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Estudos e Pesquisas em Psicologia

versão On-line ISSN 1808-4281

Estud. pesqui. psicol. vol.23 no.spe Rio de Janeiro  2023  Epub 20-Maio-2024

https://doi.org/10.12957/epp.2023.79956 

DOSSIÊ PSICANÁLISE E POLÍTICA: A INSISTÊNCIA DO REAL

Psicanálise e Política: A Insistência do Real - Um Diálogo com Jorge Alemán

Psychoanalysis and Politics: The Insistence of the Real - A Dialogue with Jorge Alemán

Psicoanálisis y política: La Insistencia de lo Real - Un Diálogo con Jorge Alemán

Jorge Alemán* 

Psicanalista. Membro da Associação Mundial de Psicanálise AMP e da Escola Lacaniana de Psicanálise ELP - Espanha. Docente do Nuevo Centro de Estudios de Psicoanálisis (NUCEP).


http://orcid.org/0000-0003-1713-9028

Mariana Mollica** 

Professora colaboradora do Programa de Pós-graduação em Teoria Psicanalítica da UFRJ. Pós-doutoranda Sênior da FAPERJ. Coord. Do projeto de extensão Ocupação psicanalítica RJ.


http://orcid.org/0000-0002-3106-9321

Marcos Vinicius Brunhari*** 

Professor Adjunto do Instituto de Psicologia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Membro do Programa de Pós-Graduação em Psicanálise da UERJ.


http://orcid.org/0000-0002-5369-2915

Ana Carolina Borges Leão Martins**** 

Psicanalista do Coletivo Margem Psicanálise. Professora Adjunta do Curso de Psicologia da Universidade Federal do Ceará e do Mestrado em Psicologia e Políticas Públicas UFC-Sobral.


http://orcid.org/0000-0001-6758-9508

Rita Maria Manso de Barros***** 

Professora Titular da UNIRIO. Professora associada da UERJ na Pós-graduação e no Mestrado Profissional em Psicanálise e Políticas Públicas. Membro do PSOPOL/IP/USP.


http://orcid.org/0000-0001-7603-8062

Vinicius Darriba****** 

Professor Associado do Instituto de Psicologia da UERJ. Membro do Programa de Pós-graduação em Psicanálise da UERJ e do Programa de Pós-graduação em Teoria Psicanalítica da UFRJ.


http://orcid.org/0000-0002-9986-6554

*Associação Mundial de Psicanálise - AMP, Madri, Espanha

**Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, Rio de Janeiro, RJ, Brasil

***Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ, Rio de Janeiro, RJ, Brasil

****Universidade Federal do Ceará - UFC, Sobral, CE, Brasil

*****Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ, Rio de Janeiro, RJ, Brasil

******Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ, Rio de Janeiro, RJ, Brasil


A construção dos eixos que compõem a chamada do Dossiê “Psicanálise e Política: a insistência do Real” provocou debate instigante entre os cinco editores deste número da Revista “Estudos e Pesquisa em Psicologia”. Ela se sustenta na publicação recentemente estabelecida em português, “A terceira” (Lacan, 1974/2022), decorrente da transcrição da terceira conferência realizada em Roma por Lacan. Servimo-nos da provocação desenvolvida nesse trabalho, que toma como crucial a condição de que o real insiste e interroga como isso coloca em marcha o fracasso com o qual a Psicanálise deve lidar, frente ao risco imposto pelo êxito - risco desde o qual se pondera propriamente um apagamento da Psicanálise. Ao paradoxo colocado, soma-se a riqueza e a atualidade dos artigos enviados por psicanalistas e pesquisadores de várias partes do país e, mesmo, de autores internacionais. As questões provocadoras que o leitor será convidado a inserir-se - tanto no que diz respeito à posição ética do psicanalista frente aos novos desafios contemporâneos, quanto sobre as interrogações que os fenômenos sociais colocam para a própria práxis psicanalítica e sua incidência efetiva no sofrimento de nossa época - levou-nos a buscar a troca com o psicanalista argentino Jorge Alemán, referência no debate entre psicanálise e política no cenário mundial e, sobretudo, na emergência de uma psicanálise latino-americana. Parte dessas discussões foram formalizadas pelos editores em argumentos e questões sintetizadas sob a forma de texto enviado a Alemán e, a partir dessa conversa estabelecida em um debate por meio digital, foi possível extrair o compilado que apresentamos a seguir.

