SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.23 número3Significado versus Sentido: Uma Proposta de Distinção Conceitual aos Estudos sobre o LutoUm Olhar da Psicologia Analítica sobre a Autolesão índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

artigo

Indicadores

Compartilhar


Estudos e Pesquisas em Psicologia

versão On-line ISSN 1808-4281

Estud. pesqui. psicol. vol.23 no.3 Rio de Janeiro set./dez. 2023  Epub 03-Maio-2024

https://doi.org/10.12957/epp.2023.79276 

PSICOLOGIA CLÍNICA E PSICANÁLISE

Desamparo e Destrutividade na Adolescência: Um Estudo de Caso

Destructivity and Helplessness in Adolescence: A Case Study

Desamparo y Destrutividad en la Adolescencia: un Estudio de Caso

Mariana Steiger Ungaretti* 

Psicanalista. Psicóloga e Mestre em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Professora do Curso de Psicologia da IMED - POA. Membro efetivo da Sigmund Freud Associação Psicanalítica. Membro efetivo da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul.


http://orcid.org/0000-0003-3459-6757

Carolina Neumann de Barros Falcão** 

Psicanalista. Psicóloga e Doutora em Psicologia pela PUCRS. Professora Adjunta do Curso de Psicologia da Escola de Ciências da Saúde e da Vida da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Membro efetivo da Sigmund Freud Associação Psicanalítica.


http://orcid.org/0000-0002-0226-251X

Mônica Medeiros Kother Macedo*** 

Psicanalista. Doutora em Psicologia. Professora do Programa de Pós-Graduação Psicanálise: Clínica e Cultura da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Bolsista Produtividade em Pesquisa do CNPq - Nível1D.


http://orcid.org/0000-0001-9347-8537

*Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul - PUCRS, Porto Alegre, RS, Brasil

**Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul - PUCRS, Porto Alegre, RS, Brasil

***Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFGRS, Porto Alegre, RS, Brasil


RESUMO

A leitura psicanalítica sobre a problemática adolescente evidencia sua condição transformadora na dinâmica pulsional do sujeito. Conflitivas psíquicas podem adquirir um caráter traumático nessa experiência, tornando-se fundamental investigar as condições adolescentes no necessário enfrentamento e trâmite dessas intensidades. Sabe-se que a partir desses movimentos podem decorrer vicissitudes subjetivantes ou dessubjetivantes à experiência psíquica de adolescer. Neste artigo, objetivou-se explorar as nuances de um processo adolescente a fim de ilustrar os efeitos do desamparo e de experiências traumáticas. Para tal, optou-se por realizar um estudo de caso, culminando em uma problematização teórico-clínica psicanalítica. Concluiu-se que, frente ao predomínio do traumático dessubjetivante, a destrutividade apresentou-se como importante elemento impeditivo de investimentos na vida de uma jovem adolescente. Assim, frente às representações de dor manifestadas na adolescência, a escuta psicanalítica consolida-se como importante recurso para que o sujeito possa reconhecer e nomear intensidades traumáticas, visando à possibilidade de significá-las psiquicamente e, assim, estabelecer recursos psíquicos frente aos impasses do devir.

Palavras-chave: adolescência; psicanálise; trauma.

ABSTRACT

The psychoanalytic reading about adolescent’s issue reveals its transforming condition in subjects’ drive. Psychic conflicts can acquire a traumatic character in this experience, becoming fundamental to investigate the adolescent conditions to confront and handle these intensities. It is known that from these movements, subjectivating and de-subjectivating vicissitudes take place. From this context, in this article, the objective is to explore the nuances of an adolescent process in order to illustrate the effects of helplessness and traumatic experiences. To accomplish that, it was decided to hold a case study, leading to a psychoanalytic theoretical-clinical problematization. It was concluded that, face the supremacy of traumatic de-subjectivating the destructivity presented itself as an important impeditive element of investments in an adolescent’s life. Therefore, face the representations of pain manifested in adolescence, the psychoanalytic listening consolidates itself as an important resource, so the subject can recognize and nominate traumatic intensities, aiming to give psychic meaning.

Keywords: adolescence; psychoanalysis; trauma.

RESUMEN

La lectura psicoanalítica sobre la problemática adolescente evidencia su condición transformadora en la dinámica pulsional del sujeto. Conflictivas psíquicas que pueden adquirir un carácter traumático en esa experiencia, volviéndose fundamental investigar las condiciones adolescentes en el necesario enfrentamiento y trámite de esas intensidades. Se sabe que a partir de esos movimientos provienen vicisitudes subjetivantes y desubjetivantes a la experiencia psíquica del adolescer. A partir de dicho contexto, en este artículo, se objetivó explotar los matices de un proceso adolescente a fin de ilustrar los efectos de la impotencia y de las experiencias traumáticas. Para ello, se optó por realizar un estudio de caso, culminando en una problematización teórico-clínica psicoanalítica. Se concluyó que, ante el predominio de lo traumático desubjetivante, la destructividad se presentó como un importante elemento impeditivo de inversiones en la vida de una joven adolescente. De esa forma, ante las representaciones de dolor manifestadas en la adolescencia, la escucha psicoanalítica se consolida como un importante recurso para que el sujeto pueda reconocer y nombrar intensidades traumáticas, a fin de poder significarlas psíquicamente.

Palabras clave: adolescencia; psicoanálisis; trauma.

A singularidade com a qual a Psicanálise orienta seu estudo sobre a adolescência se faz presente desde quando Freud (1905/1996) a define como estando, inegavelmente, vinculada ao tema da sexualidade. Apesar de não utilizar o conceito adolescência, Freud (1905/1996) explora em “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade”, no tópico denominado “As transformações da puberdade”, as complexidades psíquicas relativas aos jovens. Neste texto, a puberdade é caracterizada como um momento de transição entre a infância e a adultez, aludindo à etapa da vida na qual se dão importantes transformações nas formas de obtenção de prazer e nos investimentos do campo intersubjetivo em comparação à infância.

Desta forma, apesar da definição de adolescência ainda não se configurar como um operador conceitual nesse texto freudiano, nele é abordada a complexidade de fatores biológicos e psíquicos vinculados à puberdade, inaugurando-se um singular espaço de reflexão sobre conflitivas próprias a esse momento da vida. Logo, as complexidades psíquicas da puberdade, reconhecidas na escrita psicanalítica, permitem identificar a demanda de importante trabalho psíquico para o enfrentamento de intensidades que nela se apresentam.

