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Arquivos Brasileiros de Psicologia
versão On-line ISSN 1809-5267
Arq. bras. psicol. vol.71 no.1 Rio de Janeiro jan./abr. 2019
https://doi.org/10.36482/1809-5267.ARBP2019v71i1p.158-173
ARTIGOS
Suicídio: uma compreensão sob a ótica da psicologia existencial
Suicide: An understanding from the perspective of existential psychology
Suicidio: una comprensión bajo la óptica de la psicología Existenciale
Ana Maria Lopez Calvo de Feijoo
Docente. Programa de Pós-graduação em Psicologia Social. Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Rio de Janeiro. Estado do Rio de Janeiro. Brasil
RESUMO
Neste estudo discutimos as diferentes interpretações acerca do fenômeno suicídio no que diz respeito à ênfase na culpabilização da sociedade, do indivíduo, ou ainda, na ausência de culpado, em que o suicídio é tomado como possibilidade existencial. Após tais discussões, apresentamos os argumentos controversos sobre a necessidade de formação de redes de ajuda. A posição que sustentamos tem como base a fenomenologia e a hermenêutica em que o fenômeno de pôr fim à vida é tomado em seu caráter mais originário. Para tanto, esclarecemos como passamos da ideia de pôr fim à vida ao suicídio e como esse ato ganha o estatuto de coragem ou covardia em uma perspectiva da biopolítica. Apresentamos as diferentes lidas do profissional de psicologia com aqueles que decidem pôr fim à vida. E passamos a discutir o ato de dar fim à vida em seu caráter de desespero, desmedida e patologia para, então, podermos argumentar a favor de uma interpretação existencial.
Palavras-chave: Suicídio; Fenomenologia-hermenêutica; Desespero; Desmedida; Patologia.
ABSTRACT
In this study we debate many interpretations about the suicide phenomenon with regard to society, individual, or the absence of guilt. In this way the suicide is taken as an existential possibility. We present the controversial arguments about the need of training care networks. The position we hold is based on phenomenology and hermeneutics in which the phenomenon of ending one's own life is taken in its most originating status. Therefore, we clarify how the idea of putting an end to life becomes suicide and how this act gained the status of courage or cowardice in a bio-political perspective. We present the differences of psychologists work regarding the decision to end one's own life. And we think upon the act of ending life in its character of despair, pathology and immensurable so that we can argue pro an existential interpretation.
Keywords: Suicide; Hermeneutical Phenomenology; Despair; Immensurable; Pathology.
RESUMEN
En este estudio discutimos las diferentes interpretaciones acerca del fenómeno suicidio en lo que se refiere al énfasis en la culpabilización de la sociedad, del individuo, o aún, en la ausencia de culpable, en que el suicidio es tomado como posibilidad existencial. Tras estos debates, presentamos los argumentos controvertidos sobre la necesidad de formación de redes de ayuda. La posición que sostenemos tiene como base la fenomenología y la hermenéutica en que el fenómeno de poner fin a la vida es tomado en su carácter más originario. Para ello, aclaramos cómo pasamos de la idea de poner fin a la vida al suicidio y cómo ese acto gana el estatuto de coraje o cobardía desde una perspectiva de la biopolítica. Presentamos las diferentes lecturas del profesional de psicología con aquellos que deciden poner fin a la vida. Y pasamos a discutir el acto de dar fin a la vida en su carácter de desesperación, desenfreno y patología para, entonces, poder argumentar a favor de una interpretación existencial.
Palabras clave: Suicidio; Fenomenología-hermenéutica; Desesperación; Desenfreno; Patología.
Introdução
Santos (2011) apresentou uma matéria intitulada Suicídio: de quem é o problema? no Psi-Jornal do Conselho Regional de São Paulo, na publicação do bimestre setembro e outubro de 2011. Constam, nessa matéria, algumas informações que merecem ser pensadas. Uma delas é que o Ministério da Saúde criou, em 2005, a Estratégia Nacional de Prevenção do Suicídio, estimulando algumas ações locais destinadas à prevenção. Assinala, no entanto, que não há iniciativas de maior alcance nesse campo. Ainda nessa publicação, aparece a preocupação dessa instituição com a falta de maiores discussões dos psicólogos sobre a lida desses profissionais com aqueles que querem pôr fim à própria vida.
Acerca do que os profissionais pensam e o modo como atuam nessas situações, deparamo-nos com múltiplas e variadas formas de pensar as questões das iniciativas de atuação, a prevenção e o preparo dos profissionais com relação ao suicídio. Dessas variadas formas, duas perspectivas são totalmente antagônicas. Uma delas inclina-se sobre o caráter individual da decisão de cometer suicídio, a outra defende a perspectiva da responsabilização do social.
Na perspectiva que diz respeito à responsabilização individual, temos duas vertentes antagônicas. Por um lado, há aqueles que assumem uma perspectiva disciplinar com o objetivo de prevenção, seguindo manuais com normas e procedimentos de como se deve atuar. Nessa direção encontramos Botega (2015) e Dillon (2009). Esses estudiosos defendem que o suicídio, na maioria das vezes, tem um componente psicopatológico, predominando o distúrbio bipolar do humor e a depressão. Eles argumentam, ainda, que devem se formar redes de ajuda devidamente preparadas para assim evitar o Complexo de Agar1. Por outro lado, há aqueles, como, por exemplo, Cattapan (2012), em Moralização do Suicídio?, que defende que cabe apenas a cada um decidir sobre a sua vida, não responsabilizando com tanta ênfase a atuação dos profissionais envolvidos com a questão e, portanto, não defendendo a necessidade de criação de redes de atendimento com fins à prevenção.
Aqueles que responsabilizam o social, tal como Berenchtein Netto (2013), têm como tese a moralização do suicídio com o propósito de atender ao sistema político e econômico vigente. Berenchtein Netto nos esclarece que o suicídio foi interpretado como pecado na Idade Média e como patologia na Idade Moderna, de acordo com o poder dominante. Na Idade Média o poder era sacerdotal e na Idade Moderna o poder passa a ser da ciência. No entanto, todos têm em comum a questão econômica. Esse autor conclui que é preciso tomar uma posição crítica com relação às políticas públicas para que essa situação possa se transformar. Na mesma direção de Berenchtein Netto, Freitas, Prado, Mathias, Greschuck e Dequech Neto (2013), em uma revisão bibliográfica das produções acadêmicas sobre suicídio entre 2002 e 2011, apontam para o número insuficiente de produções sobre o tema. Também Lima (2018), em uma revisão sistemática da literatura no período de 2012 a 2015, encontrou 66 publicações. Esses estudiosos concluíram que essas produções apontam para a necessidade de que mais trabalhos se dediquem ao tema para mobilizar a construção de políticas públicas de prevenção.
