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Arquivos Brasileiros de Psicologia
versão On-line ISSN 1809-5267
Arq. bras. psicol. vol.67 no.2 Rio de Janeiro 2015
ARTIGOS
Encontros sinistros: uma análise do filme Cisne negro
Uncanny Encounters: An Analysis of the film Black Swan
Encuentros siniestros: un análisis de la película Cisne negro
Amadeu de Oliveira WeinmannI; Verônica da Silva EzequielII
IDocente. Programa de Pós-Graduação em Psicanálise: Clínica e Cultura. Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Porto Alegre. Rio Grande do Sul. Brasil
IIGraduada em Psicologia. Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Porto Alegre. Rio Grande do Sul. Brasil
RESUMO
O artigo propõe-se a pensar o que torna sinistros os encontros com o duplo, no filme Cisne negro. Com esse fim em vista, realiza uma revisão na teoria psicanalítica sobre o caráter unheimlich do doppelgänger. No que concerne à película analisada, o trabalho promove uma leitura intertextual das obras que a inspiram e expõe algumas possibilidades de interpretação psicanalítica desse filme. A partir dessas reflexões, procedemos à decomposição plano a plano de duas cenas de Cisne negro. De tal intervenção metodológica, decorre nossa hipótese de que, nas cenas analisadas, a unidade imaginária do espectador é ameaçada pela irrupção de uma das pulsões parciais constitutivas do estádio do espelho: olhar ou voz. Ademais, nessas cenas o real do olhar materno invade o olhar narrativo da câmera, tornando-as profundamente perturbadoras.
Palavras-chave: Psicanálise; Cinema; Duplo; Sinistro; Cisne negro.
ABSTRACT
The purpose of this article is to reflect upon what makes the encounters with doubles so uncanny in the film Black Swan. With that in mind, we revise psychoanalytic theory regarding the unheimlich character of doppelgängers. The study performs an intertextual reading of the works that inspired the film and exposes some possibilities of psychoanalytical interpretation. Considering these reflections, we proceed to a shot-by-shot breakdown of two scenes of Black Swan. Starting from this methodological intervention follows our hypothesis that, in the analyzed scenes, the irruption of one of the partial drives of Lacan's mirror stage - gaze or voice - threatens the imaginary unit of the viewer. Additionally, in such scenes the reality of the maternal gaze invades the narrative look of the camera, making them deeply disturbing.
Keywords: Psychoanalysis; Film; Doppelgänger; Uncanny; Black Swan.
RESUMEN
El artículo se propone pensar lo que torna siniestros los encuentros con el doble, en la película Cisne negro. Con este fin, realiza una revisión en la teoría psicoanalítica respecto al carácter unheimlich del doppelgänger. En cuanto a la película analizada, el trabajo promueve una lectura intertextual de las obras que la inspiran y expone algunas posibilidades de su interpretación psicoanalítica. A partir de estas reflexiones, procedemos a la descomposición plan a plan de dos escenas de Cisne negro. De tal intervención metodológica, sucede nuestra hipótesis de que, en las escenas analizadas, la unidad imaginaria del espectador se ve amenazada por una explosión de impulsos parciales constitutivos del estadio del espejo: mirada y voz. Además, en estas escenas lo real de la mirada materna invade la mirada narrativa de la cámara, tornándolas sumamente perturbadoras.
Palabras clave: Psicoanálisis; Cine; Doble; Siniestro; Cisne negro.
Introdução
Cisne negro (2010), de Darren Aronofsky, é um filme perturbador. Ele nos põe a pensar, em psicanálise. Neste artigo, o inserimos na longa tradição de produções culturais que versam sobre o fenômeno do doppelgänger - em alemão: aquele que caminha ao lado, companheiro de estrada (Santos, 2009). Mais precisamente, interrogamos: o que torna sinistros os encontros com o duplo, em Cisne negro? Nesse sentido, este trabalho filia-se às pesquisas psicanalíticas sobre o duplo, que têm em O duplo, de Otto Rank (1914/2013), em O estranho, de Freud (1919/1996), e nas elaborações de Jacques Lacan acerca do estádio do espelho e do modelo óptico seus marcos conceituais mais importantes. No entanto, nossa análise percorre uma perspectiva pouco usual. A fim de delinear uma hipótese acerca do que torna perturbadores os encontros com o duplo, em Cisne negro, procedemos à decomposição plano a plano de dois fragmentos dessa película. Tal abordagem metodológica filia-se à tradição da análise fílmica, tal como instaurada por Raymond Bellour (2000).
A pesquisa psicanalítica do cinema necessariamente envolve uma teoria da pulsão escópica. Nesse sentido, este artigo inspira-se em Quinet (2002): "a psicanálise nos ensina que o campo visual está compreendido nos três registros destacados por Lacan: o imaginário do espelho, o simbólico da perspectiva e o real da topologia, em que se inclui a relação do sujeito ao objeto olhar" (p. 11). Na análise que realizamos de Cisne negro, consideramos o olhar da câmera como o condutor da narrativa, a tela como o espelho a que se aliena o espectador e o olhar, causa do desejo cinemofílico, como operando fora do campo visual. A partir da decomposição plano a plano das duas cenas selecionadas, postulamos que os encontros com o duplo, em Cisne negro, são inquietantes porque, nos momentos em que a protagonista Nina Sayers (Natalie Portman) alucina, o olhar da câmera é invadido pelo olhar materno.
Por que o duplo perturba?
