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Arquivos Brasileiros de Psicologia

versão On-line ISSN 1809-5267

Arq. bras. psicol. vol.62 no.3 Rio de Janeiro  2010

 

ARTIGOS

 

A formação do conceito de consciência em Vygotsky1 e suas contribuições à Psicologia

 

Vygotsky's concept formation of consciousness and its contribution to psychology

 

 

Maria Aparecida Alves Sobreira CarvalhoI; Sicilia Maria Moreira de AraújoII; Veronica Morais XimenesIII; Jesus Garcia PascualIV

I Mestranda. Curso de Mestrado em Psicologia. Universidade Federal do Ceará (UFC). Fortaleza. Ceará. Brasil
II Mestranda. Curso de Mestrado em Psicologia. Universidade Federal do Ceará (UFC). Fortaleza. Ceará. Brasil
III Docente. Curso de Mestrado em Psicologia. Universidade Federal do Ceará (UFC). Fortaleza. Ceará. Brasil
IV Docente. Curso de Mestrado em Psicologia. Universidade Federal do Ceará (UFC). Fortaleza. Ceará. Brasil

 

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo apresenta as mudanças teóricas e metodológicas introduzidas por Vygotski na concepção dos processos psicológicos, partindo de seu conceito de consciência. Fundamentando a crítica ao idealismo e às correntes reflexiológicas de sua época, Vygotski aponta uma crise antes despercebida na Psicologia. Resgatamos neste artigo o conceito de consciência em Vygotski, fruto de um novo método para a Psicologia no qual a psique é concebida como uma construção histórico-cultural materialista, contrapondo-se à concepção de consciência metafísica e espiritual, universal e a-histórica. Vygotski denuncia que a Psicologia Soviética apresentava contradições provocadas pela leitura errônea do materialismo histórico e pela tentativa de universalização de determinadas abordagens psicológicas. Apresentamos neste trabalho as contribuições de Vygotski sobre o conceito de consciência que provocou uma transformação epistemológica na Psicologia Soviética.

Palavras-chave: psicologia histórico-cultural, consciência, materialismo subjetividade.


ABSTRACT

This paper presents the theoretical and methodological changes introduced by Vygotsky in the conception of psychological processes, starting from its concept of conscience. On criticizing the idealists and reflexologic approaches of his time, Vygotsky points a crisis that remained unseen in Psychology. We rescue in this theoretical article the concept of consciousness in Vygotsky, wich articulates a new method for Psychology where the psyche is seen as a historical-cultural construction rooted on materialistic consciousness, opposing to the concept of universal, ahistorical, metaphysical, and spiritual consciousness. Vygotsky points that the Soviet Psychology presented contradictions caused by the misreading of historical materialism and the attempt of universalization of certain psychological approaches. We argue in this paper that Vygotsky,on approaching the issue of consciousness, at the Second Congress of Psychoneurology (1924), caused a theoretical and epistemological change in Soviet Psychology.

Keywords: historical-cultural psychology, consciousness, subjectivity.


 

 

Introdução

Este artigo estuda as mudanças teórico-metodológicas introduzidas por Vygotski em 1924 com sua revolução na concepção dos processos psicológicos, pois considerou a consciência como tema inerente à Psicologia. Lev Vygotski (1896-1934), ao tratar o tema da consciência, no II Congresso de Psiconeurologia (1924), provocou também uma transformação epistemológica na Psicologia Soviética.

Mostraremos inicialmente que não existia crise na Psicologia Soviética no início do século XX porque apenas havia espaço para a Psicologia Científica, que se reduzira à Fisiologia, à Neurologia ou à Reflexologia, mantendo de certa forma o monismo dos fisiologistas alemães2. Pode-se dizer que a trajetória da Psicologia Soviética nas duas primeiras décadas do século passado foi marcada, inicialmente, pelo distanciamento da Psicologia Filosófica de Tchelpanov, passando pela neurofisiologia de Sechenov até a Psicologia ser denominada Reflexologia por Bechterev. O reflexo como unidade maior que o atomismo associativo só veio a ser repensado na Reactologia de Kornilov. Desse modo, o cenário soviético estudava os processos psicológicos humanos na esteira do evolucionismo darwinista, destituindo de valor científico e político os conhecimentos adquiridos mediante o estudo da mente, como vemos neste trecho:

“A ciência que denomino Reflexologia consiste no estudo da atividade correlativa do organismo no sentido amplo da palavra, e por atividade correlativa denomino todas as reações inatas e adquiridas individualmente, começando pelos reflexos inatos e reflexos organizados-complexos até os reflexos mais complexos adquiridos que no homem começam nas ações e condutas e incluem sua conduta característica” (BECHTEREV, 1973, p. 171).