Por avaliar que os dois polos se posicionam em extremos, encaminharemos uma proposta em Psicologia Existencial que tenta, em suas bases fenomenológicas e hermenêuticas, compreender o fenômeno em seu caráter de unicidade e originalidade. A morte voluntária é um fenômeno que sempre esteve presente na existência humana e que envolve as determinações de uma época bem como a decisão daquele que pretende pôr fim à própria vida. Pretendemos pensar a questão, tomando como referência, primeiramente, os elementos presentes em nosso horizonte histórico que, de algum modo, sustentam a ideia de cometer suicídio como uma saída para a situação em que alguém se encontra e, depois, que a decisão de dar fim à vida se sustenta em motivos e não em causas. Com essas considerações, defendemos que a atuação do psicólogo existencial com bases na fenomenologia e na hermenêutica deve se pautar na manutenção de um espaço que sustente, reflexivamente, a possibilidade da conquista da medida existencial, que só pode ser encontrada na própria existência para que então possamos atuar junto a políticas sociais e também junto ao singular (Feijoo, 2018).
Em uma perspectiva fenomenológica e hermenêutica em psicologia, consideramos que o modo de ser dos homens se constitui por meio daquilo que se apresenta nas determinações de sua época. Por esse motivo é que precisamos saber como cada época tomou o sentido de pôr fim à vida para podermos compreender aquilo que estava em jogo nessa decisão. As reações sociais e legais frente àqueles que decidiam pôr fim à própria vida diferem e oscilam desde a valorização, passando pela aceitação até a punição, em diferentes momentos históricos. Com esse esclarecimento, podemos estudar o tema de modo a não tomar a perspectiva moderna, que afirma veementemente que o suicídio se encontra na contramão da natureza humana, como uma única e definitiva verdade. E, assim, abriremos um espaço de investigação para alcançar aquilo que está em jogo na decisão pessoal de pôr fim à vida, podendo, então, tal decisão aparecer em seu caráter fenomenal.
No entanto, para discutir introdutoriamente esse tema, vamos primeiramente esclarecer seguintes temas: pôr fim à vida, desespero, coragem, desmedida e patologia.
Do pôr fim à vida ao suicídio
Qual é o sentido subjacente à expressão pôr fim à vida? Primeiramente, cabe esclarecer que a palavra suicídio etimologicamente significa sui (de si) e caedes (morte voluntária, imolação, ação de matar), aparecendo no século XVIII com o teólogo Camaruel. Anteriormente, nos gregos antigos, o ato de pôr fim à vida aparecia como vontade de empreender o ato de deixar de viver como hekousios thanatos. Para dar o sentido de afastamento consciente da vida, a expressão era afhistamai tou biou e, por fim, com a ideia de razão axagoge eulogos. Na latinização dos termos, temos, na mesma sequência, mors voluntaria, mortem sibi consciere, excessus e vita rationallis. Assim, tanto no grego quanto no latim, a ideia de pôr fim à vida se transforma na seguinte sequência: morte voluntária, morte em consciência e morte racional (Guimarães, 2011).
Guimarães (2011) esclarece que na Ilíada e na Odisseia, na tragédia e no lirismo da Grécia antiga, encontramos os motivos pelos quais os homens decidiam pôr fim à vida. Lembremos que os gregos dessa época (desde o século IV a. C.) não operavam com a dicotomia homem e mundo, tudo se dava na inseparabilidade indivíduo - estirpe - polis - família - destino e nem operavam com a noção de causalidade, por isso aparecem, em suas descrições, os motivos e não as causas (Snell, 1975). Desistir da vida, no mundo hebraico entre 1750 a.C. e 539 a.C., no Antigo Testamento, aparece de forma estrita e neutra, denotando atos de coragem em Saul, Sansão, Eleazar, Razis, Aitofel, Ptolomeu Makron. No cristianismo arcaico, podemos citar o Apóstolo Paulo entre 5 d.C. e 10 d.C., que considerava o sair da vida terrena como um caminho para um mundo melhor. Os filósofos latinos Cícero (106 a.C.-43 a.C.), Virgílio (70 a.C.-10. a.C.), Séneca (4 a.C.-65 d.C.) e Tácito (55 d.C.-120 d.C.) referiam-se ao ato de decidir por não viver como uma partida precipitada, saída tranquila e marcha calma. Eles compreendiam esse ato como mais tranquilo do que morrer querendo continuar a viver. Também não aparece nesses filósofos o caráter de estigma que ganha corpo quando a palavra suicídio passa a ser utilizada nos casos em que alguém voluntariamente decide terminar com sua vida. Em 374, uma lei do Império Romano proíbe o ato de terminar com a própria vida, segundo Minois (1995): "A pressão da situação econômica-social e política impõe-se a própria moral para fazer do suicídio um crime contra Deus, contra a natureza, contra a sociedade" (p. 42).
