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Arquivos Brasileiros de Psicologia
versão On-line ISSN 1809-5267
Arq. bras. psicol. vol.70 no.spe Rio de Janeiro 2018
ARTIGOS
A teatralização do poder: a questão da redução da maioridade penal
Dramatization of power: the question of the reduction of the age of majority
La teatralización del poder: la cuestión de la reducción de la mayoría penal
Marcos Carneiro Silva
Docente. Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Educação. Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Rio de Janeiro. Estado do Rio de Janeiro. Brasil
RESUMO
Em tempos de perplexidades e de algumas transformações sociais (com mais retrocessos do que avanços), podem-se perceber inovações, também, em formas distintas de governamentalidade. O texto insere-se nessa tentativa de diagnosticar o presente, na perspectiva de análise da atual conjuntura política nacional, em que várias formas de governamento insistem, quase que desesperadamente, em dar conta de uma agenda advinda de uma nova modalidade de teatralização do cenário político. Para tanto, utilizaremos os conceitos foucaultianos de governamentalidade e da teatralização do poder. O caloroso debate sobre a questão da Redução da Maioridade Penal será apresentado como uma das formas desse teatro político onde os argumentos e a razoabilidade ficam de lado e entram em cena, os discursos descontextualizados que fazem parte de uma dinâmica mais ligada a espetacularização desse cenário, num jogo de faz de conta, contrapondo-se aos dados amplamente divulgados, no Brasil e no exterior.
Palavras-chave: Governamentalidade; Redução da maioridade penal; Teatralização do poder.
ABSTRACT
In times of perplexities and some social transformations (with more setbacks than advances), it can be seen innovations in distinct forms of work. The text is inserted in that attempt to diagnose the present, in the light of the current national political climate analysis, in which various forms of governance insist, almost desperately, on accounting for a schedule from a new type of dramatization of the political scenario. To do so, we will use Michel Foucault's concepts of work and histrionics. The hearty debate on the issue of reducing Criminal Majority will be presented as one of the ways of that political theater in which arguments and reasonableness stand aside, while the uncommitted speeches that are part of a dynamic linked the spectacularization in this scenario of a make-believe game come into play, opposed to the data widely disseminated, in Brazil and abroad.
Keywords: Governamentality; Reduced criminal majority; Dramatization of power.
RESUMEN
En tiempos de perplejidades y de algunas transformaciones sociales (con más retrocesos que avances), se pueden percibir innovaciones, también, en formas distintas de gubernamentalidad. El texto se inserta en ese intento de diagnosticar el presente, en la perspectiva de análisis de la actual coyuntura política nacional, en que varias formas de gobierno insisten, casi desesperadamente, en dar cuenta de una agenda proveniente de una nueva modalidad de teatralización del escenario político. Para ello, utilizaremos los conceptos foucaultianos de gubernamentalidad y de la teatralización del poder. El caluroso debate sobre la cuestión de la Reducción de la Mayoridad Penal será presentado como una de las formas de ese teatro político donde los argumentos y la razonabilidad quedan de lado. Entra en escena, los discursos descontextualizados que forman parte de una dinámica más ligada a la espectacularización de ese escenario, en un juego de hace de cuenta, contraponiéndose a los datos ampliamente divulgados, en Brasil y en el exterior.
Palabras clave: Gobernabilidad; Reducción de la mayoridad de edad; Teatralización del poder.
O fascismo nosso de cada dia: a questão da redução da maioridade penal
Em tempos sombrios e de perplexidades, de muitos retrocessos sociais e de praticamente nenhum avanço, percebemos inovações também em formas distintas de governamentalidade (governo de uns sobre todos os outros, condução de condutas ou ordenação das probabilidades de escolha da população e dos subgrupos sociais). Parece que observamos as relações de poder cada vez mais governamentalizadas. Assim, este texto apresenta a difícil tentativa de diagnosticar o presente, na perspectiva da análise da atual conjuntura política nacional, quando várias formas de governamento insistem, quase que desesperadamente, em dar conta da agenda advinda de uma nova modalidade de teatralização do cenário político. Para tanto, utilizaremos, entre outras apropriações, os conceitos foucaultianos de governamentalidade e de teatralização do poder.