O pretenso monismo materialista defendido por Bechterevev (1973) é questionado por Vygotski na palestra proferida no II Congresso de Psiconeurologia (1924), quando introduziu o tema da consciência como assunto inerente à Psicologia:

“Thus we are left with two choices: either this is actually the case, and it is impossible to study human behaviour and the complex forms of human interrelated activity without reference to the human mind; or it is not the case, and mind is an epiphenomenon, a secondary phenomenon, and everything can be explained without mind, and we shall come to the biological absurd. No third possibility is given” (VYGOTSKY, 1925/2000, p.5).3

Sendo assim, Vygotski afirma que o monismo materialista evoca a Reflexologia para uma futura abordagem dualista:

“Academician Bekhterev asserted that his system of reflexology did not contradict the hypothesis of the soul. Subjective or conscious phenomena are depicted by him as second-order phenomena, as specific internal phenomena accompanying combinatory reflexes. Dualism is reinforced by the fact that a special science, subjective reflexology, is admitted as not only possible in the future, but even as inevitable (VYGOTSKY, 1925/2000, p. 4).4

Observa-se que não há crise na Psicologia Soviética durante o início do século XX, mas sim o reducionismo neurofisiológico ao reflexo como princípio único de explicação do comportamento humano, o que o autor bielo-russo rebate com ironia mediante a história do Kannitfershtan:

“Indeed, the sense in which we use the term “reflex” resembles very closely the story of Kannitfershtan, whose name a poor foreigner heard in Holland as a response to any question no matter what he asked: Whom are they burying? Whose house is this? Who just passed by? etc. He naively thought that everything in this country was done by Kannitfershtan, whereas actually, the word simply meant that the Dutchman he met did not understand his questions (VYGOTSKY, 1925/ 2000, p. 5-6”).5

A palavra crise, do grego ???s? (DICIONÁRIO…, s.d., p.434), remete, no entanto, aos conceitos de senso, juízo, razão, discernimento, opinião, parecer e admite juízos diferenciados no campo do conhecimento. Desse modo, a Psicologia Soviética prevygotskiana ignorava qualquer dimensão psíquica que se sobreviesse às conexões neuronais. Portanto, o cenário da Psicologia Soviética no início do século XX não era de crise – debate dialético entre duas correntes de pensamento –, mas de supressão de qualquer abordagem psicológica idealista que lembrasse a velha filosofia de Tchelpanov.

Em seguida, apresentaremos o cenário em que o jovem Vygotski apontava uma crise nesse espaço monossêmico da neurofisiologia, provocado mais pela leitura errônea do materialismo histórico, apontada por Marx e Engels, do que pela falha de trazer ao palco do Congresso de Neurologia o tema da consciência. Mostrou o psicólogo bielo-russo que a crise era provocada porque os reflexologistas não aceitavam estudar a consciência fora dos parâmetros mecanicistas. A evolução da matéria na espiral darwiniana, afirma Vygotski, encontrava etapas de irrupção de novas formas, isto é, cortes qualitativos que não podem ser explicados apenas pelo mecanicismo reducionista.

A teoria histórico-cultural da consciência mostra – apoiada no modelo materialista marxista – que o desenvolvimento psicológico move-se da matéria e, sem deixar de ser matéria, adquire novas formas mentais, porém há aspectos do comportamento humano que só mediante a consciência podem ser compreendidos. Se tal for o caso, diz Vygotski: “Banishing the consciousness from psychology, we are trapped in biological absurdity for evermore” (1925/2000, p. 5)6. Segundo o autor, somente quando a consciência for incorporada ao estudo do comportamento humano poder-se-á falar de processos psicológicos superiores.

Por fim, apresentamos o conceito de consciência em Vygotski em seus vários aspectos e funções. O estudo da consciência interessa sobremaneira à Psicologia humana nas suas práticas psicossociais, por lidar com pessoas e não animais.