Cabe também perguntar acerca daquilo que está em jogo quando alguém decide pôr fim à sua vida. Modernamente pensamos que tal decisão, na maioria das vezes, se dá por uma causa subjacente, seja ela de uma ordem biológica ou psíquica, por alterações físico-químicas ou da dinâmica do psiquismo, seja por conta de situações sociais de privação, humilhação, injustiça. No primeiro caso, o suicídio é considerado consequência de um desequilíbrio no funcionamento orgânico ou psíquico. No segundo, a causa passa a ser o modo de organização social e econômica de uma sociedade. Nesse modo determinista e causal de pensar o suicídio, a tese é que, uma vez descobrindo as causas, podemos prevenir e controlar os efeitos. Por esse motivo, proliferam as teorias acerca das causas do suicídio e, ao mesmo tempo, as estratégias de prevenção. No entanto, a estatística acerca da frequência em que esse ato acontece aumenta a cada ano, tornando-se, atualmente, a terceira causa mortis no ranking mundial da Organização Mundial da Saúde (2016). Na maioria das vezes, tentamos explicar esse fato, afirmando que ainda são insuficientes as medidas tomadas no sentido de prevenir o ato de pôr fim à vida, que é preciso que o governo invista mais recursos com a prevenção etc. Parafraseando Heidegger (1927/1998), no que diz respeito à ideia de que o correto postulado pela ciência moderna não é o mesmo que o verdadeiro, tal como aparece existencialmente, todas essas explicações, argumentos e medidas aqui expostos estão corretos. No entanto, parece que ainda não alcançamos o que verdadeiramente acontece para que as pessoas decidam dar um ponto final a sua existência.
Camus (2008), em O mito de Sísifo, diz que o suicídio é o verdadeiro problema sobre o qual a filosofia deveria se inclinar com seriedade. A filosofia pretende saber sobre a existência e tenta fazê-lo procurando as categorias que a sustentam. No entanto, ao fazer isso, ou seja, abarcando o fenômeno por meio de suas categorias, acaba por se afastar mais daquilo que afinal constitui o sentido do existir, anterior a qualquer categorização (Heidegger, 1927/1998). Camus (2008) nos diz que o ato de querer pôr fim à vida nos remete imediatamente à vida e à morte, ou seja, aos dois limites intransponíveis da existência do homem. Querer pôr fim à vida carrega em seu bojo a indecisão se a vida merece ou não ser vivida. Esse mérito diz respeito à articulação que alguém estabelece com a vida. Grandes homens como, por exemplo, Jesus e Sócrates, julgaram que deveriam não fugir da morte, mesmo certos de que morreriam se não retrocedessem. Havia nos dois um sentido de vida que os encaminhava pelo deixar-se morrer. Ambos morrendo se eternizaram, deixando aos seus descendentes legados tanto para o mundo cristão quanto para o grego.
Vale também lembrar a decisão de Galileu Galilei quando confirmou suas teses acerca do lugar da Terra no universo. A Inquisição o questionou e o ameaçou para que voltasse atrás em suas conclusões, sob pena de pagar com a própria vida. Galilei recua e diz que suas teses eram falsas. Assim, ele se livra da Santa Inquisição. Para Galilei, a vida valia a pena ser vivida independente da perpetuação de suas teorias.
Essas questões sobre se vale a pena ou não viver remonta às idades clássicas. Podemos encontrá-las nos escritos gregos da Ilíada, da Tragédia, do Lirismo, da Antiguidade. Assim podemos ver essas questões no Mundo Cristão, bem como no Moderno. Indo ao encontro daquilo que nos diz Camus (2008), o suicídio é uma séria questão que merece que nos debrucemos sobre ela. Pensar significa não ter pressa no sentido de encontrar as causas (Leão, 1991). Quando concluímos apressadamente, corremos o risco de posicionar as causas, não deixando mais ver o que pode se apresentar como questão.
O tema desta investigação trata daquilo que está em jogo quando se pensa em pôr fim à vida. Ainda, propomo-nos a pensar sobre a decisão que se pauta no desespero, na coragem e na desmedida. Sabemos que trabalhar apenas com esses três temas ainda é insuficiente frente à complexidade das decisões humanas, que são da ordem do ilimitado e do indefinido. No entanto, acreditamos que o esclarecimento desses elementos pode sustentar argumentos daquilo que queremos defender, ou seja, o caráter existencial presente na decisão de pôr fim à vida. Agora a questão que merece ser esclarecida é por que coragem, desespero e desmedida.
As interpretações sociais do ato de pôr fim à vida
A interpretação ambígua de que o suicídio é um ato de coragem e de covardia só faz sentido em uma sociedade que se organiza por meio de uma biopolítica que afirma a vida como uma produção que deve se dar em sua docilidade, utilidade e moralidade (Foucault, 1987). Trata-se da ética moderna, que preconiza que a vida vale a pena a qualquer custo. A coragem é interpretada a partir do projeto moderno de manutenção da vida, independente das condições em que se vive. Sobressai, assim, a ideia tecnocrata de que a vida merece ser vivida e que todos devem agir de modo a prolongá-la. Logo, aquele que quer dar fim a um valor tão supremo tem coragem. Esse ato pode ser interpretado também como covardia quando se avalia que a pessoa não tem força suficiente para arcar com as intempéries da vida. No entanto, nem sempre foi assim. No cristianismo arcaico, dar fim à vida era interpretado como um modo de alcançar uma vida melhor. O apóstolo Paulo (Bíblia Sagrada, 1980), em Epístola de Paulo aos Filipenses 1, diz: "Porque para mim, o viver é Cristo e o morrer é lucro!". No Filipenses 22, Paulo prossegue: "Caso continue vivendo no corpo, certamente apreciarei o fruto do meu labor. Mas já não sei o que escolher". E em Filipenses 23, ele conclui: "Sinto-me conclamado pelos dois lados: desejo partir e estar com Cristo, o que é infinitamente melhor" (p. 245). A ideia de que a morte conduzia o homem ao reino dos céus induzia os camponeses que levavam uma vida de trabalho árduo a dar fim à vida para alcançar, assim, um mundo melhor. Essa forma de pensar e agir tem reflexos imediatos na economia da época, diminuindo, significativamente, a força de trabalho. Assim se instituiu a interdição do suicídio, entre 354 e 430, com Santo Agostinho. Com a interdição, a morte voluntária passa a se constituir como pecado. Segundo a Doutrina da Igreja, ninguém tem mais o direito de acabar com a própria vida para alcançar uma vida melhor. Ao contrário, aquele que se matar não irá para o reino de Deus, irá para o inferno. Essa situação é retratada no Inferno de Dante, que é o lugar daquele que infringe o quinto mandamento "Não matarás". No ano 967, na Inglaterra, o suicídio passa a ser crime. E hoje, o que vige? Esquirol, em 1827, passa a considerar o suicídio como problema de caráter psiquiátrico e, em 1976, fica consagrado, de forma abrangente, como algo de ordem biológica (Minois, 1995).