A título de nota, vale considerar a conjuntura geopolítica em movimento na retomada democrática brasileira, iniciada em janeiro do presente ano, país que vivia sob golpe desde 2016. Nosso protagonismo na construção de um mundo multipolar, iniciado por Luiz Inácio Lula da Silva durante os anos de 2006 em diante, é retomado com força atualmente e contará, no próximo período, com a já anunciada entrada da Argentina, Etiópia, Egito, Arábia Saudita e Irã, como membros dos BRICS, o que significa dizer que a cooperação internacional entre países emergentes não deixa de ser também uma comunhão entre aqueles países que estiveram outrora sob o jugo colonial do norte global e que sofrem, permanentemente, rupturas democráticas, sanções, ameaças de guerra ou francos ataques do imperialismo norte-americano, não sem permanecerem reféns e subservientes à força cultural, política e econômica exercida pela hegemonia europeia.

A primeira interrogação que abre este debate está ligada a certa polêmica acerca da inserção do psicanalista na macropolítica. Se por um lado temos a política da psicanálise, centrada no sinthoma, na ética da falta-a-ser e na própria atualização contemporânea através da escuta clínica, por outro, há certa dissociação entre o exercício de uma militância anticapitalista, pró minorias excluídas, pró democracia por parte da comunidade analítica, que muitas vezes parece estar apartada do exercício da clínica ou da sustentação da ação psicanalítica no mundo. Perguntamos a Alemán, nesse sentido, se é possível conceber ainda hoje que há um binômio entre Psicanálise e Política, que se caracteriza por sua indissociabilidade em relação ao inconsciente, fazendo-se presente no âmago das discussões mais candentes que convocam as psicanalistas e os psicanalistas a se posicionarem. Afirma Alemán que:

A partir do momento em que o capitalismo, em sua reprodução ideológica, tenta atingir pontos-chave na própria constituição do sujeito, o ensino de Lacan apareceu como um novo roteiro, especialmente para pensadores pós-marxistas e para psicanalistas que conseguiram compreender as consequências da destruição dos laços sociais na vida contemporânea. (J. Alemán, comunicação pessoal, 2023)

Em “A terceira”, Lacan (1974/2022) afirma textualmente que “a psicanálise, socialmente, tem uma consistência diferente de outros discursos” (p. 29), por ser um laço a dois e sustentar aquilo que falta, que fracassa da relação sexual. Isso a torna um sintoma social que se conecta com a verdade, com o que constitui a estrutura de todo discurso. A psicanálise, por apostar no real enquanto aquilo que não se universaliza e que retorna sempre ao mesmo lugar (a reiteração do mesmo um, esses S1s isolados que, no limite, não se articulam a nada, senão ao objeto a) se apresenta como um sintoma social do discurso capitalista:

Só existe um sintoma social: cada indivíduo é realmente um proletário, quer dizer, não há nenhum discurso com o qual fazer laço social, dito de outro modo, semblante. Foi isso que Marx enfrentou de modo inacreditável (Lacan, 1974/2022, p. 29)

Se Lacan leu o sintoma do capitalismo através do conceito de mais-valia descrito por Marx, ele nos ensina a ler em Descartes o quanto a religião, a crença em Deus, não se distingue tanto assim da crença universal na razão científica. O que se dá é a introdução de uma ruptura que funda o sujeito: “penso logo(z)ou” (Lacan, 1974/2022, p. 13). Ali onde o sujeito pensa seu ser, seu eu, ele goza.