Diante da grande divulgação da obra de Vygotski, apontamos neste artigo teórico as seguintes reflexões:

• O que significa realmente unir materialismo e consciência?

• Nas práticas psicossociais estamos trabalhando simultaneamente processos mentais, ou derrapamos, sem perceber, em modelos universais?

 

Diversidade de psicologias em um cenário sem crise

Segundo Riviere (1985), após a Revolução de outubro de 1917 aprofundou-se a busca de uma Psicologia que representasse uma alternativa materialista consistente com os interesses socialmente dominantes. O autor ressalta que essa busca não foi resultado da Revolução, não sendo invenção de Marx e Engels, porque, segundo Chauí (2003), a noção de materialismo surge pela primeira vez na filosofia grega:

“As escolas filosóficas, estoica e epicurista, afirmaram, contra Platão, Aristóteles e neoplatônicos, que só existem corpos ou a matéria. [...] Quando Marx fala em materialismo, a matéria à qual se refere não são os corpos físicos, os átomos, os seres naturais, e sim as relações sociais de produção econômica. Seu materialismo visa opor-se ao idealismo espiritualista hegeliano, para o qual a força que move a História é a Ideia, o Espírito, a Consciência (p. 414)”.

O Materialismo histórico e dialético afirma, pois, que a sociedade se constitui a partir de condições materiais de produção e da divisão social do trabalho; que as mudanças históricas são determinadas pelas modificações nas condições materiais e na divisão do trabalho, sendo a consciência humana determinada a construir suas ideias por causa das condições materiais instituídas pela sociedade (CHAUÍ, 2003). Marx e Engels (1989), ao criticarem o idealismo, afirmam que uma concepção materialista deve ser capaz de:

“permanecer constantemente no terreno real da história; ela não explica a prática segundo a ideia, explica a formação das ideias segundo a prática material (...) a revolução, e não a crítica, é a verdadeira força motriz da história, da religião, da filosofia e de qualquer outra teoria (p. 36”).

O projeto do materialismo elaborado por Marx (2000) para estudar a economia foi aplicado por cientistas na antiga União Soviética sem levar em consideração as peculiaridades dos campos investigados: economia e psicologia. Em decorrência disso, as diversas abordagens da Psicologia subjetiva foram reduzidas pelo materialismo metodológico a meras conexões de reflexos herdados e adquiridos. Foi nesse clima, em 1924, que ocorreu o II Congresso de Psiconeurologia, que serviu de espaço para o debate entre idealistas e as diversas tendências materialistas, manifestando-se abertamente as contradições da Psicologia Soviética.

Van der Veer e Valsiner (2006) referem-se a correntes psicológicas subjetivas da época, tais como:

a) Psicanálise, que apresentava uma ideia de que os fenômenos psíquicos eram em parte determinados pelo inconsciente e apontava a sexualidade oculta em várias atividades e sob formas que não eram anteriormente consideradas eróticas;
b) a Psicologia da Gestalt, que surge dos estudos sobre os processos de percepção da forma;
c) Personalismo, que surge da Psicologia diferencial e estuda o desenvolvimento da personalidade, com enfoques relativos a mensuração, aptidões e desenvolvimento da individualidade. Muitas dessas escolas da Psicologia, com o passar dos anos, foram silenciadas por serem consideradas “burguesas”.

Vários autores (RIVIERE, 1985; MOLON, 2003; TOASSA, 2006; VAN DER VEER; VALSINER, 2006) apontam, por sua vez, as principais tendências da Psicologia Russa no início do século:

a) a reflexologia de Pavlov, que tentou explicar os fenômenos psicológicos através do reflexo condicionado, fundamentando uma visão mecanicista;
b) a reflexologia defendida por Békhterev, que considerava a necessidade de substituição da Psicologia por um sistema pautado na noção metafísica de uma energia comum aos fenômenos materiais e mentais, em que os fenômenos psicológicos, a sociedade e a natureza seriam explicados por leis mecânicas;
c) a reactologia de Kornilov, que defendia a combinação de relatos pessoais com o estudo das reações ocultas ao observador, do dispêndio de energia no trabalho, entre outros temas;
d) a paidologia, que consistia numa psicologia do desenvolvimento;
e) a psicotécnica, que seria uma psicologia industrial;
f) a pedologia, trabalhada por Blonski.