Foucault (1999) discute toda essa modificação no que se refere à interpretação do suicídio como algo de uma ordem biopolítica. Por que na perspectiva da biopolítica não se pode morrer? Também hoje, como nos medievais, a economia prolifera em torno do consumo desenfreado de eternização da juventude, da saúde, enfim, do prolongamento infinito da vida. E essa é a ordem vigente que se impõe por um poder invisível. Em síntese, coragem ou covardia frente ao ato de pôr fim à vida consiste em diagnósticos que visam à manutenção dos corpos dóceis e úteis que prescrevem modos de pensar, sentir e ser. Trata-se daquilo que Foucault denominou de Biopolítica, que nada mais é que um legado do mundo cristão. O ato de pôr fim à vida aparece modernamente como patologia, sofrimento ou desequilíbrio psíquico, conduzindo a uma política de prevenção do ato. Em Cassorla (1986), Durkheim (1987) e Botega (2015) aparece aquilo que Foucault denomina de biopolítica, já que a proposta desses estudiosos é a promoção e a valorização da vida. Concluímos que, com a ideia de que a vida deve se dar em uma lógica da superação, intensifica-se o desespero e essa é a doença do homem moderno.
Pôr fim à vida e desespero
A decisão por tematizar o desespero diz respeito ao fato de acreditar que essa é a questão por excelência que abate o homem moderno. Esse homem acreditou que seu querer, seu desejo e sua vontade eram soberanos e que tudo se daria de acordo com aquilo que ele quisesse. A frase de ordem do homem moderno passou a ser "Poder é querer". Assim basta que eu queira para que algo aconteça no sentido do esperado. Se não acontecer, a explicação é a insuficiência de seu querer. Se acontecer, confirma-se a tese. Triste engodo. O querer do homem mostrou-se, pouco a pouco, insuficiente. O sujeito não é o produtor absoluto da ação, como acreditam os modernos. Ao contrário, o homem é que pertence à vida e encontra-se sempre perpassado pelo espírito de sua época. A vida reserva surpresas, mistérios e descaminhos. Essa é a doença do homem moderno, ou seja, o dar-se conta do inalcançável de seu desejo. Esse é o desespero da vontade. Kierkegaard (1848/2008) diz que essa é a doença até a morte, porque dela não se morre, por isso ela nos acompanha até que se morra. Fogel (2010) diz que essa doença é a cadência do descompasso entre o querer e o poder. Por esses motivos é que entendemos que, já que as coisas não acontecem sempre consoantes à vontade e que esse querer ilimitado é doença que não mata, o homem, ainda pleno de querer, quer morrer já que seu desejo não se realiza. Decide assim, seja por mimo, seja por vaidade, seja por mostrar potência, dar fim à sua vida. Fogel denomina a essa posição assumida frente à vida de o homem doente dele mesmo, já que vida, existência, é dor. E a vida que se rebela contra a dor que a vida é, se faz enferma.
O homem que quer a qualquer preço o infinito e o ilimitado é o homem revoltado, já que existir se dá em uma ordem do finito e do limitado. Querer o impossível é presunção e orgulho, enfim, é desespero (Fogel, 1998). Camus (2008) diz que só é desesperado o homem que não se deu conta do absurdo. E, ainda, acredita o escritor que apenas esse homem é capaz de, no desespero, pôr fim à sua vida. Esse homem acredita que a existência tem um sentido inerente à própria vida, algo de uma ordem naturalmente dada. O homem absurdo é aquele que sempre soube que a vida não tem sentido, por isso não se surpreende quando o sem sentido da vida se mostra como tal. Kierkegaard (1848/2008), no entanto, completa tal afirmativa quando ele defende que o homem que não se projeta para o infinito e o ilimitado também cai no desespero de não querer o caráter aberto de sua existência, assim sendo, esse homem nada mais seria que um animal, ou seja, ele estaria em uma mera repetição do mesmo, com total ausência de tempo. Kierkegaard diz que é nessa tensão que se encontra a fé, algo que ninguém pode dar ou tirar de outrem. Eis aquilo que Kierkegaard chama do homem perplexo por sua capacidade de sempre se surpreender com o mistério da vida. Mistério que, a todo o momento, o homem moderno quer desmistificar. Por isso, para manter a vida na ordem do mistério, é necessário que, a cada vez, nos voltemos a ela com a mesma perplexidade do início.
É justamente aquilo que é da ordem do mistério que os modernos querem resolver por meio de teorias e o posicionamento das causas e seus consequentes efeitos. Assim acontece com o suicídio, ou seja, trata-se do mistério que a ciência tenta explicar e prevenir para resolver, ou seja, extirpar esse mal. A ciência se esquece do caráter de mistério que toda a vida em seus caracteres existenciais comporta. Por isso o fenômeno do suicídio sustenta uma incontornabilidade e, quando tentamos dar-lhe contornos, o fenômeno se retrai e, então, não podemos mais ver o modo de acontecer do fenômeno de dar fim à vida.
Pôr fim à vida e desmedida
Foucault (1982), em entrevista a Schroeder, esclarece:
Nos foi ensinado que a partir do século XX não se pode fazer a si mesmo e não se conhece nada de si. A verdade sobre si é uma condição de existência, enquanto que há sociedades onde se poderia perfeitamente imaginar que não se tenta de modo algum regular a questão disto que se é, onde isso não tem sentido, enquanto que o importante é: qual é a arte a ser utilizada para fazer o que se faz, para ser o que se é. Uma arte de si que seria totalmente o contrário de si mesmo. Fazer do seu ser um objeto de arte. É o que vale a pena (p. 8).
Desmedida, hybris é desconhecimento da medida que se conquista na própria existência em curso. Existência é o espaço de constituição de sentidos sempre na cooriginalidade com o mundo. Como nos diz Hölderlin (citado por Heidegger, 2010), no mundo não há medida que possa ser dada ao indivíduo. Assim sendo, cabe ao homem encontrar a medida existencial, ou seja, a medida só pode ser conquistada em sua própria existência.