Na foraclusão do sujeito (o mesmo da ciência e da psicanálise), o que se rejeita é seu gozo. Isto que é rejeitado reaparece no real (Lacan, 1974/2022, p. 13). Ao nos provocar ironicamente, como um Clown, a “pensar com os pés”, Lacan visa explicitar essa linguisteria que se articula entre real, simbólico e imaginário e circunscreve o objeto a. Portanto, isso escapa ao sentido do sintoma. Embora haja uma aposta de Alemán de que a posição ativa do psicanalista nos espaços de debate político na polis não está dissociada de sua práxis, é preciso estar advertido, no campo político, para não se perder nas voltas ideológicas que reproduzem as múltiplas faces da ideologia capitalista. O que deve nos importar, de fato, é localizar ali onde precisamente esse gozo do um retorna sob a forma da destruição dos laços sociais. A psicanálise, nesse sentido, tem uma tarefa decisiva: não de apontar para o sentido ideológico, mas de identificar o sintoma que permita a articulação do real da repetição, com o simbólico e com o imaginário.

As ações políticas em movimento contínuo, empreendidas pelas lutas raciais, anticoloniais, indígenas e de trabalhadores rurais e urbanos na América Latina, fazem uma tentativa de reinserir o sujeito foracluído no discurso da ciência, trazendo uma ideia do “tornar-se sujeito”, muito distinto da fixidez identitária à qual são acusados e enclausurados por críticos que ainda não entenderam a transformação civilizatória em curso. Vale neste ponto efetuarmos a ressalva acerca da temática da identificação, tal qual Freud (1921/2020) demonstra em Psicologia das Massas, na constituição do fascismo, que tem como paradigma a igreja e o exército. A identificação ao líder, que reverbera a identificação imaginária aos traços semelhantes de um mesmo grupo, impedem de fato a emergência da diferença e produzem segregação daquilo que foge ao igual. Ao retomar a lógica identificatória da mente grupal, Lacan (1971/2009, p. 28) aponta para uma identificação ao mais-de-gozar, quando se refere ao bigode de Hitler, uma parte do corpo do Führer que também aparece em relação à sua voz, enquanto tentativa de gozo do corpo. Neste ponto, a identidade que sustenta o arianismo é em sua radicalidade, a mesma que sustenta a lógica da branquitude heteropatriarcal que leva à colonização.

Afirmar “sou negro”, “sou trans”, “sou indígena”, no processo político de resistência ao sistema capitalista que segrega e extermina aqueles que não estão de acordo com os objetivos de lucro do mercado, não é uma reafirmação da objetalização de gozo sofrida, mas uma estratégia política de se servir dessa nomeação mortífera do Outro consistente, produzindo um avesso do grupo e se valendo da força plural do coletivo. Nesse sentido, ao conhecer as lógicas de aquilombamento, que reunia escravizados fugidos, alforriados, indígenas, caboclos, pobres, pardo e mesmo brancos que se opunham ao poder colonial, os habitantes da colônia brasileira, constituíam outra lógica de massa na qual o saber-fazer múltiplo produzia uma bricolagem através da junção dos fragmentos distintos das várias culturas, línguas, referências que conviviam juntas, na tentativa de sobreviver a um sistema de mortificação de sua subjetividade. Ora, nesse caso, frisamos que mesmo que a lógica em jogo, em torno da qual os movimentos populares se reúnem, em certa feita, remeta àquela do opressor, é do lado dos que reivindicam o direito à vida e a exercer seu direito à cidadania, que se escuta, ao nos aproximarmos, justamente uma estrutura plural, que visa se desenlaçar de uma identificação aos ideais coloniais, europeus, brancos e sexistas.