As correntes de Psicologia que mais se destacavam na União Soviética estavam eivadas de um materialismo mecanicista que se afastava do projeto metodológico de Marx, que compreende histórica e dialeticamente a realidade, como bem o demonstra esta citação em relação à Economia:

“Parece que o correto é começar pelo real e pelo concreto, que são a pressuposição prévia e efetiva; assim, em Economia, por exemplo, começar-se-ia pela população como um todo. No entanto, graças a uma observação mais atenta, tomamos conhecimento de que isso é falso. A população é uma abstração, se desprezarmos, por exemplo, as classes que a compõem. Assim, se começássemos pela população, teríamos uma representação caótica do todo, e através de uma determinação mais precisa, através de uma análise, chegaríamos a conceitos cada vez mais simples; do concreto idealizado passaríamos a abstrações cada vez mais tênues até atingirmos determinações as mais simples. Chegados a esse ponto, teríamos que voltar a fazer a viagem de modo inverso, até dar de novo com a população, mas desta vez não com uma representação caótica de um todo, porém com uma rica totalidade de determinações e relações diversas “(MARX, 2000, p.39).

Cabe ressaltar, contudo, que o autor de O Capital frisa bem sua divergência na concepção da dialética em relação a Hegel. Chauí (2003) coloca que Hegel afirmava que a dialética seria a única maneira pela qual poderíamos alcançar a realidade e a verdade como movimento interno da contradição. Essa contradição dialética nos revelaria um sujeito que surge, se manifesta e se transforma graças à contradição de seus predicados, tornando-se outro por meio de uma negação interna. Em lugar de a contradição ser o que destrói o sujeito, ela é o que o movimenta e transforma, fazendo-o síntese ativa de todos os predicados postos e negados por ele.

Para Marx (2000), o caminho dialético começa no “real e concreto bruto”, ascende pela via da análise até a elaboração de uma “formulação abstrata” dos conceitos para, finalmente, retornar para o “concreto pensado”. A opção por aceitar o empirismo ingênuo dos dados físicos – reflexos – levou a Psicologia, reduzida a Reflexologia, a trilhar o caminho do evolucionismo darwiniano.

“The origins of inherited experience were discovered by Darwin; the mechanism by which this experience is multiplied by personal experience is the conditional reflex Academician Pavlov discovered”(VYGOTSKY, 1925/2000, p.8)7.

Há, pois, dois momentos distintos, mas integrados inexoravelmente, nos métodos de pesquisa da Psicologia. Esse enfoque histórico cultural emerge então com Vygotski.

 

A crise da Psicologia identificada por Vygotski

Vygotski buscou superar as bases da Psicologia que naturalizava o comportamento humano e que tinha sua gênese nas ciências biológicas, nos fenômenos da hereditariedade ou na constituição física.

No intuito de construir uma Psicologia que emergisse das necessidades de sua época, Molon (2003) relata que Vygotski afirma uma íntima conexão entre consciência, pensamento e linguagem. Dessa forma, a consciência é considerada um fenômeno histórico e social, levando em consideração as relações existentes, como o homem se apropria de sua história e do seu caminho. A proposta do autor desafiava os psicólogos reflexologistas a compreender o Homem superando a perspectiva dualista na formação de suas funções psicológicas superiores. Esse é um problema do método utilizado na Psicologia e da definição de seu objeto de estudo.

Segundo Riviére (1985) e Van der Veer e Valsiner (2006), Vygotski apontava a necessidade de uma Psicologia geral que não perdesse sua premissa científica e levasse em conta os processos culturais, acercando-se da visão da consciência desde sua concepção semiológica em sua natureza e estrutura. Essa “nova Psicologia” deveria ser capaz de eliminar a dicotomia entre corpo e alma, trazendo o método proposto por Marx e Engels, baseando suas proposições nos problemas postos no mundo real. A Psicologia deveria ser uma ciência unificada, com um único conjunto de conceitos teóricos e princípios explicativos.