Heidegger (2012) refere-se ao mundo moderno como um mundo da desmedida, pois impera nesse mundo a lógica da produtividade que, por desconhecer limites, nunca cessa e, assim, torna-se a marca de um tempo compulsivo. Em um mundo em que a medida da existência se obscurece, torna-se difícil que cada um conquiste a sua própria medida. Os limites do que se pode e não se pode, do que se deve e não se deve, passam a ser referidos por normas e critérios externos. O esquecimento do homem com relação àquilo que faz sentido existencialmente constitui-se no motivo pelo qual proliferaram os manuais de autoajuda. E cada vez que dizemos ao outro como proceder e, afinal, o que ele deve fazer, mais esse homem esquece-se da possibilidade existencial de saber o que afinal ele quer e ele pode. A psicologia que segue mais especificamente um modelo disciplinar vai passar a dizer como o outro deve proceder e o que ele é. Assim, rouba do homem a possibilidade de ele mesmo se encontrar em seu sentido.
Foucault (1987) esclarece que a modernidade vige com os modelos explicativos do funcionamento da vida e pelo dispositivo de saber-poder. A verdade das teorias passa a dar voz ao empreendimento de práticas corretivas. Já na antiguidade grega, a ética estava fundada no cuidado de si e na estética da existência, e passa, nos modernos, a se fundar no saber de si (Foucault, 2006). E esse saber é dado pelas disciplinas científicas por meio de normas e condutas que devem ser seguidas. No mundo grego antigo prevalecia o cuidado de si, o homem cuidava de sua existência com a sua própria tutela, medida e referências sem perder a perspectiva da alteridade. E quando isso não acontecia, como mostram as tragédias gregas, as consequências eram funestas.
Na contramão desse modelo específico de psicologia disciplinar, que oferece saída e solução para situações difíceis da vida, afirmamos que, no que diz respeito à realização dinâmica da vida, só podemos dar o que não temos. Isso porque desconhecemos a realização existencial particular. Por não termos uma posição antecipadora é que podemos dar a cada um a oportunidade de conquistá-la. "Dar, então, significa abrir um campo de possibilidades para que cada um possa conquistar a existência que é a sua" (Feijoo, 2014, p. 226).
Assim, entendemos que, no mundo moderno, há uma total e absoluta perda da medida existencial. Por esse motivo, a existência do homem passa a ser desconhecida por ele mesmo. Ao mesmo tempo, proliferam as disciplinas que se esmeram em traçar mapas, perfis e diagnósticos a fim de dizer ao homem o que ele é, e o que pretende, e como deve agir, e pensar e sentir. Em um círculo vicioso, cada vez mais o homem desconhece o sentido de sua existência e, na mesma medida, proliferam as tecnologias de si. Logo, diz-se ao homem qual é o risco que ele corre de cometer suicídio, se ele tem o diagnóstico de depressão, histeria ou psicose. Diz-se também como ele deve proceder. E, assim, damos o que não temos, roubando do homem aquilo que ele tem, ou seja, a possibilidade de conquistar a si mesmo, ou seja, a sua medida existencial.
O suicídio em uma perspectiva existencial
Pensar o suicídio sob o ponto de vista existencial exige assumirmos uma postura fenomenológica, ou seja, que tomemos uma atitude antinatural de modo a nos aproximar do fenômeno sem partir de premissas acerca do suicídio como doença, patologia, sofrimento, desespero, controle. É preciso que possamos suspender qualquer perspectiva moralizante. Para poder sustentar uma modalidade não moralizante do fenômeno suicídio, precisamos destruir fenomenologicamente as concepções correntes sobre o ato de pôr fim à própria vida, para, dessa forma, podermos nos aproximar daquele que diz não mais querer viver, sem a referência de uma moral normativa que estabeleça o que é bom e mau, normal e patológico.
Em defesa de uma postura fenomenológica e existencial na clínica psicológica com pessoas que pensam em suicídio, deter-nos-emos nas conversas de Foucault (1982) com Werner Schroeder, em dezembro de 1981. Eles conversavam sobre aquilo que pensavam sobre as práticas disciplinares em saúde, na postulação de identidades ou categorias de diagnóstico e sobre o suicídio, dentre outros temas. Vamos extrair alguns trechos dessa conversa para podermos mostrar uma perspectiva existencial sobre o tema.
Em uma perspectiva existencial não pensamos a psicologia como disciplina científica como um modo de pensar que diagnostica, prevê e interpreta o fenômeno com bases em uma teoria. Schroeder, em um dado momento, referindo-se à psicologia científica, diz: "A psicologia não me interessa. Não acredito" (p. 6). Foucault concorda, referindo-se aos filmes em que os comentadores tentam traçar um perfil psicológico de seus personagens:
Perdeu-se, em sua vida, no que se escreveu, no filme que se fez quando precisamente se quer interrogar sobre a natureza da identidade de algo [...] Uma existência era uma obra perfeita e sublime e isso os Gregos o sabiam e, no entanto, nós o esquecemos completamente, sobretudo desde o Renascimento (p. 7).
Esse trecho deixa claro o modo como o cineasta e o filósofo dão um passo atrás (atitude antinatural) frente às interpretações psicológicas que destroem a arte, não permitindo que estas se mostrem em seu caráter estético e sensível. Foucault (1988) ainda esclarece como o sensível presente nos gregos foi totalmente obscurecido pelo caráter racional e moral que se solidifica no Renascimento.
Foucault (1998) critica a psicologia que interpreta. Ele diz que a interpretação destrói a criatividade quando, ao interrogar pela natureza de algo, conclui acerca da natureza por meio do estabelecimento de uma identidade. A psicologia, em um modelo disciplinar, atribui a todas as expressões do homem classificações diagnósticas. E continua o filósofo (Foucault, 1982): "A arte de viver é matar a psicologia, criar consigo e com outras individualidades, seres, relações, qualidades que sejam inomináveis" (p. 6). Não queremos matar a psicologia, mas encontrar outro modo de lida, que denominamos existencial. Existencial, que pressupõe a atitude fenomenológica e não disciplinar.
