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Arquivos Brasileiros de Psicologia

versão On-line ISSN 1809-5267

Arq. bras. psicol. vol.62 no.3 Rio de Janeiro  2010

 

ARTIGOS

 

Psicologia e saúde: interrogando práticas psicológicas

 

Psychology and health: inquiring psychological practices

 

 

Anita Guazzelli Bernardes

Docente. Programa de Mestrado em Psicologia. Universidade Católica Dom Bosco. Campo Grande. Mato Grosso do Sul. Brasil

 

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O artigo tem como objetivo discutir a relação entre Psicologia e saúde. Para tanto, considera como vetores de análise a experiência-limite do outro e as práticas psicológicas. Utiliza como campo de reflexão as contribuições do institucionalismo em interface com outras ferramentas conceituais: ética, política e estética. A problematização da relação entre Psicologia e saúde coloca em análise a submissão da saúde à doença, para em um segundo momento considerar que, ao tornar a saúde um analisador de práticas psicológicas, se cria um campo de imprevisibilidade técnica produzido por novos agenciamentos, uma experiência-limite do outro. Esses novos agenciamentos encontram-se em territórios existenciais forjados nos limites das possibilidades de acesso a condições de vida.

Palavras-chave: práticas psicológicas; saúde; analisador; análise institucional.


ABSTRACT

This article aims at discussing the relationship between Psychology and Health. In order to do so, it considers the limit experience of the other as well as the psychological practices as its analysis vectors. It uses the contributions by Institutionalism as its field of reflection, in an interface with other conceptual tools, such as: ethics, politics and aesthetics. Firstly, the problematization of the relationship between Psychology and Health has caused the analysis of the submission of health to illness; secondly, on turning health into an analyzer of psychological practices, a field of technical unpredictability is generated, produced by new agencies, a limit experience of the other. Those new agencies are found in existential territories formed in the limits of possibilities of access to livelihood.

Keywords: psychological practices; health; analyzer; institutional analysis.


 

 

Este texto tem como objetivo refletir sobre a relação entre Psicologia e saúde. A contemplação da temática – Psicologia e saúde – partirá do campo do institucionalismo, dentre outras ferramentas de análise, como modo de inscrição de uma problemática. Importa para esse exercício a reflexão sobre certa experiência-limite do outro, tomada aqui como saúde, e as formas constitutivas das práticas psicológicas. Esses dois vetores – experiência-limite do outro e práticas psicológicas – tornam-se, neste texto, o modo pelo qual será problematizada a temática Psicologia e saúde.

A proposta de considerar a saúde como uma experiência-limite do outro é possível quando a interrogamos por um ponto de vista, entre outros, da Análise Institucional. Essa interrogação apresenta, na realidade, um plano de bifurcação: uma linha leva a colocar a saúde em análise; a outra, a tomar a saúde como um analisador de práticas psicológicas. Isso conduz a um exercício do pensamento que não partirá da saúde como um objeto evidente no campo da Psicologia, e sim das condições mediante as quais a saúde emerge no campo psicológico, a um ponto tal que atualmente encontramos a formação de um estrato nomeado de Psicologia da Saúde e Psicologia Social da Saúde.

Cabe, então, considerar essas condições de emergência da saúde e a constituição de um estrato como uma certa formação histórica como acontecimentos no campo psicológico que produzem abalos, descontinuidades, rupturas, e não como um efeito do desenvolvimento das práticas psicológicas. A questão seria mais na direção do que a saúde tem a nos dizer sobre as práticas psicológicas do que o que as práticas psicológicas têm a dizer sobre saúde. Com isso, em um primeiro momento, a saúde será colocada em análise, para a partir disso a utilizarmos como um analisador das práticas psicológicas. Objetiva-se, com isso, percorrer a temática Psicologia e saúde por meio de campos de experiência: a experiência-limite do outro e a experiência do mesmo.

 

Dobras de um pensamento: saúde como conceito-problema

A Análise Institucional surge no Brasil a partir dos anos de 1970, tomando como referência o institucionalismo francês. Não se trata de uma teoria, mas de um campo complexo de conceitos, teorias e fundamentalmente da articulação da Academia com o campo ético-político. Nesse sentido, o objeto inicial da Análise Institucional é a instituição, entendendo-a como conjunto de códigos que organizam o tecido social. O tecido social seria composto por uma rede articulada de instituições. Para colocar em análise as instituições é necessário torná-las um conceito-problema, migrar do plano da evidência para o plano da interrogação sobre aquilo que se apresenta como autoevidente e autoexplicativo.