Em O duplo - primeiro estudo psicanalítico sobre o tema -, Otto Rank (1914/2013) adota como ponto de partida de sua reflexão o filme O estudante de Praga (1913), dirigido por Stellan Rye e com roteiro do escritor de contos de horror Hanns Heinz Ewers. Em contraponto a Freud, que considera impossível pôr em imagens as abstrações da psicanálise (Rivera, 2008), o autor realça as afinidades entre a linguagem pictórica do cinema e a dinâmica dos sonhos. A partir da análise dessa obra, Rank faz uma extensa revisão da presença do tema do duplo - sob a forma do sósia, da sombra, da imagem no espelho, do reflexo n'água, do retrato etc. - não apenas na literatura fantástica do século XIX, mas também no folclore, na mitologia e na etnografia. Sua hipótese é a de que a duplicação do eu consiste, inicialmente, em um modo narcísico de desmentir a finitude. Porém, invariavelmente o duplo converte-se em um inquietante mensageiro da morte.
Em O estranho, Freud (1919/1984a) interroga-se acerca do que produz efeitos inquietantes, perturbadores, sinistros, nas artes. A partir de uma análise etimológica, o autor sugere que o termo alemão heimlich desdobra-se em duas acepções. Por um lado, refere-se ao que é familiar, doméstico, confiável, ou seja, ao que oferece segurança. Por outro, ao que é oculto, secreto, clandestino, isto é, escondido de olhares estrangeiros. Tais acepções, ainda que não se sobreponham, enlaçam-se em torno do universo do lar. Porém, a forma negativa unheimlich - dissimulado, suspeito, tenebroso, espectral - contradiz apenas a primeira acepção, mantendo estranhos parentescos com a segunda. Inspirado em Schelling, Freud propõe: "[...] sinistro é algo que, destinado a permanecer oculto, vem à luz"1 (p. 241). Neste artigo, optamos por explorar distintas possibilidades de tradução do conceito freudiano unheimlich: estranho, inquietante, perturbador, sinistro, dentre outras. Entretanto, nos momentos cruciais do trabalho utilizamos o vocábulo sinistro, por parecer-nos o que melhor evoca os efeitos do encontro com o duplo, em Cisne negro. Em outros momentos, preservamos o original alemão unheimlich. Para o título do artigo de Freud, adotamos a tradução proposta pela Imago, por ser a consagrada no Brasil.
Nesse sentido, o que torna o duplo unheimlich? Em sintonia com Rank, Freud (1919/1984a) vincula o duplo à preservação do eu: "[...] o duplo foi, em sua origem, uma segurança contra o sepultamento do eu, uma 'enérgica denegação do poder da morte' [...], e é provável que a alma 'imortal' tenha sido o primeiro duplo do corpo"2 (p. 235). Mais precisamente, o fundador da psicanálise o associa à onipotência narcísica infantil. Entretanto, tal modalidade de organização psíquica tende a ser superada por meio da constituição de uma instância crítica que, no próprio ato de duplicar o eu, limita-o. Nessas circunstâncias, "[...] muda o signo do duplo: de um assegurador da sobrevivência do eu passa a ser um sinistro anunciador da morte"3 (p. 235). Dito de outro modo, o duplo perturba porque, mediante sua aparição, o que estava destinado a permanecer oculto - o temor do aniquilamento do eu - devém consciente.
A partir da análise de distintos eventos - a insistente repetição de algo, a imediata realização de desejos, a confirmação de pressentimentos, a inesperada visão de um cadáver, dentre outros -, o autor sugere que a irrupção de modos animistas de pensar produz efeitos de inquietação, no sujeito moderno. Ademais, cenas que evocam fantasias recalcadas não podem afetá-lo de outro modo. Quando no pensamento orientado pelo exame de realidade se infiltram processos inconscientes, um sujeito se perturba. Nas palavras de Freud (1919/1984a): "[...] o sinistro é o outrora doméstico, o familiar de antigamente. Nesse sentido, o prefixo 'un' da palavra unheimlich é a marca do recalcamento"4 (p. 244). Contudo, o psicanalista propõe que as condições de produção de efeitos unheimlich na ficção, sobretudo no que concerne à indução da onipotência de pensamento, dependem do universo narrativo construído. Se uma premissa realista é assumida de partida e subitamente contrariada, ou se a tensão entre o realismo e o fantástico é sustentada ao longo da obra, ou ainda se somos incitados a identificarmo-nos com determinado personagem, não raro experimentamos encontros sinistros.
Em O estádio do espelho como formador da função do eu, Lacan (1998a) realça o fascínio do infans diante desse duplo originário, que é sua imagem especular. Para o psicanalista, esse processo é constitutivo. A identificação à imagem de si oferecida pelo Outro primordial, na medida em que não prescinde de palavras - tu és isso! -, consiste na matriz simbólica de um sujeito, em um momento em que ele ainda é não falante. Ademais, em um ser mergulhado na incoordenação motora, tal identificação antecipa uma unidade corporal.
É a esse duplo especular que o eu se encontra irremediavelmente alienado. Tal alienação é particularmente notável nos delírios de observação dos paranoicos e nos fenômenos do transitivismo infantil. Porém, essa construção imaginária é ameaçada em distintas frentes. Por um lado, a irrupção do eu como outro - o duplo - evoca a alienação primordial de um sujeito a uma imagem especular. Por outro, a dissolução da unidade corporal esboçada no estádio do espelho remete à experiência do corpo despedaçado:
Esse corpo despedaçado [...] mostra-se regularmente nos sonhos, quando o movimento da análise toca num certo nível de desintegração agressiva do indivíduo. Ele aparece [...] sob a forma de membros disjuntos e de órgãos representados em exoscopia, que criam asas e se armam para perseguições intestinas como as perenemente fixadas, através da pintura, pelo visionário Hieronymus Bosch [...] (Lacan, 1998a, p. 100).
