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Ciências & Cognição

versão On-line ISSN 1806-5821

Ciênc. cogn. vol.9  Rio de Janeiro nov. 2006

 

Ensaio

 

As profundezas do vício: "Quando eu quiser, eu paro!"

 

The deepening of the addition: "When I want, I stop!"

 

 

Ariel Lorber RolnikI; Alfred Sholl-FrancoII

IFaculdade de Medicina, Centro de Ciências da Saúde, Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil;
IIPrograma de Neurobiologia, Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho (IBCCF), Centro de Ciências da Saúde, UFRJ, Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil

 

 


Resumo

O vício é uma patologia altamente prevalente e com grandes implicações sociais. Parte das complexas bases neuroquímicas que alteram a consciência e o comportamento parecem ser compartilhadas entre as diferentes substâncias e outras fontes de prazer. Os estudos neurocientíficos nesta área são de extrema importância, pois podem indicar novos caminhos terapeuticos, como sugere este trabalho. © Ciências & Cognição 2006; Vol. 09: xxx-xxx.

Palavras-chave: vício; hedonismo; recompensa; drogas; abuso.


Abstract

The addiction is a pathology with high prevalence and great social implications. Part of the complex neurochemical basis that modify the conscience and the behavior seems to be shared between different substances and others sources of pleasure. The neuroscientific studies in this field are of extreme importance, therefore they can indicate new therapeutic ways, as it suggests this work.© Ciências & Cognição 2006; Vol. 09: xxx-xxx.

Keywords: addiction; hedonism; reward; drugs; abuse.


 

 

"Quando eu quiser, eu paro!" Essa frase é, freqüentemente, o prenúncio de diferentes histórias trágicas. Sem preconceitos, moralismos ou terrorismos: é uma questão de saúde. O vício, ou adicção como também é conhecido, é um distúrbio crônico que pode ter curso progressivo e complicações graves, às vezes letais. O que caracteriza uma pessoa como dependente é a perda do controle sobre o uso de drogas ou sobre determinados comportamentos (Vanderschuren e Everitt, 2005). Este é um fato que muita gente tem dificuldade de aceitar: um ser humano pode perder o controle sobre seu próprio comportamento, como se vê quando um viciado não consegue limitar a auto-administração de uma droga, ou quando um indivíduo continua o seu uso apesar da presença concomitante de estímulos dolorosos, ou mesmo do ato em si poder resultar em conseqüências sabidamente nocivas.

À luz da ciência atual, a dependência por uma substância é constituída por dois componentes distintos: a dependência psicológica e a dependência física (ou química). A primeira se associa ao desejo intenso de consumir a substância (quem nunca teve uma vontade irresistível de comer doce?), enquanto a segunda é relacionada a um conjunto de sintomas que segue a privação do uso da substância, a síndrome de abstinência, que leva o indivíduo a recorrer novamente à mesma para suprir a sua falta, e pode ser tão intensa a ponto de causar a morte (para revisão, Twerski, 2001: 23). Esses efeitos são facilmente reprodutíveis em animais de laboratório que são viciados em drogas e, posteriormente, afastados delas. Fatores genéticos, assim como problemas psicológicos, emocionais e sociais, podem facilitar a instalação da adicção (Koob, 1996a).

Realmente é intrigante a busca por respostas que elucidem quais são os processos celulares e moleculares responsáveis pelos fenômenos ligados ao uso das drogas, como tolerância, sensibilização, dependência, compulsão, síndrome de abstinência e o fenômeno de recaída. A investigação abrange desde simples experimentos de laboratório e relatos de experiências pessoais até sofisticados métodos de imagem que mapeiam a atividade cerebral no estudo desses fenômenos, como vemos no trabalho intitulado Behavioral and neural mechanisnms of compusive drug seeking (Vanderschuren e Everitt, 2005) e que compreende uma bela revisão sobre os conhecimentos de que dispomos hoje sobre o assunto.

As drogas ativam, no cérebro, o circuito de recompensa, o que gera a sensação de prazer. Parte desse circuito é o sistema mesocorticolímbico, que tem como neurotransmissor principal a molécula de dopamina. Quando ativado, um de seus componentes, a área tegmental ventral, libera dopamina através de suas projeções (axônios) ao núcleo acumbente (que é tido atualmente como o centro do prazer), assim como em outras estruturas do cérebro: a amígdala, o sistema límbico (o sistema das emoções) e o córtex frontal (Planeta e Cruz, 2005). Mantendo sempre em mente a extrema complexidade da circuitaria de conexões presentes no sistema nervoso, esse não é um circuito isolado, mas sim um dos que se conecta direta e indiretamente com inúmeras regiões, podendo influenciá-las, assim como ser modulado por elas. Exemplo prático disso é o fenômeno de recaída ao vício: um cheiro, uma música ou a visão de qualquer coisa que "lembre" o prazer gerado pelo uso da droga numa ocasião prévia pode ativar parte dessa circuitaria, levando o indivíduo a usar novamente a droga (recaída) ou até mesmo deflagrando sintomas de abstinência (neste caso, parte do sistema de recompensa é estimulado pelas respectivas áreas cerebrais: do olfato, da audição ou da visão) (Koob, 1996b).