Mais de um século após a apresentação das primeiras concepções freudianas sobre a puberdade, a Psicanálise segue vigente como sólida disciplina cujos aportes permitem a reflexão e a intervenção diante das conflitivas próprias ao sujeito psíquico. Na leitura psicanalítica sobre a problemática adolescente, os conflitos referentes à sexualidade infantil são destacados. Assim, a reedição e as possibilidades de ressignificação de experiências vinculadas à sexualidade infantil ilustram de forma inquestionável a influência da história nas vicissitudes pulsionais do ser humano. Nesse sentido, Padrão et al. (2011) constatam que a adolescência envolve profundas mudanças no equilíbrio psíquico em níveis pulsionais. As autoras propõem que possa ser considerada como uma travessia, cujas intensidades experimentadas podem fomentar rupturas e importantes conflitivas. Assim, é reconhecido que as dificuldades enfrentadas nessa trajetória podem desencadear transformações as quais o jovem, por vezes, não consegue elaborar. Nessas condições, entende-se que “a travessia da adolescência é um momento bastante específico e mobilizador na história de um sujeito, e traz consigo inúmeras mudanças e rupturas” (Padrão et al., 2011, p. 136).

Considerar a adolescência como uma fundamental etapa de transformação da vida pulsional implica, portanto, lançar acurado olhar sobre o processo de constituição psíquica. Logo, é imprescindível refletir acerca da infância e das experiências relativas à sexualidade infantil. Nesta direção, Moraes e Macedo (2011) destacam a posição freudiana a respeito de uma condição inerente de desamparo do ser humano ao nascer, a qual requer a presença de um outro primordial cuidador capaz de proporcionar, com qualidade, experiências de satisfação e de cuidado em relação ao bebê, fundando, assim, as bases de um sujeito psíquico.

Ao destacar o imprescindível encontro da criança com o semelhante, Freud (1920/2006) postula que haverá não apenas vivências de satisfação, mas também, experiências de dor, as quais demandam fundamental trabalho de construção e complexificação ao psiquismo em formação. Afinal, quando Freud (1895/1996), em “Projeto para uma Psicologia Científica”, conceitua a dor como resposta a um estímulo traumático que invade o psiquismo, refere-se, por meio de uma concepção claramente econômica, a intensidades cujas demandas a criança, muitas vezes, não é capaz de sanar por si mesma. Desse modo, essas experiências (tanto de prazer, como de dor) e suas formas de processamento psíquico são fundamentais para a constituição psíquica de um Eu unificado. É nessa direção que Moraes e Macedo (2011) destacam que o Eu, em sua condição indiscutível de desamparo físico e psíquico, fica à mercê daquilo que o outro lhe oferece.

A qualidade dos encontros primordiais, a partir das quais se assentam os recursos e as vias facilitadoras que dão condições à complexização do psiquismo, demonstra-se fundamental. Seus efeitos podem ser percebidos desde a fundação do Eu como, também, no posterior enfrentamento das exigências e intensidades que se impõe na passagem pela adolescência. Para Hornstein (2001), “pensar o sujeito em relações de determinações múltiplas e recíprocas com os objetos implica assumir que é um centro de organização, de transformação, de recriação de tudo aquilo que recebe” (p. 70). A adolescência é um momento ímpar de trabalho psíquico com o legado da história vivida com as figuras primordiais. Cabe destacar, portanto, a afirmativa de Rosa e Carmo-Huerta (2020) no sentido de que “o despertar da adolescência varia de acordo com o contexto social e a intensidade do momento disparador presente nas interações discursivas e pulsionais” (p. 8).

No intuito de promover uma compreensão das singulares expressões de padecimento e de dor psíquica na experiência adolescente, é necessário explorar as principais especificidades que atravessam este momento da vida. Nessa perspectiva, Bastos e Marin (2014) propõem a compreensão da adolescência como uma “operação psíquica”, uma vez que nela ocorre a imposição de importante trabalho psíquico para ultrapassar as exigências da puberdade, da cultura e do outro. As autoras complementam, afirmando que “do ponto de vista dos processos psíquicos, sabemos que na adolescência estágios primitivos da constituição do sujeito são reanimados, ocupando muitas vezes o centro da conflitualidade na adolescência” (p. 180). Tal concepção de reanimação dos "aspectos primitivos da constituição do sujeito" indicam a necessária consideração ao processo de constituição psíquica infantil, uma vez que, a partir de suas condições, dar-se-ão diferentes recursos para o enfrentamento das problemáticas adolescentes.

Nessa mesma direção, ao assinalar a influência que tem na adolescência o experenciado na infância, Lerner (2006) descreve o adolescente como um “navegador”. Considera o autor, que a trajetória adolescente exige uma plasticidade egoica que permita ao jovem navegar pelo mundo, exercendo diferentes potencialidades criativas, sempre em movimento. O autor problematiza, ainda, a diferença entre o sujeito que naufraga e aquele que segue navegando por conseguir recorrer a diferentes alternativas de navegação para atravessar as tormentas.

Dessa maneira, por meio desta analogia com o processo de navegação, Lerner (2006) ilustra os percalços e os avanços que podem marcar a experiência de adolescer. Mais do que as intempéries do percurso, o acento é colocado nas habilidades do navegador. É, portanto, desde essa perspectiva, que a Psicanálise convida seu interlocutor a lançar o olhar e atenção à relevância dos recursos psíquicos exigidos frente àquilo que se apresenta como desafio ao sujeito adolescente. Por meio de seus aportes, que reconhecem a complexidade envolvida nesse processo, a Psicanálise contribui significativamente com o objetivo de problematizar a passagem da adolescência, evidenciando suas particularidades e lançando luz às suas implicações psíquicas fundamentais.

A intensidade, a variedade e a complexidade das conflitivas adentram a problemática adolescente, conferindo-lhe um caráter traumático. É preciso fazer trabalhar os temas do corpo, da identidade, da exogamia, da sexualidade, do pulsional, dos ideais, dentre outros. Cabe ressaltar, porém, que o caráter traumático referido, não necessariamente aponta a um destino circunscrito ao campo psicopatológico, mas, reafirma a relevância de conflitivas que exigirão importante trabalho de tramitação e metabolização psíquica. Sabe-se, neste sentido, que o traumático também pode operar como inerente e constitutivo ao psiquismo. Nessa direção, Maia (2004) pontua a existência de um paradoxo: de acordo com a modalidade pela qual o sujeito se relaciona com o mundo e com os efeitos que os excessos podem gerar dentro dele, abre-se a possibilidade de o trauma se constituir como experiência subjetivante ou dessubjetivante.

Na crise própria à passagem da adolescência, constata-se a centralidade relativa às questões identitárias. Macedo (2006) ressalta a exigência de um movimento psíquico de ressignificação, o qual requer do jovem condições para elaborar importantes perdas bem como os ganhos relativos a seu processo de subjetivação. É imperativo ressituar-se no mundo, construir uma nova condição de sujeito, a partir de novos ordenamentos simbólicos. Cabe ao jovem renunciar aos marcos pulsionais próprios ao autoerotismo, típicos da parcialidade pulsional infantil, a fim de viabilizar as importantes transformações que lhe darão o acesso ao campo da genitalidade e da alteridade (Macedo, 2006). Na travessia adolescente, a temática da identidade remete a um relevante trabalho psíquico e, como afirma Cardoso (2001), “convoca alguns temas cruciais da teoria psicanalítica: o narcisismo, o investimento libidinal do ego, as identificações inconscientes e os conflitos identificatórios” (p. 47).

