,objetos essenciais, imprescindíveis para a efetuação e confirmação de suas forças essenciais."

Ao segundo sentido do trabalho em Marx, de teor teórico-gnosológico, apresenta-o como uma categoria da teoria do conhe-cimento tradicional. A relação sujeito-objeto deixa de ser abstrata tornando-se prática, construída no e pelo trabalho. Assim, o trabalho é tido com significado concreto, de transformação da realidade.

Esta tematização sobre o trabalho apresenta-o como essência constitutiva do homem, como categoria fundante do ser social. Se o trabalho funda o homem, no instante em que o trabalhador é explorado e não se sente livre em sua atividade vital, torna-se estranho a ele.

Falando da capacidade de trabalho ou força de trabalho, o autor afirma que:

"... com esta denominação é possível entender que o conjunto das faculdades físicas e intelectuais existem no corpo do homem, em sua personalidade viva, e que deve por em movimento para produzir coisas úteis (...) a força de trabalho só pode apresentar-se no mercado como mercadoria se seu pos-suidor a oferece ou vende." (Marx, 1859/1973: 174-5)

A concepção de Marx enfoca um duplo aspecto da atividade humana: o trabalho em geral, criador de valor de uso; e o trabalho estranhado, criador de valor de troca. Apresentando esta dupla face do trabalho, Marx evidencia a tematização da alienação, cuja formulação teórico-conceitual situa-se particularmente no modo de produção capitalista e na sua particular e específica forma de produção material.

O autor enuncia-a principalmente em duas obras: Os "Manuscritos Econômicos Filosóficos" e "Elementos para a Crítica da Economia Política", já citados.

A alienação, como momento positivo, é necessária e constitutiva da objetivação no processo do trabalho. Enquanto negatividade, no entanto, exprime-se como estranhamento.

Nos "Manuscritos" Marx apresenta a primeira formulação concreta da especificidade da alienação na sociedade burguesa - o problema do fetichismo, definido em função da análise do conjunto de mediações histórico-concretas, responsáveis pela afirmação do valor de troca como forma determinante dos intercâmbios econômico-sociais e das interações sócio-culturais da sociedade burguesa.

Não se trata, então, de dissolver ou substituir a teoria da alienação na teoria do fetichismo. A segunda é particularidade funcional e aspecto da problemática, mais abrangente, da primeira.

Segundo Netto (1987: 59-60) "a concepção marxiana do fetichismo supõe uma teoria da alienação", e "fetichismo e alienação não são idênticos" (op.cit.: 74). Nesse sentido, se o fetichismo exprime a forma mais desenvolvida da alienação, tal não significa que tenha esgotado o seu conceito e suas formas de manifestação. De acordo com Schaff:

"se a relação da alienação condiciona o aparecimento do fenômeno do fetichismo, e se o fetichismo das merca-dorias for uma conseqüência específica da alienação, nesse caso esta é a noção mais ampla e mais rica, que não pode ser limitada ao fenômeno do fetichism." (1967: 135)

Ainda nos Manuscritos Econômicos Filosóficos, Marx fala do trabalho como a objetivação primária do ser social. Ao se objetivarem, os homens podem constituir sua subjetividade, sua personalidade enquanto determinação individual específica. Esta subjetividade é determinada ontologicamente, no entanto, na totalidade das condições sociais. Dessa forma, a subjetividade é historicamente formada e mudada.

O autor critica duramente a influência das relações de produção, histórica e politicamente produzidas, sobre aspectos da subjetividade humana. Pode-se perceber isto na citação que se segue:

"A propriedade privada tornou-nos tão néscios e parciais que um objeto só é nosso quando o temos, quando existe para nós como capital ou quando é diretamente comido, bebido, vestido, habitado, etc., em síntese, utilizado de alguma forma. (...) Assim, todos os sentidos físicos e intelectuais foram substituídos pela simples alienação de todos eles, pelo sentido de ter." (Marx, 1974: 120)

A aniquilação do trabalhador e do ser humano também é focalizada em "O Capital" - e aqui não estamos tomando cuidados ou tendo pudores em "misturar" o jovem e o velho Marx. Ele diz que a reprodução e a conservação da classe trabalhadora só interessam ao capitalismo como instrumento de reprodução do capital.