Em seu livro sobre o conceito de Comum, no qual Alemán (2016) se serve de vários autores contemporâneos como Badiou, Agamben, Zizek, que se debruçaram sobre o tema, para propor a hipóteses de uma abertura para o não-todo, na qual a coletividade desses movimentos poderia se abrir para a ampliação de conquistas outrora perdidas em função da opressão colonial. Assim, entendemos que, se o discurso científico foraclui o sujeito e a Psicanálise trabalha para reinseri-lo no discurso (Lacan, 1966/1998), isto não se dá do mesmo modo em todos os territórios do mundo globalizado e se modifica em cada época.

Partimos da proposta de um nó fundamental para se constituir uma esquerda lacaniana latino-americana que promova questões que não são frequentes na própria esquerda e que parta das ações dos movimentos sociais em relação à constituição do Estado, pensado por seu modo sintomático; o caráter incurável de divisão do sujeito que aparece na efetividade dos próprios movimentos políticos que fazem furo no horizonte neoliberal totalitário e excludente. Sobre a acusação de fixidez identitária, é importante apontar que há teses psicanalíticas hoje que consideram que os movimentos trans, por exemplo, promovem “o identitarismo” visando uma perspectiva estanque de conquista de lugares de poder, firmando identidades específicas homogêneas, mediante um traço identificatório que excluiria a singularidade. O Brasil é o país que mais mata pessoas transsexuais no mundo (foram 131 assassinatos em 2021) a1 e, ao mesmo tempo, é um franco consumidor de conteúdo pornográfico trans. Outro dado estarrecedor é a taxa de feminicídio (em 2022, uma mulher foi assassinada a cada 6 horas) a2. Tais proposições não parecem considerar esses fatos e sequer questionar a arraigada hegemonia generalizada pelo eurocentrismo e pelo sexismo presente na moral sexual civilizada. É digno de se questionar sobre se não haveria resistência nessas teses diante da transformação necessária à própria práxis psicanalítica para estar à altura da subjetividade de sua época, enquanto os movimentos LGBTQIAPN+ e teorias feministas e Queer apontam para um mundo que, além de não ser mais binário, se coloca em oposição às lógicas coercitivas da normatividade.

Interrogamo-nos sobre como a escuta de questões que emergem hoje nos levam à necessidade de ressituar os conceitos psicanalíticos, ainda que mantendo os princípios éticos que orientam sua prática, para possibilitar que a psicanálise acompanhe a subversão, e seus efeitos, em curso no contemporâneo.

Essa questão leva em conta, mais uma vez, asserção lacaniana sobre a dependência de que o real insista. Frente à demanda que visa livrar-se do real e do sintoma, o sucesso é reiterado por Lacan (1974/2022) em relação ao que se nomeia como “verdadeira religião” (p. 28), cuja ação é se incumbir de santificar as boas esperanças. Fazer furo ao horizonte do neoliberalismo é, portanto, se opor ao sucesso da santificação daquela demanda que oblitera o real em sua persistência; e também ratificar a assertiva segundo a qual “é preciso que a psicanálise fracasse” (Lacan, 1974/2022, p. 29).

Voltamo-nos a nosso interlocutor, pois, quando se interroga a respeito do mundo hiperconectado, em seu “Capitalismo - Crimen perfecto o Emancipación”, Alemán (2018) localiza no ensino de Lacan duas catástrofes na ordem simbólica: o declínio da função paterna e o discurso capitalista. Ao considerar ambas como antecipações lacanianas, podemos interrogar se são inerentes entre si ao se problematizar o neoliberalismo e seus efeitos na atualidade. Ademais, observa-se que a retomada da teorização sobre o declínio do pai, e sua possível articulação ao discurso capitalista, tem se mostrado como argumento e interpretação persistentes, não raramente contrários às pautas progressistas que hoje convocam a Psicanálise. Questiona-se se seria o neoliberalismo passível de uma leitura/entendimento que prescinde da ideia de um declínio do pai. A resposta de nosso interlocutor é de que:

