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Estudos e Pesquisas em Psicologia

versão On-line ISSN 1808-4281

Estud. pesqui. psicol. vol.23 no.3 Rio de Janeiro set./dez. 2023  Epub 03-Maio-2024

https://doi.org/10.12957/epp.2023.79264 

PSICOLOGIA SOCIAL

Os Sentidos do Trabalho: Análise do Trabalho Fabril em uma Indústria Farmacêutica

The Meanings of Work: Analysis of Manufacturing Work in a Pharmaceutical Industry

Los Sentidos del Trabajo: Análisis del Trabajo Fabril en una Industria Farmacéutica

Fernanda Rodrigues Mota* 

Psicóloga, graduada pela Universidade Federal Fluminense, Mestra e doutoranda pelo Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro.


http://orcid.org/0000-0002-4732-8674

*Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, Brasil


RESUMO

Pretende-se nesse texto discutir o trabalho fabril a partir dos resultados de uma pesquisa de campo sobre os sentidos do trabalho para os operários de uma indústria farmacêutica na região metropolitana do Rio de Janeiro. Essa pesquisa teve como objetivo compreender o olhar do trabalhador sobre o seu trabalho e como ele se percebe enquanto trabalhador. Para tanto, realizamos uma pesquisa de campo etnográfica com treze operários de chão de fábrica. No que se refere ao formato metodológico, a opção foi pela pesquisa de abordagem qualitativa, que se apoiou na utilização de entrevistas semiestruturadas individuais e observações das atividades de trabalho, utilizando como instrumento a observação participante. Como resultado, percebemos que, para os trabalhadores, o trabalho ainda é um fator estruturante e produtor de sentidos em suas vidas. Desse modo, o trabalho possui uma grande importância para o cotidiano dos trabalhadores e é indiscutível o valor social que está intrínseco em sua ocupação.

Palavras-chave: trabalho fabril; sentidos do trabalho; observação participante.

ABSTRACT

The aim of this text is to discuss factory work based on the results of a survey about the meanings of labor for workers from a pharmaceutical industry in Rio de Janeiro’s metropolitan area. This research aimed to understand the worker's view of his labor and how he perceives himself as a worker. Therefore, we chose to conduct an ethnographic field research with thirteen shop floor workers. With regard to the methodological structure of this research, the option was for a qualitative approach, which was based on the use of individual semi-structured interviews and observations of work activities, using participant observation as an instrument. As a result, we realize that, for workers, labor is still a structuring factor and a producer of meanings in their lives. Thus, the labor has great importance for the daily life of workers, and the social value that is intrinsic in their occupation is indisputable.

Keywords: factory work; meanings of work; participant observation.

RESUMEN

El objetivo de este texto es discutir el trabajo fabril apartir de los resultados de una investigación del campo sobre los significados del trabajo para los trabajadores de una industria farmacéutica en la región metropolitana del Río de Janeiro. Esta investigación tuvo como objetivo comprender la visión del trabajador sobre su trabajo y cómo se percibe a sí mismo como trabajador. Para ello, llevamos a cabo una investigación de campo etnográfica con trece obreros de fábrica. En cuanto al formato metodológico, se optó por una investigación de enfoque cualitativo, que se apoyó en el uso de entrevistas individuales semiestructuradas y observaciones de actividades laborales, utilizando como instrumento la observación participante. Como resultado, percibimos que, para los trabajadores, el trabajo sigue siendo un factor estructurante y productor de sentidos en sus vidas. Por lo tanto, el trabajo tiene una gran importancia para la vida cotidiana de los trabajadores y es indiscutible su valor social que es intrínseco en su ocupación.

Palabras clave: trabajo fabril; sentidos de trabajo; observación participante.

O trabalho, tal como foi organizado na sociedade capitalista, origina-se no século XVIII, a partir da Revolução Industrial. Marcada pela apropriação privada dos meios de produção e por uma série de mudanças tecnológicas nas atividades produtivas, a revolução industrial tornou-se cada vez mais intensa, dando início a um processo complexo de transformações econômicas, políticas, sociais e ideológicas.

O progresso da fábrica possibilitou grande desenvolvimento e crescimento da produção, consolidando um trabalho industrial pautado na vigilância do tempo; na exigência de produzir cada vez mais; na integração do corpo à máquina; do tempo social e biológico dando lugar ao tempo da produção; da intensificação das ações e do controle dos movimentos; entre tantas outras formas de se conseguir a máxima eficiência do trabalho.

O trabalho industrial sofreu diversas transformações ao longo do tempo. Destaca-se o taylorismo, o fordismo e o toyotismo como transformações técnicas e no modo de organização do trabalho, pautados no aumento da produtividade, no aceleramento do ritmo de trabalho, na mecanização e automação dos sistemas produtivos. A subjetividade que foi sendo produzida no âmbito do trabalho fabril valorizava a produção de massa, a rapidez e a eficiência (Pinto, 2010).

O trabalho vem sofrendo grandes e significativas transformações nas últimas décadas, cada vez mais intensificado, precarizado, explorado, informal, etc (Antunes, 2018). Essas novas mudanças acerca do trabalho vêm se solidificando e se presentificando a partir da lógica capitalista de acumulação, tendo em sua base a superexploração do trabalho.

Fazendo um rápido apanhado das últimas transformações no mundo do trabalho, era relativamente pequeno o número de trabalhadores terceirizados até a década de 1980 no Brasil (Antunes, 2014). Nas décadas seguintes, a partir de 1990, com o advento do neoliberalismo, o processo de reestruturação produtiva do capital se intensificou, levando o mundo do trabalho a adotar novas formas de atuação das organizações, tendo como implicações diretas as novas formas de contratação e de relações sociais do trabalho como é o caso da flexibilização, da informalidade e da precarização (Antunes, 2018).