As instituições constituem-se por um jogo de forças permanentes que justamente as torna móveis e não fixas. A partir desses jogos de forças é que se produzem certas experiências, entendendo-as como a articulação de verdades, normas e formas de subjetivação. Os jogos de força são ações sobre ações possíveis, ou seja, são práticas, operações que tanto objetivam o instituído que fixa e conserva quanto o instituinte que transforma e inventa novas coordenadas. Dessa forma, as instituições constituem-se de forças instituídas e instituintes.

A potência de um conceito-problema reside justamente nas condições que oferece ao pensamento em termos de ideia-força, de ferramenta de interrogação que nos empurra a um campo de análise. Essa provocação à análise é possível mediante a movimentação de analisadores e estes se constituem como emergências dentro de uma instituição; não se trata de campos de exterioridade, mas daquilo que marcará a possibilidade de exterioridade, “claridade repentina que revela mais do que um sinal, uma dispersão mais do que um retorno dos signos sobre si mesmos” (FOUCAULT, 1990, p.14). Os analisadores são potências de interrogação que podem se constituir como conceitos, objetos, ações, afetos, em um determinado campo social.

Essa breve consideração é necessária para situar a saúde como conceito-problema, contudo, forjada como conceito-problema dentro do próprio campo que a constitui, que poderíamos nomear de “instituição saúde”. Por instituição saúde entende-se um conjunto de códigos produzidos que ordenam a linguagem, os esquemas perceptivos, os valores, as normas, as verdades, as técnicas e ordens empíricas da saúde. Esse conjunto heterogêneo consiste não em uma estrutura ontológica da saúde, mas em condições de possibilidade de um trânsito ao exterior que dão uma espessura, uma existência à saúde.

É possível considerar a saúde como uma instituição, na medida em que encontramos na atualidade não apenas organizações arquitetônicas voltadas para a saúde, mas um conjunto de práticas nomeadas de saúde nos mais diferentes âmbitos da sociedade em que vivemos. Tanto buscamos saúde em estabelecimentos, equipamentos, agentes quanto nos consideramos saudáveis de acordo com a incorporação de um conjunto de prescrições voltadas ao que se considera como qualidade de vida e bem-estar. A saúde torna-se uma condição ontológica; ser saudável torna-se um modo de subjetivação no contemporâneo que se constitui por um conjunto heterogêneo de formas de governo de si e do outro – “as instituições falam por intermédio deles (sujeitos)1, porque a têm, literalmente, sob a pele!” (LOURAU, 2004, p.55). Além disso, constitucionalmente, formulamos a saúde como um dever do Estado e um direito do cidadão. Cabe ao Estado promover, proteger e recuperar a saúde; cabe ao cidadão o direito de ter acesso a possibilidades de vida.

No que residiria, então, a problemática da saúde? Por que colocá-la em análise em um primeiro plano para depois considerá-la como um analisador?

 

Exercício ético-político: saúde em análise

Quanto à primeira questão, trata-se de um exercício ético-político: se objetivamos a saúde como uma instituição, cabe reconhecer que as instituições não são naturais, não são transcendentais, não são estruturas, são formações produzidas em um determinado tempo/espaço que, para além de forjarem valores, determinam quem somos. Esses valores e essas formas de subjetivação são construções sócio-históricas que circunscrevem territórios de vida, e a problemática da saúde encontra-se nesses mecanismos de circunscrição/definição que, ao se institucionalizarem, borram os procedimentos mediante os quais se tornaram possíveis. Nesse sentido, tornar a saúde uma problemática ético-política significa considerá-la como aquilo que pode e deve ser pensado no contemporâneo em razão da multiplicidade de enunciados que lhe dão forma, que lhe dão espessura2.

No campo da ética, a interrogação parte de como a saúde se torna uma condição ontológica, ou seja, como o sujeito transforma a si mesmo, em um constante processo de recriação, a partir de uma pragmática da construção de si. No solo da política, problematizar a saúde implica considerar as relações de força que se estabelecem mediante um conjunto de estratégias, de tecnologias de regulação da vida no desenrolar do viver (FOUCAULT, 2009). Uma discussão ético-política situa as tecnologias no campo da produção material, da produção semiótica, da produção do outro e da produção de si.