Nesta mesma direção, Portilla (2015) define o processo de subjetivação na adolescência como um trabalho de apropriação simbólica da experiência pulsional, necessário para a constituição de novos sentidos no psiquismo adolescente. Mediante condições psíquicas de ressignificação e apropriação simbólica de intensidades experienciadas, é possível que o encontro com o traumático seja uma experiência subjetivante da adolescência. Por meio dessa dinâmica, pode ocorrer a elaboração de conflitivas bem como a promoção de recursos psíquicos mais complexos.

Frente ao predomínio de uma condição de excesso das intensidades psíquicas e de fracasso dos recursos do Eu pode, no entanto, advir um traumático dessubjetivante, marcado por importante estado de desamparo e incremento da dor psíquica. Conforme assinala Maia (2004), a vigência do traumático dessubjetivante apresenta-se pela ausência das possibilidades de mediação simbólica, ou seja, situa-se como uma experiência no campo da dor. Tais proposições vão ao encontro do proposto por Adesse et al. (2014), ao considerarem que o traumático, na adolescência, remete àquilo que extrapola os limites da capacidade representacional, ou seja, nele evidencia-se a dificuldade do jovem de representar intensidades psíquicas que o invadem. Segundo as autoras, nessa condição, em busca de sobrevivência, surgem alternativas primitivas como, por exemplo, o recurso ao corpo ou ao ato. Assim, “a passividade diante da irrupção dos excessos pulsionais, associada a uma fragilidade das fronteiras narcísicas, egoicas, traz para a adolescência experiências subjetivas complexas, geradoras de angústia e sofrimento psíquico” (Padrão et al., 2011, p. 139).

Este artigo, tomando como ponto de partida o reconhecimento de que a adolescência comporta um enfrentamento com inadiáveis conflitivas psíquicas que podem configurar uma condição de excesso, propõe-se a explorar e problematizar o denominado por Maia (2004) como traumático dessubjetivante. Neste sentido, busca-se ilustrar o raciocínio teórico desenvolvido por meio da apresentação de recortes clínicos obtidos a partir de uma investigação, no cenário acadêmico, a respeito das configurações da dor psíquica na adolescência. Entende-se que, por ser a temática identitária o campo central das transformações da adolescência, o predomínio de impasses relativos ao processo de subjetivação merece ampla e profunda reflexão pelo seu potencial de comprometimento às condições de devir do sujeito psíquico. Cabe ressaltar, ainda, que o material a ser utilizado como ilustração atendeu todos os preceitos éticos necessários. A história da adolescente Laura, dezenove anos, permite estabelecer enlaces entre os aportes teóricos e a exploração da singularidade de uma história que conta do predomínio do traumático e seus efeitos dessubjetivantes para o psiquismo. Desde uma perspectiva que lança luz à singulares conflitivas, pretende-se problematizar a dor psíquica presente na travessia adolescente de Laura.

A concepção de adolescência explorada neste artigo, é contemplada na afirmativa de Adesse et al. (2014) sobre a passagem adolescente comportar “em si mesma um caráter traumático” (p. 551). Logo, frente a condições nas quais o psiquismo se vê invadido por excessos pulsionais, também o processo de adolescer pode ser vivido de maneira devastadora. Corrobora-se, portanto, a concepção de Lerner (2006) acerca da necessidade de que o traumático na adolescência seja considerado a partir de duas diferentes vias. Uma via, remete a situações que podem caracterizar-se como traumáticas e paralisantes para alguns jovens; e por outra via, identificam-se situações que possibilitam experiências de criação e fomentam a complexidade psíquica. Justamente devido a tais diferenças, sustenta-se a importância de uma leitura a respeito do traumático na adolescência que não opere mediante a linearidade de um modelo causal. É fundamental, portanto, o reconhecimento da singularidade dos recursos psíquicos, passíveis de ofertar ou não ao sujeito adolescente, necessárias condições de enfrentamento e de criação diante de suas conflitivas. Destarte, afirma-se que o trabalho psíquico relativo à experiência traumática da adolescência implica considerar elementos que aludem à diversidade de seus destinos.

A proposição de Cardoso (2011) sobre ser a adolescência uma “experiência de fronteira”, sustenta a necessidade de que o olhar sobre esse momento do desenvolvimento psíquico seja marcado pela complexidade. A adolescência é, efetivamente, uma experiência de fronteira, tanto no que se refere à dimensão cronológica - situando-se entre a infância e a adultez - quanto ao âmbito dos espaços psíquicos, considerando seus limites internos e externos. Cabe destacar que, “ao focalizar essa dimensão fronteiriça, inerente à adolescência, estamos atentos, ao mesmo tempo, às vertentes narcísica e alteritária dessa problemática dos limites” (Cardoso, 2011, p. 22). A situação de fronteira que caracteriza a adolescência, segundo Cardoso (2011), alude à possibilidade de adoecimento psíquico na qual, as fronteiras internas do psiquismo, bem como as fronteiras entre o Eu e o outro, mostram-se borradas.

A partir de especificidades da clínica atual com adolescentes, Padrão et al. (2011) constatam o predomínio de vivências intensamente excessivas e violentas. As autoras afirmam que essas circunstâncias podem manifestar-se por meio de expressões melancólicas ou em estados-limite como a drogadição, anorexias e bulimias. Tais padecimentos dão testemunho de situações nas quais o jovem se encontra diante de importantes limitações em seus recursos psíquicos. Assim, as autoras compreendem que, nessas patologias, o traumático intrínseco ao processo é extrapolado, situando-se na dimensão do traumático dessubjetivante. Nesses casos, as fronteiras de representação são ultrapassadas, de modo que o excesso pulsional transborda e resulta em alternativas de defesa bastante primitivas. Portanto, entende-se que:

Quando patologias graves, como a drogadicção, se instalam, vemos vacilar, de maneira radical, os diversos limites que constituem a subjetividade: os limites entre o Eu e o outro, entre outro interno e externo, entre corpo e psiquismo e em última instância, entre o representável e o irrepresentável (Padrão et al., 2011, p. 144).

