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SMAD. Revista eletrônica saúde mental álcool e drogas

versão On-line ISSN 1806-6976

SMAD, Rev. Eletrônica Saúde Mental Álcool Drog. (Ed. port.) vol.14 no.2 Ribeirão Preto abr./jun. 2018

https://doi.org/10.11606/issn.1806-6976.smad.2018.000321 

ARTIGO ORIGINAL
DOI: 10.11606/issn.1806-6976.smad.2018.000321

 

Acolhimento de usuários de substâncias psicoativas pela equipe multiprofissional do Centro de Atenção Psicossocial III*

 

Recepción de usuarios de sustancias psicoactivas por el equipo multiprofesional del Centro de Atención Psicosocial III

 

 

Ana Cristina dos Santos VangrelinoI; Augusto do Amaral GazetaII; Isabella de CamargoII; Ana Paula Rigon Francischetti GarciaIII; Vanessa Pellegrino ToledoIII

IPrefeitura Municipal de Campinas, Secretaria Municipal de Saúde, Campinas, SP, Brasil
IIUniversidade Estadual de Campinas, Faculdade de Ciências Médicas, Campinas, SP, Brasil
IIIUniversidade Estadual de Campinas, Faculdade de Enfermagem, Campinas, SP, Brasil

 

 


RESUMO

O objetivo da pesquisa foi verificar como a equipe multiprofissional de um Centro de Atenção Psicossocial acolhe usuários de substâncias psicoativas. Os dados foram coletados por observação participante e entrevista semiestruturada. As categorias de análise foram: contexto do trabalho em equipe, antirrelação com a droga e relação com a pessoa. Concluiu-se que há distanciamento da equipe de enfermagem em relação à equipe multiprofissional, acolhimento pautado no modelo biomédico e na abstinência da droga e algumas iniciativas de relacionamento com o usuário. A contribuição configura-se pelo acolhimento articulado à tecnologia relacional, pautada em princípios como empatia, atitude orientadora, genuinidade e congruência, potencializando a relação com a pessoa e minimizando a antirrelação da equipe com a droga.

Descritores: Acolhimento; Saúde Mental; Usuários de Drogas.


RESUMEN

Objetivo fue conocer cómo el equipo multidisciplinar de un Centro de Atención Psicosocial realiza la recepción de los consumidores de drogas. Datos fueron recogidos mediante observación participante y entrevista semi-estructurada. Las categorías fueron: contexto de trabajo en equipo, antirrelação con el fármaco y relación con la persona. Se concluyó que existe desprendimiento del personal de enfermería del equipo multidisciplinario, anfitrión guió el modelo biomédico y la retirada del fármaco, y algunas iniciativas de relación con el usuario. La contribución establecida por el anfitrión articulado a la tecnología relacional, basado en principios tales como la empatía, la actitud de guía, la autenticidad y la congruencia, para mejorar la relación con la persona y reducir al mínimo antirrelação personal con la droga.

Descriptores: Acogimiento; Salud Mental; Consumidores de Drogas.


 

 

Introdução

O Sistema Único de Saúde estabeleceu princípios que legitimam a atenção à saúde no Brasil, são eles: universalidade de acesso, equidade de oferta e integralidade de cuidado(1).