Se o duplo e o corpo fragmentado são profundamente perturbadores, é porque aludem a algo que nos é muito familiar: a unidade do eu é um engodo.
No seminário Os escritos técnicos de Freud, de 1953-54, Lacan (2009) lança mão do experimento do buquê invertido, de Bouasse, a fim de propor uma tópica do imaginário. Nesse experimento óptico, um buquê é colocado no centro geométrico de um espelho côncavo. Imediatamente abaixo dele, é colocado um vaso invertido (Lacan inverte as posições do experimento de Bouasse) em uma caixa com a face para o espelho aberta. Nessas posições, a imagem real do vaso aparece contendo o buquê real, para um observador situado em determinado ponto do campo visual. Lacan adota esse experimento como modelo para pensar a constituição primordial do eu. Se as flores consistem em uma metáfora do isso, a imagem real do vaso é comparável à unidade imaginária do corpo, que contém os impulsos do isso - e o corpo real é inacessível ao sujeito. Além disso, a posição no campo visual, que permite ao sujeito enquadrar o enlace entre imaginário e real, outra não é senão sua filiação simbólica.
A fim de desdobrar sua tópica do imaginário, Lacan (2009) coloca um espelho plano diante do espelho côncavo, com o buquê e o vaso entre ambos. Ademais, muda a posição do observador. Em vez de situar-se em frente ao espelho côncavo, no quadrante superior do campo visual, agora ele se coloca ao lado do espelho côncavo, do ponto de vista de sua borda superior, mirando o espelho plano. Nessa perspectiva, o observador vê formar-se, atrás do espelho plano, a imagem virtual do buquê de flores contido pela imagem real do vaso. Se a imagem do vaso envolvendo as flores alude ao eu ideal (imagem de si pré-formada no Outro primordial), o espelho plano permite - ou não, dependendo do jogo de posições entre ele e o observador - visualizar não apenas esse duplo da imagem do vaso com o buquê de flores, que é sua imagem virtual, mas também a imagem virtual do observador. Nesse sentido, ele evoca o ideal do eu, isto é, a identificação ao Outro em sua dimensão simbólica: "o ideal do eu comanda o jogo de relações de que depende toda a relação a outrem. E dessa relação a outrem depende o caráter mais ou menos satisfatório da estruturação imaginária" (Lacan, 2009, p. 187).
Em Observação sobre o relatório de Daniel Lagache, de 1960, Lacan (1998b) retoma esse modelo. Nesse esquema, o sujeito (S) só tem acesso ao conjunto buquê real e imagem real do vaso [i(a)] por meio de sua imagem virtual [i'(a)]. Esse é o registro da especularidade, isto é, do eu ideal. Ele se sustenta no fato de que S também tem sua imagem virtual (S') no espaço - dito imaginário, em óptica - que se forma atrás do espelho plano (A). Porém, se uma linha ortogonal a A parte de S, passa sobre a borda superior de A e atinge S' no espaço de reflexão do espelho côncavo, o sujeito não vê sua imagem virtual, mas um ponto ideal (I). Esse é o registro do ideal do eu, que articula em A - o Outro simbólico - as funções imaginárias. É nesse lugar que se situa quem testemunha o júbilo do infans diante do espelho e diz: sim, esta é tua imagem! No entanto, esse esquema tem um limite: "[...] nosso modelo não torna mais clara a posição do objeto a. Pois, por dar imagem a um jogo de imagens, ele não pode descrever a função que esse objeto recebe do simbólico" (p. 689).
No seminário A angústia, de 1962-63, Lacan (2005) formaliza o lugar do objeto a nesse modelo. O investimento libidinal da imagem especular nunca é total. Há sempre um resto, que não aparece no imaginário. A isso que falta na imagem desejada, por efeito da castração, Lacan escreve menos-phi. Trata-se do falo como o significante da falta de a. Dito isso, o psicanalista grafa menos-phi em dois pontos de seu modelo: sobre [i'(a)] e sob o vaso real. No que concerne à primeira notação, Lacan observa:
O que o homem tem diante de si nunca é senão a imagem virtual, i'(a), do que representei em meu esquema por i(a). O que a ilusão do espelho esférico produz à esquerda [...], sob a forma de uma imagem real, é algo de que o homem tem apenas a imagem virtual, à direita, sem nada no gargalo do vaso. O a, suporte do desejo na fantasia, não é visível naquilo que constitui para o homem a imagem de seu desejo (p. 51).
Se o buquê de flores real consiste no objeto causa do desejo de S - Lacan grafa a sobre ele -, na Outra cena, que se delineia do lado direito do modelo, o sujeito tem a ilusão de encontrá-lo. É precisamente no momento em que se extingue o desejo que irrompe a angústia: "a angústia surge quando um mecanismo faz aparecer alguma coisa no lugar que chamarei [...] (- φ)" (p. 51). Entende-se por que o autor marca o vaso real com menos-phi. O objeto a é isso que excita o corpo, mas não entra no imaginário. Unheimlich é a aparição de algo - o duplo, por exemplo - no gargalo do vaso.