Percebe-se, nessas condições, que a dimensão do caráter dessubjetivante do traumático e a inoperância da capacidade de tramitação psíquica denunciam a fragilidade do psiquismo como aparelho de captura e metabolização de intensidades. É sob essas condições de predomínio traumático, ou seja, quando os recursos psíquicos disponíveis ao jovem não são efetivos às necessárias e complexas operações defensivas, que podem entrar em cena alternativas mais primitivas de descarga psíquica, como por exemplo, o recurso ao ato. Nesta direção, a pesquisa realizada buscou explorar o predomínio de vicissitudes dessubjetivantes na experiência psíquica de adolescer.

Método

A fim de explorar a dinâmica e os efeitos no processo adolescente quando se impõe a limitação de recursos psíquicos, ou seja, na preponderância do traumático, toma-se a destrutividade como importante elemento que desvela o impeditivo da simbolização psíquica e dos investimentos na vida de uma jovem adolescente. A história de Laura permite acompanhar a destrutividade que vai marcando presença e fomentando desdobramentos tanáticos, tanto na imagem de si mesma, como nos investimentos nos objetos.

A jovem aceitou participar de uma pesquisa acadêmica de cunho qualitativo sobre a temática da percepção de experiências, nomeadas pelos próprios participantes adolescentes, como produtoras de dor psíquica e identificadas como impulsionadoras de suas buscas por análise. A pesquisa contou com a participação de seis adolescentes, com idades entre quinze e dezenove anos, sendo que todos estavam em processos terapêuticos psicanalíticos. Foram realizadas três entrevistas com cada um dos jovens, tendo a psicanálise como método de coleta e de análise dos dados (Dockhorn & Macedo, 2015).

A pesquisa realizada foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da instituição de ensino na qual se desenvolveu com CAAE 51769615.1.0000.5336. Todos os encontros com os participantes ocorreram em salas de atendimento do Serviço Escola da universidade, sendo que o processo de coleta de dados foi realizado a partir da técnica Bola de Neve referida por Turato (2011). Para o autor, deve ser realizado um contato inicial com pessoas que o pesquisador considere possíveis de indicarem, posteriormente, participantes para a pesquisa. Assim, nesse estudo, os participantes foram acessados por meio de indicações de estudantes da própria universidade. Neste artigo, especificamente, a partir da história de uma das participantes da pesquisa, a qual se atribuiu o pseudônimo de Laura, são explorados elementos centrais a respeito da experiência adolescente vivida nos matizes de intenso desamparo e destrutividade. Sabe-se, como afirmam Haddad et al. (2011), que “a adolescência carrega em si mesma uma inegável dimensão de conflito” (p. 189), porém a história de Laura permite constatar o efeito destrutivo de intensidades que extrapolam conflitivas próprias à adolescência, atualizando excessos do passado infantil.

Trabalhou-se o material na modalidade de um Estudo de Caso, permitindo, destarte, uma reflexão ancorada nos aportes teóricos e clínicos da Psicanálise sobre o predomínio do traumático dessubjetivante e a destrutividade. Sustenta-se tal proposta a partir das proposições de Serralta et al. (2011) sobre ser o Estudo de Caso uma estratégia metodológica útil na discussão de material clínico. De acordo com Moura e Nikos (2000), no estudo de caso “há uma delimitação conceitual daquilo que servirá como objeto de investigação; nesta delimitação são selecionados fenômenos, temas ou questões norteadoras da pesquisa” (p. 70-71). Além disso, destacam os autores, a teoria deve ocupar, na realização de um estudo de caso, o lugar de alteridade fundamental com a qual se deve dialogar.

Análise de Dados

Utilizou-se o recurso psicanalítico da interpretação para construir a presente discussão, no intuito de estabelecer um diálogo entre os elementos convocados desde a escuta de Laura e a metapsicologia psicanalítica. O procedimento de análise de dados próprio à Estratégia Clínico-Interpretativa, conforme esclarecem Dockhorn e Macedo (2015), se dá a partir das seguintes etapas: um primeiro momento no qual se constrói a narrativa clínica (primeiro trabalho de interpretação referente ao que foi escutado, abrangendo sua história vivencial, indicadores transferenciais e contratransferenciais e hipóteses interpretativas. Na construção da narrativa, são produzidos novos sentidos sobre a fala do sujeito); no segundo momento realiza-se a escuta da escuta (pesquisador e orientador dedicam-se juntos ao trabalho com o material decorrente da narrativa clínica, construindo um espaço de discussão a partir do material clínico). Esse momento, conforme as autoras, viabiliza uma triangulação dos dados, a fim de que se estabeleçam novas problematizações na construção de hipóteses interpretativas. Posteriormente, ocorre a terceira e última etapa denominada discussão teórico-interpretativa, a qual permite sustentar e explorar teoricamente os eixos interpretativos constituídos nas etapas anteriores, a partir da articulação com a metapsicologia psicanalítica (Dockhorn & Macedo, 2015).

De acordo com Dockhorn e Macedo (2015), o propósito da produção de eixos interpretativos nessa etapa refere-se ao acesso àquilo que foi compreendido sobre o fenômeno, ou seja, é possível produzir conhecimento enfatizando a singularidade do fenômeno investigado. Considerando a trajetória do adolescer como possibilidade de ressignificações e transformações, evidenciou-se, no trabalho com o material derivado das entrevistas com Laura, a pertinência de problematizar e aprofundar aspectos pertinentes à complexidade de conflitivas psíquicas que podem adquirir um caráter traumático nessa experiência.

Resultados e Discussão

Laura chega bastante tímida às entrevistas, apesar do entusiasmo manifestado anteriormente em participar da pesquisa. Já ao se apresentar, a jovem nomeia-se como bipolar, acrescentando, na sequência, que nesta denominação reside importante identificação com a figura materna. Sua mãe, devido a esse diagnóstico, havia, inclusive, sido internada em um hospital psiquiátrico no início da adolescência de Laura. A adolescente descreve a difícil relação entre elas e conta que, desde criança, experenciava situações nas quais a mãe levava para a casa em que moravam, diversos homens que a exploravam financeiramente, além de agredi-la fisicamente. Assim, à violência psíquica frente ao adoecimento materno seguem-se cenas de violência física nas quais Laura presenciava a mãe tendo “crises” e sendo maltratada pelos parceiros.

No que tange à relação com o pai, Laura menciona significativos momentos nos quais ele esteve ausente em sua vida. Ao se divorciar da esposa, ainda durante a infância de Laura, o pai se afastou deixando a filha em uma situação de desamparo e contando apenas com os (des)cuidados da mãe. A mãe é descrita pela jovem como alguém que “não tinha condições de estar com crianças” e seu pai, posteriormente, culpa-se por tê-la “deixado com a mãe por tanto tempo”. No entanto, a partir dessa fala, é possível supor que a própria jovem o culpe por seu distanciamento. Não obstante, na tentativa de encontrar na figura paterna recursos de proteção, Laura fez uma linha divisória em sua história, demarcando diferenças entre o período que esteve com a mãe e quando passou a morar com o pai, aos doze anos de idade. Segundo a jovem, desde então, ele é a pessoa que lhe acolhe nos momentos difíceis: “Quando eu tô no fundo do poço, é ele quem me tira de lá”.