Por tecnologias de produção material, encontra-se o espaço em que se torna possível forjar, modificar e manipular objetos. As tecnologias semióticas constituem um campo de visibilidade e utilização de signos e sentidos. As tecnologias de produção do outro são aquelas que constituem formas de governo de indivíduos e coletivos, enquanto as tecnologias de si se voltam para as operações que os indivíduos dirigem para si mesmos, a fim de transformar ou ascender a certo estado ou forma de viver. Essas tecnologias permitem considerar as condições ontológicas como um jogo estratégico de produção de sujeitos e subjetividades. A saúde como uma das condições ontológicas no contemporâneo é possível em razão da produção de tecnologias que forjam aquilo que nos torna o que somos, a relação que estabelecemos conosco e com o outro, conosco e com o mundo. A saúde constitui tanto um conjunto de objetos manipuláveis (inclusive o corpo) quanto sentidos do ser saudável, formas de controle do que fazer, do que não fazer para ser saudável, quanto transformação da relação do sujeito consigo mesmo para se tornar saudável.

Essas tecnologias não operam separadamente, uma vez que é no conjunto dessas operações que se constituem as formas de governo que transformam subjetividades. Trata-se de olhar para os jogos que estabelecem um tipo de relação do sujeito consigo mesmo e do sujeito com o outro (FOUCAULT, 1998). A interrogação da saúde recairia, então, na reflexão de como nos tornamos sujeitos da saúde. Para isso, é necessário considerar a saúde como um campo de verdades e, a partir disso, voltar-se para o modo como a saúde nos interpela, como nos subjetiva; nas palavras de Lourau (2004a, p.70), “não se trata de interpretar neste primeiro nível, mas de decompor um corpo. Não se trata de construir um discurso explicativo, mas de trazer à luz os elementos que compõem um conjunto”.

A construção da saúde como uma instituição na contemporaneidade encontra suas condições de possibilidade na doença. Foi à medida que a doença, na modernidade, de acordo com Foucault (2003), se constituiu em um desafio que precisava ser respondido que se institucionalizaram formas e medidas de governo do fenômeno doença. É com base em uma episteme moderna que a objetivação da doença tornou possível a objetivação do seu inverso: a saúde. É mediante a institucionalização da doença que a saúde encontrou suas condições de possibilidade, para depois delas se afastar. Não se trata de determinar que ambas sempre se constituíram como um par, em uma lógica binária, mas de compreender que é no campo da ciência empírica moderna que a saúde se torna um correlato da doença, assumindo a posição de seu negativo. É na ausência da doença que podemos visibilizar a saúde, ou seja, o que deu espessura à saúde foi a própria doença.

Nesse caso, foi preciso percorrer o solo das doenças para compor um solo da saúde. Entende-se com isso que a doença se tornou condição para a saúde; foi no investimento na doença que acessamos as possibilidades de saúde. A saúde, dessa forma, não se caracterizou como campo de exterioridade à doença, mas como uma diferença interna do arranjo identitário da doença: doença e não-doença.

Essa racionalidade opera em um campo de inteligibilidade do mesmo, e não do outro, ou seja, o território forjado equaliza doença-saúde como oposições binárias – nesse caso, os valores da primeira organizam os valores da segunda. Desse modo, a saúde torna-se submissível à doença. O conceito de mesmo é utilizado como espaço de construção identitária/dicotômica, no qual os elementos são colocados um em relação ao outro em um jogo dialético, em que a síntese é a submissão de um elemento ao outro. O conceito de outro é apontado como possibilidade de alteridade, é “um terceiro que vem sempre de outra parte e atrapalha a binaridade de ambos, não se escrevendo nem em sua oposição nem em sua complementaridade” (DELEUZE e PARNET, 1998, p. 152). O mesmo e o outro, nessa perspectiva, passam a ser considerados como um tipo de experiência, como escrito anteriormente, que se conforma por um conjunto de verdades, normas e modos de subjetivação.