Fontes
No making of do filme, Aronofsky (2010) comenta que duas obras inspiram a concepção de Cisne negro: o balé O lago dos cisnes (1876), de Tchaikovsky, e o romance O duplo, de Dostoiévski (1846/2013). O lago dos cisnes narra a história do príncipe Siegfried e da princesa Odette, jovem enfeitiçada pelo bruxo Rothbart e destinada a transformar-se em cisne durante o dia, até encontrar um homem que lhe jure amor eterno (Carvalho & Vieira, 2012). Na véspera de seu aniversário, Siegfried vê Odette na margem do lago e, encantado com sua beleza, a convida para sua festa. Porém, quem aparece no baile é Rothbart e sua filha Odille, metamorfoseada de Odette. Siegfried declara-lhe seu amor, mas, ao descobrir a farsa, corre para o lago, a fim de pedir perdão a Odette. No momento em que o feitiço se desfaz, Rothbart provoca uma tempestade no lago, afogando o rapaz. Desesperada, a jovem atira-se de um penhasco.
Em O duplo - obra que Rank (1914/2013) entende ser a mais instigante representante do gênero e que Dostoiévski (1846/2013) considera sua mais importante contribuição à literatura, em função dos experimentos formais que conferem ao romance seu caráter perturbador -, Golyádkin (nome russo que significa completamente nu e alude à pobreza) é um medíocre funcionário público de São Petersburgo, atormentado pelo contraste entre a imagem nobre que tem de si e o desprezo que lhe destinam seus colegas de ofício. Após ser retirado da festa de um alto dignitário da chancelaria onde trabalha, pois não fora convidado, o protagonista cruza na rua com um homem em tudo igual a si, inclusive no nome. Inicialmente perplexo, Golyádkin I procura tornar Golyádkin II seu cúmplice. No entanto, o duplo emprega-se em sua repartição e conquista a admiração dos colegas. Gradativamente, vemos florescer no protagonista algo como um delírio persecutório, que culmina em um colapso psíquico.
Carvalho e Vieira (2012) propõem uma interessante leitura das relações intertextuais entre o filme e as obras que o inspiram. Embora a referência ao balé O lago dos cisnes seja explícita - tanto no título da película quanto em sua narrativa, que consiste em uma nova montagem do espetáculo clássico -, as autoras sugerem que o problema crucial de Cisne negro é a tensão psíquica decorrente da duplicação de si, extraída de O duplo. Para essas pesquisadoras da literatura, a história de O lago dos cisnes remonta à Antiguidade e relança o mito da noiva animal. Em tal mitologia, uma mulher aprisionada por feitiço a um corpo animal necessita do amor de um homem para libertar-se. Em contrapartida, o que Cisne negro retira de O lago dos cisnes é a cisão entre a inocente Odette e a sensual e maligna Odille, a qual é incorporada por Nina. Nesse sentido, o drama da protagonista do filme é análogo ao de Golyádkin, isto é, seu colapso psíquico decorre de sua impossibilidade de integrar o outro de si.
Comentários
Cisne negro parece perturbar psicanalistas, que se põem a escrever. A partir de distintas perspectivas teóricas e adotando como viés de análise diferentes problemáticas - os impasses da relação mãe e filha, a crise adolescente, o desencadeamento de uma psicose, o tema do duplo, dentre outras -, tais autores revisitam a teoria psicanalítica, a fim de pensar o que há de estranhamente familiar nessa película. Nesta seção, abordamos algumas dessas análises, que nos parecem paradigmáticas, com o intuito de expor as especificidades deste trabalho.
Zalcberg (2011) põe em relevo os efeitos devastadores que uma mãe pode produzir na passagem da filha de menina a mulher. De acordo com a autora, Erica Sayers (Barbara Hershey) projeta sobre Nina - nome que alude a niña, menina em espanhol - seus anseios narcísicos de bailarina frustrada. Ela mantém a protagonista cativa em uma infância eternizada. Se, no processo de invenção de uma feminilidade singular, a menina mira no espelho materno, o que Erica devolve à filha é o repúdio ao encontro sexual. Nina é fruto de uma gravidez indesejada, e Erica atribui a esse fato a responsabilidade por ter interrompido sua carreira. Ao ser incitada a seduzir - condição para assumir o papel de cisne negro -, Nina cai no vazio, isto é, em sua passagem de menina a mulher ela encontra o nada.
Luz (2011) também enfoca a relação mãe e filha. Porém, a articula ao tema do duplo. Para essa psicanalista, a posição subjetiva de Nina é a de inteiramente alienada à demanda materna. Em tal posição, o eu nada mais é do que uma fina superfície, que reflete as expectativas do Outro materno. Nessa perspectiva, o duplo "[...] não é o outro que me duplica, sou eu que sou o duplo do outro" (p. 183, grifos da autora). Portanto, se Erica é dura e insensível, Nina é a garota meiga que se inflige dor. Um circuito sadomasoquista de gozo perpassa a díade. Uma vez que Erica toma posse do espaço psíquico da filha, não resta a Nina outro lugar senão o palco. Convocada a encenar uma posição subjetiva não inscrita - a desejante -, a protagonista conhece seu destino: despersonalização e morte.