Relata ter passado por uma grave crise de depressão recentemente, chegando a ter pensamentos suicidas. Nessa ocasião, segundo conta: “Era meu pai que conseguia conversar comigo, me acalmar, me fazer enxergar que isso não era eu, que era a minha doença”. A partir de seu relato, percebe-se que as diversas experiências de dor vividas por ela desde a infância deixaram importantes marcas, cujos efeitos se expressam na intensificação de conflitivas em sua adolescência.

Na história de Laura, destacam-se importantes dificuldades relativas às figuras parentais. Entende-se o quanto a temática das relações com os objetos primordiais ocupa um lugar central na adolescência devido ao desinvestimento que precisa ser realizado frente ao ressurgimento das questões narcísicas e edípicas (Padrão et al., 2012; Macedo, 2006). Se, por um lado, é preciso separar-se dos objetos parentais e de seus representantes no mundo psíquico, por outro, é fundamental que o adolescente possa ser reconhecido em seu desamparo para enfrentar a turbulência provocada pelas questões que lhe são demandadas. O reconhecimento de um novo ritmo em suas necessidades, bem como os impasses que o jovem enfrenta, inserem o adulto de forma significativa nesse processo. Todavia, não é pela via da atenção àquilo que acontecia com a jovem ou pela tentativa de instituir um movimento ritmado entre presença-ausência, que os pais de Laura aparecem em sua história. Ao iniciar o relato de sua história, a jovem refere o quanto a presença desorganizada e intensa da mãe e a ausência contundente do pai deixaram cicatrizes na imagem de si mesma, tendo significativa influência em seu processo de subjetivação.

As problemáticas sobre as especificidades das relações dos jovens com seus pais são discutidas por Mello et al. (2015). Para os autores, uma vez que o lugar parental se apresenta frágil e vazio em virtude das próprias dificuldades dos pais, evidencia-se a impossibilidade destes em exercer seu papel, produzindo no jovem um estado de significativo desamparo. De acordo com Gregório e Amparo (2013), para proteger-se de suas próprias fantasias destrutivas, o jovem necessita de um suporte que lhe propicie sentimentos de segurança. Segundo os autores, “o despreparo de alguns pais se transforma em desamparo ao se deparar com sua incapacidade de resistir a destrutividade de seu filho” (p. 118).

Para os autores, à medida que o jovem se depara com a fragilidade das figuras parentais, suas fantasias destrutivas encontram correspondência na realidade, fazendo com que o adolescente se perceba em total desproteção. Laura explicita o prejuízo do suporte parental ao mencionar as frequentes situações de grave adoecimento psíquico materno que a acompanharam em episódios cotidianos desde sua infância, bem como na culpa atribuída à figura paterna por tê-la deixado com a mãe por tanto tempo. Tempo de dor e de angústia vivenciado por Laura e, no qual, a fragilidade materna era, sistematicamente, evidenciada somando-se, então, à ausência de cuidados paternos. A sensação de desamparo diante da evidente fragilidade materna é sintetizada na expressão da jovem ao afirmar que, nos momentos em que não sabia o que fazer frente às crises da mãe, pensava: “Minha mãe está agindo de uma forma mais infantil que eu. Era para ela ser adulta”. Ao definir o agir materno como “infantil”, Laura esboça uma parca tentativa de atribuição de sentido a seu intenso desamparo. Nomeia algo que parece dar certa identidade ao que se passa com a mãe perante seu intenso sofrimento diante daquilo que a mãe não era.

Ao narrar a impossibilidade de contar com uma mãe adulta, Laura descortina a intensificação de seu desamparo. Nessa direção, o incremento do desamparo remete à concepção de desalento proposta por Birman (2014). Segundo o autor, a noção de desamparo alude à existência de uma condição de um endereçamento do sofrimento ao outro, ou seja, contempla um movimento que viabiliza o endereçamento alteritário mediante a condição de certa simbolização psíquica das intensidades vividas. O desalento, entretanto, se apresenta como pathos, uma vez que o sujeito se encontra preso a uma posição solitária frente a sua dor, não podendo fazer qualquer apelo ao outro. Na história de Laura, a jovem encontra-se invadida por intensidades externas e internas as quais extrapolam suas condições de metabolização psíquica, ou seja, frente à intensidade do desamparo em que se encontra, destaca-se o predomínio do desalento. Dessa forma, uma vez que a mãe se mostra mais frágil que a própria jovem; e o pai, por muitos anos esteve ausente, impera a presença de um traumático dessubjetivante. Frente ao traumático que ultrapassa suas vias elaborativas deixando-a “no fundo do poço”, a jovem encontra-se invadida por sua dor, no terreno do desalento. Instala-se numa posição de passividade frente à violência - destrutividade - resultante das intensidades atordoantes dos encontros originários.

A partir da fala de Laura, percebe-se que as excessivas vivências de dor fomentam os efeitos tanáticos em sua constituição psíquica. Castiel (2019) considera que os componentes destrutivos presentes nas descargas de excitabilidade sem possibilidade de representação, apresentam-se através da ação, uma vez que o psiquismo está dominado pelo excesso e não encontra vias de ligação simbólica. Para a autora, observa-se importante desinvestimento nos objetos de modo a gerar um retorno da libido ao Eu, aprisionando-o em uma condição narcisista que leva à destrutividade. Logo, uma vez que o Eu é marcado por excessos pulsionais e falhas na capacidade representacional, encontra-se em confronto com os “limites entre a vida e a morte psiquica” (Adesse et al., 2014, p. 551). Como exemplo disso, frequentes experiências de bullying marcam o período escolar de Laura, tornando, novamente, cotidianas relações nas quais se vê como mero receptáculo da destrutividade do outro; passava os recreios sozinha, trancada no banheiro do colégio. O lugar de desvalor em que Laura se coloca, (re)produz um distanciamento em suas relações e (re)atualiza os maus tratos experienciados em sua história. Uma vez mais a passividade diante da violência provinda do outro se mostra presente.

Em “Além do Princípio do Prazer”, ao explorar os sonhos próprios às neuroses traumáticas, Freud (1920/2006) sinaliza a tendência pulsional de repetir passivamente vivências excessivas desprazerosas que se encontram desligadas, destronando, assim, a primazia do princípio do prazer. Conforme o autor, “há uma coação que obriga a essa repetição” (p. 147). Destaca-se, portanto, o caráter destrutivo da pulsão que corresponde à tendência a uma agressividade inata do sujeito em se colocar em situações desprazerosas, ou seja, pulsões mais arcaicas do que o princípio do prazer. Segundo o autor, ainda que, aparentemente, o sujeito não tenha nenhuma influência sobre tais situações, direciona-se passivamente ao mesmo destino no caráter de fatalidade.