O arranjo da saúde como ausência de doença justifica todo o investimento na cura/prevenção/reabilitação de doenças para a obtenção da saúde. A finalidade passa a ser a saúde, porém os meios são a doença. Como finalidade, a saúde torna-se uma derivada, um correlato da doença. Os sentidos, os esquemas perceptivos, as normas, as técnicas e as ordens empíricas têm como condições de possibilidade a doença. É para não adoecermos que vivemos de forma saudável, é para retardar o adoecimento que investimos no saudável, é tratando o adoecimento que nos tornamos saudáveis. A doença cria essa exigência ótica da própria ausência de doença. Investir no saudável como tecnologia de evitamento, de afastamento da doença, forjará as condições de institucionalização da saúde, a produção de uma instituição saúde (LOURAU, 2004).

 

Novas coordenadas: institucionalização da saúde

A conformação da saúde como ausência de doença é condição de possibilidade para a emergência de práticas psicológicas. Ao considerar que é necessário se voltar para a doença para ascender à saúde, as práticas psicológicas começam a circunscrever um campo que não apenas lhes dá visibilidade, mas as torna uma tecnologia necessária para o bem viver. É em razão da doença, da anormalidade, das afecções e dos transtornos que as práticas psicológicas encontram sua justificativa.

Desse modo, a doença é tanto condição para as práticas psicológicas quanto um efeito dessas práticas, na medida em que estas, ao investirem na doença, não apenas reforçam como ainda alargam suas coordenadas existenciais: além de afecções orgânicas, teremos também afecções psicológicas. Trata-se de um conjunto de tecnologias que, ao objetivarem doença-saúde mediante técnicas de produção de realidade, criam formas de governo das populações que as registram em territórios de risco e investimentos, bem como abrem espaço para uma relação específica dos sujeitos consigo mesmos, a fim de se tornarem saudáveis ao evitar, afastar, tratar de afecções ou possíveis riscos de adoecer. O psicológico toma uma espessura tal em termos de produção de afecções que em princípio nunca escapamos das suas manifestações; é necessário não apenas curar, adequar, transformar, mas também prevenir. As práticas psicológicas previnem o sujeito da própria realidade psicológica que elas mesmas forjaram.

Volta-se, então, para aquilo que assinalado anteriormente: a experiência do mesmo. Em um domínio no qual a saúde é uma derivada negativa da doença e esta se conforma como uma taxionomia das imperfeições, afecções, anormalidades, disfunções, etc., o tipo de relação que se produz entre o sujeito e o outro é uma experiência do mesmo, de indiferença ao outro na sua condição de alteridade.

A doença é um domínio do mesmo, um domínio que equaliza existências, que as organiza de acordo com graus de similitude, correspondência, justaposição, submissão. A saúde, como negativo da doença, não é aquilo que difere, mas uma dimensão da própria doença, uma dimensão do mesmo. E o exercício de torná-la uma experiência do mesmo é produzido pelo conjunto de práticas/tecnologias voltadas para a cura, reabilitação e prevenção de doenças. Como escreve Galeano (2005, p.22):

“Os índios shuar, chamados de jíbaros, cortam a cabeça do vencido. Cortam e reduzem, até que caiba, encolhida, na mão do vencedor, para que o vencido não ressuscite. Mas o vencido não está totalmente vencido até que fechem a sua boca. Por isso os índios costuram seus lábios com uma fibra que não apodrece jamais”.

 

Desinventar objetos: saúde como analisador

A segunda questão – como a saúde torna-se um analisador das próprias práticas psicológicas – encaminha a um exercício não apenas ético-político, mas também estético. Barros (2008, p. 11) sugere como exercício do pensamento, como exercício para pensar diferente: “desinventar objetos. O pente, por exemplo. Dar ao pente funções de não pentear. Até que ele fique à disposição de ser uma begônia. Ou uma gravanha”. Desinventar a saúde é colocá-la em análise e deixá-la à disposição de outras possibilidades ontológicas, é tomá-la como um analisador. Isso significa não considerar a saúde um invariante fora de um campo histórico, mas desinventá-la como objeto de uma representação negativa da doença; como indica Lourau (2004, p.70), “passa-se, portanto, da noção de análise à de analisador”. O analisador é aquilo que, ao permitir a decomposição de um objeto, torna possível considerar não apenas as condições que o produzem em termos ontológicos, mas, sobretudo, a abertura para novas composições: fazer de um pente uma begônia.