"No sistema capitalista... todos os meios para desenvolver a produção se convertem em meios para dominar e explorar o produtor, mutilam o operário reduzindo-o a um homem par-cial, degradam-no a uma insignificante peça de máquina; aniquilam, com o tormento do seu trabalho, o conteúdo do próprio trabalho...; deformam as condições nas quais ele trabalha... transformam o período de sua vida em tempo de trabalho... sob o rolo compressor do capital." (Marx, 1867/1980: 706)

Podemos concluir que, a partir do conceito de trabalho estranhado e de outros - forças produtivas, mais-valia, capital - Marx pode desvelar o modo das relações humanas de produção e distribuição e, consequen-temente, o caráter fetichista destas relações no sistema capitalista.

Podemos afirmar, portanto, que o princípio fundamental do trabalho estranhado - analisado em obra juvenil - permanece em O Capital: o afastamento entre o trabalhador e o objeto do seu trabalho e o domínio das coisas sobre os homens como uma potência estranha, autônoma e independente.

O Capital, especialmente a parte sobre o Fetichismo da Mercadoria, nada mais é que a fundamentação explicitada da questão do trabalho estranhado, tratada nos Manuscritos. Tal análise tem como pano de fundo a tematização do trabalho em geral, sem a qual é impossível entender a particularidade histó-rica do capitalismo.

O professor, neste quadro, aproxima-se do trabalhador, do proletário. Alienado do produto do seu trabalho, impedido ter acesso à formação continuada, passa a vender a força de trabalho, dando aulas "em série", em intermináveis jornadas de esforço.

Acaba aderindo, sem perceber, ao fetichismo que permeia as relações capitã-listas de produção; acaba desenvolvendo uma subjetividade - mediada pelas condições sociais - que inclui o sofrimento laboral intenso (o mal-estar docente).

O terceiro autor que tomamos para este referencial teórico, Christophe Dejours, é conhecido principalmente pela obra "A Banalização da Injustiça Social" (1999), em que toma emprestado o conceito de "banalidade do mal", de Hannah Arendt, e busca compreender a sua instituição através do estudo da psicodinâmica do trabalho.

Aborda o sofrimento no trabalho e destaca as suas possíveis causas, como o medo da incompetência, a pressão externa para a redução da excelência do trabalho ("pressão para trabalhar mal", como diz o autor) e a desesperança quanto ao reconhecimento do trabalho realizado.

Dejours fala de mecanismos de defesa gerados por estas circunstâncias, além das classicamente estudadas pela Psicanálise, e que ele chama de "estratégias coletivas de defesa" (Dejours, 1999: 35). São exemplos desses mecanismos, bastante utilizados pelos professores: a excessiva submissão; a resis-tência a todos os tipos de mudança; o baixo índice de envolvimento com o trabalho, com as aspirações e as lutas da categoria profissional; as psicosomatizações; a dessensibilização perceptual, que impede a consciência de sérios problemas vivenciados no cotidiano da escola.

O autor, alerta para o risco da criação de uma espécie de "imunidade defensiva", criada pela intensificação das estratégias de defesa (o autor a denomina "antolhos voluntários"). Ela, além de proteger o trabalhador contra o sofrimento psíquico, cria uma insensibilidade em relação às causas da ameaça à integridade do Ego. Pode criar até mesmo uma acostumação ou "indiferença" em relação ao sofrimento ético, um dos mais intoleráveis para o ser humano.

Uma outra questão séria é a da limitação do uso dessas defesas. Com a excessiva utilização elas vão sofrendo distor-ções, tornando-se ambíguas ou ineficazes, e acaba emergindo o sofrimento psíquico em seu estado metamorfoseado - os sintomas.

Entre os mecanismos defensivos dotados de maior ambigüidade, Christophe Dejours situa a alienação, que chega a designar como uma "alquimia que transforma a abominação em sublimação" (Dejours , 1999: 99).