Favilli (2011), por sua vez, aborda o filme pelo viés de uma problemática adolescente não resolvida. Para a autora, Nina não enfrentou o desafio de destronar a mãe. A protagonista ainda ensaia movimentos transgressivos - o roubo do batom de Beth (Winona Ryder), bailarina cujo lugar ocupará, a ida à danceteria com Lily (Mila Kunis), contrariando a mãe -, mas fracassa em protagonizar sua vida. Nesse sentido, a disciplina do corpo de baile foi um modo de preservar Nina dos conflitos juvenis - parcialmente, pois eles parecem estourar em seu corpo. Em contrapartida, é dali que vem a injunção de que ela se torne uma mulher, isto é, de que lance mão das pulsões eróticas e hostis vinculadas ao Édipo. É nesse momento que Nina psicotiza, pois não tem como responder à crise da adolescência. No corpo da mãe, ela jamais encontrou marcas do pênis paterno.
Por fim, Muñoz (2012) ocupa-se do problema da eclosão de um surto psicótico. Para o autor, Nina expressa um modo de funcionamento borderline, indicado por uma angústia crônica e difusa, transtornos alimentares, impulsos de automutilação e tendência à dissociação - signo da força de um supereu arcaico - mais do que ao recalque. E tal funcionamento encobre núcleos psicóticos decorrentes da incapacidade materna de acolher a hostilidade da filha, a qual é tomada como objeto de gratificação narcísica. Nessa perspectiva, a possibilidade de exercer o papel de rainha dos cisnes ativa os núcleos psicóticos da protagonista, lançando-a em um inexorável processo de deterioração psíquica. Nina não sabe o que é ser Sua Majestade, o bebê.
Ainda que divergentes, todas essas análises cruzam um ponto: o colapso psíquico da protagonista, no momento em que está na iminência de ocupar um lugar fálico. Esta é uma cena unheimlich: nós a estranhamos por ser muito familiar. No entanto, este artigo percorre outra via. Interessa-nos pesquisar o que torna sinistros os encontros com o duplo, no filme Cisne negro. E isso no registro próprio da linguagem cinematográfica. Com esse intuito, lançamos mão da análise fílmica - tal como proposta por Bellour (2000), Aumont e Marie (2009) e Vanoye e Goliot-Lété (2009) - e decompomos duas cenas dessa película. Ato contínuo, as interpretamos do ponto de vista da psicanálise. A esse modo de proceder, cuja tradição remonta ao número 23 da revista Communications (Metz, Kuntzel, & Bellour, 1975), denominamos análise fílmica psicanalítica.
O sonho
Ao som de Nina's dream - música de Clint Mansell, inspirada na composição de Tchaikovsky para O lago dos cisnes - e sobre um fundo negro, recortada por um facho de luz, materializa-se uma bailarina. Diáfana, ela rodopia em suas pontas. Graciosa e sorridente, ela se senta. A música sinaliza algo ameaçador. A bailarina vira o rosto para sua direita. A câmera afasta-se, mostrando-nos o palco escuro, em volta dela. Vindo de fora do campo visual, aparece um homem vestido de preto. A bailarina levanta-se, e ouvimos em off ruídos de uma respiração ofegante. Girando, ela busca escapar de seu perseguidor. A câmera fecha no casal. A iluminação realça os protagonistas. O homem transforma-se em demônio. A música intensifica-se, atinge seu mais alto grau de tensão. É Rothbart, o bruxo. Ele a toma nos braços, a eleva e gira. Está lançado o feitiço. O ritmo da música abranda. Nina rodopia em suas pontas e balança os braços, suavemente. Ela é o cisne branco.
A cena de abertura de Cisne negro - como tantas outras no filme - tem seu duplo. Após o fade out (gradativo apagamento da imagem), o fade in (gradual aparecimento da próxima imagem) mostra-nos Nina em sua cama, olhos abertos no quarto escuro. Ato contínuo, escutamos o som de uma porta abrir, vemos um feixe de luz invadir o ambiente, e a protagonista sorri. Sem dar-se a ver ao espectador, Erica entra em cena. Logo em seguida, Nina exercita-se diante do espelho, no qual cruza a imagem de sua mãe. Como se estivesse pensando em voz alta, a jovem diz que teve um sonho louco. Estava dançando o cisne branco, no momento de O lago dos cisnes em que Rothbart lança o feitiço. Nesse instante, Nina vira a cabeça, como quem se endereça ao outro. Na banda sonora, ouvimos Erica preparar o café da manhã.
É somente a posteriori que entendemos que a cena de abertura é um sonho de Nina. Se nela ele é figurado, na sequência inicial no apartamento da bailarina ele é verbalizado. O espelhamento entre esses dois fragmentos fílmicos desdobra-se em outras dimensões. Na cena de abertura, o contraste entre escuridão e focos de luz é pleno. No apartamento, tanto o escuro do quarto quanto a luminosidade da sala e da cozinha são brandos. Se em um a música dita o ritmo da ação, no outro ela é coadjuvante. Na cena inicial, um foco de luz expõe Nina. Na posterior, também, embora de forma matizada. Em ambas, um movimento de pescoço da protagonista - suave, no sonho, e enérgico, acordada - sinaliza o ingresso do que está fora de campo. Entretanto, Erica não nos surpreende como Rothbart. Ela é anunciada tanto na banda sonora - abertura da porta - quanto na visual: imagem no espelho. Se na cena inicial o feitiço é lançado por meio da linguagem da dança, no apartamento ele o é mediante a palavra materna: sweet girl. Aprisionada à imagem de Odette, que efeitos produz em Nina o encontro com Odille?
O corpo despedaçado
Ao dançar o cisne branco, Nina sofre uma queda. Perturbada, a bailarina dirige-se a seu camarim, a fim de preparar-se para dançar o cisne negro.