A ideia de desenvolvimento de Vygotski, segundo Tuleski (2002), está intimamente comprometida com a filosofia marxista, questionando a visão naturalista e linear, destituindo a concepção de que existe um tipo humano universal e eterno. Essa autora afirma que ao pensarmos em Vygotsky não podemos abstrair a sua obra do contexto de sua época, pois ele parte do princípio de que se os homens são capazes de fazer a revolução, de transformar sua própria natureza, podem abandonar os comportamentos individualistas e competitivos de uma sociedade burguesa. Eles necessitam desenvolver a cooperação e a solidariedade como atitudes que visem ao bem comum, atitudes requeridas na sociedade soviética, que realizava uma experiência sem precedentes na história da Humanidade.

Essas ideias ficam claras em um artigo que Vygotski escreveu em 1930 a respeito da alteração socialista no modelo de Homem:

“A Psicologia científica estabeleceu como sua tese básica o fato de que o tipo psicológico do homem moderno é um produto de duas linhas evolutivas. Por um lado, este tipo moderno de ser humano foi desenvolvido em um longo processo de evolução biológica da qual a espécie biológica homo sapiens surgiu, com todas as suas características inerentes do ponto de vista da estrutura do corpo, as funções de vários órgãos e certos tipos de reflexos e atividades instintivas que foram fixados hereditariamente e que são passados de geração em geração. [...] Mas junto com o início da vida social e histórica humana e as mudanças fundamentais nas condições às quais o homem teve de se adaptar, o curso subsequente da evolução humana também mudou radicalmente “(VYGOTSKY, 1930/2004, p.1).

A formação das funções superiores é um processo qualitativo, e não apenas quantitativo, como pensava a Psicologia reduzida a reflexologia. Tuleski (2002), referindo ao pensamento de Vygotski, fala que o salto qualitativo interno, provocado pelo meio externo, redimensiona totalmente funções psicológicas, elevando-as a patamares superiores, pois o indivíduo passa de controlado por essas funções para o exercício consciente do seu controle. “Este processo é lento e gradativo, dependente das possibilidades que o meio social e cultural oferece às crianças, bem como da forma e conteúdo das mediações presentes nele” (TULESKI, 2002, p. 121). A psiquê como uma construção histórico-social é o que fundamenta a emergência de uma consciência comunista, voltada à coletividade.

 

A formação da consciência em Vygotski

Segundo Toassa (2006), a maior intimidade com os territórios da Língua, Literatura e Semiologia possibilitou a Vygotski enxergar no caráter social da linguagem a origem das interações que compõem a consciência humana. Abraçou a formulação de uma obra materialista que não se recusasse a estudar a consciência, nem tampouco fosse capturada pelo introspeccionismo. A proposta de Vygotski, segundo Riviére (1985, p.41), seria a de “evitar o solipsismo das psicologias presentes em sua época apresentando uma nova visão de Homem constituído socialmente”, ou ainda, “resultado de uma relação”.

Para Molon (2003), a subjetividade seria uma dimensão humana fundamental para o estudo em Vygotski, do qual fazem parte os elementos da consciência, da vontade e da intenção que constituem o ser humano como alguém único capaz de construir seus significados e sua cultura. O processo de formação da consciência, por meio da internalização, constitui a subjetividade através das situações de intersubjetividade, possibilitadas pela mediação simbólica, em que a linguagem assume papel principal na formação do sujeito. Nesse sentido, podemos compreender o conceito de consciência em Vygotski como uma função de origem social, em que os signos possuem papel imprescindível em sua formação. Sua transformação implica em motivações mediadas por emoções, sentidos e significados, constituindo-se, dessa forma, como um processo que filtra o mundo e coordena as ações humanas.

a) Consciência como função de origem social que regula o contato com outros indivíduos

Ao considerarmos os seres humanos, encontramos a intenção, a afetividade, o pensamento e a consciência. Em Vigotski (1924/2004), a consciência pode ser definida como um entrelaçamento de sistemas reflexos. No entanto, a consciência não se confunde com reflexo, do mesmo modo que não é um “mecanismo interno”. Segundo o autor, o significado da palavra seria detentor das propriedades da consciência. Esses significados são convertidos em sentidos pessoais, de acordo com as necessidades e emoções que motivaram o seu uso. Dessa forma, o sentido é soma de todos os eventos psicológicos que a palavra desperta na consciência. A palavra, como detentora de significado, ao mesmo tempo em que desperta eventos na consciência, é base para a sua formação. Nesse sentido, a consciência possui origem social, já que os reflexos reversíveis originados da palavra servem de fundamento para a comunicação social e para a coordenação coletiva do comportamento.