Ambas as questões continuam a manter uma relação estrutural, associadas através da foraclusão do ponto de basta ou de ancoragem. Se no neoliberalismo se percebe que há cada vez mais setores da população que não conseguem ler os seus legados e heranças simbólicas, é pela expulsão da realidade dos seus pontos de ancoragem que isso se dá. (J. Alemán, comunicação pessoal, 2023)

Entende-se que a expulsão do ponto de ancoragem indica aquilo que Lacan (1972/2011) dispõe como “rejeição para fora de todos os campos do simbólico” (p. 88), ao tensionar o discurso capitalista como o que deixa de lado as coisas do amor. Isto também se apresenta na montagem do discurso que, por não fazer laço, se define na forma de um circuito. As partes do discurso em questão operam como roldanas e localizam o sujeito na posição de agente sendo atingido pelo objeto que, desde então, impera como uma determinante. Na relação na qual não há um basta, o pretenso discurso mantém o mestre em posição de verdade e isto se deflagra de maneira catastrófica quando os ditames desse lugar emergem de um mito que “cloroquiniza” o objeto consumido pelo sujeito ávido. Se o saber é demagógico - aos moldes adornianos, o sujeito atingido pelo objeto falacioso se torna passível à massificação ao perder seus legados e heranças em nome de idealização de um líder.

É com adjetivos como astucioso e frenético que, em Milão, Lacan (1972) qualifica o discurso capitalista - com a pregnância do objeto sobre o sujeito em um processo peculiar de consumo - como aquele que não faz laço, mas que nos convoca a repensar o estatuto da mercadoria em nosso “futuro de mercados comuns” (Lacan, 1967). Atentos às definições de mercadoria para o capitalismo industrial e seus desdobramentos no hodierno neoliberalismo que avança com a tecnologia digital, a dúvida que paira é se o discurso capitalista comporta nesse lugar de objeto os algoritmos e sua face mais resplandecente atrelada às Inteligências Artificiais (IAs) como, por exemplo, o ChatGPT, diante do que Alemán expressa:

As IAs seguem uma lógica própria que Marx descreve em O Capital na construção abstrata e fantasmagórica (Marx) da mercadoria. Os algoritmos acumulam letras para poderem ser gozadas pelos consumidores enquanto, ao mesmo tempo, trabalhem para eles, gerando mais-valia. Nada na IA participa da lógica significante que situa a emergência do sujeito do inconsciente. (J. Alemán, comunicação pessoal, 2023)

Ou seja, podemos deduzir que os algoritmos lavam os sujeitos a entrarem na lógica digital mais desenvolvida como objetos mais-de-gozar, que buscam apenas trazer de volta uma perda irrecuperável.

A experiência de Marie Langer, psicanalista e comunista, nos orienta sobre a Erfahrung (experiência), como diria Freud, de posicionamento social de psicanalistas no campo da política. Ao considerar o inconsciente estruturado como uma linguagem, a força das mídias como o quarto poder (McLuhan), sustentando descaradamente aparelhos ideológicos (Althusser), alimentando o princípio de fantasia compartilhada (Lacan, 1975), com a prisão e extradição de Julian Assange, como a psicanálise pode se posicionar como desmanche do discurso capitalista, que leva o sujeito a consentir ser explorado?

Em primeiro lugar, as esquerdas, seus militantes e teóricos teriam que ter uma disposição mais aberta com a psicanálise. A esquerda lacaniana da qual participo se anima com isso e continua com a tradição de Langer ao tentar introduzir Lacan, desta vez, nos problemas da esquerda. (J. Alemán, comunicação pessoal, 2023)

Para ficarmos apenas com um exemplo relevante, destacamos a contribuição do camaronês Achille Mbembe, que utiliza temos como grande Outro, gozo, mal-estar e chega até a fazer um paralelo entre o surgimento do capitalismo e a criação de uma ficção chamada “A razão colonial”, de forma a mostrar que o escravo negro foi o primeiro objeto mercadoria que inaugurou o capitalismo a partir da colonização. Em “Sair da Grande Noite”, Mbembe (2019) aponta que o ato literário, artístico ou político que recupera as tradições culturais africanas silenciadas ou apagadas pela opressão escravista, podem servir como um ato psicanalítico que visa a cura.