Nesse sentido, o intenso debate sobre a questão da redução da maioridade penal pode ser retratado como uma das muitas formas desse teatro político, em que os argumentos e a razoabilidade ficam de lado. Um exemplo desse cenário é a falta de investimento no atendimento educacional das crianças de 0 a 6 anos, contrariando toda uma expectativa de planejamento no enfrentamento dessa questão. Entram em cena os discursos descontextualizados que constituem uma dinâmica mais atinente à espetacularização desse panorama, em um jogo de faz de conta que se contrapõe aos dados amplamente divulgados em pesquisas no Brasil e no exterior.
Teatralização do cenário político: o faz de conta
Vivemos hoje diversos cenários políticos mundiais, uma espécie muito peculiar de práticas políticas cujo protagonista tenta se desvencilhar, de todas as formas, do ambiente político tradicional, anunciando e/ ou alardeando, insistentemente, que não compõe esse cenário tradicional e que sua área de atuação advém de outros palcos. Foucault, no curso Segurança, território e população (2008), lança mão das análises de Gabriel Naudé sobre Golpe de Estado no século XVII. Não faremos uma retrospectiva dessa análise, mas tomaremos de empréstimo a questão da teatralização de poder, tema apresentado por Naudé e analisado por Foucault na aula de 15 de março de 1978.
Teatralização do poder, para Foucault (2008), além de outras diversas alusões feitas pelo autor, é a cena teatral que veste e reveste o cenário político e as práticas de poder como formas importantes de representação desse mesmo poder. Nigro (2013), em um encontro internacional promovido pelo Laboratório de Filosofia Contemporânea na UFRJ e organizado pelo professor Guilherme Castelo Branco, denominado de Terrorismo de Estado (dando origem ao livro de mesmo nome), levanta uma hipótese interessante: a teatralização do poder é um elemento estrutural de seu funcionamento. Nigro (2013) afirma que, desde os tempos mais remotos, o poder tem necessidade de glória, como das aclamações, do trono, da coroa e das tropas romanas. Para recontextualizar essa temática, acreditamos que a encenação do poder é, nos tempos atuais, uma importante forma utilizada, também nas mídias, de convencimento ou apaziguamento para o consenso nas ditas "democracias atuais". Fazer parecer passa a ser tão importante como governar, ou melhor, tão importante para a governamentalidade, e o convencimento por meio da encenação se torna fundamental.
Nigro (2013), concordando com Foucault (2008), suscita também outro aspecto importante dessa encenação na representação do poder: a violência, cujos atos específicos são pontos de destaque nessa teatralização. A espetacularização da violência e a disseminação da sensação de medo e insegurança também compõem esse cenário de jogo de sombras. Ou seja, gerar pavor, construindo um panorama de constante ameaça é uma forma teatralizada dessa representação do poder. Essa encenação é bem conhecida por todos nós, mas suas metamorfoses e artimanhas estão mais sofisticadas.
A questão da redução da maioridade penal
Utilizamos, mais uma vez, Foucault para relembrar uma de suas diversas preocupações: o fato de que é preciso ser sensível ao intolerável. Em tempos difíceis como estes, essa afirmação parece nos alertar para a luta diuturna contra todas as formas de fascismo. Não deixar o intolerável ser escamoteado e teatralizado parece ser urgente e necessário. E a questão da redução da maioridade penal, a nosso ver, pode representar, em meio a tantos outros, esse insuportável cenário.