Nesse sentido, destaca-se a compulsão à repetição vivida passivamente como um movimento predominante nos investimentos da vida de Laura. À medida que ocupa uma posição passiva frente às difíceis experiências de sua vida, estabelece uma sequência de situações dessubjetivantes nas quais o predomínio da destrutividade permeia suas relações com o outro.

A jovem ilustra a repetição de experiências dessubjetivantes em sua vida atual. Relata que, em recente “crise depressiva grave”,precisou” trancar disciplinas na faculdade e reprovou na única que estava cursando, permanecendo diariamente deitada em sua cama. Laura afirma que, atualmente, em virtude do que nomeia como “depressão, fobia social e bipolaridade”, toma diversas medicações. No entanto, menciona que, mesmo medicada, apresentou um “ataque de pânico” ao sair pela primeira vez com um menino e chegar o momento de beijá-lo, precisando ir para casa e ligar para sua terapeuta. Identifica-se na narrativa da jovem sobre si mesma e seus relacionamentos, imperiosa marca decorrente de experiências traumáticas dessubjetivantes nos tempos primordiais de encontro com o outro. Os efeitos do descuido e do desalento na experiência alteritária são nomeados em conexão com sua trajetória adolescente: “Minha mãe, por estar doente, não era exatamente uma pessoa muito cuidadosa. Então, isso acabou refletindo na minha adolescência”.

Para sustentar transformações psíquicas e a passagem para a vida adulta, o adolescente deverá recorrer a importantes elementos de sua constituição: as primeiras identificações infantis (Portilla, 2015). Salienta-se, assim, a importância da qualidade nas relações objetais iniciais, para que, futuramente, possam ser retomadas e ressignificadas nas novas configurações de relações objetais que irá estabelecer. Entretanto, de acordo com Haddad et al. (2011), por vezes, o adolescente apresenta-se aprisionado psiquicamente nas modalidades de relação com figuras parentais internalizadas, implicando significativos efeitos em suas relações com figuras externas. Logo, para as autoras, faz-se necessária uma efetiva separação e discriminação em relação ao outro, visto que o estado de submissão do sujeito aos objetos no plano interno, limita o acesso à alteridade e à autonomia.

De acordo com Castiel (2019), uma vez que o sujeito não foi olhado em sua singular necessidade, há o registro de que seus desejos parecem não merecer consideração. Para a autora “a mesma agressividade ou indiferença que o sujeito era tratado pelos pais é a forma como passa a tratar a si mesmo” (p. 86). Nesse sentido, percebe-se que as relações experimentadas por Laura em sua história deixaram significativas marcas, as quais seguem vigentes e atualizadas nas relações que estabelece.

Ao abordar sua primeira relação sexual, ocorrida recentemente, a adolescente conta de grande insegurança em relação a seu corpo, afirmando que “pode ter uma pinta esquisita no corpo” e, assim, poderia “falhar com as expectativas do namorado”. A partir da fala de Laura sobre o “esquisito” em si mesma, propõe-se a hipótese de que, ao referir-se a uma “pinta” no corpo, a jovem esteja aludindo às marcas dessubjetivantes de sua história. Marcas que, “materializadas” no que acredita constituir um “defeito” no próprio corpo, causam decepção ao outro no compartilhamento de intimidade. Na mesma via que sinaliza a depressão, o pânico e a bipolaridade como produtos do excesso no corpo, as “pintas esquisitas” na superfície da pele - fronteira mais básica entre o Eu e o outro - parecem denunciar as cicatrizes da violência provocada pela instabilidade tanática e aprisionante experenciada junto aos objetos primordiais.

Tendo em vista o objetivo deste estudo, identifica-se que a destrutividade presente na vida de Laura, atualiza-se na repetição de vivências cujas intensidades aludem à vigência do traumático dessubjetivante. Desse modo, os excessos em sua história atravessam seu processo identitário, impondo a repetição de conflitivas. Frente à possibilidade adolescente de ressignificação/reorganização de seus ideais e de seu corpo infantil, Laura parece não encontrar recursos representativos que lhe permitam romper com o circuito de repetição e de impedimentos instaurados em si mesma. A depressão e a fobia social mencionadas pela adolescente dão testemunhos desse aprisionamento.

O tema da identidade se impõe veementemente na trajetória da adolescência. Percebe-se a relevância em compreender que a questão da identidade ocupa na adolescência um lugar de destaque. Conforme Hornstein (2007), a identidade alude a uma construção e não a algo que deve ser descoberto, tendo em vista que depende de múltiplas dimensões que extrapolam a constituição genética. A construção da identidade se dá mediante vivências que o psiquismo processa e fantasias que reinterpreta constantemente desde sua infância até as situações atuais, uma vez que o sujeito sempre está se transformando e ressignificando suas vivências (Lerner, 2006; Hornstein, 2007). No entanto, para Lerner (2006), ainda que a identidade se construa ao longo da vida do sujeito, ela se sustenta em uma matriz identificatória. O autor constata que, na adolescência, esses fenômenos manifestam-se como se houvesse uma lente de aumento, de modo que essa matriz identificatória possibilita a construção da subjetividade do adolescente, permitindo que as intensidades não o desestruturem, mas sim, complexifiquem a dinâmica psíquica. Logo, os singulares atravessamentos que se apresentam no campo identificatório são essenciais para a compreensão da problemática adolescente.

Na escuta de Laura identificam-se importantes elementos quanto à essa questão. A jovem identifica-se com a figura materna ao enunciar o compartilhamento do mesmo “diagnóstico”, considerando ter herdado “a bipolaridade” da mãe. Esta condição (des)subjetiva de quem passivamente “herda” o que pertence a outro e a este legado fica submetida é reproduzida e atualizada na vida de Laura na autodenominação sobre ser uma pessoa “problemática”. Desse modo, para que o adolescente realize novos investimentos no campo alteritário, necessita de uma reorganização identitária. Macedo (2006) acentua que, neste processo, “o novo precisa ser integrado à identidade, e o passado deverá encontrar seu lugar no patrimônio da memória” (p. 12).

Ao encontro dessas concepções, a condição dessubjetivante se destaca novamente na história de Laura, denunciando importantes impactos na constituição identitária. Afirma-se:

o eu é concebido como uma formação de traços psíquicos adquiridos a partir da relação com os outros primordiais da criança. Nesse sentido, a identificação é a costura das nossas fantasias, dos lugares que ocupamos nas relações que estabelecemos com os outros, daquilo que consideramos o nosso eu (Fortes, 2020, p. 48).