Plano 1 (5 seg.): do interior do camarim de Nina, a câmera filma a porta de entrada. Em plano próximo, vemos Nina entrar. Ato contínuo, escutamos uma voz feminina: "Começo tumultuado, hein?". O som da voz antecede a visão de quem a enuncia, assustando a protagonista.
Plano 2 (2 seg.): câmera posicionada atrás de Nina a capta na sombra. No foco da luz, Lily maquia-se diante do espelho. O plano de conjunto permite-nos ver Lily de três modos: de costas para a câmera, de perfil, por meio de seu reflexo em um pequeno espelho lateral, e de frente, no espelho grande. Multiplicada, Lily diz: "Deve ter sido muito humilhante".
Plano 3 (3 seg.): em plano próximo, vemos Nina desconcertar-se. Em seguida, a protagonista diz: "Saia do meu camarim!".
Plano 4 (2 seg.): posicionada atrás de Lily, a câmera mostra o lado direito do rosto da garota, mas seu foco concentra-se no espelho, onde vemos o reflexo da personagem dizer: "Só estou preocupada com o próximo ato". A trilha sonora é suave.
Plano 5 (2 seg.): em plano próximo, Nina olha com espanto para a imagem de Lily.
Plano 6 (2 seg.): mesmo enquadramento do plano 4. Lily provoca: "Não sei se você está à altura".
Plano 7 (2 seg.): mesmo enquadramento dos planos 1, 3 e 5. Nina diz: "Por favor, pare!".
Plano 8 (4 seg.): mesmo enquadramento dos planos 4 e 6. Focada no espelho, a câmera capta a imagem de Lily do busto para cima: "E se...". Em um movimento concomitante, Lily vira sua face para Nina, e a câmera desloca-se do reflexo de Lily no espelho para seu corpo. Simultaneamente, sua voz duplica-se com outra voz feminina: "...eu dançar...". Nesse momento, vemos o rosto de Nina em Lily: "...o cisne negro para você?".
Ao longo do filme, o olhar da câmera foca o drama da protagonista, Nina Sayers. No entanto, o olhar lançado sobre o universo diegético (realidade construída pela narrativa fílmica) o é da perspectiva da personagem de Natalie Portman. Nesse sentido, o lugar discursivo de Nina é ambíguo. Por um lado, ela consiste no objeto de uma narrativa. Por outro, ela ocupa o lugar da instância narradora. O espectador não é indiferente a tal condição. Ele é incitado a contemplar o processo de desagregação da protagonista, do ponto de vista dela. Dito de outro modo, o dispositivo narrativo de Cisne negro engendra a identificação do espectador com a protagonista. Portanto, o lugar discursivo do espectador também é ambíguo, incerto, suscetível a variações no transcorrer da narrativa. Não é diferente no fragmento de cena que selecionamos.
Nele, a alternância de lugares de Nina é marcante. Ela nos é dada a ver e, imediatamente, nos dá a ver, por meio da técnica do campo e contracampo. Tal recurso do cinema narrativo clássico implica a sutura do discurso fílmico (Oudart, 1977). Dito de outro modo, ele promove a completude imaginária da cena em questão. Nada mais tranquilizador e, portanto, menos unheimlich. Porém, o fragmento analisado vai além. No plano 1, vemos Nina. Com que olhos? Pode-se dizer que a instância narradora tem autonomia, isto é, não necessita ser assumida por um personagem (Machado, 2007). Também se pode sugerir que com os olhos de Lily, cuja presença é informada ao espectador a posteriori. Todavia, isso não dissipa o efeito unheimlich produzido na protagonista - e no espectador - pela voz de Lily, que irrompe na banda sonora sem que essa bailarina nos seja mostrada na banda visual. No plano 1 do fragmento em questão, temos não apenas um olhar sem corpo, mas também uma voz sem corpo. Sinistro.
No plano 2 - único dessa perspectiva, na cena analisada -, há um olhar não encarnado em um personagem. Nos planos 3 a 7, algo se repete. Por um lado, a câmera flagra Nina em uma região sombria do campo visual. Sua expressão oscila entre o espanto, o desespero e o terror. Por outro, a câmera foca a imagem de Lily no espelho, intensificada por um jorro de luz. É o espectro de Lily que inquieta Nina. No plano 8, o movimento de Lily de virar-se para Nina é acompanhado do deslocamento do olhar da câmera da imagem da bailarina californiana no espelho para seu corpo. Por meio desse movimento concomitante da atriz e da câmera, o espectro de Lily literalmente sai do espelho, aterrorizando Nina e perturbando o espectador. Ao longo da trajetória do olhar da câmera da imagem de Lily no espelho para seu corpo, sua voz é duplicada pela de Nina, sem que a fonte da enunciação seja mostrada. A irrupção fantasmática do duplo é anunciada na banda sonora. Finalmente, ao repousar no corpo de Lily, o olhar da câmera o mostra com o rosto de Nina. É o momento culminante de um plano muito curto, mas profundamente unheimlich.
Nos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, Freud (1905/1984b) define o corpo infantil como perverso polimorfo. Em tal corporeidade, circuitos de prazer autoerótico, constituídos em torno de zonas erógenas, não compõem uma organização libidinal integrada, mas operam de modo anárquico. A tais circuitos, o fundador da psicanálise denomina pulsões parciais. Em Introdução ao narcisismo, Freud (1914/1984c) assinala que a formação do eu - imagem unificada de si - é o momento decisivo na transição do autoerotismo ao narcisismo. A partir dessas premissas conceituais, Lacan (1998a) propõe que a integração das pulsões parciais em uma imagem unificada do corpo é efeito da passagem pelo estádio do espelho. Efeito sempre instável, como nos mostram - em sonhos e alucinações - as experiências do corpo fragmentado.