Estamos vivendo hoje no Brasil um momento muito particular de retomada da democracia após um golpe de Estado sobre a primeira presidenta mulher, que coincidiu com a queda concomitante de outros governos democráticos na América Latina, na mesma época. Aqui se sucedeu um tempo no qual a governabilidade, em xeque, deu lugar à destruição das instituições democráticas, ao desinvestimento em saúde e educação, à entrega das empresas públicas do país para o capital estrangeiro e à destruição de direitos fundamentais conquistados por toda nossa história; além da paixão do ódio e da ignorância que se alastrou de forma dominante e difícil de contornar, sobre o laço social. Argentinos, assim como todos nós brasileiros e demais psicanalistas latino-americanos, têm acompanhado no sul global a subida de fascistas ao poder de modo geral no mundo. Qual a diferença em relação ao fascismo que tomou a Europa durante a Segunda Guerra Mundial? Qual a contribuição da psicanálise para a leitura sobre esse modo de assunção do fascismo e da consequente queda das democracias no cenário atual?

Agora há uma conjunção sem precedentes entre o neoliberalismo e o neofascismo que tenta produzir uma população zumbi em grande escala. Os fascismos históricos ainda não haviam encontrado a era do niilismo consumado na sua relação com a técnica. (J. Alemán, comunicação pessoal, 2023)

Em seu famoso artigo “Uma Esquerda Lacaniana”, Alemán (2010) propõe implicar o psicanalista no seu posicionamento político frente ao avanço da ameaça à democracia no mundo, ou aos regimes fascistas presentes nas próprias estruturas democráticas, por meio de uma perspectiva interessante de distinção entre a esquerda na Europa e na América Latina, no combate progressista ao avanço do racismo e da eliminação da diferença em relação aos ideais universais eleitos pelos mecanismos de poder e controle. Essa distinção situa o ponto de avanço no tratamento do gozo por coletivos organizados. Alemán (2010) aponta haver uma hiância entre a opressão na tradição europeia em relação à latino-americana; a primeira, marcada pela Shoá e pela queda da União Soviética - que não conheceu o genocídio imperialista americano nem o colonialismo dos próprios europeus - e a segunda, que vivenciou as políticas do Império em sua versão mais cruel. Para esses últimos, a reação possível não foi a instituição de uma guinada socialista, ou pela social-democracia, mas se estabeleceu um discurso de “movimentos nacionais populares”, que mesmo instáveis e incertos, se impuseram como “assunção-invenção de um legado histórico, assim como, também, pela exigência sempre presente de tentar atravessar o fantasma etnocêntrico que impregna o imaginário da esquerda europeia” (Alemán, 2010, p. 114). Apesar do conservadorismo bastante presente entre nós, há psicanalistas engajados em movimentos sociais e políticos que se colocam contra as atuais estruturas de poder. Qual seria a especificidade da função do psicanalista nas invenções, dificuldades e desafios enfrentados pelos movimentos sociais? A função do psicanalista tem relevância no contexto dessa experiência política?

Sim, é à medida que também reconhece os seus limites. De qualquer forma, se falamos do nacional e do popular, o livro mais inovador política e teoricamente foi a Razão Populista de Ernesto Laclau, uma lógica política absolutamente inspirada em Lacan. (J. Alemán, comunicação pessoal, 2023)