Trata de um outro mecanismo ambíguo, que interessa bastante ao nosso trabalho: a "virilidade", capacidade de de-monstrar atitudes socialmente consideradas masculinas, e que pode chegar à imposição de atos violentos aos demais. Ela é conceituada pelo autor como

"...uma conduta cujo mérito depende fundamentalmente da validação alheia. A coragem tem a ver basicamente com a autonomia moral-subjetiva, enquanto a virilidade atesta a dependência do julgamento alheio." (Dejours, 1999: 100)

Este discurso pode chegar ao exagero de um "cinismo viril": a "racionalização pelo econômico é uma forma de domínio simbó-lico, típico dos homens." (Dejours, 1999: 101).

Além dos comportamentos, a virili-dade apresenta-se na ordem do discurso, de domínio, apoiado no saber e no raciocínio lógico, legitimado principalmente pelo conhecimento científico e técnico.

Dejours situa nos mecanismos coletivos de defesa, mais do que nas próprias causas do sofrimento psíquico no trabalho, as profundas dificuldades laborais vivenciadas pelo ser humano.

Não poderíamos concluir esta aborda-gem ser uma referência aos trabalhos de Dejours sobre as relações de poder no ambiente de trabalho. Não podemos esquecer que a escola constitui-se em uma instituição bastante conservadora e especialmente auto-ritária.

As relações de poder consubstanciam-se geralmente, no ambiente de trabalho, sob a forma de relações autoritárias e de controle. Sobre as tensões e ansiedades geradas, afirma Dejours (1992:76):

"Esta atmosfera tem como efeito principal envenenar as relações entre empregados, criar suspeitas, rivalida-des e perversidade de uns para os outros. Fica, assim, deslocado o conflito do poder. De um conflito no sentido vertical, as contradições pás-sam a se dar então no plano horizontal. (...) Então, a permanência do controle deve ser relembrada por outros meios: assim, a rivalidade e a discriminação asseguram um grande poder à supervisão. (...) Uma trama assim elaborada é bastante densa e coerente, tornando difícil a fuga ou até a não-participação ao sistema."

 

Magistério: proletarização e feminização.

Escolhemos, entre os fenômenos sócio-políticos indicadores do que é popular-mente chamado "mal-estar docente", dois, bastante característicos.

O primeiro, o da proletarização do professorado, implica no processo de aproximação desta categoria profissional em relação à chamada classe proletária. Isto implica um distanciamento do pólo oposto, o da profissionalização. Significa, também, vivenciar fenômenos como a perda de controle sobre os meios de produção, sobre a finalidade e sobre o processo do trabalho. Inclui, ainda, processos de desqualificação, empobrecimento por baixos salários e venda indiscriminada da força de trabalho, por exemplo. Também a forma de organização do trabalho escolar, com a divisão do trabalho representada pela atuação dos especialistas e pela diferença de valoração entre o planejar e o executar, levou à diminuição do controle dos docentes sobre o processo pedagógico, incluindo a seleção dos conteúdos e das metodologias.

Segundo Enguita (1990: 150-151):

"Entre as formas inequívocas de profissionalização e proletarização debate-se uma gama variada de grupos ocupacionais que compartilham características de ambos os extremos. Constituem o que no jargão sociológico se designa como semiprofissões, geral-mente formadas por grupos assalari-ados, com freqüência parte de buro-cracias públicas, cujo nível de forma-ção é similar ao dos profissionais liberais. Grupos que estão submetidos à autoridade de seus empregadores, que lutem por manter ou distribuição autonomia no processo de trabalho e suas vantagens relativas na distribuição da renda, do poder e do prestígio. Um destes grupos é constituído pelos docentes."

Embora haja essa polêmica em torno do fato dos professores serem ou não trabalhadores, podemos falar em dois tipos de proletarização: a proletarização técnica diz respeito ao controle dos meios de execução do trabalho; a proletarização ideológica diz respeito ao controle sobre as finalidades, as metas do trabalho.

O processo de proletarização possui, além da vertente de aproximação das condi-ções de vida da classe trabalhadora, uma segunda, mais real e positiva, porém menos frequentemente verificada, de identificação com os processos de organização e de luta da citada classe.