E sobre a morte e o suicídio, Schroeder diz que "Olhar de frente a morte é um sentimento perigoso e anarquista contra a sociedade estabelecida. A sociedade joga com terror e o medo". Foucault completa "Não somente se diz que não é bom se suicidar, mas se considera que se alguém se suicida é porque estava muito mal" (1982, p. 7). Esse diálogo vem ao encontro do que defendemos em dois aspectos: a relevância do sensível, e a defesa de uma psicologia existencial que como tal prescinde da lógica teórica. E, ainda, o posicionamento de ambos nos mostra como as determinações moralizantes e normativas de um determinado horizonte histórico, mundo, encobre totalmente a possibilidade de se pensar mais demoradamente sobre o fenômeno.
Como nosso interesse é no sentido singular que cada um estabelece com a sua vida, nosso foco recai no fato de que Foucault tentou o suicídio em diferentes ocasiões. Nessa entrevista (Foucault, 1982), ele deixa claro o sentido que ele articulava com relação ao dar fim à vida: "Sou verdadeiramente partidário de um combate cultural para re-ensinar às pessoas de que não há uma conduta que seja mais bela, que, por conseguinte, mereça ser refletida, com tanta atenção, quanto o suicídio" (p. 7-8).
Em conclusão, o aumento do índice de suicídio em todo o mundo bem como a prevenção são questões sobre as quais temos ainda que nos debruçar. Com a entrevista acima, certificamo-nos que não há apenas um sentido para a decisão de pôr fim à vida. Por esse motivo, é que não queremos nos apressar em interpretações prematuras afirmando tratar-se o suicídio de coragem ou covardia como diz o senso comum; desespero, como posicionado pelo filósofo; desmedida, como aparece nos gregos trágicos; ou patologia, como defendem os modernos. O suicídio é um ato que guarda em seu interior tanta complexidade e mistério que tal decisão merece ser acompanhada no âmbito da própria experiência daquele que decide retirar-se da vida. Para tanto, faz-se necessário posicionar-se frente àquele que se encontra envolvido com o desejo da morte voluntária, de modo a não guardar nenhum posicionamento moralizante, estigmatizante ou preconceituoso (Lessa, 2018). Eis aquilo que denominamos perspectiva existencial em psicologia.
É na perspectiva existencial em psicologia que discutiremos abaixo a proliferação de medidas e de programas com relação ao modo como o homem deve administrar a sua vida. Pensaremos de que modo podemos proceder para que ele possa apropriar-se de si mesmo e abrir-se para o seu caráter de poder ser, de modo a não ficar aprisionado ao como deve ser.
A lida do profissional de psicologia com aquele que decide pôr fim à vida
Uma reportagem na UOL Notícias, do dia 3 de junho de 2015, informa que a Coreia do Sul é a campeã mundial em número de suicídios. No Japão, os suicídios vêm aumentando vertiginosamente. No ano passado, 25 mil pessoas cometeram suicídio e a maioria é de jovens entre 20 e 40 anos. O professor da Universidade de Temple, Wataru Nishandi, elenca os motivos pelos quais o número de suicídios em seu país é tão elevado. Diz ele que os japoneses, por não terem uma tradição cristã, não moralizam o suicídio, ou seja, pôr fim à vida não é pecado, daí que o suicídio não é uma prática moralmente criticada. Assim sendo, não é necessário estabelecer uma relação direta e causal entre doenças psíquicas e suicídio. Logo, o cientista Wataru (2015) refere-se aos motivos pelos quais, no Japão, as pessoas decidem pôr fim à vida: a solidão, já que a população vem se tornando cada vez mais solitária, principalmente os idosos; a honra, em seu nome, muitos japoneses se suicidam, principalmente para protegerem a família da desonra; pressão financeira, com a alta taxa de desemprego e a perda do status econômico devido às crises pelas quais o país vem passando; isolamento tecnológico e precariedade do sistema de saúde.
Uma reportagem no Psi-Jornal do Conselho Regional de São Paulo (Berenchtein Netto, 2011) do bimestre setembro e outubro de 2011, na sessão Conversando com o(a) Psicólogo(a) com o tema Suicídio: de quem é o problema?, podemos ver que, no Brasil, o número de suicídios vem crescendo de maneira assustadora. A reportagem pergunta como poderia ser uma política pública voltada para a questão do suicídio e revela que o Ministério da Justiça divulgou um estudo do Instituto Sangari sobre o Mapa da Violência de 2011 que mostra:
que o índice de suicídio entre jovens na faixa entre 15 e 24 anos é mais elevado no Brasil do que na maioria dos países e também confirmou a gravidade do problema entre a população indígena: a taxa de suicídios chega a 20 para cada 100 mil índios(as), quatro vezes mais que a média nacional (p. 1).
Na tentativa de mobilizar a prevenção do ato de pôr fim à vida, o Ministério estimulou a iniciativa de realização de Projetos com o propósito de assistir as pessoas que pensam em finalizar as suas vidas. Daí surgiram alguns projetos como o Projeto ComViver, no Rio de Janeiro e no Hospital Ouro Verde, em Campinas. No entanto, mesmo com a criação de projetos de assistência ao suicida, há um alerta para a insuficiência de iniciativas nesse campo. E essa insuficiência pode ser constatada quando vemos o aumento do número de suicídios por diversos fatores, tais como: a inexistência de um estado de bem-estar, o consumo de álcool e outras drogas e as pressões no ambiente de trabalho.
Ainda nessa mesma reportagem, há uma entrevista com Nilson Berenchtein Netto (2011) em que ele afirma:
A partir do momento em que entendermos o suicídio como fenômeno histórico e social, além de orgânico e psíquico e deixarmos de lado concepções que o considerem como "feio", "crime", "pecado" ou "loucura", nós teremos a chance de lidar com esse fenômeno de maneira mais efetiva. Não apenas com o propósito de impedir mortes, mas principalmente com o de garantir vidas (p. 2).
Há uma terceira reportagem que chama a atenção para a necessidade de introduzir os psicólogos na questão do suicídio e, ainda, preocupar-se com a formação do profissional de psicologia para a atuação com as situações em que aparece a decisão de pôr fim à vida.