Existe uma diferença entre beber socialmente e o abuso do indivíduo alcoólatra. De um ponto de vista psiquiátrico, a dependência de substâncias tem aspectos tanto de transtornos do controle do impulso quanto de distúrbios compulsivos. O primeiro grupo tem um caráter mais psicológico e denota um aumento no nível de tensão ou alerta antes do ato impulsivo; prazer, gratificação ou alívio durante o mesmo; remorso, auto-reprovação ou sentimento de culpa após a conclusão. Já os distúrbios compulsivos compreendem disfunções que cursam com alterações em órgãos de vários sistemas do corpo humano. Este componente caracteriza-se por ansiedade e estresse antes da realização do ato compulsivo repetitivo e, simplesmente, alívio desses sintomas após a consumação desse ato. A diferença é que a ansiedade e o estresse, em oposição ao alerta e à tensão, marcadamente atingem vários órgãos (do que são exemplos a taquicardia, a palidez, sudorese e tremores, entre outros sinais e sintomas da abstinência). Além disso, um impulso conduz o indivíduo de um estado neutro para outro de sensações positivas (reforço positivo), como ocorre nas primeiras vezes em que ele faz uso da droga. A compulsão, ao contrário, leva o seu portador de uma situação de sensações negativas (os sintomas) a uma neutra, de alívio dos sintomas (reforço negativo). É o que ocorre nas fases mais avançadas do abuso, quando o vício já está instalado. Assim, quando o indivíduo passa da fase de impulso para a compulsão, há uma troca na qualidade e na intensidade da força que motiva o comportamento. O limite entre essas duas fases pode ser bastante tênue (uma mudança gradual), mas o que não deixa dúvida é que na fase compulsiva o doente já não sente prazer em usar a droga (como esperava no início do abuso), só alivia seus sofrimentos (necessitando de doses cada vez mais altas, devido ao fenômeno da tolerância) (Koob, 2005).

O interessante é que não só as drogas de abuso (tais como cocaína, nicotina e álcool) elevam os níveis de dopamina no Núcleo Accumbens, mas também certos medicamentos e comportamentos como sexo, jogos, esportes ou o hábito de comprar. Enfim, qualquer situação que gere prazer (hedonismo). Essas situações e substâncias compartilham vias neuroquímicas comuns, o que parece explicar o fato de todas elas poderem ser fontes vício. Numa perspectiva mais teórica, a adicção pode ser compreendida como um estado de desregulação do sistema de recompensa em que o ponto de ajuste está patologicamente deslocado (Koob e Le Moal, 2001). A esse estado damos o nome de alostase, em oposição ao de homeostase, que representa o equilíbrio natural em que vive um organismo saudável. Num sistema homeostático, uma variação em um dos parâmeteros fisiológicos tende a ser compensada por modificações internas que reaproximem tal variável de seu valor normal. Para isso, cada função do ser vivo tem um ponto de ajuste (setpoint) que serve como referência para o "correto" funcionamento do todo. Pense, por exemplo, na temperatura do corpo humano: quando ela sobe devido ao esforço físico, o indivíduo sua, perdendo energia térmica pelo suor, o que permite que a temperatura retorne à faixa fisiológica de 35,5 a 37,.°C. Isso porque uma temperatura de 4.°C não seria compatível com a vida. E quando a temperatura cai para 35,.°C por causa de um ambiente muito frio, nós trememos, pois as contrações musculares que geram o tremor produzem calor (a hipotermia severa também não é tolerada por muito tempo). Num caso patológico, como o do comedor compulsivo, por exemplo, a regulação da ingestão de alimentos estimulada pela fome é perdida, o que tem muitas conseqüências no corpo. A sensação de prazer desencadeada pelas situações citadas parece ser a peça-chave no desenvolvimento do vício, através de uma desregulação alostática desse sistema.

Estamos no começo da exploração de um vasto e misterioso oceano. O conhecimento das profundezas das vias e mecanismos subjacentes aos fenômenos da dependência nos traz a perspectiva de novos alvos em que possam agir diferentes agentes terapêuticos, sejam eles psíquicos, medicamentosos ou comportamentais. Koob (2005) apresenta uma ampla revisão das bases neurofisiológicas da dependência, correlacionando-as com as atuais possibilidades terapêuticas. É uma luz para tentar resolver um problema que, além de atingir o ser humano como indivíduo, tem imensas repercussões sociais.

 

Referências Bibliográficas

Koob, G.F. (2005). The neurocircuitry of addiction: Implications for treatment. Clin. Neurosci. Res., 5, 89-101.         [ Links ]

Koob, G.F. e Le Moal, M. (2001). Drug addiction, dysregulation of reward, and allostasis. Neuropsychopharmacology, 24, 97-129.         [ Links ]

Koob, G.F. (1996a). Hedonic valence, dopamine and motivation. Mol. Psychiatry, 1, 186-189.

Koob, G.F. (1996b). Drug addiction: the yin and yang of hedonic homeostasis. Neuron, 16, 893-896.

Planeta, C.F. e Cruz, F.C. (2005). Bases neurofisiológicas da dependência do tabaco. Rev. Psiquiat. Clin., 32, 251-258.         [ Links ]

Werski, A.J. (2001). Vencedores viciados (trad. Horowitz, E.E.). São Paulo: Editora Maayanot.

Vanderschuren, L.J.M.J. e Everitt, B.J. (2005). Behavioral and neural mechanisms of compulsive drug seeking. Eur. J. Pharmacol., 526, 77-88.         [ Links ]

 

 

Notas

A. L. Rolnik
E-mail para correspondência: rolnikariel@yahoo.com.br.

A. Sholl-Franco
Endereço para contato: Sala G2-032, Bloco G - CCS, Programa de Neurobiologia, IBCCF, UFRJ. Av. Brigadeiro Trompowiski S/N - Cidade Universitária, Ilha do Fundão, Rio de Janeiro, RJ 21.941-590, Brasil.
Telefone: +55 (21) 2562-6562.
E-mail para correspondência: asholl@biof.ufrj.br.