“Com isto abordamos um aspecto na natureza da palavra cujo significado ultrapassa os limites do pensamento como tal e em toda a sua plenitude só pode ser estudado em composição com uma questão mais genérica: a palavra e a consciência. Se a consciência, que sente e pensa, dispõe de diferentes modos de representação da realidade, estes representam igualmente diferentes tipos de consciência. Por isso, o pensamento e a linguagem são a chave para a compreensão da natureza da consciência humana” (VIGOTSKI, 2000, p. 485).

De acordo com Vigotski (1924/2004), a atividade humana está relacionada com o conceito de mediação, ou, ainda, não significa apenas uma reação ao meio, mas uma transformação através de instrumentos. A utilização de instrumentos implica na constituição do signo, na regulação da conduta e construção da consciência, a qual possui uma estrutura semiótica que regula o contato com os outros indivíduos e consigo mesmo (RIVIÉRE, 1985).

b) Consciência e sua relação com sentido e significado

Retomando a ideia de Vigotski (1924/2004) sobre a importância da linguagem, ele aponta que, mediante a palavra, surgem diversos significados, os quais são convertidos em sentidos pessoais, de acordo com as necessidades e emoções que motivaram o seu uso. Dessa forma, sentido é soma de todos os eventos psicológicos que a palavra desperta na consciência. A ação e o pensamento são motivados, ou seja, são desencadeados por valores emocionais estáveis, os quais, por sua vez, são configurados pela conexão entre processos psicológicos, as relações exteriores e o organismo.

Dessa forma, a unidade de análise do comportamento humano que pode incluir todas as manifestações psicológicas seria o signo. Barros et al. (2009) afirmam que existe uma implicação do conceito de sentido à investigação psicológica ao poder contribuir para o alargamento das possibilidades de estudos das interações sociais e dos processos de significação nelas inscritos. Portanto, abrem vias para que se levem em conta não só recorrências e regularidades das interações e dos contextos pesquisados, mas também seus dinamismos, emergências e heterogeneizações, tendo em vista que, na composição de sentidos, se articulam dialeticamente zonas de estabilidade e instabilidade.

Essa perspectiva trazida por Vygotski será útil como base para a formulação de uma metodologia que possa ter acesso aos conteúdos da consciência, fundamentando, assim, uma importante contribuição para a Psicologia no que diz respeito a uma perspectiva teórica que traga em seu bojo uma proposta metodológica coerente com seu estudo. Para Vigotski (1924/2004), a consciência se reflete na palavra, a qual poderia ser considerada como um microcosmo daquela. Góes (2000) apresenta a análise microgenética, a partir dos estudos de Vygotski, como uma forma de construção de dados que requer o recorte de episódios interativos, com ênfase nas relações intersubjetivas e um relato minucioso do processo. Esse estudo denomina-se micro, porque está pautado em minúcias, e é genético ou sociogenético, pois relaciona os eventos observados com outros planos da cultura, buscando sua gênese.

c) Consciência e signo

Segundo Riviére (1985), a constituição da consciência e sua transformação se dão graças a uma classe especial de ferramentas: os signos. Estes são proporcionados pela cultura e medeiam a transformação da atividade reflexa em consciência. Nesse sentido, o fator fundamental para o desenvolvimento humano seria definido pela internalização dos instrumentos, tornando-os meios de regulação de conduta, da relação com os outros e do sujeito consigo mesmo. A internalização, nesse contexto, é entendida como a reconstrução de uma atividade externa que reorganiza e modifica qualitativamente as ações. A conduta simbólico-instrumental seria o fundamento da atividade voluntária e dos símbolos na consciência, enquanto os signos seriam “desenvolvimentos ontogenéticos da própria conduta instrumental” (RIVIÉRE, 1985, p. 43).

De acordo com Vigotski (1924/2004), a consciência é constituída por signos que são estímulos instrumentais de natureza social que formam o ser humano por meio da convivência social. Os signos atuariam sobre o sujeito e estariam intimamente relacionados a sua capacidade de criação e imaginação, que, por sua vez, se manifestaria por igual em todos os aspectos da vida cultural.