Dessas três reportagens apresentadas anteriormente, destacaremos algumas informações para reflexão. A primeira delas é sobre o que vem acontecendo para o aumento vertiginoso do ato de pôr fim à vida. Para tanto, é preciso abrir a possibilidade de pensar a decisão de finalizar a vida como motivo e não como consequência de uma causa seja ela orgânica, seja psíquica ou social. A segunda diz respeito a não reduzir a decisão de suicídio à ordem de uma responsabilidade pessoal. A terceira questão consiste em poder pensar o ato de pôr fim à vida saindo de uma perspectiva moralizante. E por fim, encontrar um caminho para pensar a questão sem recair em um manual que opera no como agir para não deixar que aconteça, aproximando-se de algo policialesco; nem recair no polo oposto, ou seja, na indiferença, em que se pensa o suicídio como algo de uma ordem do desejo ou da escolha estritamente pessoal.
Agora vamos às últimas questões: como pensar em uma atuação clínica que não se incline frente a uma perspectiva moralizante, seja ela de uma ordem médica, jurídica ou sacerdotal? O que pensar sobre a culpabilização do suicídio pela insuficiência de espaços de acolhimento ou pelo despreparo dos profissionais? E, finalmente, o que está em jogo na decisão de pôr um fim à vida seja por desespero, coragem e/ou desmedida?
Histórias de suicídio e acolhimento
A questão que agora se impõe diz respeito não só ao ato de pôr fim à vida, mas ao fato da escassez de espaços de acolhimento destinados a situações de suicídio. Com relação ao que diz o Jornal Psi, de que o suicídio é um desafio para a psicologia, iniciaremos por tematizar duas posições de certo modo opostas com relação à inserção do pensamento psicológico nessa problemática. Tanto o professor Berenchtein Netto (UFMS) como Carvalho (Bahia) referem-se ao suicídio como uma questão de saúde pública e um desafio para a psicologia clínica. Berenchtein Netto (2013) analisa o fenômeno do suicídio por um viés social e, portanto, como consequência da ordem social vigente. Ele sugere como postura preventiva uma ação do profissional de saúde no sentido de "promover ou valorizar a questão da vida" (p. 21).
Alguns estudiosos do tema, como Botega (2010; 2015), tendem a posicionar o suicídio como sofrimento psíquico ou como transtorno psicológico e psiquiátrico. Nesse sentido, acabam por reduzir o ato de pôr fim à vida a algo de uma ordem individual, ou seja, é o transtorno ou o sofrimento particular a causa do ato.
Cattapan (2012) critica a proposta de criação de uma rede de controle com fins à prevenção e defende o abandono de uma atitude moralizante com base em uma psicopatologização da vida e de uma postura biopolítica que quer o controle da vida e da morte. Por fim, Cattapan afirma que a lida com o suicídio é uma questão de tolerância. O suicida não tolera a vida; e a sociedade biopolítica não tolera o suicídio.
Com as posições acima, concluímos que ora a questão do suicídio culpabiliza a organização social, ora aponta para a responsabilização individual. No primeiro caso, faz-se necessária a construção de uma nova sociedade com uma política de valorização da qualidade de vida. No segundo, faz-se necessária a criação de núcleos de assistência ao indivíduo que se encontra na decisão de pôr fim à vida. O terceiro posicionamento se mantém em uma perspectiva crítica às duas primeiras posições, em que Cattapan se coloca em uma posição não moralizante, da qual resulta a aceitação da decisão pessoal seja ela qual for. Para poder colocar em discussão as questões acima propostas, vamos apresentar duas situações em épocas distintas em que o desfecho é o suicídio e que, no entanto, se inserem em condições diferentes quanto ao acolhimento, à proximidade dos familiares e ao caráter intimista do ato.
Há mais ou menos seis meses atrás, um fato me chamou a atenção: um rapaz de 23 anos, que vamos chamar de Ryan, encontrava-se perambulando pelos corredores de uma Universidade carioca, trajando terno e gravata. Essa não é uma imagem comum nas universidades brasileiras, principalmente quando se trata de um jovem. O fato provocara estranheza, no entanto, as pessoas passaram por ele, dirigiram-lhe um olhar furtivo e seguiram adiante. Contam algumas pessoas que por ele passaram que, em algum momento, ele perguntara onde poderia encontrar um profissional de psicologia. Talvez não tenha encontrado ninguém, talvez não tenha procurado atendimento. O fato é que esse rapaz se atirou de um andar muito elevado, chegando a óbito.
Nas Universidades, mesmo que haja o curso de psicologia, pode ser que não haja um espaço para atendimento clínico em caráter de emergência, ou seja, de prontidão para a ocorrência dessas urgências. No entanto, para que esse espaço possa existir, muitas condições são necessárias. A primeira delas é que haja estudantes e profissionais de psicologia preparados para receberem pessoas necessitadas de ajuda no tocante à situação de suicídio. Depois, temos que ter um espaço disponível e conhecido pela maioria daqueles que frequentam a Instituição. Ocorre que na situação desse rapaz, não havia nem o espaço para esse atendimento, muito menos pessoas destinadas a esse fim.
Depois desse acontecimento, as pessoas que se encontravam próximas à situação e assistiram a toda a cena, contaram que os pais e familiares do rapaz chegaram imediatamente após o jovem ter se atirado e encontraram seu filho estirado no chão, morto. Nesse dia e nessa hora, aconteceria a cerimônia de formatura do jovem e, por isso, os pais e familiares ali estavam presentes. Contam que o jovem, estudante de engenharia, embora estivesse na listagem dos que se formariam, não iria de fato se formar, pois obtivera reprovação em algumas disciplinas. Seus amigos contaram que ele vinha inquieto com o fato de ter que falar a verdade aos pais e que temia decepcioná-los. Ele mesmo, por vezes, criticava-se pela forma como conduzia seus estudos.