Considerar a saúde como um analisador parte justamente da espessura cada vez mais densa que ela começa a ter. Uma espessura-positividade3 que engendra um espaço de distanciamento da doença e a forja como uma instituição. Esse distanciamento não é algo permanente; é algo que provoca uma relação de estranhamento entre saúde e doença, ou seja, a obviedade da saúde como ausência de doença torna-se um analisador de práticas que as colocavam numa relação binária, de adaptação e regulação. Condicionar saúde pela doença torna-se um vetor de submissão de formas de viver. Ao operar-se com o conceito de instituição, focaliza-se não apenas o que conforma a saúde como tal, que seria o nível do instituído – saúde como ausência de doença –, dos processos de institucionalização, mas o nível do que se nomeia instituinte – saúde como analisador. Uma instituição como a saúde, que se torna tal mediante a institucionalização de um sistema de regras, sentidos e valores que atuam e produzem subjetividades, também é fruto, justamente, de uma atividade instituinte. O caráter instituinte das instituições é possível quando elas se tornam analisadoras daquilo que elas mesmas produzem:

“Por instituinte entenderemos, ao mesmo tempo, a contestação, a capacidade de inovação e, em geral, a prática política como significante da prática social. No instituído colocaremos não só a ordem estabelecida, os valores, modos de representação e de organização considerados normais, como igualmente os procedimentos habituais de previsão (econômica, social e política)” (LOURAU, 2004, p.47).

Até aqui, poderíamos nos perguntar se era possível considerar a formação de uma instituição saúde, na medida em que o que a circunscrevia e lhe dava existência ótica era a doença. O que, no entender deste texto, torna possível pensar em uma instituição saúde encontra-se em alguns analisadores históricos quando estes são forjados como movimentos sociais, como forças instituintes, forças plásticas que acabam por criar novas instituições, novas racionalidades.

A partir da década de 1970, no Brasil, começa a ser organizado um processo reconhecido como reforma sanitária. A reforma sanitária constitui-se no campo da doença, porém tem como analisador a saúde, ou seja, é mediante o exercício de colocar a saúde como analisador que a reforma sanitária produz uma ruptura, uma descontinuidade em termos de negatividade da doença. A reforma sanitária apresenta a saúde com outros correlatos, mediante outros campos de saber que não apenas a biomedicina. A formação de saberes que passam a constituí-la compõe-se no campo da cidadania e do direito. Cidadania e direito, na correlação com a saúde, produzem uma região de visibilidade que conforma um território de suportes sociais para a vida, isso porque saúde se aproxima, agora, do direito a possibilidades de vida. Da ausência de doença, amplia-se para os condicionantes e determinantes de acesso à própria saúde, de acesso a possibilidades de vida: trabalho, habitação, alimentação, educação, lazer (BRASIL, 1990).

A reforma sanitária é uma luta política iniciada por movimentos sociais, comunidades de base e trabalhadores da saúde que objetivavam uma crítica ao modelo e organização das políticas e serviços de saúde. Emerge como resposta à precarização das condições de vida da população brasileira, bem como da crítica à hegemonia do modelo médico assistencial privatista, herdeiro de uma racionalidade biomédica. A reforma sanitária é um processo sócio-histórico que modifica as condições paradigmáticas e políticas do campo da saúde. Essas modificações provocam a autoevidência do modelo biomédico como organizador das formas de assistência à saúde dos indivíduos e coletivos, tributário da emergência da oferta de serviços que a Medicina passa a prestar ao Estado, na Europa, a partir da Revolução Industrial. O jogo que se estabelece é entre forças instituintes/inventivas da reforma sanitária e forças instituídas/conservadoras da racionalidade biomédica. O modelo biomédico tem como pressupostos:

“a ideia de que as doenças são objetos com existência autônoma. [...] o sistema diagnóstico é dirigido à identificação das doenças a partir da caracterização de suas lesões. [...] a terapêutica é hierarquizada segundo sua capacidade de atingir as causas últimas das doenças. [...] A própria definição de saúde, apesar de inúmeros esforços em contrário, é assumida como ausência de doenças“ (CAMARGO, 2005, p.181).