Toassa (2006) apresenta os signos em Vygotski como forma de dominar a conduta, por meio da qual a realidade pode ser representada na ausência dela própria, podendo tornar-se consciência dos impasses e relações do real. Este só é alcançado com o desenvolvimento de funções superiores, que só aconteceria mediante as transformações do sistema capitalista e de seu caráter opressor, que transforma o indivíduo em objeto, mera fonte de lucro, e favorece relações de alienação e subjugação. Esse é o intento de uma nova sociedade pautada na superação da divisão de classes, da exploração do homem pelo homem e da alienação do trabalho.

Zanella (2004) afirma que, mediante os signos, a dupla direção da atividade humana se processa, pois, na medida em que, por seu intermédio, o sujeito se objetiva e transforma a realidade, ao mesmo tempo transforma a si mesmo. Continua referindo que a relação que se estabelece com a realidade é necessariamente mediada pela cultura, pelos valores característicos do momento social e histórico em que vivemos, bem como pela nossa história de vida e o que, decorrente dela, consideramos significativo.

d) Consciência como mecanismo que filtra o mundo

A consciência em Vigotski (1924/2004) é um mecanismo que filtra o mundo, tornando possível a atuação do sujeito. Ela filtra a realidade e a modifica. Dessa forma, a consciência refletiria a realidade, sobre a realidade e sobre si mesma. Além disso, há possibilidade de mudanças na consciência, não percebidas pelo sujeito. Essa característica estaria relacionada à ideia de o sujeito poder refletir sobre a própria atividade e essa reflexão poder transformá-la. A motivação para atuação no mundo dependeria da percepção do sujeito sobre si. O caráter seletivo da consciência é assegurado por seus limiares, que têm a função de impedir o caos (MOLON, 2003).

O sujeito em Vigotski (1924/2004) estabelece relações com e na experiência de outros sujeitos através da intersubjetividade. Dessa forma, sentimento, pensamento e vontade estão relacionados, ou seja, não existe o funcionamento isolado entre eles, mas interconexões funcionais. A vontade é a função que potencializa as demais, e esta se apresenta inicialmente como social, depois interpessoal e, em seguida, intrapsíquica. Molon (2003), com base nas ideias de Vygotski, afirma que o pensamento não nasce de si mesmo ou de outros pensamentos, mas das motivações que compõem nossa consciência, interesses, afetos e necessidades.

 

Para concluir

Vygotski, ao negar que a ação humana e seu desenvolvimento são determinados biologicamente, aponta uma responsabilidade da sociedade em desenvolver métodos culturais eficazes para a superação das deficiências individuais e coletivas. Vieira e Ximenes (2008) alertam para a necessidade de o psicólogo diferenciar-se do ativista político, do profissional responsável pela escuta, devendo ter uma base teórica que sustente sua práxis. Para superar tais impasses, apontam a teoria histórico-cultural da mente como uma ferramenta capaz de relacionar as condições materiais da vida cotidiana e o desenvolvimento do psiquismo.

A compreensão da consciência na perspectiva histórico-cultural apresenta interfaces que precisam ser aprofundadas, como sua relação com a afetividade e a emoção (LANE, 2006; SAWAIA 2004), a participação comunitária e desenvolvimento da conscientização (GÓIS, 2005; VIEIRA; XIMENES, 2008) e outras dimensões que façam avançar para uma ciência psicológica que “considere o processo de desenvolvimento das funções psicológicas superiores na prática comunitária, e não somente as questões sociais e econômicas analisadas em separado, nem as noções vagas sobre subjetividade, próprias de enfoques que desmaterializam o indivíduo” (GÓIS, 2005, p. 212).

Os fundamentos epistemológicos aqui apresentados fazem parte da práxis da Psicologia Comunitária, assumindo como base da sua ação política o compromisso social de transformação e de libertação do povo oprimido e explorado e a formação de sujeitos comunitários e autônomos. Nesse texto, buscou-se compreender a pessoa como um sujeito que se humaniza nas relações comunitárias, numa prática coletiva, com interação afetiva, pautada no diálogo problematizador e solidário, no desenvolvimento de uma consciência que conduz à libertação, que emerge da realidade histórica de um povo, buscando considerar para que e para quem servimos, pois sem essas reflexões corre-se o risco de preservar e corroborar essas relações que oprimem, subjugam e alienam.