Avaliando o cenário atual do mundo do trabalho é possível perceber um aumento de trabalhadores submetidos a contratos temporários, a empregos informais, sem estabilidade, sem registro em carteira, à margem da legislação trabalhista. Para Antunes (1999), as mudanças no mundo do trabalho vêm comprometendo tanto a materialidade da classe trabalhadora quanto a sua esfera subjetiva, social, política e ideológica.

Diante da fragilidade, visível e pertinente ao contexto do trabalho informal, o trabalhador vive às margens de um trabalho sem regulamentação e a precarização fragmenta a identidade e a força do trabalhador, tornando-o isolado mesmo que inserido em um processo que abarca milhões de trabalhadores.

Mesmo com um cenário de precarização, o trabalho ainda possui uma grande importância na vida do trabalhador, tanto no que se refere a uma dimensão objetiva quanto a uma dimensão subjetiva. O trabalho é fundamental para o alicerce e estruturação da vida humana e da sociedade no sistema capitalista.

O trabalho na sociedade capitalista, na visão marxista, possui uma dupla dimensão: trabalho concreto e trabalho abstrato. O trabalho como atividade primária, natural e necessária para constituição do homem e da sociedade é o que Marx denomina de trabalho concreto, ou seja, atividade com o fim de criar valores de uso. Dessa forma, o trabalho se apresenta como uma atividade de autodesenvolvimento e autorrealização da existência humana (Marx, 2008).

É nessa esfera que temos o trabalho como alicerce fundamental para a existência humana. Sem o trabalho, a reprodução da vida cotidiana seria impossível (Antunes, 1999), pois o homem necessita do trabalho para produzir seus meios de subsistência. O modo pelo qual o homem produz seus meios de vida não significa apenas uma maneira de trabalhar, mas também uma forma de manifestar suas vidas (Marx, 2008).

O trabalho, tal como o conhecemos na sociedade capitalista, é o trabalho abstrato, pautado na lógica capitalista da venda da força de trabalho. O modo de produção capitalista, baseado na propriedade privada e na geração de mais-valia, transforma o trabalho concreto em trabalho abstrato, levando em consideração não mais o valor de uso das mercadorias, mas sim o seu valor de troca (Marx, 2008). À vista disso, o trabalho abstrato apresenta-se como mercadoria cujo fim é a valorização do capital; como trabalho socialmente necessário à produção.

O trabalho como mercadoria forma a base do sistema capitalista, no qual estamos inseridos e, dessa forma, o trabalho abstrato insiste em se fazer presente no cotidiano, sendo difícil vivenciar o trabalho a não ser como a venda de uma mercadoria. Entender o que o trabalho representa para os trabalhadores é compreender que o sentido do trabalho se dará em meio a todos esses processos - estruturado na base de um sistema de exploração e alienação e também visto como um símbolo de organização e estruturação da vida.

Os sentidos do trabalho referem-se a uma produção subjetiva, vinculados à percepção do sujeito em relação ao seu trabalho (Coutinho, 2009). Para Coutinho (2009), “a análise dos sentidos produzidos pelos sujeitos deve sempre considerar suas relações com os significados produzidos coletivamente e vice-versa” (p. 193), uma vez que o indivíduo não é produzido espontaneamente, está sempre inserido nas relações que traça cotidianamente e que o constituem como sujeito (Fiorin, 2005).

Interessa-nos compreender como o sujeito é construído historicamente segundo um contexto social, cultural e ideológico precisos, como o trabalho perpassa a história desse sujeito e o constitui. Sendo assim, cabe perguntar qual a percepção que o trabalhador tem de si e de seu trabalho, bem como quais atravessamentos esse sujeito vivencia. Feitas tais considerações, as reflexões realizadas a partir de então possibilitam perceber a complexidade em torno da constituição dos sentidos que integra o mundo do trabalho.

Notas Metodológicas

Esse estudo caracteriza-se por ser uma pesquisa de abordagem qualitativa. As primeiras reflexões desse estudo surgiram a partir da experiência 1 de trabalho da autora na empresa em questão. A pesquisa de campo 2 durou nove meses e participaram do processo de pesquisa treze trabalhadores de uma mesma linha fabril. Para se tornar elegível e participar da pesquisa era necessário que os participantes atuassem como Auxiliar de Montagem, cargo que na fábrica pesquisada refere-se ao operário de chão de fábrica, que desempenha as atividades de produção.

Para a coleta de dados foram utilizadas na pesquisa de campo as seguintes técnicas: observação participante, entrevistas semiestruturadas e diário de campo. A observação participante teve uma grande importância no processo de coleta de dados, pois proporcionou à pesquisadora permanecer no interior do grupo, entendendo e partilhando o seu cotidiano e situações de trabalho. Inúmeros processos 3 e circunstâncias que foram observadas não seriam possíveis sem a convivência cotidiana. A saber, segundo Minayo,

a técnica de observação participante se realiza através do contato direto do pesquisador com o fenômeno observado para obter informações sobre a realidade dos atores sociais em seus próprios contextos. A importância dessa técnica reside no fato de podermos captar uma variedade de situações ou fenômenos que não são obtidos por meio de perguntas, uma vez que, observados diretamente na própria realidade, transmitem o que há de mais imponderável e evasivo na vida real. (2001, p. 59)

As entrevistas também foram de grande importância para entender as vivências subjetivas dos trabalhadores, a história de vida e a relação dos sujeitos com o seu trabalho. Foram realizadas entrevistas individuais e semiestruturadas. A entrevista semiestruturada foi baseada em um roteiro de perguntas abertas e previamente elaboradas, porém não rígidas, mas sim flexíveis e adaptáveis.

Para análise dos dados, o conteúdo obtido por meio das entrevistas foi transcrito na íntegra e, posteriormente, foi realizada a organização, categorização e análise do material, procurando destacar os aspectos mais recorrentes na fala do conjunto dos trabalhadores. Buscou-se prioritariamente entender as especificidades do trabalho fabril e das questões que estavam vinculadas aos sentidos do trabalho.