Constata-se a fragilidade na condição de ser mediante a singular forma pela qual Laura se apresenta nas entrevistas. Ao narrar sua história, a jovem refugia-se por trás de seus cabelos, que cobrem quase totalmente seu rosto enquanto fala. Além disso, ao posicionar-se na poltrona, fica com a coluna extremamente curvada, “encolhendo-se” cada vez mais diante das conflitivas que se apresentam em sua fala. Esconde-se de si mesma, também, com o uso de inúmeras medicações que constituem uma barreira na qual Laura se refugia perante a dor. A jovem, que utiliza três medicações: um estabilizador de humor, um ansiolítico e um antipsicótico, afirma: “Tem tanto nome naquela caixa que eu nem sei como chamar”. Na falta da palavra como recurso simbólico - a intensidade dos nomes se confronta com a impossibilidade de nomeação - o corpo uma vez mais denuncia as intensidades destrutivas. Encena, na concretude de seu corpo, - escondido, encarcerado, medicado -, a problemática de uma fronteira permeável à invasão de intensidades psíquicas e sob o risco do aniquilamento.

O processo de escuta da narrativa de Laura evidencia a pertinência do objetivo do estudo realizado no sentido de lançar um olhar atento ao complexo processo de constituição psíquica, desde as fundamentais experiências do campo alteritário, considerando que as expressões de dor não podem ser reduzidas a uma leitura meramente orientada por ordenadores orgânicos, genéticos ou farmacológicos. A complexidade de fatores que se apresentam no padecimento adolescente quando reduzidas à linearidade causal, impedem o desvelamento dos singulares sentidos de seu padecer e, restringem, o processo de construção de autonomia e liberdade na condição de ser.

No escopo de leituras que assinalam a contribuição inegável das experiências infantis na vivência da adolescência, encontram-se importantes assinalamentos de Bilbao e Jofré (2020). Os autores ressaltam o fato de que a resolução das dependências do adolescente relacionadas ao vivido na infância requer o encontro com o outro; assim, o campo intersubjetivo, no qual se pode incluir a experiência psicanalítica, se constitui como importante possibilidade de criação de recursos psíquicos de enfrentamento e transformação do padecimento adolescente. Segundo os autores, o encontro com a alteridade “é importante na medida em que mobiliza, mais além de somente um encontro intersubjetivo, um espaço de simbolização que propicia a desconstrução das posições fantasmáticas da infância e projeta a singularização da própria história, a qual se narra, então, em primeira pessoa” (p. 31).

Ao instaurar condições para que o adolescente experencie recursos que lhe permitam construir uma narrativa sobre si mesmo, sua história e seu devir, a escuta analítica oferece um espaço fundamental de circulação das intensidades e alternativas de simbolização. Compreende-se que a Psicanálise contribui significativamente no desvelamento da complexidade própria à produção e expressão de dor psíquica nas diversas experiências humanas. Em especial, no que se refere à adolescência, compreendida como tempo da vida na qual a temporalidade subjetiva é essencial, a Psicanálise reafirma o efeito devastador do desalento e das intensidades no encontro entre o sujeito e os objetos de sua história. Buscou-se com o estudo de caso desenvolvido neste artigo, destacar a complexidade inerente à experiência psíquica da adolescência, bem como os efeitos traumáticos de uma história infantil marcada pelo desalento. A partir do trabalho com os elementos presentes na narrativa de Laura é possível constar o impedimento decorrente do impacto do traumático dessubjetivante no fomento ao aprisionamento à repetição de circuitos de investimentos que impedem ou restringem o potencial criativo da adolescência.

Considerações Finais

A partir dos aportes teóricos explorados e ilustrados pelas vinhetas do caso de Laura, nota-se que os excessos vivenciados em sua história infantil assumem significativos efeitos em sua trajetória adolescente. A proposta de compreensão da adolescência como um processo de navegação ilustra os percalços e os avanços que podem marcar esse momento de vida. Deste modo, destaca-se uma perspectiva singular de problematização sobre a adolescência, na qual o reconhecimento da singularidade da trajetória a ser empreendida, abre espaço para importantes ressignificações de marcas anteriores, podendo resultar em diferentes destinos a serem percorridos.

É necessário que o sujeito possa se desprender internamente das antigas configurações de seus investimentos narcísicos e alteritários para que realize novas modalidades de encontro com os objetos. Tal movimento mostra-se como um importante desafio na história de Laura, uma vez que, presa às marcas de suas relações anteriores, a jovem repete em seus relacionamentos atuais, o lugar de submetimento experimentado nas vivências destrutivas com os adultos de sua história. Frente à soberania do traumático dessubjetivante, destaca-se, na vida da jovem, a destrutividade como importante elemento que gera ressonâncias importantes em seus investimentos. Ou seja, ao ocupar uma posição passiva frente às experiências de dor, Laura estabelece uma sequência de situações dessubjetivantes nas quais repete o predomínio da destrutividade nas relações com o outro. Percebe-se, portanto, o risco de uma atribulada navegação, como refere Lerner (2006), na menção de Laura ao fato de se sentir no “fundo do poço”, a seus pensamentos suicidas, em sua identificação com a figura materna e, no frequente uso de variadas medicações. A fragilidade de recursos para navegar por novas rotas alerta sobre o risco de ser “conduzida” a desembocar nas águas do desalento.

As demandas impostas pela adolescência exigem que o jovem estabeleça uma nova posição subjetiva em sua vida, uma vez que essa trajetória propicia um incremento dos excessos vivenciados anteriormente pelo sujeito (Haddad et al., 2011). Assim, frente às tormentas que podem acometer a travessia adolescente, identifica-se a relevância do trabalho terapêutico ancorado nos aportes teóricos e nos recursos clínicos da Psicanálise. Salienta-se a importância da escuta psicanalítica frente ao padecimento adolescente, por considerar que, na modalidade de encontro instituído pelo trabalho clínico, são inauguradas experiências no campo intersubjetivo que permitem ao jovem reconhecer e nomear intensidades que o condenam, tão precocemente, à repetição da dor psíquica. Assim, o trabalho a ser empreendido pela dupla analítica, visando a atribuição de sentido àquilo que insiste em atualizar-se no campo do desamparo e da destrutividade, pode levar ao reconhecimento da existência de outros mares a serem navegados, possibilitando que a travessia adolescente se dê mediante recursos que permitam orientar-se pelas cartografias de Eros. Desta travessia, no rumo de inadiáveis (re)significações, ao desbravar novos mares e descobrir potencialidades, pode resultar um sujeito capaz de se apropriar de si mesmo, de sua história e de projetar seu devir.