Para estabelecer políticas de saúde, é importante ter em vista sua relevância, tanto clínica quanto social. Uma questão pertinente na atualidade é referente aos usuários de substâncias psicoativas (SPA), em razão de sua importância epidemiológica(2). Entretanto, somente em 2003 foi instituída política pública voltada ao cuidado de usuários de SPA que, a partir da criação dos Centros de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas (Caps AD) e da estratégia de redução de danos, possibilitou o cuidado integral a essas pessoas, antes marginalizadas às políticas de caráter medicamentoso ou religioso-moral(3). Entre os dispositivos de saúde mental, o Caps, orientado pela integralidade, é estratégico para a Reforma Psiquiátrica Brasileira. O Caps, organizador da rede substitutiva, presta assistência diária, modula a intensidade do cuidado, insere socialmente as pessoas com transtorno mental, por meio das ações intersetoriais, e dá suporte para a assistência à saúde mental na atenção básica(4). Nesse contexto, o processo saúde/doença expõe a ideia da multicausalidade. A saúde é entendida como qualidade de vida, que inclui a promoção de saúde(5). A integralidade deve garantir cuidado irrestrito e contemplar atenções complexas quando existirem demandas, garantindo a universalidade e a equidade(5). Trata-se de tema transversal às necessidades de saúde e permite construir as linhas de cuidado para atender às demandas dos sujeitos no sistema de saúde(6).

O trabalho em saúde exige diversas competências e instrumentos técnicos, contudo, é sempre relacional, caracterizado como tecnologia leve(6), isto é, tecnologias que compreendem relações interpessoais, ou intersubjetivas, e nelas se inserem o vínculo, a corresponsabilização e o acolhimento(7).

O acolhimento é a tecnologia do cuidado, o momento de formação de vínculo e escuta para as necessidades do sujeito, que possibilita a construção de projeto terapêutico individualizado, permitindo ao sujeito ser autônomo no processo de produção de saúde(7-9). Propõe o reconhecimento da integralidade física, social e cultural e a organização centrada no usuário, garantindo acessibilidade, reordenando o processo de trabalho para uma equipe multiprofissional e qualificando a relação entre trabalhador e usuário(5).

Diante de um contexto complexo e multifacetado, no qual também se insere o usuário de SPA, o trabalho em saúde necessita da integração resultante da síntese das contradições, a partir do diálogo entre os diferentes atores, trabalhadores e usuários, e seus conhecimentos, permitindo visão multidimensional do processo saúde/doença(7-9).

É importante que o acolhimento se volte às particularidades dos usuários de SPA, já que também trata de questões morais, como a existência de tabus que, mesmo inconscientes, impedem diálogo que vise a formação de vínculo com o sujeito(8-9). No que diz respeito ao acolhimento dessa comorbidade, estudos apontam que essa ação se reduziu a procedimento para os profissionais de enfermagem, confundindo-se com o ato de encaminhar. Por outro lado, fica claro que, quando as práticas se desenvolvem em estratégias mais longitudinais e interdisciplinares, obtém-se melhores resultados para usuários de SPA, podendo indicar avanços quanto à consolidação de estratégias de cuidado mais abrangentes e conectadas ao cotidiano das pessoas(7,9-10).

Considerando a relevância de ampliar a compreensão de como as equipes multiprofissionais dos Caps lidam com as dificuldades e as particularidades desses sujeitos, com a análise de sua vulnerabilidade e do uso das tecnologias leves de cuidado, convocando-os a reconhecer sua responsabilidade pela busca das SPA como forma de se relacionar o mundo, bem como de produzir no usuário do serviço a responsabilização pelo seu processo de saúde/doença, torna-se oportuno investigar o acolhimento desses usuários(5-9).

O objetivo deste estudo, portanto, foi investigar como a equipe multiprofissional de um Caps III realiza o acolhimento dos usuários de SPA.

 

Método

Este é um estudo qualitativo, descritivo-exploratório, caracterizado por processo de investigação de uma atividade, a partir de seu contexto relacional, e da subjetividade do observador em relação ao ambiente em que está inserido(11). A pesquisa foi realizada no Caps III do Distrito de Saúde Norte de Campinas, estado de São Paulo. A unidade conta com equipe formada por 40 profissionais, dos quais, 25 são de nível médio e 15, superior, divididos em três equipes de referência pelo território.

Esse Caps possui 353 usuários inseridos, acompanhados por uma equipe e por profissional de referência, cuja finalidade é o vínculo e a relação no contexto do serviço em que prevalece a lógica multidisciplinar(9).