Plantas Fabris

A fábrica pesquisada é responsável pela produção de bombas de infusão, funciona apenas em um turno, de segunda a sexta-feira e, eventualmente, aos sábados. São produzidas diariamente 25 bombas. Cada posto de trabalho representa a produção de uma peça da bomba. Todos os postos de trabalho possuem uma instrução e um desenho da atividade descrevendo com detalhes cada etapa daquele posto. São muitos detalhes e muitas ações para a montagem de uma única peça. Todas as atividades têm um tempo calculado e pré-determinado para serem executadas. É realizado um rodízio diário dos postos de trabalho. As atividades de trabalho são realizadas com a ajuda de ferramentas bem específicas como solda, chave de fenda, parafusadeira, alicate, multímetro etc. Essa fábrica será denominada nessa pesquisa como fábrica II.

A empresa possui mais duas plantas fabris no mesmo local. A primeira, denominada aqui de fábrica I, é a responsável pela fabricação de produtos plásticos. Possui linhas de produção manual, na qual todas as etapas da produção (montagem, colagem e cintagem) são realizadas pelos Auxiliares de Produção. Nesta fábrica, há ainda outras linhas de produção que utilizam esteiras e outras máquinas na fabricação. É uma fábrica que possui um controle de tempo e movimentos bastante rigorosos, com meta de produtividade elevada. Nela, os trabalhadores utilizam vestimenta apropriada para o trabalho: uniforme, máscara, luva, gorro, óculos e protetor auricular, o que dificulta a conversa entre eles e a saída da fábrica. Essa fábrica funciona em três turnos de 8 horas cada, todos os dias da semana. Essa fábrica é a porta de entrada da empresa.

A terceira, chamada aqui de fábrica III, é responsável pela produção de soluções. Sua linha de produção é automatizada e todo processo de fabricação (preparo de soluções, envase, rotulagem e esterilização) é feito por máquinas. A atuação dos Auxiliares de Produção é pontual, por exemplo, em atividades como: inspeção e qualidade do produto, na colocação e retirada das ampolas de solução na esterilização, na operação das máquinas para o preparo de soluções etc. Essa fábrica funciona todos os dias da semana, em dois turnos de trabalho de 12 horas cada, e os trabalhadores que atuam lá trabalham por escala de 2x2.

92% das trabalhadoras que atuam na fábrica pesquisada trabalharam nas outras plantas fabris da empresa. A política da empresa é preencher as vagas dessa planta fabril através do processo de recrutamento interno ou indicação dos supervisores. Sendo assim, nas análises, abordaremos também as questões das demais fábricas, já que essas experiências foram fundamentais para formar a concepção do trabalhar em fábrica.

Perfil das Trabalhadoras Entrevistadas: Idade, Gênero e Tempo de Casa

Em relação à idade, a maioria das trabalhadoras pesquisadas encontra-se na faixa etária entre 41 e 50 anos, o que representa 38% do grupo. Quanto ao gênero, a fábrica pesquisada possui predominância do sexo feminino em seu quadro de funcionários. 92% das trabalhadoras da fábrica pesquisada são mulheres. Sobre o tempo que os trabalhadores estão empregados na empresa, 62% dos entrevistados possuem entre 16 e 20 anos de casa.

Resultados e Discussões

Os sentidos do trabalho é o tema que norteia toda essa pesquisa. Aqui o tema será tratado no plural, os sentidos, visto a complexidade da temática e por entendermos que esta é a única forma de abarcar todas as variações possíveis sobre o assunto e expressar o que compõem os sentidos do trabalho para cada pessoa que participou dessa pesquisa. Isto posto, a análise dos sentidos do trabalho se dará sempre buscando a historicidade singular de cada trabalhadora e entendendo como se relaciona com as questões sociais, econômicas, políticas, organizacionais e regionais. Analisaremos como as trabalhadoras se relacionam com o seu trabalho e como o trabalho marca suas histórias de vida.

Primeiras Impressões de uma Fábrica

Ao relatar suas histórias de vida percebemos que uma importante questão para entender a experiência fabril das trabalhadoras foi o primeiro contato delas com a fábrica 4. Por isso, nesse primeiro momento, será avaliado com mais vagar o que significou a fábrica e o trabalho fabril para as pesquisadas. Os relatos apresentam lembranças referentes à adaptação, as especificidades e dificuldades do trabalho fabril, como podemos ver a seguir: “A dificuldade foi imensa quando eu cheguei lá, porque eu nunca fui rápida, nunca, sempre gostei de fazer as coisas com calma e bem. Chegou lá uma produção danada que eu fiquei quase doida.” (Alice.)

A adaptação foi difícil. A gente montava aqueles tubos todos, ficavam todos pendurados. A gente montava, embalava, cintava e colocava na caixa, o dia todo fazendo isso não é fácil, vinha mais, o dia todo, até você fazer a produção (Antônia).

Inicialmente, o primeiro aspecto sobre o trabalho fabril que podemos analisar nos depoimentos das entrevistadas é o fato de ter que realizar a mesma coisa todos os dias, sem ver nenhuma mudança nas atividades de trabalho. Não importa que dia ou que horas, a mesma atividade será exercida o dia todo, a semana toda, o ano todo. No relato das trabalhadoras, fica evidente a rigidez dos processos, a intensidade da produção, a correria para dar conta da meta do dia praticamente sem qualquer tipo de mudança no cotidiano do trabalho. É um trabalho que necessita de rapidez para dar conta da produção. Tempo e movimentos são mensurados, estipulados, exigindo das trabalhadoras seguir o ritmo e a rigidez dos processos.