Sendo as instituições religiosas, políticas, científicas, pedagógicas e jurídicas espaços de produção e reprodução de relações sociais que têm por base a lógica econômica, então questionamos: ao que serve essa ciência e a que interesses? Que fundamento a sustenta? A que classes sociais se alia? Essas questões formam crítica da Psicologia de Vygotski da época que ecoam, reverberam nas práticas atuais. Concluímos esse ensaio com as palavras do psicólogo bielo-russo:

“Em nossos tempos, o trabalho infantil representa um exemplo particularmente horrível da desfiguração do desenvolvimento psicológico humano. Na busca de trabalho barato, torna-se possível a simplificação extrema das funções que os trabalhadores têm de realizar e o recrutamento em larga escala de crianças; isso resulta em um desenvolvimento retardado ou completamente unilateral e distorcido que acontece na idade mais impressionável, quando a personalidade da pessoa que está sendo formada. A pesquisa clássica de Marx está cheia de exemplos de “esterilidade intelectual”, “física e intelectual”, “transformação de seres humanos imaturos em máquinas para a produção de mais-valia” [ibid., p. 421-2], e ele apresenta [ibid., p. 514] um retrato vívido de todo o processo que resulta em uma situação em que o trabalhador existe em função do processo de produção, e não o processo de produção para o bem do trabalhador “(VYGOTSKY, 1930/2004, p. 1).

 

Referências

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Endereço para correspondência

Maria Aparecida Alves Sobreira Carvalho
E-mail:apsobreira1@hotmail.com

Sicilia Maria Moreira de Araújo
E-mail:sicilia.moreira@gmail.com

Veronica Morais Ximenes
E-mail:vemorais@yahoo.com.br

Jesus Garcia Pascual
E-mail:garciapascual2001@yahoo.com.br

 

 

Recebido em: 30/05/2010
Aprovado em: 09/12/2010
Revisado em: 03/12/2010

 

 

1Utilizamos neste artigo três referências para o mesmo autor: Vygotski, Vygotsky e Vigotski. Faremos uso das três formas no intuito de estarmos coerentes com as denominações utilizadas nas publicações de referência para este trabalho.
2Nemo psychologus, nisi physiologus. Ninguém é psicólogo senão o fisiologista. Lema de Johannes Peter Müller (CARPINTERO, 2005, p.140).
3Assim, temos duas opções: ou este é realmente o caso, e é impossível estudar o comportamento humano e as formas complexas de atividade inter-humana, sem referência à mente humana, ou não é o caso, e a mente é um epifenômeno , um fenômeno secundário, e tudo pode ser explicado sem a mente, e assim chegaremos ao absurdo biológico. Não há uma terceira alternativa. (tradução dos autores).
4O acadêmico Bekhterev afirmou que o seu sistema de reflexologia não contradiz a hipótese da alma. Fenômenos subjetivos ou conscientes são descritos por ele como um fenômeno de segunda ordem, como fenômenos interiores específicos que acompanham reflexos combinatórios. O dualismo é reforçado pelo fato de que uma ciência especial, a reflexologia, subjetiva, é admitida como não apenas possível, mas inevitável no futuro. (tradução dos autores)
5Na verdade, o sentido em que usamos o termo "reflexo" se assemelha à história de Kannitfershtan, cujo nome um pobre estrangeiro ouviu na Holanda, como resposta a qualquer pergunta que fizesse: Quem eles estão enterrando? De quem é esta casa? Quem já passou por aqui? etc. Ele, ingenuamente, pensava que tudo naquele país havia sido feito por Kannitfershtan, ao passo que a palavra significava simplesmente que o holandês que ele encontrou não entendeu as suas perguntas. (tradução dos autores)
6Banindo a consciência da psicologia, ficamos presos em um absurdo biológico para sempre (VYGOTSKI, 1925/2000, p. 5). (tradução dos autores)
7As origens da experiência herdada foram descobertas por Darwin; o mecanismo em que essa experiência é multiplicada pela experiência pessoal é o reflexo condicionado, descoberto pelo acadêmico Pavlov (VYGOTSKY, 1925/2000, p.8).

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