Dos 40 profissionais do serviço, apenas 13 atenderam aos critérios de inclusão dos sujeitos da pesquisa, que foram: profissionais pertencentes à equipe multiprofissional há pelo menos um ano e que já tivessem acolhido usuários de SPA(12).

Entrevistou-se cada um dos 13 profissionais que compunham as três equipes de referência, três médicos, quatro psicólogos, dois terapeutas ocupacionais, um enfermeiro, um técnico de enfermagem e dois auxiliares de enfermagem, totalizando dez profissionais de ensino superior e três de nível médio. A duração das entrevistas foi de aproximadamente uma hora e dez minutos cada uma e elas foram gravadas, transcritas e armazenadas, conforme estabelecido no Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.

A coleta de dados foi feita em duas etapas, que ocorreram no período de julho a agosto de 2013, por meio de observações de campo e entrevistas. A primeira etapa, referente às observações de campo, totalizou 162 horas, destinadas ao reconhecimento do local de estudo. A ambientação ocorreu por meio da participação em duas reuniões de equipe para apresentação do projeto de pesquisa e permitiu que, antes da realização do trabalho mais intensivo, se estabelecesse um fluxo na rede de relações dos pesquisadores com o campo e a observação participante do acolhimento, com utilização de diário de campo para registro descritivo, priorizando as impressões dos pesquisadores, que não tinham roteiro específico e foram apresentadas na categoria sobre o contexto de trabalho no Caps(11).

A segunda etapa da pesquisa referia-se à entrevista semiestruturada, norteada com a pergunta(11): "Como você realiza o acolhimento dos usuários que fazem uso de SPA?".

Os dados foram estudados a partir da pré-análise do material coletado, que leu atentamente os discursos e os classificou e registrou em unidades de significados. A isso somou-se a leitura do diário de campo, dando origem a três categorias(13) que possibilitam entender como a equipe de um Caps III acolhe os usuários que fazem uso de SPA: o contexto do trabalho em equipe no Caps (que trata dos pontos relevantes do diário de campo), a antirrelação com a droga e a relação com a pessoa. Para sustentar a análise do ponto de vista teórico, utilizaram-se conceitos dos planos de construção da subjetividade que tratam de como ocorrem as relações sociais e de alguns apontamentos da psicologia humanista, especificamente, da teoria rogeriana, fundamentando o acolhimento dos usuários de SPA com o emprego da empatia, da atitude orientadora, da escuta e da genuinidade(14-15).

Para garantir o anonimato dos participantes, usou-se a inicial da palavra entrevistado, letra "E", seguida de números arábicos, de acordo com a ordem em que se realizaram as entrevistas "E1" a "E13".

O projeto de pesquisa foi submetido e aprovado pelo Comitê de Ética da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp, de acordo com a Resolução CNS/MS 466/12, segundo o Parecer nº 302.863/2013.

 

Resultados e Discussão

O contexto do trabalho em equipe no Caps

A política nacional de saúde mental preconiza que a reabilitação psicossocial e a construção de redes de atenção sejam estruturadas a partir da lógica do território, que visa criar uma organização para a assistência, por meio da compreensão do processo saúde/doença, ampliada pela identificação dos determinantes sociais e sua relação com o sujeito e em permanente construção(3-4,14,16-17).

Para responder por essa demanda complexa do território, é necessário organizar o trabalho em equipes. Nesse Caps III, o processo de trabalho se organiza com 40 profissionais de saúde mental, distribuídos em três equipes multiprofissionais, pressupondo relação recíproca entre as múltiplas intervenções técnicas e a interação dos agentes de diferentes áreas profissionais. Logo, cada usuário inserido é acompanhado por uma equipe e possui um ou mais profissional de referência, responsável por elaborar, aplicar e avaliar o projeto terapêutico em conjunto com os usuários. A equipe e o profissional de referência, pautados no princípio da integralidade, apoiam a atenção à saúde na lógica interdisciplinar e na construção do vínculo, respondendo às demandas de saúde de maneira ampliada(9).