Ter o seu trabalho mensurado pela quantidade de produção realizada e pelo controle dos minutos do relógio é presente na concepção do trabalho industrial. A sensação de que não vai dar conta está diretamente relacionada a um relevante e recorrente tema sobre o trabalho fabril, que é o processo de “dar produção 5”. Muitas trabalhadoras falam sobre a necessidade de dar produção e o sofrimento que esse processo causa, conforme depoimento de Alice e Cristina. “O meu maior problema era isso, uma vez por semana você podia ir no corredor que eu estava lá chorando, eu sempre estava chorando, eu tinha medo de ser mandada embora por isso [por não conseguir dar produção]” (Alice).

Eram mil e poucos por dia, a hora passava rápido, você olhava a hora e pensava ‘gente não vai dar tempo’. Cem equipos por 5 minutos. Tinha gente que era mais rápido fazia em 3, 4 minutos, era uma coisa de louco. Você imagina tirar, embalar, fazer tudo em 5 minutos, você trabalha o tempo inteiro com o relógio para não se perder (Antônia).

O processo é acelerado, tudo você tem um tempo para montar. Os amarradinhos vêm com 50 ou 100, você tem 5 minutos para montar os amarradinhos de 100. Para fazer um perfusor ou uma cintagem você tem 10 minutos. Você trabalha o tempo todo com o relógio. Se você levou 15 minutos, você sabe que você está atrasada, que a sua produção não vai sair. Você vai ter que achar alguma forma de compensar. (Cristina).

Nos relatos é possível entender que “dar produção” está além da quantificação do trabalho: é estabelecer uma meta igual para todos sem saber os limites individuais de cada um. O trabalho fabril pressupõe um ritmo ininterrupto, sendo necessário suprimir todos os tempos em detrimento do alcance da meta. No processo fabril a premissa universal é a produção do dia. Todos os tempos dão lugar ao tempo da produção, o ritmo humano dá lugar ao ritmo maquinal. Podemos avaliar melhor essas questões nos relatos a seguir: “Parar para fazer xixi eu não conseguia, não conseguia parar para ir ao banheiro! Cada tempinho é precioso. Dá tempo, mas tem que correr um pouquinho” (Laura). “Se você conversar muito você se distrai e perde o tempo. Te atrapalha porque você se desconcentra e perde o ritmo” (Cristina). “Lá em cima é muita gente. Não tem nem como você conversar com ninguém. Você tem que correr” (Isadora).

O depoimento das trabalhadoras nos faz lembrar o relato de Weil (1996) a uma aluna sobre os seus primeiros dias na fábrica, um relato simbólico que poderia pertencer a uma das entrevistadas desta pesquisa:

As mulheres são metidas num trabalho inteiramente maquinal, no qual só lhes pede rapidez. Quando digo maquinal, nem imagine que seja possível sonhar com outra coisa enquanto se trabalha, e muito menos refletir. Não. O trágico dessa situação é que o trabalho é maquinal demais para fornecer assunto ao pensamento. Pensar é ir menos depressa; ora, há normas de rapidez estabelecidas por burocratas sem piedade e que é preciso cumprir, para não ser despedido e, ao mesmo tempo, para se ganhar o suficiente (Weil, 1996, p. 84).

O processo de “dar produção” se faz presente no cotidiano de trabalho dos operários de forma imperiosa. Todo processo de trabalho no capitalismo é baseado na venda da força de trabalho por uma quantidade específica de tempo (Marx, 2008). E para realizar mais em menos tempo, no capitalismo, arranca-se, sistematicamente, mais trabalho em cada fragmento de tempo, explorando cada vez mais intensivamente a força de trabalho. Isso fica evidente nos depoimentos citados, já que a todo o momento as trabalhadoras precisam superar o tempo possível, trabalhar vigiando o relógio e correndo contra os minutos que se vão rápido demais, para dar produção e assim se superar a cada dia, não para encontrar um sentido de realização em seu trabalho, mas sim para satisfazer as demandas do capital.

Atividades de Trabalho na Fábrica Pesquisada

Nessa segunda parte, abordaremos uma questão fundamental para essa pesquisa: o olhar das trabalhadoras em relação ao trabalho que realizam na fábrica pesquisada. Diferentemente da experiência na fábrica anterior, as trabalhadoras relatam uma sensação de maior liberdade para a realização do trabalho; possibilidade de sugerir ideias; maior flexibilidade na atuação; trabalho integrado; ambiente mais leve etc, conforme podemos perceber nos depoimentos a seguir: “Valorizo aqui porque aqui é outro mundo. É tudo muito diferente. Parece que é outra fábrica. A atividade de trabalho é bem diferente” (Isadora).

Aqui é um setor que a gente está no paraíso e não sabe. A gente tem liberdade, você não vê chefe em cima de ninguém, cada um sabe o que tem que fazer e faz, não tem uma cobrança, não tem ninguém em cima. Você tem uma liberdade. (Luísa).

Aqui é um setor que o funcionário pode dar ideias, ele coloca o que é melhor para ele e dependendo do que for eles anotam e aderem à ideia da gente. Eu penso assim eu trabalho com vidas, tudo para mim é vidas. Então, a gente tem que fazer o melhor, se eu achar que tem um modo melhor para fazer eu falo e eles aceitam (...). É muito bom. É bem diferente lá de cima [fábrica I] que é tudo padronizado, não tinha jeito. Aqui você faz as coisas de maneira mais livre, mais aberta (Valentina).

Podemos perceber na fala de Isadora, Luísa e Valentina uma extrema valorização desta fábrica. Essa valorização se dá através do mecanismo de comparação com a outra fábrica, experiência anterior de trabalho de quase todas as trabalhadoras, que possui um modo de funcionar pautado em características do taylorismo-fordismo com tempos e movimentos bastante controlados, trabalho repetitivo e bem desgastante, produção em série, falta de visão geral sobre todas as etapas de produção, rigor prescritivo e forte controle (Pinto, 2010).