É a constituição narcísica do espectador que é posta em questão no fragmento selecionado. Disso decorre seu caráter unheimlich. A dissociação da imagem de si, que faz de Lily um duplo de Nina e do reflexo de Lily no espelho um duplo de seu corpo, atravessa a série de planos analisada. Tal dissociação poderia ser compensada pela unificação imaginária propiciada pela técnica do campo e contracampo. Em outras palavras, a atribuição de lugares estáveis para o eu e o outro é reconfortante. Contudo, o descolamento do reflexo de Lily do espelho e, consequentemente, sua entrada no espaço em que se situam as personagens são definitivamente perturbadores, pois põem por terra a diferenciação de lugares entre o eu e o outro. Efeito disso é a emergência, na banda sonora, de uma voz duplicada, que a banda visual não liga a uma imagem corporal unificada. Trata-se da constituição de um circuito pulsional - vozes que ecoam uma a outra - não integrado a um corpo. No momento em que a face de Nina cola-se no corpo de Lily, o efeito sobre a protagonista - e sobre o espectador - não pode ser outro senão o de inquietante retorno à experiência do corpo despedaçado. Não por acaso, na continuidade da cena o espelho do camarim é estilhaçado.
A aparição do olhar
Suspeitando que Nina fosse sexualmente fria para dançar o cisne negro, o diretor Thomas Leroy (Vincent Cassel) sugere: "Toque-se".
Plano 1 (4 seg.): situada próximo à porta, a câmera oferece-nos um plano geral do banheiro. No fundo, à direita, Nina está imersa na banheira, apenas com a cabeça fora d'água.
Plano 2 (4 seg.): posicionada em uma diagonal superior frontal, a câmera dá um close no rosto de Nina.
Plano 3 (3 seg.): em posição vertical (plongée), a câmera foca o ventre da protagonista, onde se encontram suas mãos, que se movimentam rumo à parte inferior do corpo.
Plano 4 (17 seg.): mesmo enquadramento do plano 2. Expressão facial e gemidos de prazer.
Plano 5 (3 seg.): mesmo enquadramento do plano 1. Nina afunda na banheira.
Plano 6 (3 seg.): mesmo enquadramento do plano 3. Close no rosto de Nina submersa. Inicialmente de olhos fechados, a garota os abre.
Plano 7 (2 seg.): plano subjetivo, isto é, vemos a parede e o teto do banheiro da perspectiva de Nina. Ligeiro movimento de balançar a câmera.
Plano 8 (6 seg.): repete a posição de câmera do plano 6. Close no rosto de Nina submersa. Na segunda metade do plano, gotas de sangue pingam na água. A música, até esse momento suave, torna-se tensa. Nina abre os olhos.
Plano 9 (1 seg.): mesmo enquadramento do plano 7. No lugar onde a câmera estivera nos planos 3, 6 e 8, aparece o rosto de Nina com uma sinistra expressão de gozo. Tensão musical explode.
A cena de Nina organiza-se a partir de um olhar Outro (Lacan, 2008). No primeiro plano do filme, o olhar sem corpo do cinema (Xavier, 1988) dá à luz uma bailarina. Na sequência inicial, o olhar de Rothbart a espreita. Porém, a respiração ofegante durante o sonho parece remeter a outro olhar. Na abertura da sequência seguinte, o som da porta, o feixe de luz e o sorriso da protagonista não deixam dúvida. O olhar materno é um invisível da narrativa fílmica, pura condição de visibilidade, causa do desejo de ver o filme. Ele delineia o campo visual não apenas de Nina, mas também do espectador. A cena decomposta acima tem seu duplo. Instigada pelo diretor, Nina masturba-se em sua cama. Subitamente, ela defronta-se com o olhar materno - a mãe dorme em uma poltrona ao lado. Na cena final, Nina olha para Rothbart, para Siegfried e, por fim, para a plateia, onde seus olhos encontram os da mãe, antes de a bailarina cair rumo à morte. Em Cisne negro, o olhar materno é mortífero. É sua onipresença que aterroriza a protagonista e mantém tenso o espectador.
Há quatro posições de câmera na cena de masturbação na banheira. Próxima à porta, na diagonal superior frontal, plongée (de cima para baixo) e contraplongée. Próxima à porta, a câmera situa-nos como espectadores da cena (plano 1) e expõe-nos uma importante transição na mesma: o mergulho - plongée, em francês - da protagonista em uma experiência erótica (plano 5). Na diagonal superior frontal, o close no rosto de Nina (planos 2 e 4) permite ao espectador mergulhar em sua intimidade. Em plongée - posição que mais se repete -, contemplamos a imersão da protagonista na experiência de se tocar. No plano 3, suas mãos movimentam-se rumo aos genitais. No plano 6, a passagem dos olhos fechados para abertos introduz o plano subjetivo. No plano 8, as gotas de sangue e a tensão musical anunciam o desfecho terrorífico da experiência de entregar-se ao gozo. A posição contraplongée é bastante tardia na cena. No entanto, é fundamental. Ela constitui um plano subjetivo, isto é, permite a identificação do espectador com o ponto de vista da protagonista. No plano 7, o balançar da câmera indica que o movimento rítmico continua. No plano 9 (um plano unheimlich, por excelência), Nina - e, com ela, o espectador - vê-se vendo-se.