Referências

Adesse, D. B., Santos, V. L. A., & Cardoso, M. R. (2014). Drogadicção e adolescência: O "corpo do transbordamento". Revista Latinoamericana Psicopatologia fundamental, 17(3), 544-556. http://dx.doi.org/10.1590/1415-4714.2014v17n3p544-11Links ]

Bastos, J. G. S., & Marin, I. K. (2014). Adolescentes exibicionistas: A busca de um olhar. Rev. Revista Latinoamericana Psicopatologia fundamental, 17(2), 175-190. http://dx.doi.org/10.1590/1984-0381v17n2a03Links ]

Bilbao, A., & Jofré, D. (2020). En torno de la noción de subjetivación em psicoanálisis: Entre dinámica pulsional, identificación y objeto. Revista Latinoamericana Psicopatologia fundamental, 23(1), 17-36. http://dx.doi.org/10.1590/1415-4714.2020v23n1p17.3Links ]

Birman, J. (2014). O sujeito na contemporaneidade: Espaço, dor e desalento na atualidade. Civilização Brasileira. [ Links ]

Cardoso, M. R. (2001). Adolescência e violência: Uma questão de fronteiras? In M. R. Cardoso (Org.), Adolescência: Reflexões psicanalíticas (pp. 41-53). NAU Editora. [ Links ]

Cardoso, M. R. (2011). Recusa ao ato na adolescência: Uma "reação subjetiva negativa"? Ágora, 14(1), 21-33. http://dx.doi.org/10.1590/S1516-14982011000100002Links ]

Castiel, S. V. (2019). Narcisismo, pulsões e sexualidade: Repercussões clínicas. Escuta. [ Links ]

Dockhorn, C. N. B. F., & Macedo, M. M. K. (2015). Estratégia Clínico-Interpretativa: Um Recurso à Pesquisa Psicanalítica. Psicologia: Teoria e Pesquisa, 31(4), 529-535. http://dx.doi.org/10.1590/0102-37722015042473529535Links ]

Fortes, I. (2020). A performance como linguagem: Corpo, ato, gênero e sujeito. Ágora, 23(2), 44-50. http://dx.doi.org/10.1590/1809-44142020002007Links ]

Freud, S. (2006). Além do princípio do prazer. In L. A. Hanns (Ed.), Obras Psicológicas de Sigmund Freud (Vol. 2, pp. 123-199). Imago. (Obra original publicada em 1920) [ Links ]

Freud, S. (1996). Projeto para uma psicologia científica. In J. Strachey (Trad.), Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (Vol. 1, pp. 335-454). Imago. (Obra original publicada em 1895) [ Links ]

Freud, S. (1996). Três ensaios sobre sexualidade. In J. Strachey (Trad.), Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (Vol. 7, pp. 119-231). Imago. (Obra original publicada em 1905) [ Links ]

Gregório, G. D. S., & Amparo, D. M. (2013). A violência adolescente e as complexidades do agir. Interações, 26, 113-128. https://repositorio.unb.br/handle/10482/24550Links ]

Haddad, C., Melo, A., Aguiar, H., & Cardoso, M. (2011). Violência e adolescência: A questão da relação com o objeto. In M. R. Cardoso (Org.), Adolescentes (pp. 183-194). Escuta. [ Links ]

Hornstein, L. (2001). Cuerpo, yo y pulsión de saber. Revista del Ateneo Psicoanalítico, 3, 63-84. [ Links ]

Hornstein, M. C. R. (2007). Navegando hacia la identidad. In H. Lerner & S. Sternback (Orgs.), Organizaciones Fronterizas (pp. 73-89). LUGAR. [ Links ]

Lerner, H. (2006). Adolescencia, trauma, identidad. In M. C. R. Hornstein & Maria Cristina (Org.), Adolescencia: Trayectorias Turbulentas (pp. 27-50). Paidós. [ Links ]

Macedo, M. M. K. (2006). Latência e Adolescência: Um olhar da Psicanálise. Revista da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul, 5(1), 9-16. [ Links ]

Maia, M. S. (2004). Extremos da Alma. Garamond. [ Links ]

Mello, R., Carneiro, T. F., & Magalhães, A. S. (2015). Das demandas ao dom: As crianças pais de seus pais. Revista Subjetividades, 15(2), 213-220. http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S2359-07692015000200005Links ]

Moraes, E. G., & Macedo, M. M. K. (2011). Vivência de indiferença: Do trauma ao ato-dor. Casa do Psicólogo. [ Links ]

Moura, A., & Nikos, I. (2000). Estudo de caso, construção do caso e ensaio metapsicológico: Da clínica psicanalítica à pesquisa psicanalítica. Pulsional Revista de Psicanálise, 13(140), 69-76. https://silo.tips/download/oartigo-tem-por-objetivo-desenvolver-uma-reflexao-preliminar-sobre-asLinks ]

Padrão, C. B., Mayerhoffer, E. L., Silva, P. C. M., & Cardoso, M. R. (2011). Trauma e violência pulsional: A adolescência como situação-limite. In M. R. Cardoso (Org.), Adolescentes (pp. 135-145). Escuta. [ Links ]

Portilla, R. (2015). Temporalidad psiquica y subjetivación en la adolescencia. Revista Latinoamericana Psicopatologia fundamental, 18(1), 62-73. http://dx.doi.org/10.1590/1415-4714.2015v18n1p62.5Links ]

Rosa, M. D., & Carmo-Huerta, V. (2020). O que resta da adolescência: Despertar nas fronteiras e nos fronts. Revista Estilos da Clínica, 25(1), 5-20. http://dx.doi.org/10.11606/issn.1981-1624.v25i1p5-20Links ]

Serralta, F. B., Nunes, M. L. T., & Eizirik, C. L. (2011). Considerações metodológicas sobre o estudo de caso na pesquisa em psicoterapia. Estudos de Psicologia, 28(4), 501-510. https://doi.org/10.1590/S0103-166X2011000400010Links ]

Turato, E. R. (2011). Tratado da Metodologia da pesquisa clínico-qualitativa. Vozes. [ Links ]

Recebido: 01 de Agosto de 2022; Revisado: 25 de Julho de 2023; Aceito: 26 de Julho de 2023

Endereço para correspondência Mariana Steiger Ungaretti, Rua 24 de Outubro 850/306, Moinhos de Vento, Porto Alegre - RS, Brasil. CEP 90510-000, Endereço eletrônico: marianasungaretti@gmail.com

Carolina Neumann de Barros Falcão, Rua Dolores Duran, 1584 casa 232, Porto Alegre - RS, Brasil. CEP 915540-220, Endereço eletrônico: carolina.barrosfalcao@gmail.com

Mônica Medeiros Kother Macedo, Rua Florêncio Ygartua 69/307, Moinhos de Vento, Porto Alegre - RS, Brasil. CEP 90430-010, Endereço eletrônico: monicamkm@icloud.com

Creative Commons License Este é um artigo publicado em acesso aberto sob uma licença Creative Commons.