Retomemos o objeto inicial de análise. O que é teatralizado nessa questão afinal? Conferimos destaque, desse modo, à encenação sobre o tema da redução da maioridade penal no Brasil. A violência e os índices de criminalidade, descontextualizados, constituem um excelente palco, como afirmamos anteriormente, para convencer e iludir a população nesse jogo de faz de conta. A exemplo disso, pesquisas de opinião indicam uma adesão considerável da população à redução da maioridade penal, variando entre 80% e 90% de aceitação (Politize, 2017). Porém, como essa questão é bastante complexa, não faremos um breve histórico sobre ela, pois foram muitos os percalços entre propostas de emendas constitucionais e emendas sobre essas emendas, desde o peculiar Projeto de Emenda Constitucional (PEC) nº 171/1993 (Brasil, 1993), criado pelo deputado Benedito Domingos, do Partido Progressista (condenado por corrupção e fraude em licitações), até a recente discussão acerca da PEC nº 33/2012 (Brasil, 2012) na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ). Desse modo, optamos, nesse texto, por indicar o cenário mais recente de discussão sobre a PEC nº 33/2012, que tramita em conjunto com outras três (74/2011, 21/2013 e 115/2015). A CCJ decidiu, em 1º de novembro de 2017, então, adiar para o ano de 2018 qualquer deliberação sobre o assunto.
A PEC nº 33/2012 preconiza que jovens menores de 18 e maiores de 16 anos poderão ser condenados pela prática de crimes graves. Em suma, cria o incidente de desconsideração da inimputabilidade penal para flexibilizar a maioridade nos casos em que menores cometam os crimes hediondos listados na Lei nº 8.072/1990. Todavia, atualmente, segundo a Constituição Federal (Brasil, 1988), em seu artigo 228, os menores de 18 anos são penalmente inimputáveis, não podendo ser condenados à prisão com os adultos. Nesse contexto, existe um forte debate jurídico sobre a redução da maioridade penal ser ou não cláusula pétrea constitucional, como trecho que não pode ser alterado. O Supremo Tribunal Federal (STF) já se manifestou com ministros favoráveis e contrários ao tema da cláusula pétrea, por exemplo.
A doutrina da proteção integral, que aparece no artigo 227, também da Constituição Federal (Brasil 1988), prescreve a obrigação da família, da sociedade e do Estado de assegurar, com prioridade absoluta, os direitos fundamentais da criança e do adolescente. Entretanto, a Constituição não define nem diferencia maioridade de responsabilidade penal, embora o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), (Lei Nº 8.069, 1990), em seus artigos 112 e 125, faça essa distinção e defina a idade de 12 anos para tal responsabilidade.
Na legislação atual, quando um menor é flagrado cometendo um ilícito, deve aguardar 45 dias até a decisão judicial sobre seu caso. Se for considerado culpado, o jovem pode ser submetido a seis medidas: advertência, obrigação de reparar o dano, prestação de serviços à comunidade, liberdade assistida, semiliberdade e internação. Porém, consoante o artigo 121 da Constituição (Brasil, 1988), o período máximo de internação é de três anos.
Em meio a tal polêmica, inúmeros organismos internacionais se posicionam contra a redução da maioridade penal, como é o caso da Comissão sobre os Direitos da Criança da Organização das Nações Unidas (ONU) e da Comissão Interamericana dos Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA). Entretanto, alguns países já adotam a maioridade abaixo dos 18, a exemplo dos EUA, em que nove de seus 50 estados a empregam. Alguns desses países discutem, há algum tempo, entre eles os próprios EUA, o aumento e não a redução da maioridade penal.