Quando saúde se torna condição de acesso a possibilidades de vida, não apenas se alarga o campo conceitual, mas, sobretudo, engendra-se a necessidade de outro conjunto de práticas voltadas para esse alargamento que a relaciona aos aspectos econômicos, sociais, culturais. São práticas que se conformam mediante o condicionante cuidado, e não apenas técnico (GUIZARDI e PINHEIRO, 2006) – o cuidado com a vida como dimensão ético-política. O cuidado como dimensão heteromorfa de relação com o outro difere da técnica justamente porque implica potenciais de abertura para a diferença. A técnica pressupõe uma relação de antecipação, de evidência, de territórios pre-estabelecidos. O cuidado reclama por algo que é da ordem das formas de viver, e não da vida apenas como fato.

Equalizar direito à saúde como um direito à vida não se reduz à vida como fato, mas à vida como forma, pois o direito reside nas condições para viver, e não apenas sobreviver. As formas de vida desestabilizam a formulação da saúde como ausência de doença, na medida em que não se esgotam nessa possibilidade. A diversidade das formas de viver lança-nos para a experiência de uma linguagem do outro, um murmúrio, um vestígio que se manifesta muitas vezes transgressivamente (MACHADO, 2001). As condições de acesso a possibilidades de vida criam um campo de visibilidade a modos de existência que, no jogo binário saúde-doença, eram abafados, silenciados. As formas de viver, permanentemente, forjam novas condições de possibilidades de vida, tornam-se uma força plástica, uma performatividade de exercícios de diferença.

Essa força plástica é condição para devir. Devir é o mínimo, não o começo, não a origem, mas o eterno retorno da intensidade do vir a ser, de novos valores, um exercício possível quando tomamos essa reflexão como modo de afirmação da vida (NIETZSCHE, 1885/1998). Equalizar saúde como um direito à vida torna-se um vetor de afirmação, e não de negação da saúde. Não são mais valores superiores, transcendentais, tal como a necessidade de não-doença, mesmo que isso tenha como desencadeante um vetor jurídico de promoção, proteção e recuperação da saúde (BRASIL, 1990). O critério mínimo, agora, é a própria vida na sua qualidade de potência, de força instituinte, em seu sentido afirmativo de possibilidades de vir a ser. Não se trata de valores superiores e dos princípios dos quais dependem que julgam a vida, e sim dos valores da vida que clamam por novos princípios. Não é mais o que é saúde, mas que possibilidades de vida se afirmam com a saúde. A espessura-positividade da saúde reside justamente na atividade instituinte que insiste na afirmação da vida:

“Permite o acesso a modos de pensar numerosos e contrários – até a amplidão e refinamento interior que vem da abundância, que exclui o perigo de que o espírito porventura se perca e se apaixone pelos próprios caminhos e fique inebriado em algum canto; até o excesso de forças plásticas, curativas, reconstrutoras e restauradoras, que é precisamente a marca da grande saúde, o excesso que dá ao espírito livre o perigoso privilégio de poder viver por experiência e oferecer-se à aventura” (NIETZSCHE, 1886/2000, p.11).

Nesse sentido, tanto se conforma uma instituição saúde – inebriar-se em algum canto – quanto se transforma a própria instituição saúde a partir daquilo mesmo que ela produz – excesso de forças plásticas/instituintes que engendram um campo de visibilidade para as possibilidades do viver. A espessura-positividade da saúde como possibilidade de vida, como perigoso privilégio de viver por experiência e aventurar-se, torna-a mais um vetor de subjetivação, entre outros, do que uma finalidade, como no caso da ausência de doença. Vetor de subjetivação como campo de produção de territórios existenciais não apenas homogeneizantes – estar ou não saudável –, mas de invenção de novas formas de viver.

Por que saúde como analisador? Justamente porque, ao aproximar-se saúde de formas de viver, de condições de acesso a possibilidades de vida, e não apenas saúde como ausência de doença, se encontra um campo de experiência dotado de capacidades de resistência, de dotar um espírito livre de experiência e aventura. Resistência como práticas de liberdade, de acordo com Foucault (2004), como enfrentamento tornado possível pela abundância da afirmação da vida que impede o aprisionamento inebriante de um “canto”. As práticas de liberdade permitem um tensionamento dos códigos morais, que estabelecem as condições a priori da “boa saúde”, para uma potencialização da própria vida como obra de arte, como uma estética da existência: “um esforço para afirmar a própria liberdade e dar a sua própria vida uma certa forma” (FOUCAULT, 2004, p. 290). Resistência aos contornos estabelecidos à saúde pela doença, resistência como “alternativa às estratégias do poder disciplinar e do biopoder – subjetividade como decisão ético-estética, como cuidado de si, e não como objeto de um poder des-cuidante” (ORTEGA, 1999, p. 23). Saúde como um analisador que cria espaços, interstícios, com capacidade de produzir tanto necessidades individuais quanto objetivos coletivos.