Para atingir uma combinação interdisciplinar, é necessário que a equipe se organize de modo a compreender a relação entre diferentes profissionais que conformam a tecnologia leve, no contexto de suas relações sociais e com os usuários, reconhecendo ou não suas subjetividades(6,8-9). Essa convergência entre a organização da equipe de referência na perspectiva interdisciplinar é elemento importante na organização do processo de trabalho, que só é possível levando-se em conta a subjetividade dos sujeitos, uma vez que o modo de pensar, sentir e agir interfere no modo de produzir saúde em um serviço(7,9).

Ainda, no contexto do trabalho em equipe no Caps III estudado, tem-se como resultado a dificuldade de integração entre os profissionais. Quando se observou uma reunião de uma das equipes de referência, os profissionais alertaram para o distanciamento da equipe de enfermagem, que não estava incluída na produção dos processos terapêuticos. Para contornar tal problema, discutiu-se a possibilidade da criação de duplas de referência, incluindo a equipe de enfermagem, na tentativa de melhorar o relacionamento, a assistência e o referenciamento.

Nessa perspectiva de trabalho, a construção de relação entre os usuários e profissionais é sustentada pela atual política de saúde de base comunitária e organizada em rede que potencializa as forma de acolhimento, contemplando os determinantes sociais e subjetivos e fortalecendo a concepção do cuidado, a partir da promoção da vida, o que resulta na construção conjunta de projetos terapêuticos personalizados dos usuários de SPA(2,4-5,14,17).

Acolhimento e antirrelação com a droga

O modo como as equipes se organizam no Caps permite considerar diversas formas de acolhimento aos usuários de SPA, uma delas, que chama atenção neste estudo, trata da antirrelação com a droga: o acolhimento tem seu foco nos sinais e sintomas clínicos e não na integralidade, além de os membros da equipe destacarem a necessidade da abstinência do usuário para que ele possa ser assistido no serviço.

No que se refere à abordagem pela avaliação clínica, que consiste prioritariamente no tratamento dos sinais e sintomas(18), a partir do discurso dos profissionais, foi possível observar tendência a priorizar a abordagem clínica. Quando chega sob o efeito, faz o acolhimento, tenta ver a quantidade de uso. Se for muito abusivo, tomar as condutas necessárias com medicação, conversa (E12). Chamo a equipe de enfermagem, pra aferir sinais vitais, deixar em observação, dar algum remédio, prescrever hidratação, a gente vai observar como ele fica abstinente. Isso é acolhimento também (E2).

No pensamento científico moderno, o paradigma biomédico é dominante nas práticas de saúde(18). Nesse modelo, saúde e doença são vistos como polos opostos e o profissional de saúde tem o papel de eliminar a doença, negligenciando-se a pessoa atendida nos serviços e o contexto em que vive(18).

Nas relações de trabalho, a subjetividade é fator dominante para construir o processo produtivo. A construção da subjetividade ocorre a partir de três planos diferentes. No primeiro, a busca daquilo que é desejado pela pessoa parte de relações sociais marcadas pela agressividade contra o outro, que é considerado sempre um rival potencial. No segundo, a obtenção do desejo é adiada pelo sentimento de segurança, que se expressa pela acumulação, o outro é um antagonista potencial, mas é alguém com quem se deve negociar ou se submeter. No terceiro, os sujeitos partem da realidade de disputa de classes, mas tentam reverter a situação, a partir da articulação de novas relações que instituam um processo contínuo de entendimento(14).

Sendo assim, entende-se que, no primeiro plano da subjetividade, a droga é comumente compreendida como rival ao processo de cura, devendo ser, necessariamente, eliminada da vida do sujeito, desconsiderando o contexto social, econômico e cultural do paciente, que influencia na construção de seu processo saúde/doença(5,14,19).