Podemos concluir, no entanto, que a proletarização implica em um processo de mobilização social descendente, resumida em três amplos aspectos:

  • A não constituição, pelo professor, de uma identidade de trabalhador (isto também implica o não reconhecimento da escola como um verdadeiro local de trabalho);
  • A longa jornada de trabalho, já referida;
  • As condições de trabalho, como a aliena-ção e a desqualificação profissional e os baixos salários, por exemplo.

O segundo indicador é a feminilização do magistério. Sobre ele afirma Apple (1986: 61): "Está bastante claro (...) que tão logo um trabalho torna-se feminino, seu prestígio diminui. Há tentativas de proletarizá-lo, de tirá-lo do controle das pessoas que o fazem e de racionalizá-lo...".

Trata-se de um fenômeno ocasionado por fatores como: o fato do magistério ser permitido, nas sociedades patriarcais, como trabalho feminino (de menor prestígio, menos profissional); a docência ser vista como uma extensão do trabalho doméstico; os salários serem idênticos para homens e mulheres, o que não acontece na maioria dos trabalhos; tradicionalmente o magistério ser representa-do no imaginário popular como um trabalho de mulher; e os baixos salários afastarem os homens.

Segundo Lopes (1991: 38):

"A mulher - professora, ao assumir essa função e responder ao desejo do outro (cultural) abre mão do seu próprio desejo e faz do sacrifício a tônica da tarefa a que passa a se devotar, mesmo ao preço de sua vida pessoal, especialmente de toda vida amorosa ("esquecem-se de casar"). Sustentáculo da sociedade, amparo dos pequenos e que não sabem ainda, prestadora de um inestimável serviço ao outro, ela busca se identificar com uma imagem feminina, ou seja, produzir um signo indubitável da mulher, um signo que a fundiria numa feminilidade, enfim, reconhecida."

A predominância do sexo feminino no magistério tem três principais conseqüências, apresentadas por Enguita. A primeira, posi-tiva, é que ela fez da escola menos sexista.

As duas outras, de cunho negativo, são o distanciamento do professorado em relação ao mundo, à cultura, a certas experiências e valores, e a própria proletarização, já citada anteriormente.

Segundo o autor:

"A solução só pode vir através de mecanismos que garantam, ao mesmo tempo, certa capacidade de controle da sociedade sobre a profissão docente e certo campo de regulação desta; que assegurem um sistema de estímulos e contra-estímulos suscetíveis de mobi-lizar a energia individual dos docentes na direção desejada e um sistema de contrapesos que permita a estes não se converterem em simples marionetes da autoridade de plantão. Creio que corresponde à sociedade fixar os fins, grandes e pequenos, do ensino e ao grupo profissional arbitrar os meios. No plano da carreira docente isto significa empregar as oportunidades de acesso, estancamento e rebaixamento, os diferenciais de salários e os bene-fícios e oportunidades marginais como instrumentos positivos e negativos de sanção, mas de maneira que, uma vez estabelecidos os critérios, sejam os próprios docentes quem os apliquem." (Enguita, 1991:59)

Com a palavra, os professores... resultados da pesquisa.

A pesquisa realizada, de caráter qualitativo, tem como objetivo central delinear os contornos do "mal-estar" docente, através da "escuta" dos professores.

Ela foi desenvolvida no Laboratório de Estudos da Aprendizagem Humana (LEAH), da Faculdade de Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).

A opção pela pesquisa qualitativa deveu-se a fatores como as características mencionadas por Chizotti (1991): o mergulho nos sentidos e emoções; o reconhecimento dos atores sociais como sujeitos que produ-zem conhecimentos e práticas; os resultados como fruto de um trabalho coletivo resultante da dinâmica entre pesquisador e pesquisado; a aceitação de todos os fenômenos como igualmente importantes e preciosos: a cons-tância e a ocasionalidade, a freqüência e a interrupção, a fala e o silêncio, as revelações e os ocultamentos, a continuidade e a ruptura, o significado manifesto e o que permanece oculto.

Optamos pela entrevista semi-estru-turada, através de um instrumento objetivo de coleta de dados, acompanhado de perguntas eliciadoras do discurso dos entrevistados quanto a aspectos como: as razões da escolha do magistério; aspectos agradáveis e dês-agradáveis do trabalho realizado; fatos marcantes ocorridos no ambiente de trabalho; remuneração; motivos mais freqüentes de adoecimento; relação do trabalho com a vida pessoal etc.