As práticas de liberdade, provocadas por um analisador, tornam possível uma estilização da existência, na medida em que operam processos de recriação de si. A saúde como ausência de doença produz uma adaptação-regulação de si ou, como nas ideias de Nietzsche (1885/1998), constituem-se como forças reativas. A saúde como analisador interroga a adaptação-regulação, migrando do campo da moral para o campo da ética. A ética, como a considera Foucault (2004a), lança para uma nova economia da relação consigo e com o outro. Ética como pragmática da construção e reinvenção de si, necessariamente considerando a relação com o outro. Nesse caso, ao aproximarem-se ética e analisador saúde, torna-se possível pensar a afirmação da vida como pressuposto da relação consigo e com o outro. O que se quer apontar com isso é o fato de que saúde como analisador faz da ética o condicionante das formas de cuidado, pois não se trata de valores morais, mas de valores da vida, e esses valores constituem-se no território de cuidado entre si e o outro. Esse território, sempre em vias de se desfazer, já que não é da ordem da moral, e sim da ética, é um espaço, por excelência, estético. Estético na medida em que opera com forças plásticas de invenção de formas de viver, de uma existência artista: “devem-se entender, com isso, práticas refletidas e voluntárias através das quais os homens não somente se fixam regras de conduta como também procuram se transformar, modificar-se em seu ser singular e fazer de sua vida uma obra que seja portadora de certos valores estéticos e responda a certos critérios de estilo” (FOUCAULT, 1998, p. 18).

A saúde como ausência de doença individualiza as existências; a saúde como analisador de possibilidades de vida coletiviza experiências. As possibilidades de vida não se inscrevem em uma ordem individual, apesar de serem experimentadas individualmente, trazendo permanentemente a condição de relação com uma alteridade. A saúde torna-se um vestígio de uma vida possível de ser vivida coletivamente. Isso não significa inscrever a saúde no mesmo campo de regulação moral da doença, não significa trocar apenas de vetor, mas pensar diferentemente em razão da pluralidade da afirmação da vida como estética da existência e modo de cuidado ético consigo e com o outro. Significa operar em um campo rizomático de ações distribuídas sem localizações específicas, sem um ponto difusor, como no caso da doença. São ações que fazem fazer, ações/potências de singularização e des-subjetivação.

 

Experiência-limite do outro: saúde interroga as práticas psicológicas

Como vestígio de possibilidades do viver, a saúde interroga as práticas psicológicas. Interroga à medida que as práticas do tipo psicológico, conjuntamente com práticas educativas e médicas, na modernidade, solaparam a importância e a autonomia que a estética da existência apresentou em outros tempos-espaços sociais, ou seja, tornaram-se práticas disciplinares, e não modos de constituição de si mediante práticas de liberdade. As práticas psicológicas, ao colarem-se em um território da moral, das regras de conduta, quando se integram ao campo da doença no século XX, acabam por afastar-se do cuidado ético e potencializar a regulação/intervenção moral. A doença torna possível que as práticas psicológicas ascendam ao estatuto de ciência, torna-se um indicador epistemológico que conformará um discurso psicológico.

O indicador epistemológico doença tornou-se, para as práticas psicológicas, uma linha mestra: todos os caminhos dele saíam e para ele retornavam, como no percurso de Ulisses na Odisseia. A expansão cada vez maior de taxionomias, reformatórios e ressocializações psíquicas traçou coordenadas que aplainaram subjetividades. Os relevos, os desvios, os abismos conformam-se, então, não como produções do viver, mas como efeitos/impactos/sintomas da doença. As veredas existenciais são diagramatizadas, estratificadas, planificadas, “como se essas marcas tivessem um valor em si e sua evidência pudesse apagar os contextos muito particulares que as produziram como acontecimento e, pois, como produções de sentidos” (LOBO, 2008, p. 21).

O que fazer quando as práticas psicológicas não dispõem do arsenal técnico da doença? Que visibilidade, que realidade se apresenta para as práticas psicológicas quando a doença deixa de ser seu meio/finalidade?