Na cena em análise, a ausência de outro personagem não impede o recurso à técnica do campo e contracampo, pois as posições de câmera plongée e contraplongée, que dominam a segunda metade da cena, possibilitam a alternância de lugares entre ver e ser visto. No sinistro plano 9, há um curto-circuito nessa alternância. O plano 5 anuncia a passagem do prazer ao gozo. No plano 2, o close no rosto de Nina permite ao espectador, ainda que a posteriori, adivinhar seu desejo. No plano 4, o movimento dos olhos, a expressão facial e os gemidos testemunham a vivacidade da protagonista. Nos planos 6 e 8, Nina está imóvel, tem os olhos fechados (olhos abertos indicam mudança de plano) e não respira. O inquietante plano 9 assinala o caráter mortífero da experiência.
A cena que analisamos duplica-se em mais outra. Na cena erótica com Lily, a regra do raccord 180º, que determina que a câmera não deve cruzar uma linha imaginária que divide o espaço cênico, é quebrada. Efeito disso é Nina e Lily permutarem de lugar o tempo todo, o que acentua o caráter especular da cena. Ademais, a face de Nina aparece no corpo de Lily três vezes: quando as protagonistas correm para beijar-se, sem produzir efeito, e duas vezes durante o sexo oral, sendo que a primeira não encerra o ato. É quando no corpo de Lily aparece o rosto de Nina dizendo sweet girl que o terror interrompe a cena. Na cena de masturbação na banheira, o terrorífico irrompe quando Nina vê seus olhos no lugar do olhar da câmera. O olhar materno aparece no gargalo do vaso. Não é casualidade escutarmos, no final da sequência e vindo de fora do campo visual: sweet!
Considerações finais
A partir da análise dessas duas cenas, é possível retornar ao problema inicial: o que torna sinistros os encontros com o duplo, em Cisne negro? Antes de tudo, a estratégia narrativa de turvar as fronteiras da realidade, por meio de uma protagonista que alucina. Ato contínuo, o fato de o dispositivo narrativo incitar a identificação do espectador com a protagonista. Além disso, nas duas cenas uma situação de estabilidade imaginária é rompida, mediante a irrupção de uma pulsão parcial. No estádio do espelho, dois objetos pulsionais são fundamentais: o olhar e a voz maternos. É por meio deles que uma imagem unificada é ofertada ao infante. Porém, é somente se tais objetos são recobertos por significantes que um sujeito advém. Interditados, o olhar e a voz maternos são causa do desejo de ver e de vocalizar. A aparição de tais objetos é terrificante, porque anuncia o colapso subjetivo decorrente da invasão do Outro materno.
Na cena no camarim, a técnica do campo e contracampo estabelece dois lugares para a câmara (o plano 2 é exceção). No plano 8, um movimento de câmera, associado a um movimento de Lily, perturba o ordenamento de lugares subjetivos, o que tem como efeito não apenas o encontro com o duplo - a face de Nina no rosto de Lily -, mas também o isolamento da pulsão invocante: vozes de Nina e Lily entrelaçadas e não ligadas à imagem de um corpo. Na cena de masturbação na banheira, os planos em plongée e contraplongée, na segunda metade desse fragmento, introduzem a especularidade entre ver e ser visto. No plano 9, o encontro com o duplo desprende a pulsão escópica, isto é, o olhar é dado a ver.
A irrupção desses objetos pulsionais constitutivos da subjetividade, no estádio do espelho, não é sem importância em um filme no qual os espelhos - e a especularidade, de modo geral - são fundamentais. Ademais, em cada uma das cenas analisadas o outro objeto parcial também é importante. No final da sequência em que se situa a cena de masturbação na banheira, a voz materna enuncia a palavra que relança o feitiço: sweet! Na cena no camarim, o insólito plano 2 testemunha a presença de um olhar não encarnado em um personagem. Trata-se do olhar para o qual se oferece a cena da multiplicação das duplicações de Nina: o materno. Nas cenas em que a protagonista alucina, o olhar da câmera, constitutivo da narrativa fílmica, é invadido por esse olhar. Se Cisne negro fascina o espectador, a despeito de mantê-lo em estado de permanente tensão desprazerosa, é porque permite ao mesmo confrontar-se com o intrusivo do olhar materno, certificando-se de que o tem barrado. A invasão do olhar materno é a cena estranhamente familiar ao espectador, que torna unheimlich os encontros com o duplo, nesse filme de Aronofsky (2010).
Referências
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Endereço para correspondência:
Amadeu de Oliveira Weinmann
weinmann.amadeu@gmail.com
Verônica da Silva Ezequiel
veronica.ezequiel@ufrgs.br
Submetido em: 21/03/2015
Revisto em: 22/05/2015
Aceito em: 14/06/2015
1 N. A. No original: "[...] lo ominoso es algo que, destinado a permanecer en lo oculto, ha salido a la luz".
2 N. A. No original: "[...] el doble fue en su origen una seguridad contra el sepultamento del yo, una 'enérgica desmentida {Dementierung} del poder de la muerte' [...], y es probable que el alma 'inmortal' fuera el primer doble del cuerpo".
3 N. A. No original: "[...] cambia el signo del doble: de un seguro de supervivencia, pasa a ser el ominoso anunciador de la muerte".
4 N. A. No original: "[...] lo ominoso es lo otrora doméstico, lo familiar de antiguo. Ahora bien, el prefijo 'un' de la palabra unheimlich es la marca de la représion".