Aplicamos às respostas uma variação da metodologia de Análise de Conteúdo, mais especificamente da análise da enunciação.

De acordo com Bardin, a análise da enunciação parte de uma concepção de discur-so como palavra em ato, considera a produção da palavra como um processo.

"... na altura da produção da palavra, é feito um trabalho, é elaborado um sentido e são operadas transformações. O discurso não é transposição trans-parente de opiniões, de atitudes e de representações que existam de modo cabal antes da passagem à forma linguageira. O discurso não é um produto acabado, mas um momento num processo de elaboração, com tudo o que isso comporta de contradições, de incoerências, de imperfeições." (1997: 170)

Ainda segundo a autora, a análise da enunciação leva em consideração que, nas entrevistas, a produção da palavra é ao mesmo tempo espontânea e limitada pela situação. A produção da palavra é conformada pelos três pólos de um discurso - locutor, objeto do discurso e interlocutor - e apoia-se em três níveis de aproximação: as estruturas formais gramaticais, o arranjo do discurso e os ele-mentos formais atípicos, como os silêncios, as omissões, os silogismos.

Uma outra preocupação foi a de propiciar aos entrevistados uma situação agradável, de informalidade e "participação" na pesquisa. Esta perspectiva foi afirmada por Freire (1984: 35), considerando que a "pesquisa, como ato de conhecimento, tem como sujeitos cognoscentes, de um lado, os pesquisadores profissionais; de outro os grupos populares e, como objeto a ser desvelado, a realidade concreta".

Haguette (1987: 141-143), ao analisar o conceito de participação na perspectiva da pesquisa participante, chama a atenção para o fato de se levar em conta os componentes da pesquisa participante quais sejam o da investigação, o da educação e o da ação. Ela definiu a participação como sendo "uma ação reflexionada em um processo orgânico de mudança cujos protagonistas são os pesquisa-dores e a população interessada na mudança.".

A amostra estudada compôs-se de 120 professores, de 18 a 59 anos, de escolas públicas e particulares do Município do Rio de Janeiro, com tempo de magistério no Ensino Fundamental e Médio variável entre 01 e 35 anos.

As categorias de análise do conteúdo das entrevistas foram retiradas dos autores que fundamentaram teoricamente a investigação realizada:

  • Sublimação através do trabalho;
  • transferência libidinal para a instituição de trabalho;
  • alienação;
  • fetichismo;
  • estratégias coletivas de defesa;
  • virilidade;
  • proletarização docente;
  • feminização do magistério.

A tabela abaixo ilustra, com recortes dos discursos obtidos nas entrevistas, um pouco dos resultados da pesquisa, que referendam o que dissemos anteriormente sobre as causas do "mal-estar docente".

CATEGORIAS DE ANÁLISE

TRECHOS DAS ENTREVSITAS COM OS PROFESSORES

Sublimação através do tra-balho

"Magistério é ideal, é sacerdócio... acho purificante ter esta profissão." (Entrevista 15).

"Saí da Escola Normal achando que tinha abraçado uma vocação sublime. Hoje em dia, depois de dez anos de trabalho, esta idéia já está meio arranhada. Mas no fundo, no fundo... ela ainda está lá." (Entrevista 103).

transferência libidinal para a instituição de trabalho

"Eu me sinto um pouco mãe deles (os alunos). Eles precisam muito de ajuda e eu sei que posso cumprir esta missão, por mais cansativa e desgastante que seja. É, é isso mesmo... missão." (Entrevista 26).

"Quando eu chego na escola, é como a minha segunda casa. A Diretora é meio mandona (risos) parece a minha mãe..." (entrevista 59).

alienação

"Eu trabalho em uma escola de alto padrão social e econômico. Quando vejo o meu salário e penso na renda daquelas mães "dondocas" que levam os filhos à escola como se fossem pra um desfile de modas... é duro, viu?" (Entrevista 1).