Tais processos são bem rigorosos, e ficam ainda mais quando comparados com os processos da fábrica atual. O contraste entre as fábricas é enorme. As características da fábrica pesquisada são menos rígidas, permitindo às trabalhadoras se sentirem mais pertencentes ao processo de produção, já que possui um ritmo de trabalho menos maquinal, repetitivo e monótono. Com o rodízio dos postos de trabalho, cada dia as trabalhadoras realizam a montagem de uma peça e executam tarefas diferenciadas durante toda a semana.

Valentina em seu relato nos apresenta uma fábrica mais receptiva e aberta à participação das trabalhadoras no que se refere a sugestões de ideias e melhorias para o processo fabril, gerando uma sensação de maior envolvimento e engajamento do funcionário. Essa abertura da fábrica para as questões trazidas pelas trabalhadoras leva em consideração as premissas do toyotismo, que busca incentivar os trabalhadores a propor melhorias para a qualidade do trabalho, eficiência do produto, aumento da produtividade etc. De acordo com Pinto (2010), no toyotismo,

A melhoria da produtividade e da qualidade do trabalho tem de partir dos postos operatórios, cabendo às gerências incentivarem tais atitudes e coordenarem os esforços entre todos os processos, focando-se na análise do desempenho global das instalações e na possibilidade de utilização flexível das forças produtivas e de trabalho dispostas. (Pinto, 2010, p. 77)

Dentro desse sistema as trabalhadoras são convidadas a propor melhorias e sugerir ideias para o processo produtivo que realizam. Dessa forma, elas vivenciam nessa fábrica uma experiência diferente das que elas tiveram nas demais fábricas da empresa. Esse processo, ao mesmo tempo em que gera uma sensação de pertencimento, de identidade, tornando as trabalhadoras parte ativa desse sistema, também permite, por parte da empresa, o manejo desse engajamento para o alcance das metas e aumento de produtividade.

Trabalho como Socialização

Outro ponto que influencia a percepção de valor das trabalhadoras é a possibilidade de poder conversar, de se relacionar com os colegas enquanto trabalham, o que não era possível na fábrica anterior. A possibilidade de conversar e partilhar, ao invés do silêncio, muda completamente a perspectiva do trabalho. O barulho que invade o espaço, o tempo, a atividade, não é mais somente o barulho das máquinas, mas também o barulho dos risos e das falas. Segundo as entrevistadas, a possibilidade de conversar torna o trabalho mais leve e agradável.

Aqui o tempo passa mais rápido, você trabalha melhor, é melhor de fazer as coisas, você faz várias coisas, faz processos diferentes, a hora passa mais rápido. Imagina passar o dia fazendo a mesma coisa, todos os dias, todas as horas, a mesma coisa. (...). Aqui você está fazendo, tá conversando, tá fazendo, tá conversando, aí faz com que o tempo voe. Tá batendo um papo, a hora passa bem mais rápida (Helena).

Valentina e Helena destacam, nos fragmentos abaixo, a relação com as companheiras de trabalho e a ajuda mútua que se estabelece na linha de produção, valorizando a esfera de socialização do trabalho. Para as entrevistadas, a socialização é uma esfera importante do trabalho. Percebemos o trabalho como elemento central do desenvolvimento da sociabilidade humana (Marx, 2008).

Aqui tem uma união tão bonita que aqui ninguém nunca está só, todo mundo procura ajudar um ao outro. (...) eu gosto muito do que eu faço, me identifico, e procuro fazer o melhor. Para mim, esse setor foi um presente de Deus, tenho só que agradecer mesmo (Valentina).

O trabalho enobrece. O trabalho não é só ter um esforço físico e mental não. Para mim, o trabalho é uma terapia. Porque enquanto você está trabalhando, você está conversando, conhecendo novas pessoas. Então para mim o trabalho é importante na vida das pessoas. O trabalho é ótimo, possibilita o convívio com outras pessoas. Eu adoro o meu trabalho, da empresa esse é o melhor setor, pode perguntar um por um para ver se não é (Helena).

Relação com o Produto e com o Trabalho

A relação com o produto é de extrema importância para entender o sentido que o trabalho tem na vida das trabalhadoras. Nos depoimentos podemos perceber o significado que o produto tem para suas vidas. É uma relação simbólica que ultrapassa o sentido prático do fazer. A atividade de produzir, o ato de trabalhar, ganha uma dimensão de realização e dá sentido ao que se faz. A produção da bomba de infusão deixa de ser uma meta do cotidiano de trabalho e ganha expressão de vida.

Eu me identifico muito. Eu tenho que melhorar cada dia mais, ter muito mais precisão no que eu faço, muito mais cuidado, porque aquilo ali vai salvar alguém ou não, vai depender do meu compromisso. Eu amo o que eu faço. (Lavínia).

Estamos em um setor que a gente aprende que a gente vai salvar vidas. A gente vê a essência lá fora, estou montando uma máquina, vou fazer isso de qualquer maneira, aí você pensa que lá tem um paciente, um nenezinho, que está esperando para passar o soro dele dentro de um neo [equipo para infusão de solução para bebê produzido pela empresa]. (...) Eu não estou em uma fábrica de hollywood, de cigarro, isso aqui é uma coisa que você está salvando vidas, quantas vidas você já ajudou a salvar? (Maria).

Percebemos que as trabalhadoras dão sentido ao seu trabalho e encontram um propósito para o que fazem e se sentem valorizadas. Elas se sentem pertencentes a um processo maior, um processo global, que supera os limites do cotidiano do trabalho e resulta em um ato para ajudar as pessoas. Elas trazem para si a responsabilidade de uma produção bem feita para salvar a vida das pessoas e dão um valor social para o seu trabalho. O produto passa a ser um objeto de realização.

Nos depoimentos apresentados fica evidente o grau de comprometimento e responsabilidade das trabalhadoras com o seu trabalho. As operárias remetem a responsabilidade de salvar a vida do paciente à qualidade do seu trabalho. Esse posicionamento nos remete à reflexão dos sentidos do trabalho para as operárias.