Passamos, então, a considerar análises bem divulgadas sobre alguns mitos veiculados sobre o tema em tela. De acordo com o primeiro mito, os presídios seriam mais adequados do que as unidades socioeducativas para a reclusão dos menores em conflito com a lei, como se essa modificação, por si só, já fosse suficiente para reduzir os índices de criminalidade. Na realidade, o Brasil já prende muito, mas também prende muito mal. Os dados do Ministério da Justiça, por exemplo, demonstram que o sistema prisional brasileiro tem a terceira maior população carcerária do mundo, com 726 mil presos, de acordo com os dados do Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen). O índice de homicídios subiu 24% em oito anos, como demonstram os dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (2017), e, somado a isso, há um déficit de 256 mil vagas nos presídios. De acordo com o segundo mito, os adolescentes ficam impunes na atual legislação, porém 20 mil estão reclusos, fora aqueles que cumprem sentenças em outras modalidades previstas no ECA, como mostram os dados do 8º Anuário de Segurança Pública (Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2014). Consoante o terceiro mito, existe a veiculação de falsos dados estatísticos, os quais indicam que a maioria dos crimes cometidos por adolescentes é violenta, o que é inverídico, pois 90% dos crimes não são contra a vida, segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (2017). Quanto a isso, há alguma divergência nas pesquisas, variando muito pouco: entre 10 e 12% seriam os crimes violentos (hediondos). Conforme o quarto mito, utilizado para confundir a opinião pública, a maioria dos países determina a idade penal em menos de 18 anos, ainda que 54% dos estudados pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), entre os quais a França, a Espanha, a Noruega e o Uruguai, fixem a idade acima dos 18 anos. Segundo o quinto e último mito, utilizados aqui como teatralização desse cenário, as crianças e os adolescentes negros e pobres cometem mais crimes contra a vida. Na realidade, as crianças em vulnerabilidade social são as que mais morrem, segundo o Mapa da Violência (Waiselfisz, 2015), para o qual mais da metade das 56 mil pessoas assassinadas em 2012, as quais totalizam 30 mil, eram jovens entre 15 e 29 anos.
Em entrevista à Carta Capital (Damasceno, 2017), o jurista e ex-ministro da justiça do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, José Gregori (fundador do Partido da Social Democracia Brasileira - PSDB), afirma que não há nenhum fundamento científico que comprove benefícios da redução da maioridade penal. Na entrevista, Gregori classifica o debate como ideológico e mal situado, pois apenas apresenta a tese punitivista que já está em desuso na maioria dos países. Esses defensores, segundo o entrevistado, nunca apresentaram argumento sólido em defesa dessa redução. Nesse contexto, apenas como uma última referência, citamos um dos defensores mais calorosos da redução, um ex-deputado bem conhecido: o senhor Eduardo Cunha.
O que está em jogo (de esconde-esconde) afinal? O que está encoberto?
Em nossa análise, além de toda a encenação a favor de uma especificidade de moralidade, de uma sensação de pseudossegurança, há um total desinvestimento nas possíveis formas de prevenção a um combate mais coerente com a diminuição das desigualdades sociais, em um país repleto delas. Por exemplo, quanto à diminuição da miséria, o índice de 2004 a 2014 confirma que 28,6 milhões saíram da pobreza, porém, em dois anos, isso se reverteu, já que 3,6 milhões retornaram à condição anterior de miséria, segundo o Banco Mundial (Número de pobres..., 2017). Essa diminuição sim poderia incentivar o encolhimento dos índices de criminalidade e não apenas os de violência e todo esse aparato utilizado como cortina de fumaça. Dentre elas, destacamos o desinvestimento na educação das crianças de zero a seis anos, entendendo, junto com um grupo significativo de pesquisadores, que essa faixa etária é crucial para o desenvolvimento das crianças, o qual dificilmente será revertido, caso negligenciado.