Importa aqui a colocação inicial da saúde como uma experiência-limite do outro, ou seja, a saúde como uma condição que leva as práticas psicológicas à dimensão de sua alteridade, uma dimensão-limite, na medida em que não apresenta um campo apreensível em termos do mesmo. A experiência-limite é considerada como linha feiticeira segundo Deleuze (1992). A linha feiticeira é aquela que nos leva ao limite por seu caráter de força afirmativa, instituinte e inventiva. O caráter inventivo reside na sua condição de abertura para o inédito, para o aventurar-se em um território do desconhecido. O limite é o ponto de encontro com o novo na sua condição de alteridade, ou seja, sem ainda uma ontologia que o organize e o decifre. Uma dimensão que transforma as próprias coordenadas da existência e justificativa de práticas psicológicas, uma vez que o visível não necessariamente é passível de apreensão, é um vestígio fugaz, porém como potência – aliás, talvez seja pura potência sem forma. Essa potência produz um tipo de experiência-limite, limite que nos leva à morte, à loucura ou à criação (DELEUZE, 1992). A potência des-homogeneíza, a potência do viver faz variar as formas, cria linhas de fuga; a potência implica o diferir, e o diferir é possível apenas na dimensão da relação com o outro. Quando a saúde assume essa espessura de uma alteridade, não cabe às práticas psicológicas inscrevê-la em uma dimensão ontológica, e sim tomá-la como uma linha que auxilia a olhar outramente:

“Diego não conhecia o mar. O pai, Santiago Kovadloff, levou-o para que descobrisse o mar. Viajaram para o Sul. Ele, o mar, estava do outro lado das dunas altas, esperando. Quando o menino e o pai enfim alcançaram aquelas alturas de areia, depois de muito caminhar, o mar estava na frente de seus olhos. E foi tanta a imensidão do mar, e tanto o seu fulgor, que o menino ficou mudo de beleza. E quando finalmente conseguiu falar, tremendo, gaguejando, pediu ao pai: – Me ajuda a olhar!” (GALEANO, 2005, p. 15).

Tomar a saúde como coordenada não significa objetivá-la como um novo absoluto, como padrão de condutas, como um fim em si mesmo que captura qualquer atividade, seja ela lúdica, seja religiosa, esportiva, laborativa, etc. e que a torna uma prática de saúde, como em uma racionalidade do Healthism (ORTEGA, 2008). Pelo contrário, saúde como analisador de práticas psicológicas as aproxima de uma abertura, da possibilidade de uma ética de si, um disparador de diferença, de singularização, um faz fazer outramente que não intermedeia, mas provoca. Nesse caso, a instituição saúde produziu um problema para si própria, forjou um analisador que a coloca perenemente como transitória, tem sempre algo que escapa; isso que escapa é a experiência-limite do outro, é a necessidade que se cria de o outro nos ajudar a olhar.

Operar com uma experiência-limite do outro empurra as práticas psicológicas para um distanciamento do campo que as tornou possíveis – a doença. Nesse caso, é a saúde, a experiência-limite do outro, que tem algo a dizer às práticas psicológicas. As coordenadas, agora, não vêm da doença, mas do limite entre a vida e o viver, entre a vida e as possibilidades de viver.

A Psicologia, ao objetivar a Saúde, forja um campo de imprevisibilidade técnica quando esta se constitui por novos agenciamentos. Esses novos agenciamentos não se encontram no campo da ciência especificamente; encontram-se em territórios existenciais forjados nos limites das possibilidades de acesso a condições de vida. A imprevisibilidade reside justamente nas experiências, mas não de estar vivo, e sim de insistir em viver. Essa insistência do viver constitui modos de cuidados de si e do outro como exigência de decisões ético-estéticas. Um cuidado que tem no outro, na alteridade, o fio condutor de qualquer prática.

 

Referências

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Endereço para correspondência

Anita Guazzelli Bernardes
E-mail:anitabernardes@ig.com.br

 

 

Recebido em: 30/08/2010
Aprovado em: 12/12/2010
Revisado em: 10/12/2010

 

 

1Grifo nosso.
2Por espessura entende-se a construção de um plano de visibilidade e enunciação que torna possível um objeto ser visto e falado.
3Espessura-positividade é considerada como invenção de um novo território de visibilidades e enunciações com potência de diferenciação e não de submissão ao mesmo.

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