Os trabalhadores entrevistados apresentaram-se, em muitos momentos, de acordo com o paradigma biomédico. A gente acaba trabalhando até mais os sintomas que essas drogas podem causar, são psicóticas, tornam agressivos, a gente parte mais pro lado da clínica, e não a parte da droga (E8).

No segundo plano da subjetividade, a doença continua aparecendo como rival potencial, mas se deve considerar o outro, o sujeito usuário do sistema, com quem se deve negociar. Esse processo, contudo, é marcado pela relação de poder e pela acumulação do saber médico, que leva à submissão do usuário na construção do projeto terapêutico(14). Entretanto, a abordagem a partir do modelo biomédico é insuficiente para atender à demanda das pessoas que procuram os serviços de saúde, pois desconsidera a dimensão subjetiva dos usuários, reduzindo-os a coadjuvantes na resolução de seu adoecimento(5,7-8,19).

Quando os profissionais ofertam apenas a avaliação centrada na perspectiva biológica, excluem do projeto terapêutico aspectos essenciais para compreender os sintomas, como experiências individuais de gênero, classe e cultura que podem fazer parte da construção do sofrimento mental(19). Dessa forma, os profissionais de saúde limitam-se a prescrever e dispensar medicações, realizar exames clínicos e controlar sintomas até que a medicação tenha efeito, tendendo a repetir a base de modelos manicomiais de assistência(17,19).

Esse movimento pode indicar, também, a exclusão da apreensão da subjetividade do trabalhador como ponto de partida para constituir relações que contribuam para construir um acolhimento criativo que incorpore os modos de viver daqueles que demandam por cuidado.

Estudo realizado em uma unidade básica de saúde revelou que fatores como sentimentos e características pessoais dos trabalhadores, falta de capacitação para acolher os usuários de SPA e a percepção de que profissionais de saúde mental seriam mais resolutivos e adequados que os de enfermagem produziram uma lógica de encaminhamento que evita a responsabilização pelo cuidado e mantém a fragmentação dos cuidados de saúde. Também se observou o frágil empoderamento dos profissionais de enfermagem nas equipes multiprofissionais e os efeitos da formação, ainda calcada no modelo biomédico, que reproduz modos verticais e hierarquizados de relacionamento profissional(9).

Destaca-se a coexistência dos modelos médico e psicossocial, uma vez que o discurso valoriza as ações de promoção de saúde, enfatizando o protagonismo dos usuários, entretanto, a prática observada permanece atrelada aos procedimentos técnicos e à hierarquização dos saberes. Os usuários raramente aparecem como integrantes de espaços de planejamento, operacionalização, controle e avaliação das práticas efetuadas, o que pode indicar que seu potencial, enquanto provedores de informações úteis e relevantes, que contribuam para consolidar práticas que correspondam às necessidades de cada comunidade, é pouco explorado(9-10).

Os profissionais apresentaram visão do processo saúde/doença em que o tratamento da condição biológica dificulta entender o indivíduo de forma integral, sugerindo o encaminhamento para um serviço mais especializado. Se identificado que o paciente tá sob efeito de substância psicoativa, o acolhimento… identifica e encaminha, não tem como você atender um paciente se ele tiver com sinais clássicos de intoxicação. A gente geralmente encaminha para o PA (E1).

A clínica ampliada pode ser alternativa que contempla a integralidade do cuidado, direcionando os profissionais na realização do acolhimento e permitindo o diálogo entre a equipe e com os sujeitos que utilizam SPA(7-9,11).

Para que o processo de saúde atenda à lógica da clínica ampliada, é necessário que os trabalhadores estejam integrados como equipe e como serviço. A fragmentação do processo de trabalho e a ausência de reflexão e diálogo nas equipes favorecem a prática desintegrada e descontextualizada(8-10,17).