"Essa merreca que a gente recebe no final do mês! Como é que o professor pode se atualiza, se não dá nem pra comprar um livrinho desses, edição de bolso..." (Entrevista 33).

fetichismo

"Você acha que se o professor fosse um desses atores de novela global ele seria tratado dessa forma? Falta charme e sedução nesse trabalho, todo mundo sabe" (Entrevista 120).

"Eu queria nas férias ir para um desses hotéis resort, bem de luxo... ficar um mês sem fazer nada, de biquini, na piscina, sauna, ar condicionado... esquecer a sala de aula." (Entrevista 8).

estratégias coletivas de defesa

"De vez em quando o pessoal do Sindicato aparece lá na escola, com aquelas propostas, aquelas palavras de ordem... eu acho que isso já não faz mais impacto no professorado, entra por um ouvido e sai pelo outro." (Entrevista 74).

"Atualmente eu faço o mínimo, minimozinho necessário. Entro, dou a minha aula, fico sentado o tempo que posso, depois vou embora." (Entrevista 19).

virilidade

"Aluno marrento comigo não leva. Professor tem que ter autoridade, rédea curta, já chega o que eles abusam com os outros professores que dão mole." (Entrevista 46).

"Eu fiquei quatro anos em uma Universidade, estudando. Agora chego na sala de aula e vem uns meninos com aquele jeito pivete, querendo me desafiar? Digo logo que quem sabe sou eu e reprovo mesmo." (Entrevista 66).

proletarização docente

"Você sabia que o apontador do jogo do bicho, que trabalha na esquina da escola, ganha quase a mesma coisa que eu? A que ponto nós chegamos... (suspiro)." (Entrevista 117).

"Eu trabalho em três escolas. É uma jornada semanal muito grande, eu não chego nem a me lembrar direito dos alunos das turmas em que leciono, isso sem falar do trabalho de casa: preparar aulas, corrigir provas. Não dá!" (Entrevista 4).

feminização do magistério

"Na escola é aquele mulherio, muita fofoca, mas também tem muita festinha, muito bate-papo." (Entrevista 85).

"Acho mesmo que essa questão de baixo salário se dá pelo fato do Magistério ser visto ainda como uma profissão feminina. O pessoal desvaloriza um pouco, sabe?" (Entrevista 91).

 

Conclusão: de volta ao País das Maravilhas

Retomando a metáfora inicial, a da viagem de Alice pelo País das Maravilhas, afirmamos que este - simbolizando o Magis-tério - não se apresenta ameno, risonho e acolhedor durante todo o percurso. Os professores, como todos os outros traba-lhadores no nosso país, são pressionados por tensões, dificuldades e stress, vividos no cotidiano do "ofício". Diferentemente da normalista, que trazia "um sorriso risonho e franco no rostinho encantador", segundo o compositor Ataulfo Alves, eles foram obrigados a abrir mão das defesas repre-sentadas pela vocação divina, pelo dom para ensinar, e precisam enfrentar as lutas da sobrevivência material e psíquica.

Vítimas da modernidade, como os demais, sofrem o mesmo sentimento de "estranhamento", de não se encaixarem perfeitamente nos ideais de beleza, limpeza e ordem que ela exige.

Mal remunerados, não podem comprar tudo que a "roda da fortuna", constituída pela ilusão fetichista do objeto na sociedade capitalista, lhes impõe. São estranhos...

Cansados do trabalho exaustivo, não têm disposição para fruir todas as "delícias" que a sociedade lhes oferece. São estranhos...

Proletarizados, perderam em magni-tude de auto-estima, muitos têm vergonha de declarar a profissão ou de falar do seu trabalho. Fogem ao ideal de realização e sucesso, exigido pela modernidade. São estranhos...

Esse acúmulo de estranhamentos faz com que a sociedade capitalista moderna, impossibilitada de excluí-los de forma antro-poêmica - pois são indispensáveis, respon-dem pelo cuidado e pela transmissão da cultura às gerações jovens, os assimila de maneira antropofágica, impedindo-os de construir uma identidade profissional sólida.

Daí o acúmulo de estresse que, levado a graus exagerados, constitui o chamado "burnout". Esta expressão inglesa designa aquilo que deixou de funcionar por exaustão de energia e tornou-se mundialmente conhecida a partir dos artigos de Freudenberger (1974, 1975).