A questão do sentido e da finalidade do trabalho foi vista por Gorz (2004) ao analisar o caso da fábrica da Volvo de Udevalla. Para ele, a qualidade está diretamente relacionada à implicação do coletivo de trabalhadores, mas esta implicação está condicionada a uma escolha de produção e diretrizes que as trabalhadoras não possuem, já que a finalidade e o sentido, por fim, permaneciam sendo a valorização de um capital e não a realização de seu trabalho. De acordo com Gorz (2004),

é no nível das escolhas de produção, no nível da definição do conteúdo das necessidades e de seu modo de satisfação, que se situa o impasse político do antagonismo entre o capital e o trabalho vivo. E este impasse consiste em última análise no poder de decidir o destino e o uso social da produção, isto é, o modo de consumo ao qual é destinada e as relações sociais que este modo de consumo determina. (Gorz, 2004, p.45)

Para Gorz (2004), enquanto as decisões da produção, a definição do produto e da forma de trabalho for imposta, não pertencendo aos trabalhadores, mas sim ao representante do capital, os sentidos do trabalho lhes serão subtraídos. Dessa forma, de acordo com a literatura referida, os sentidos do trabalho para as trabalhadoras da fábrica pesquisada também seriam subtraídos.

Concordamos com Gorz (2004), uma vez que para ter o sentido do trabalho é necessário poder fazer escolhas e sabemos que essa opção é quase nula para o trabalhador dentro do processo produtivo do chão de fábrica. Porém compreendemos o operário como sujeito, lógico que aprisionado a uma cadeia mais ampla com fortes implicações hierárquicas, mas ainda assim sujeitos para entender o que sentir sobre seu próprio trabalho e o que o trabalho representa para sua vida.

Percebemos um valor social em relação ao trabalho desempenhado pelas trabalhadoras em seus depoimentos e esse valor social implica em um sentido no que fazem e um valor útil em seu trabalho. As trabalhadoras se sentem importantes já que na percepção delas o que fazem tem um valor útil para a sociedade.

Produzir uma bomba que será utilizada por alguém no hospital tem um sentido existencial que é comungado pelas trabalhadoras. Dessa forma, as trabalhadoras empregam um sentido de utilidade para o que fazem e atrelam esse sentimento a um sentido para o seu trabalho. Percebemos que elas se sentem participando de um processo maior e que o seu trabalho ganha um sentido que transpassa a prática do cotidiano da atividade de trabalho e atinge a esfera de um valor social vinculado à existência individual de cada um (Castro, 2012).

Ainda assim, o fato de 100% das trabalhadoras atribuírem o mesmo sentido ao seu trabalho, salvar vidas, nos faz refletir até que ponto esse sentido é de fato possível e igual para todas, já que consideramos o sentido algo individual e existencial do ser (Castro, 2012). Parece-nos que esse “sentido” pode estar vinculado a uma influência externa, que analisamos aqui como a cultura da organização.

Sabemos que o indivíduo é socialmente determinado, sendo constituído pelas formações discursivas e ideológicas que lhe atravessam (Fiorin, 2005). Entendemos que a organização é permeada por discursos que envolvem o trabalhador em seu cotidiano de trabalho e isso fica evidente em processos como palestra de integração, treinamentos, política da empresa, discursos sobre o alcance de meta, produção etc.

Desse modo, acreditamos que a cultura da empresa pode ter uma influência no olhar do trabalhador em relação ao seu trabalho e muitas são as concepções que formam as ideias e a visão de mundo das trabalhadoras. No depoimento de Maria, por exemplo, que acompanhamos no início desse tópico, percebemos essa influência da organização quando ela fala “estamos em um setor que a gente aprende que a gente vai salvar vidas”. Esse “aprendizado” nos remete a um discurso de valorização e atenção passado para as trabalhadoras visando alcançar qualidade na realização de cada peça. Então, a gestão da organização ao dizer “aqui você trabalha com vidas” busca imputar nas trabalhadoras o sentimento de responsabilização, de atenção, qualidade e eficiência do produto.

Trabalho como Reprodução da Vida, Independência e Autonomia

Uma das possibilidades de ver o trabalho em nossa sociedade é pela via da manutenção e reprodução da vida, já que, inseridos no sistema capitalista, para uma absurda parte da população o trabalho é o único meio de se manter vivo e de ter possibilidades de se realizar. Dessa forma, quem o tem enxerga-o como uma forma de gerar possibilidades de vida e autonomia.

Laura apresenta em seu depoimento a importância do trabalho para manutenção e reprodução da vida. Para ela, a relação com o trabalho se dá de maneira prática e objetiva, que ganha sentido no que o trabalho pode proporcionar para sua existência, como para tantas outras mulheres, e a possibilidade de oferecer ao filho o que ela não teve.

Eu gosto muito de ser independente, eu penso muito no meu filho, dar o melhor, no meu caso que somos três irmãos passamos aperto, querer algo e não poder, eu acho que por isso eu comecei a trabalhar muito nova para tentar ter as minhas coisas (...). Meu emprego é muito importante, eu dou maior valor a isso. (Laura).

Abaixo encontramos o depoimento de Luísa e percebemos três temáticas possíveis para analisar o sentido do trabalho: necessidade de trabalhar, conquistas como resultado do trabalho e trabalho como remuneração. Para Luísa, o trabalho é algo necessário e isso fica claro quando ela apresenta a necessidade de trabalhar, de estar na empresa e de cumprir com suas obrigações.