No campo de estudo, o princípio da integralidade se apresenta como objetivo a ser alcançado no discurso dos profissionais, pois, quando se referem aos usuários de SPA, ainda se posicionam de forma médico-centrada. Um paciente nosso, chegou visivelmente alterado, estava com sinais e sintomas, pupilas dilatadas, muito acelerado e negando sempre (…) Comuniquei o médico que estava de plantão e junto com ele a gente medicou (E13).

Sob perspectiva médica, com ênfase nos sintomas e no primeiro plano de subjetividade, ocorre a exclusão da integralidade, apontando para a antirrelação com a droga(14,19). Dessa forma, vários depoimentos apontam para a necessidade de retirar a droga do serviço. No Caps ela não pode existir e, portanto, quem a utiliza não pode ser acolhido no momento de seu uso. Muitas vezes a gente tem dispensado a pessoa, a gente abre mão da presença dela aqui no ambiente, em vista de que ela está com substâncias (E5). Lá fora é tranquilo, mas quando chega e você vê que está fazendo uso de drogas aqui dentro, a abordagem normalmente é muito complicado, o que fazer? Vamos desprezar junto com o paciente a droga? Pedir para que ele saia e fique com a droga e dê um jeito para voltar? Porque não, a gente não está muito lidando (E12).

Essa situação, contudo, nem sempre é simples, pois, muitas vezes, a droga está incluída na dimensão subjetiva e não pode ser excluída facilmente(20). Tal fato remete ao questionamento: o que fazer com os sujeitos que utilizam SPA?

É importante lembrar o papel que as SPA ocupam nas sociedades humanas, pois seu uso sempre esteve presente, seja de forma religiosa, ritualística, medicinal, econômica, social ou cultural, e elas estão amplamente instituídas na nossa sociedade, sobretudo pelo seu viés econômico(21). Do ponto de vista individual, as SPA tornam-se muitas vezes indispensáveis para o sujeito, por diversos motivos, trazem alívio, prazer, inclusão em grupos sociais. Dessa forma, excluir a droga da vida do sujeito nem sempre é uma opção viável(20-21), pois, ao fazê-lo, tem-se tratamento apoiado pela abstinência, o que pode implicar num viés para o acolhimento desses sujeitos, numa perspectiva de exclusão.

A abstinência, entretanto, é estratégia de cuidado que não se aplica a todos os usuários, variando de acordo com os diferentes padrões de uso e suas particularidades, podendo, em muitos casos, levar à falta de adesão ao tratamento, à ineficácia das propostas de promoção de saúde, impedindo, também, a própria inserção do sujeito no serviço(20). Uma estratégia para reverter essa situação é a redução de danos, que não se volta à abstinência como objetivo a ser alcançado, mas, sim, ao cuidado e à inserção dos usuários de SPA nos serviços de saúde(4,8).

A compreensão da redução de danos, sob perspectiva que abrange a clínica ampliada, pode facilitar que o sujeito construa novas relações, permitindo composição existencial com diversas possibilidades, capacitando-o a assumir o papel de sujeito e não o de objeto da droga.

Acolhimento e relação com a pessoa

Ao analisar as entrevistas, percebeu-se heterogeneidade no acolhimento de usuários de SPA. Uma parte dos profissionais se mostrou mais inclinada a ouvir o usuário, em sua totalidade e complexidade. Tentar entender o que está acontecendo com a pessoa que chegou por algum motivo aqui, eu tento pensar nas razões que trouxeram ela até aqui (E11). A gente coloca a questão do sofrimento, como o sujeito se relaciona na vida dele, a questão da droga não é algo que eu levo, eu não levo o uso da droga como prioridade, eu levo o sujeito como prioridade (E7). A escuta tem de estar voltada para o que esse indivíduo traz, no sentido das relações sociais, das implicações das relações familiares, do que isso causa para ele (E3).