Segundo o autor, "burnout é resultado de esgotamento, decepção e perda de interesse pela atividade de trabalho que surge nas profissões que trabalham em contato direto com pessoas em prestação de serviço como conseqüência desse contato diário no seu trabalho" (Freudenberger, 1974: 161).

França (1987: 187) afirma que a incidência de burnout "é predominante entre os profissionais que trabalham na área de ciências humanas, particularmente, enfermei-ros, médicos e assistentes sociais". Os profes-sores também são incluídos nesse grupo de profissionais, por estarem em contato constante e direto com sua "clientela", sendo esse um dos principais motivos que conduzem um trabalhador ao burnout.

Para Benevides-Pereira (2001: 32-33), os sintomas mais freqüentemente associados ao burnout são:

  • Psicossomáticos: enxaquecas, dores de cabeça, insônia, gastrites e úlceras; diarréias, crises de asma, palpitações, hipertensão, maior freqüência de infec-ções, dores musculares e/ou cervicais; alergias, suspensão do ciclo menstrual nas mulheres.
  • Comportamentais: absenteísmo, isolamento, violência, drogadição, incapacidade de relaxar, mudanças bruscas de humor, comportamento de risco.
  • Emocionais: impaciência, distanciamento afetivo, sentimento de solidão, sentimento de alienação, irritabilidade, ansiedade, dificuldade de concentração, sentimento de impotência; desejo de abandonar o emprego; decréscimo do rendimento de trabalho; baixa auto-estima; dúvidas de sua própria capacidade e sentimento de onipotência.
  • Defensivos: negação das emoções, ironia, atenção seletiva, hostilidade, apatia e desconfiança".

Muitos cursos de formação de professores, no entanto, lidam com o magistério como se ainda existisse o "País das Maravilhas". Proporcionam-lhes uma forma-ção conservadora e tecnicista, impedindo-os de constituírem-se profissionalmente de forma crítica e reflexiva.

Impedem que os jovens docentes vejam o trabalho da forma como Dejours pontuou com propriedade

Trabalhar, pois, não é somente executar os atos técnicos, é também fazer funcionar o tecido social e as dinâmicas intersubjetivas indispensáveis à psico-dinâmica do reconhecimento que (...) é o caráter necessário em vista da mobilização subjetiva da personalidade e da inteligência. (Dejours, 1997: 58)

Tais escolas insistem em desenvolver competências já superadas, que fazem com que o professor ainda experimente mais intensos sentimentos de insegurança e inade-quação, ao defrontar-se com o trabalho real.

É evidente que os efeitos do burnout afetam diferentemente os indivíduos, para alguns professores os agentes estressantes são percebidos como desafios estimulantes, enquanto para outros aparecem como pressões devastadoras. Depende também dos Meca-nismos de defesa e da capacidade de controlar o elemento estresse, o que parece indicar que algumas personalidades conseguem administrar melhor o estresse.

Fontana (1998: 410) sugere que o professor "mantenha as ansiedades da vida profissional cotidiana numa melhor perspec-tiva e que seja mais realista em suas expec-tativas e em seus julgamentos do que é possível e do que é impossível em qualquer situação."

Fala ainda do desenvolvimento de "estratégias de distração", participando de atividades agradáveis que afastem a atenção do problema e aumentem a sensação de controle pessoal sobre a situação estressante, ao invés das atitudes comuns provenientes das "estratégias de ruminação" (falar ou pensar repetitivamente sobre como as coisas são difíceis) ou das "estratégias negativas de enfrentamento da realidade" (adotar com-portamentos escapistas perigosos como bebida e drogas, agitação física, ou agres-sividade com os outros).

Devemos ter cuidado, no entanto, com a excessiva ênfase nas estratégias cognitivas para o manejo do estresse - o chamado coping .

O conceito de coping tem sido descrito como o conjunto das estratégias utilizadas pelas pessoas para adaptarem-se a circuns-tâncias adversas ou estressantes.