Tentamos não exagerar na utilização de dados estatísticos, mas eles são facilmente encontrados, disponíveis em estudos de quase todas as instituições que tratam dessa temática, além dos apresentados nas notícias diárias veiculadas pelos meios de comunicação acerca do abandono e da negligência no que se refere à Educação Infantil. Apenas para ilustrar, em recente passagem pelo Brasil, James Heckman (Prêmio Nobel de Economia) afirmou que investir na educação das crianças de zero a seis anos é o melhor de todos os investimentos realizados por uma nação. Entretanto, no País, lembrando que a educação infantil (abrangendo creche e pré-escola) atende crianças de zero a cinco anos e que o ensino fundamental, de seis a 14 anos, há uma série de problemas com a faixa de zero a três anos: estrutura precária de atendimento (entregue basicamente às Organizações Sociais) e baixíssima qualidade (Weinberg, 2017). Ressaltamos que o atendimento é um pouco melhor, embora ainda insatisfatório, na faixa de quatro a cinco anos, já que a Lei nº 12.796/2013 obriga a matrícula de crianças de quatro a 17 anos na escola. A questão não é apenas falta de atendimento, pois a oferta às crianças de quatro a seis melhorou um pouco, mesmo que o problema crucial seja a qualidade desse atendimento.
As crianças, sobretudo as de zero a três anos, são mal atendidas, comprovando a existência do negligenciamento da educação infantil e, claro, da educação como um todo. Ter acesso aos dados sobre a oferta às crianças nessa faixa etária é bem difícil. Além da cidade de São Paulo, encontramos verdadeiras caixas-pretas na divulgação do atendimento por parte das prefeituras espalhadas pelo Brasil. Na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), por exemplo, alguns pesquisadores, integrando o Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa (PNAIC), analisam esses dados constantemente. Em relação às matrículas, por exemplo, em 1995, apenas 7,6% da população de zero a três anos frequentava a creche e 43,5% das crianças com idade entre quatro e seis anos, pré-escolas. Em 2010, esse percentual subiu em 23%. Em 2015, a cobertura aumentou, passando a 30,4% das crianças de zero a três anos frequentando creches e a 90,5% das de quatro a cinco anos, pré-escolas (Todos pela Educação, 2017). Entretanto, quando desmembramos essas médias pelas regiões brasileiras, observamos que, na Região Norte, apenas 13,8% das crianças de zero a três anos frequentam creches, enquanto, na Região Sudeste, 37,9%, denotando que o crescimento não ocorreu de maneira uniforme.
As redes municipais, até em razão de um dispositivo constitucional (o Pacto Federativo, definido nos artigos 145 e 162 da Constituição Federal), são as maiores responsáveis pela oferta de creches (58,8%) e de pré-escolas (72,8%). Entretanto, as creches apresentam a maior participação da iniciativa privada em toda a educação básica, com 41% das unidades, quase o dobro da pré-escola, que abarca 26,3% (INEP, 2016). A União e os estados têm participação de apenas 1% nas matrículas na pré-escola. Já os municípios, responsáveis por implementar a educação para essa faixa etária, e recebendo recursos para isso, dificilmente apresentam seus dados, o que demonstra não haver controle sobre esse processo.
O percentual acentuado de creches privadas comprova o baixo investimento e até a ausência do setor público frente a essa demanda. Mostra também que o atendimento educacional às crianças pequenas ainda está muito direcionado às iniciativas advindas de modelos informais e/ou de parcerias público-privadas geralmente de baixo custo e em precárias condições, segundo as Notas Estatísticas do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP, 2017).
Além desses dados, e também para compô-los, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA, 2016) indica que os menores em conflito com a lei, encarcerados, apresentam uma baixa escolaridade e vivem na miséria. Logo, algumas investigações sobre a temática merecem nossa atenção.
Ao que parece, não oferecemos educação adequada às crianças. Voltamos apenas ao problema do acesso à educação, mas não nos preocupamos com a permanência na escola. É a velha questão do necessário, mas não do suficiente. Não basta oferecer a vaga, o que nem costuma ocorrer em alguns casos, mas sim promover um ensino adequado para que essas crianças possam ter a oportunidade de um ensino significativo para as suas vidas, e isso que faz toda a diferença. O desafio de uma educação pública, laica e de qualidade para todos e todas ainda não foi enfrentado e, pelo que temos pesquisado, nossos governantes mal reconhecem o problema, visto que, como sempre, mascaram-no e o empurram como mais um jogo faz de conta.