O terceiro plano de subjetividade caracteriza-se pela concepção de que o outro é sempre sujeito, partindo da realidade do conflito de interesses, focada na tentativa de articulação de novas relações, fundadas na solidariedade e em um processo contínuo de entendimento, a fim de resolver tais conflitos por meio de negociação(14). Ouvir o usuário em sua complexidade é uma alternativa para sustentar o acolhimento no contexto da integralidade, que pode ser fundamentado no referencial da relação pessoa-pessoa, caracterizada como relação de ajuda, sob perspectiva terapêutica apoiada no humanismo(15,21).

A empatia é a capacidade de intra-habitar o outro, para ver e sentir o mundo tal qual ele é para essa pessoa e para articular o que se aprendeu fazendo isso. Ao estabelecer-se relação empática, abre-se o caminho para contatar aquela outra realidade e arriscar comprometimento com ela, o que pode sustentar a clínica(15), como demonstrado a seguir. Eu acho que isso diz respeito a esse acolhimento também, de uma situação, de momento que a pessoa esteja vivendo, de me aproximar mais dessa dimensão do que significa aquilo para ele (E9).

Entende-se que, para realizar acolhimento de forma humanizada, construindo o projeto terapêutico centrado na pessoa, é importante ouvir seus pedidos e assumir postura capaz de acolher as demandas e dar respostas mais adequadas(7-9). Por meio da empatia, associada às estratégias que o profissional pode tomar, como a atitude orientadora, escuta e genuinidade, é possível construir acolhimento capaz de permitir que a pessoa desenvolva relações que garantam sua independência.

A atitude orientadora é um princípio da relação pessoa-pessoa que o profissional sustenta e que possibilita que a pessoa desenvolva recursos para lidar construtivamente com todos os aspectos de sua vida(15). Para isso, é necessário que o trabalhador tenha "tendência formativa", que possa ser compreendida, possibilitando confiança para ouvir suas crenças, medos e angústias(15). No campo de estudo, uma parte dos profissionais referiu essa atitude no contato com os usuários de substâncias. É muito mais tranquilo de você intervir, de você obter algum tipo de reflexão, de ressignificação, de mudança de conduta com a pessoa a partir do ponto que você tem uma coisa construída com ela (E10). Quem vai dizer as consequências que tem é ela, que ela que tá sentindo, ela que tem que me dizer, porque ela que sabe, ela que está sentindo, ela que está vivendo e que estou lá pra a auxiliá-la nesse percurso (E4).

A escuta na relação de ajuda não se refere apenas à capacidade auditiva, inclui todos os sentidos com os quais se percebe a realidade, tomando consciência do organismo como um todo, corpo e mente, sentimento e pensamento(15).

Uma leitura possível do discurso de alguns profissionais leva ao reconhecimento de que eles apontam para a tentativa de ressignificar a fala do usuário, permitindo entender a pessoa em sua complexidade, como um ser dotado de pensamentos, sentimentos e autonomia. Então, eu acho que atender um usuário que faz uso de droga, eu sempre enxergo o sofrimento, as questões que o usuário traz que o fazem sofrer, que prejudiquem, que fazem com que ele tenha prejuízos na vida cotidiana dele (E6). Na verdade é primeiro tentar entender a dinâmica do caso, a estrutura, o que vem desse sujeito, e eu acho que pensar no uso de drogas acaba sendo uma consequência da construção desse caso, de que forma a droga entrou na vida, o porquê (E4).

A genuinidade deve estar presente em toda relação de ajuda, na medida em que qualquer atitude tomada pelo profissional de saúde esteja acompanhada da consciência dessa ação e que, portanto, haja congruência entre palavra e ato, consistência de ação, para que se estabeleça relação de confiança e vínculo(15).