Folkman e Lazarus (1980) criaram um modelo que divide o coping em duas modalidades: focalizado no problema e foca-lizado na emoção. Nesta perspectiva, coping é definido como um conjunto de esforços, cognitivos e comportamentais, utilizado pelos indivíduos com o objetivo de lidar com demandas específicas, internas ou externas, que surgem em situações de stress e são avaliadas como sobrecarregando ou excedendo seus recursos pessoais.

Isto implica que as estratégias de coping são ações deliberadas que podem ser aprendidas, usadas e descartadas, mas deve-mos considerar que a sua eficácia é carac-terizada por flexibilidade e mudança. A simples manutenção indefinida das estratégias de coping pode levar ao aumento do estresse e à chegada ao burnout.

Cabem aqui, ao encerrar este artigo, duas palavras finais sobre o trabalho e o mal-estar do professor.

A primeira refere-se à idealização do trabalho docente, ainda presente, como vimos, nos discursos dos professores, na represen-tação do heroísmo sofrido e penalizante do próprio trabalho, e validado consensualmente pela sociedade.

Há pouco tempo, lendo uma entrevista de Caetano Veloso, deparamos com a seguinte afirmação:

"Eu fico apaixonado quando uma pessoa diz que é professora, ou professor, de escola primária, é inacre-ditável. Porque a pessoa deveria ser muito bem assistida. Devia ter bom salário, e muitas regalias na sociedade brasileira para estimular a educação, o ensino. Mas os professores não têm isso, ao contrário." (Deheinzelin, 1996: 160)

Perguntamos, então: Por que um intelectual reconhecido como arauto do novo, do insólito, emite um conceito tão conser-vador? Por que o professor, trabalhador como os demais, precisa de tais compensações, ou "regalias", ou ser "assistido", de forma diferente das demais categorias de trabalha-dores?

A segunda reflexão volta-se para as identidades transicionais ou circunstanciais que o professor pode assumir.

O ungido por um dom divino, o de ensinar, com uma missão divina a cumprir; o delirante, Dom Quixote dos moinhos ilusórios da Educação; o herói mitológico, em processo redentor de imolação; até mesmo o especia-lista, cujo poder é referendado pelo saber, pela especialização técnica...

Essas identidades talvez não passem de processos defensivos diante do sofrimento laboral, como já dissemos anteriormente. Talvez correspondam, a grosso modo, aos que a Psicanálise aponta na adolescência, em que as identidades variáveis representam a busca de uma latência, ou de uma moratória, que permita mais tarde emergir a personalidade adulta.

De acordo com esse raciocínio talvez nós, educadores, embora a profissão seja bastante antiga, estejamos ainda vivendo uma transição, que poderá desaguar na maturidade plena de uma categoria profissional amadure-cida politicamente e preparada para as verdadeiras lutas da realidade e do cotidiano.

Fica, como um último registro do processo de feminização do magistério, apresentado anteriormente, o registro concreto do sofrimento, representado pelas queixas e lamúrias.

Estudadas de forma clara por Fernández, as reclamações são ouvidas com muita freqüên-cia, por parte dos professores. Diz a autora, no entanto, que elas imobilizam e impedem um processo ativo e transformador, representado pelo trinômio crítica - reflexão - ação.

"Seria interessante também pensar que lugar ocupa "o queixar-se" na consti-tuição da subjetividade feminina em nossa cultura e por que as professoras caem tão facilmente na armadilha. A armadilha consiste na crença equi-vocada de que se está usando o juízo crítico, de que se está pensando ou analisando uma situação, quando somente se está convalidando.

O juízo crítico, o pensar implicam, necessariamente, uma transformação no mundo interno que, segundo como se operacionalize, pode gestar uma transformação maior ou menor no mundo externo. A queixa, pelo contrário, imobiliza." (1994: 107)

 

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Notas

E.S.G. Oliveira é Psicóloga (UERJ) e Pedagoga (Sociedade Unificada Augusto Mota - SUAM), Especialista em supervisão escolar (Associação Salgado de Oliveira de Educação e Cultura - ASOEC, Mestre em Psicologia Escolar (Universidade Gama Filho) e Doutora em Educação (Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ). Atua como Professora Adjunta na UERJ. E-mail para contato: eloizagomes@hotmail.com.