O trabalho está ligado ao dinheiro, eu sempre morri de medo de ficar pelo INPS, eu quero ter saúde para trabalhar, eu fico três anos sem ter uma falta. Não gosto de ficar doente, tem gente que fica torcendo para pegar uma conjuntivite para não vir trabalhar. Eu gosto de ficar em casa quando todo mundo está, se não eu fico em casa pensando agora está todo mundo lanchando, agora estão montando. Para mim, o trabalho está ligado as suas conquistas. Você conquistar sem passar ninguém para trás, foi com o meu trabalho, não foi na loteria, ou com herança de mãe ou pai. É claro que eu sou igual todo mundo quero reconhecimento do meu trabalho (Luísa).

Cristina também nos fala em seu depoimento sobre o orgulho que ela sente em ter autonomia, ser independente e sustentar sua família com o seu trabalho. O trabalho torna-se um valor e ganha sentido ao possibilitar uma vida independente, ter o próprio dinheiro e ser exemplo para os filhos. Criar os filhos com a força do seu trabalho traz um sentido de realização.

A gente sempre reclama de ter que acordar cedo, ter que trabalhar. Mas no meio dessa crise 6 eu penso ‘meu Deus se eu for mandada embora como é que eu vou fazer, como eu vou sustentar a minha família’. Você não se vê sem o trabalho, você se acha independente. Eu sou muito orgulhosa por ter o meu trabalho e sustentar a minha família, ser independente, ter o meu dinheiro. Na minha família ninguém tem vínculo, eles trabalham como autônomos ou fazem biscate, eles não têm o compromisso de passar o crachá de manhã e de tarde [bater o ponto]. Eu me acho importante por ter o meu trabalho. (Cristina).

Uma questão que aparece bem marcada na fala da Cristina é o vínculo empregatício, ela considera bastante importante ter um emprego formal e se sente orgulhosa disso. Essa questão fica evidente quando ela faz um contraponto com a relação de trabalho de sua família. A relação de trabalho da família da Cristina é assinalada pela informalidade e pela precarização do trabalho, o que faz com que ela veja o trabalho formal como algo importante e que traz segurança para sua vida.

Chamamos a atenção aqui que os sentidos do trabalho não podem ser pensados distantes das esferas sociais, geográficas, econômicas e políticas em que os trabalhadores estão inseridos. Pensar a importância de um trabalho para o trabalhador se dá também na relação que esse trabalhador se insere, se configura e se contrasta com o que está ao seu redor. Ter um trabalho formal em uma região com poucas possibilidades de emprego, marcada por uma forte informalidade, em uma área periférica e pobre da região metropolitana do Rio de Janeiro, faz diferença para a formação dos sentidos do trabalho para a trabalhadora em questão e para a análise desse estudo. Podemos perceber a importância desse trabalho formal e estruturado também no depoimento de Valentina.

Às vezes eu passo com a blusa da empresa e todo mundo fala: ‘você trabalha na empresa X? É uma empresa muito bem falada, visada, é uma multinacional’. As pessoas sempre, assim como eu, sonham em estar aqui, trabalhar aqui, eu sempre quis trabalhar aqui. As pessoas sempre me perguntam se tem vaga aqui (Valentina).

O fato de estar em uma empresa multinacional, que garanta benefícios, o que não se vê em um trabalho informal, promove uma relativa sensação de segurança e um sentimento de gratidão, de valorização e de realização. Esses sentimentos e percepções são trazidos à tona, principalmente, na análise feita pelas trabalhadoras olhando suas histórias de vida e familiares.

Trabalho como Identidade e Autorrealização

No depoimento de Joana, abaixo, podemos perceber a totalização da dimensão do trabalho na sua vida. Na entrevista perguntamos a Joana: o que é mais importante para você aqui? Ela respondeu: “Tudo aqui é importante! Tudo!” Percebemos em seu depoimento a realização com o trabalho, não somente quando ela fala do trabalho como uma esfera totalizadora em sua vida, mas também quando ela apresenta o trabalho como um projeto de futuro, projeto este que se apresenta como um sonho, demonstrando a força dessa atuação.

Tudo aqui é importante! Tudo! Eu construí uma casa com o trabalho daqui. Às vezes eu chego triste aqui, mas alguém fala alguma coisa que alegra (...) Meu sonho é se aposentar aqui, essa é a minha vontade, não sei se é a do Senhor, Deus é quem sabe, mas esse é o meu sonho (...) Eu não pararia de trabalhar se eu ganhasse na loteria, eu continuaria trabalhando. E eu continuaria trabalhando aqui, se não fosse tão perigoso, se as pessoas não soubessem que eu ganhei na loteria eu continuaria trabalhando sim, eu gosto muito de trabalhar aqui (Joana).

Essa magnitude que o trabalho desempenha em sua vida também está refletida no momento em que Joana fala que continuaria trabalhando na empresa mesmo se ganhasse na loteria. Dessa forma, para Joana a relação com o trabalho não é apenas monetária, da venda da força de trabalho em troca de uma remuneração. É também uma relação de centralidade, através da qual sua identidade é constituída. A identificação com o trabalho e a forma de organização da vida por meio do trabalho faz com que ela não consiga imaginar outra possibilidade de viver, a não ser por este trabalho. O ser trabalhador ocupa uma esfera na vida de Joana que a impulsiona a pensar em continuar trabalhando na empresa, como operária, mesmo ganhando na loteria (Castro, 2012). Ela consegue pensar no perigo de se ter muito dinheiro e trabalhar ali, mas não consegue não pensar em não trabalhar mais ali.

No depoimento de Joana, apresentado acima, percebemos o trabalho tendo um caráter de formação e construção do sujeito. O trabalho é uma atividade social complexa, que envolve a relação do homem consigo, com o objeto do trabalho, com a natureza e com os outros homens. O ser trabalhador tem um espaço privilegiado na identidade, é por meio do ato de trabalhar que o sujeito vivencia a autorrealização no campo social (Dejours, 2009).