Ao considerar-se que a pessoa acolhida tem vida articulada ao uso de SPA, ampliam-se as possibilidades de cuidado numa perspectiva solidária e contextualizada à sua existência, a partir da relação estabelecida entre trabalhador de saúde mental e usuário de SPA, porque a potencialidade da pessoa para encontrar soluções para seus desafios é reconhecida. Retira-se o entendimento de que a droga é um problema e passa-se a considerar a positividade das relações que a pessoa estabelece e, consequentemente, sua capacidade de construir seus próprios caminhos. A congruência depende da percepção da pessoa a respeito da genuinidade dos trabalhadores e, dessa forma, o profissional deve buscar alinhar a teoria com suas práticas cotidianas(15).

Logo, a gestão do cuidado, no contexto de um Caps III, pode ser reconstruída considerando o modo como se faz a clínica, por meio da redefinição do que se entende por processo saúde/doença, abstinência e subjetividade das pessoas envolvidas no acolhimento(14). Essa reconstrução depende de novos modos de acolher, pactuados pela equipe, a partir de um contorno teórico que potencialize a relação com a pessoa, a partir da empatia, atitude orientadora, genuinidade e congruência.

 

Considerações Finais

Este estudo possibilitou compreender como a equipe multiprofissional de um Caps III realiza o acolhimento de usuários de SPA, por meio de três categorias: o contexto do trabalho em equipe no Caps, a antirrelação com a droga e a relação com a pessoa.

Para o acolhimento de usuários que utilizam SPA em um Caps III, identificou-se a organização do serviço na lógica de equipes de referência, porém, ficou claro que tal estratégia não é resolutiva para sanar o distanciamento da equipe de enfermagem, que não estava incluída na produção dos processos terapêuticos. Tal cisão também foi observada no acolhimento do usuário, os trabalhadores priorizam os sinais e sintomas físicos, pautando-se no modelo biomédico e considerando a droga como rival a ser combatida. Em outros momentos, o saber médico coloca-se como ponto fundamental da relação de poder e leva à submissão do usuário na construção do projeto terapêutico, excluindo sua subjetividade. Ao mesmo tempo, os trabalhadores instalam o acolhimento a partir da relação com a pessoa, marcada pela escuta, com foco na tentativa de articulação de novas relações, sustentando o acolhimento no contexto da integralidade.

A contribuição deste estudo está na apresentação de alternativa para o acolhimento de usuários de SPA que transcenda o modelo biomédico, esteio do primeiro e do segundo plano subjetivo. Alternativa que consolide o acolhimento articulado à tecnologia relacional, pautada em princípios como a empatia, atitude orientadora, genuinidade e congruência, potencializando a relação com a pessoa e minimizando a antirrelação da equipe com a droga. Essa categoria também mostrou uma questão desafiante, que se refere ao acolhimento do usuário quando ele se encontra sob efeito de SPA, o que denota alteração das funções mentais, incluindo a própria linguagem. Como alternativa possível, destaca-se o desenvolvimento de ações, pela equipe multiprofissional, que não requeiram a abstinência, pois, como já foi discutido, a SPA pode ser indispensável para o sujeito, inclusive para se inserir no Caps, podendo implicar no não acolhimento do usuário.

Este estudo circunscreveu o cenário, no entanto, observou-se que a saída a partir da relação com a pessoa pode ser foco do acolhimento em cenários nos quais o sofrimento esteja articulado ao uso de SPA. Dessa maneira, abre-se a possibilidade de encontrar formas de acolher que considerem o terceiro plano subjetivo, enfocando a pessoa usuária de SPA no contexto das atuais políticas públicas de saúde.

 

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Recebido: 19.07.2016
Aceito: 31.07.2018

Autor de correspondência:
Vanessa Pellegrino Toledo
E-mail: vtoledo@unicamp.br
 https://orcid.org/0000-0003-4009-1042

 

 

* Apoio financeiro do Ministério da Saúde, Brasil, Programa de Educação pelo Trabalho para a Saúde (PET).

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