Trazendo uma leitura lacaniana de Laclau e influenciados por Alemán, podemos tomar esta obra como denúncia ao modo de exercício do populismo, que está presente em vários governos da Europa e da América Latina no século XXI, mas não sob as mesmas bases dos regimes Narodnik na Rússia, no século XIX, ou na Argentina peronista do século XX. Embora os conteúdos dos governos da Grécia, com Syriza, o Podemos, da Espanha, a Bolívia de Evo Morales, a Venezuela de Hugo Chaves, a Argentina dos Kirchner, algo de sua forma se mantém. A crítica de Laclau incide em uma espécie de resignação ou aceitação do capitalismo como único jogo possível e uma desistência de qualquer tentativa factível de superar o regime capitalista. O processo populista está longe de ser analisado por Laclau como algo positivo ou negativo, mas se trata do produto de um contexto histórico e linguístico particular, que é instável e efêmero por definição.

Para Laclau (2005), o sujeito histórico que efetivará a luta anticapitalista não é a priori nenhuma classe específica, seja o proletariado urbano, o lumpemproletariado ou qualquer outra categoria social separada, mas antes o que o autor chamou de povo, através de suas múltiplas demandas equivalentes. O esforço do autor em atualizar o marxismo, buscando afastá-lo de uma tendência metafísica, visa a superação da filosofia do sujeito, centrada no ideal moderno de autoafirmação. É formulada uma teoria acerca da formação dos sujeitos políticos despojada de um essencialismo, no qual toda identidade se configura sob uma perspectiva relacional, ou seja, por meio de uma relação de antagonismo. A identidade de um sujeito não lhe é intrínseca, ela depende da relação que estabelece com outros termos, compostos por estruturas discursivas instáveis, que impedem seu completo fechamento em uma única totalidade. Laclau insiste numa fissura presente no conceito de hegemonia, uma falta que precisa ser preenchida ou uma contingência que precisa ser superada.

A hegemonia não seria a inteireza de uma totalidade, mas a resposta a uma crise. Propõe-se a ideia da diferença como o espaço complexo do sentido plural das identidades. Da aporia entre antagonismos, entendido como elemento constitutivo do processo de formação das identidades e seu pluralismo, emerge o modelo agonístico, que se define pela recuperação do político e sua tentativa de domesticá-lo. A razão populista, conceito de Laclau, que reuniria condensações de demandas plurais que mantém a disputa e os conflitos em sua base, sem superá-los, evitaria uma associação entre populismo e cesarismo. O populismo não necessariamente dá origem a regimes autoritários. Sua incompatibilidade advém do caráter elitista da concepção de política e sua representação pouco afeita à emancipação. O agonismo torna-se uma alternativa para compensar os malefícios da liderança e os riscos que correm o populismo, uma vez que retira dos líderes a possibilidade de apresentarem-se como representantes da totalidade. Dessa maneira, o modelo agonista se apresenta mais adequado aos movimentos contra-hegemônicos que contemplem um ideal emancipatório no qual a soberania do povo não seja obtida às custas de suas liberdades individuais ou da opressão de minorias.

Reafirmamos, por fim, que a proposta do Dossiê “Psicanálise e Política: a insistência do Real” teve por objetivo difundir os debates em torno do binômio Psicanálise e Política. Mesmo que em diferentes eixos, o binômio mantém como horizonte a proposta lacaniana sobre a insistência do real; insistência que distancia o campo psicanalítico do sucesso e o lança rumo à problemática do fracasso, do impossível que habita o laço social. A insistência do real como ponto de partida destaca a contingência das respostas que nós, psicanalistas, aventamos aos problemas contemporâneos que, aqui, são eixos desta publicação e que convocam a Psicanálise a uma posição que não deve prescindir da Política. O intento de reunir artigos científicos que pautem questões que, na contemporaneidade, implicam o campo psicanalítico numa articulação que não pode prescindir da política. Tomá-la na perspectiva da insistência do real implica situar a urgência que nos exige posicionamento.

Referências

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Mbembe, A. (2019). Sair da grande noite: Ensaio sobre a África descolonizada. Vozes. [ Links ]

Recebido: 14 de Maio de 2023; Aceito: 07 de Setembro de 2023

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