Atentos às formas de fascismo, com destaque ao fascismo do dia a dia
Na pequena introdução do livro AntiEdipo, de Deleuze e Guatarri (1997), Foucault denuncia três adversários do desejo: os ascetas políticos (os preservadores da ordem pura da política), os deploráveis técnicos do desejo e o inimigo maior, os fascistas. Ao que parece, vivenciamos uma verdadeira fusão desses adversários do desejo. Ademais, uma parte significativa dos atores políticos atuais consegue a proeza de fundir as categorias apresentadas por Foucault. Nessa pequena, mas importante introdução, o pensador francês também prescreveu sete princípios essenciais para uma vida não fascista, aqui apenas resumidos: 1) libere sua ação política de toda a paranoia unitária e totalizante; 2) faça crescer a ação, o pensamento e os desejos por proliferação, justaposição e disjunção, ao invés da submissão e hierarquização piramidal; 3) libere-se das velhas categorias do negativo (a lei, o limite, a castração e a falta) que o pensamento moderno manteve por tanto tempo como sagrado enquanto forma de poder e modo de acesso à realidade e prefira o múltiplo, a diferença à uniformidade, os fluxos à unidade e os agenciamentos móveis aos sistemas; 4) não imagine que seja necessário ser triste para ser militante, mesmo que a coisa que combatemos seja abominável; 5) não utilize o pensamento para dar a uma ação política um valor de verdade, nem a ação política para desacreditar um pensamento, como se ele não fosse senão pura especulação, mas utilize a prática política como um intensificador do pensamento; 6) não exija da política que ela estabeleça os "direitos do indivíduo", tais como a filosofia os definiu, pois o indivíduo é produto do poder e é preciso desindividualizar (um grupo não deve ser um elo orgânico entre indivíduos hierarquizados); 7) e, por fim, não se apaixone pelo poder. Foucault (1997) prescreve a caça a todas as formas de fascismo, desde aquelas colossais, que nos circundam e comprimem, até as formas pequenas que fazem a amarga tirania de nossas vidas cotidianas.
Tentando concluir...
Percebemos que as manifestações fascistas têm um modus operandi que quase sempre utiliza as mesmas ações teatrais de violência. Elas são radicalmente contra qualquer forma mais livre de expressão do pensamento e da ação (como a cultural, por exemplo) e se mostram relutantes a qualquer modo de desejo ou criação. São representadas pelos defensores do pensamento hegemônico, defensores da ordem, tuteladores da vontade, sócios-proprietários da verdade em diversos campos (como o acadêmico, por exemplo), pretensiosos controladores das nossas vidas, apaixonados pelo poder, ainda que existam também amantes ou "ficantes".
Para nós, a luta está posta nas diversas manifestações contra os pequenos e importantes avanços sociais conquistados na sociedade excludente brasileira, na qual, no momento atual, são todos vilipendiados. Essas manifestações fascistas violentam nossos corpos, nossos desejos e nossa forma de pensamento e de vida, mas devem e podem ser repelidas por meio de nossa luta cotidiana, anárquica ou não, mas antiautoritária acima de tudo, combatendo veementemente todas as formas impositivas que insistem em querer nos governar, e ordenar nossas condutas, e nos dizer o que é melhor para nós. O melhor para nós é o que conquistamos nas lutas, inclusive nas lutas contra esses mesmos fascistas. É o que conquistaremos repudiando as violências constantes não só contra as crianças, mas também contra a diferença, contra a livre expressão e contra toda e qualquer forma de submissão.
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Endereço para correspondência:
Marcos Carneiro Silva
prof.marcosufrj@gmail.com
Submetido em: 25/04/2018
Revisto em: 29/07/2018
Aceito em: 18/09/2018