Compreendemos, nos depoimentos de Lavínia e Sofia, apresentados abaixo, que o trabalho configura e ocupa uma posição central em suas vidas, pois é por meio dele que elas conseguem estruturar outras esferas da vida e dar sentido à própria vida. Dessa forma, o trabalho torna-se um mediador para produção e manutenção da vida e realização de si. As duas trabalhadoras percebem valor no trabalho e este proporciona um sentido de utilidade e da possibilidade de contribuir e participar de algo maior.

Para mim é tudo, me sinto útil em primeiro lugar, é meu sustento, gosto do que eu faço, eu sem trabalho eu não ficaria não, independente de ser aqui ou em outro lugar. Não somente por causa do sustento. Não é só isso. Eu amo o que eu faço (Lavínia).

A gente se sente útil, que a gente faz alguma coisa diferente, que a gente está contribuindo para alguma coisa, isso é bom para a gente. Você se sentir útil, se não você não faz nada, você se sente meio perdido, um grãozinho ali isolado que não faz nada. O trabalho faz bem também (Sofia).

Considerações Finais

Levando-se em conta tudo o que foi apresentado até o momento, percebemos que o trabalho tem um aspecto dicotômico, podendo ser visto como alicerce central da vida humana, sendo mediador de realização e sentido, e também como produção de mal estar, sofrimento e perda de si mesmo.

Compreendemos nessa pesquisa que as dimensões que configuram e são produtoras de sofrimento e desrealização estão vinculadas à angústia e à pressão de dar conta de uma produção incessante, de ter que obter um ritmo maquinal quando só se é possível ter um ritmo humano, de se ver economizando cada segundo do tempo para que seja possível produzir mais uma peça, de se ver alienado na realização de um trabalho que não deixa espaço para fazer o que está além do trabalho prescrito, entre outros.

Outrossim, não resta dúvida, depois de tudo o que foi apresentado pelas trabalhadoras, que o trabalho é também uma importante fonte de prazer e realização das metas vitais que constituem o sujeito. Por diversas vezes, as trabalhadoras falaram sobre a importância do seu trabalho, como se sentem valorizadas com o trabalho que realizam, que sentem orgulho do que fazem, que gostam das atividades de trabalho que desempenham, que o trabalho traz um sentido para suas vidas, que se sentem úteis, independentes e realizadas com o trabalho, entre tantas outras questões abordadas por elas.

Porém, não podemos deixar de registrar aqui algumas considerações que percebemos influenciar essa percepção. As trabalhadoras atribuem sentidos positivos ao trabalho que realizam por terem vivenciado uma experiência de trabalho bastante difícil, rigorosa e limitadora em sua primeira experiência na fábrica, o que faz com que elas valorizem as condições de trabalho e atividades desempenhadas posteriormente. De fato, as condições da fábrica que elas atuam são melhores, e as trabalhadoras conseguem vivenciar relativa intervenção no processo produtivo e a possibilidade de superar a rigidez dos processos prescritos frente ao trabalho real. Além disso, as constantes demissões, férias coletivas e instabilidade dos processos a que está submetida a imensa maioria da classe-que-vive-do-trabalho (Antunes, 1999) também influenciam na valorização de um emprego formal.

Ressaltamos que as discussões apresentadas aqui não buscam questionar a percepção das trabalhadoras, mas sim compreender os diversos olhares que compõem o fenômeno. A percepção dos sentidos do trabalho é legítima e se trata de um processo individual vivenciado por cada trabalhadora a partir das suas experiências e concepções. Por isso todas as questões apresentadas são importantes e representam a percepção de mundo de cada trabalhadora. Para elas, o trabalho é um fator estruturante e produtor de sentidos O trabalho possui uma grande importância para o cotidiano das trabalhadoras e é indiscutível o valor social que está intrínseco em sua ocupação.

Notas

1 A autora trabalhou na empresa pesquisada por cinco anos, de 2007 a 2012, na área de Recursos Humanos. A pesquisa de campo não aconteceu nesse período. A pesquisa de campo foi realizada em 2016. Esse artigo é a condensação de uma parte da pesquisa de Mestrado da pesquisadora.

2 O projeto da presente pesquisa foi submetido ao Conselho de Ética e Pesquisa e está de acordo com as normas éticas estabelecidas pela resolução 466 de 12 de dezembro de 2012. Todos os procedimentos e cuidados éticos necessários para realizar a pesquisa foram feitos, conforme orienta a resolução em questão. A participação foi voluntária e a pesquisa garantiu o sigilo da identidade dos participantes em todas as suas etapas. Todos os nomes usados neste artigo são fictícios. Comitê de ética do Centro de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal do Rio de Janeiro (CEP-CFCH), CAAE n.54207616.3.0000.5582.

3 A pesquisadora optou por vivenciar a rotina de trabalho fabril e realizar todas as atividades produtivas, o que proporcionou conhecer na prática todos os postos de trabalho e entender o quão minucioso e difícil é o cotidiano do trabalho fabril.

4 Os relatos das primeiras impressões da fábrica referem-se à fábrica I, responsável pela produção de insumos plásticos, que possui um processo de fabricação mais intenso e rígido.

5 Dar produção, no contexto fabril, refere-se a conseguir realizar a produção do dia (a quantidade de produtos estipulada pela gestão da fábrica).

6 A pesquisa foi realizada no período de abril a dezembro de 2016. No ano de 2015 e 2016, o Brasil enfrentou uma crise no cenário político e econômico, o que afetou particularmente a produção industrial, acarretando a demissão de muitos trabalhadores. As organizações vivenciaram diversos processos como demissão em massa, férias coletivas, plano de demissão voluntária, plano de aposentadoria incentivada, lay-off, entre outros.

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Recebido: 17 de Agosto de 2022; Revisado: 14 de Junho de 2023; Aceito: 19 de Junho de 2023

Endereço para correspondência Fernanda Rodrigues Mota Avenida Pasteur, 250, Urca, Rio de Janeiro - RJ, Brasil. CEP: 22290-240, Endereço eletrônico: fernanda_frm@yahoo.com.br

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