Uma situação clínica acompanhada por Ludwig Binswanger nos idos de 1950, publicada como o caso Ellen West (Binswanger, 1977), o autor considera que Ellen carregava questões que faziam referência à hereditariedade, à biografia e ao percurso da enfermidade em que reiteradamente apareciam as tentativas de suicídio. Ellen queria evitar o fluxo da vida e tudo que dizia respeito ao caráter finito, transitório e precário de sua existência. Ellen, na tentativa de controlar a sua temporalidade, utiliza-se de toda forma de controle, inclusive da alimentação. Ela não queria envelhecer, engordar, enfim, não queria se entregar ao curso da vida. Até que, provavelmente vendo seu projeto fracassar, apenas o que passa a querer é morrer. Ellen diz: "A cada dia que passa, vou ficando mais gorda, mais velha e mais feia. Se minha grande amiga a morte me fizer esperar muito mais, então sairei em sua busca" (Binswanger, 1977, p. 294). Ellen era, muitas vezes, tomada pela angústia, e dizia: "Este é o aspecto terrível de minha vida: está saturada de angústia de terror. Terror de comer, terror da fome, terror do terror. Somente a morte pode libertar-me dessa angústia" (p. 308). Ellen diz que "desde muito pequena teve dias em que tudo lhe parecia vazio, e sofria uma opressão que ela mesma não compreendia" (p. 290). Ela se descrevia como que aprisionada a si mesma e só pedia a morte. A finitude para ela era a esperança da eternidade. "Em uma manhã, em um momento de agitação e ainda meio adormecida, fala dos mortos que gozam de eterno repouso, enquanto que ela continua atormentada; fala de seu enterro" (p. 318). Ellen durante quase toda a vida era tomada por uma grande dor até que quando volta do sanatório, parecendo totalmente curada, chega a sua casa com uma alegria contagiante, prepara um farto jantar para seus familiares, come bastante e todos ficam tranquilos: Ellen havia, definitivamente, se curado. No dia seguinte, ao amanhecer, ela se demorara a juntar-se aos seus pelo café da manhã. Quando a família foi procurá-la, encontraram-na no seu leito de morte. Ellen dera fim à sua vida.
É certo que tanto Ryan quanto Ellen vivem em um mundo em que ser bem-sucedido, tanto profissionalmente como na aparência física, é extremamente bem-visto. A cadência do mundo se dá pelo dever ser o que nos é solicitado, sob o risco de uma vez não atendendo tais prescrições, ser excluído. Sem dúvida, a maioria de nós se deixa tomar por esses anúncios da publicidade. Enfim, nós trememos e tememos em não corresponder. Ellen temia envelhecer e engordar. Ryan parecia se intranquilizar por não corresponder às expectativas. Embora não envelhecer, não engordar e ser bem-sucedido sejam modulações presentes no nosso mundo, que nos convoca incessantemente, ainda podemos decidir tanto corresponder como resistir a tais solicitações. Ryan e Ellen decidiram pôr fim às suas vidas e assim o fizeram. Ellen estava sendo acompanhada. Ryan não tivera acompanhamento. Ambos conquistaram o mesmo destino.
Com isso, queremos ressaltar que, sem dúvida, há lugar para repensar em transformações sociais, há lugar para a criação de programas que acolham aqueles que solicitam ajuda. Cabe aos profissionais, ao não lograrem êxito no ato de evitar o suicídio, não se deixarem manipular para não embarcar na culpabilização engendrada socialmente. Na conversa de Foucault (1982) com Schroeder, este se refere àquilo que ele vê como doença do homem moderno, acusando a psicologia (sem se referir de que psicologia ele está falando) de perpetuar tal doença: "Vivemos num sistema que funciona sobre a culpabilidade. Olhem a doença" (p. 8).
É preciso que nós, enquanto profissionais, envolvidos na arte de estar junto ao outro, seja por meio das ações sócio-políticas, seja no âmbito da intimidade, possamos conhecer a nossa medida, em que querer e poder possam se dar de forma compassada. De outra forma, corremos o risco de ser abocanhados por aquilo que Dillon (2009) denominou de Síndrome de Agar, ou seja, na ânsia de buscar salvar o outro, acabemos como Agar, que deu fim à própria vida aos 33 anos de idade.
Considerações finais
O grande desafio com que nos deparamos ao pensar o suicídio em uma perspectiva existencial foi como encontrar um caminho que não recaísse nas instruções de um manual que dita como se deve ser, mas também não recair na indiferença. Os manuais, os questionários e as escalas de avaliação do risco de suicídio foram o que mais encontramos na atuação do psicólogo e de outros profissionais que lidam com a questão. Os profissionais agem para não deixar que o ato aconteça, aproximando-se de algo policialesco e moralizante, chegando até a proposta de internações compulsórias. Na tentativa de não recair nesse modo de lida, corremos o risco de ficar no polo oposto, ou seja, na indiferença, em que se pensa o suicídio como algo da ordem do desejo ou da escolha estritamente pessoal e, portanto, nada nos cabe fazer a não ser deixar que a pessoa aja naquilo que lhe convier.
Outra questão recorrente naqueles que estudam o tema do suicídio é a de procurar o responsável pela situação. Há aqueles que responsabilizam o indivíduo, com diferentes alegações: portador de uma doença psíquica, frágil psiquicamente etc. Há ainda aqueles que responsabilizam os pais ou a família pelos seus comportamentos de desatenção, conflitos etc. E encontramos aqueles que culpabilizam o Estado, pela manutenção de questões sociais como desemprego, pobreza, falta de oportunidades etc. Na tentativa de nos mantermos fiéis ao método fenomenológico, não trabalhamos com a ideia de causa (culpa) e sim de motivo (liberdade). Para tanto, precisamos dar um passo atrás a algo tão comum em nosso mundo que é a atribuição de causalidade aos fatos. E, ainda, assumimos uma postura que não é indiferente uma vez que se propõe a cuidar, mas que também não cuida ao modo do controle ou ditando o modo como as pessoas devem se comportar. Permanecemos juntos àquele que pensa em finalizar sua vida em uma escuta atenta, de modo a que o outro possa se demorar mais na sua (in)decisão.
O segundo desafio na lida com o suicídio é de como assumir uma posição que não se incline ante uma perspectiva moralizante, seja ela de ordem médica, jurídica ou sacerdotal. Essas ordens que se inserem no nosso tempo são características de um mundo onde ainda predominam as determinações cristãs, que na prática sacerdotal recebem a classificação de pecado. Na medicina, o suicídio é diagnosticado como um ato patológico. E na justiça, até pouco tempo, como crime. E como nós somos homens desse mundo, encontramo-nos totalmente tomados por essas determinações. Todo o nosso esforço no sentido de nos posicionarmos existencialmente acontece no sentido de acompanhar o fenômeno tal como ele se dá existencialmente, e, portanto, livre de qualquer julgamento.
Por não querermos recair em uma posição que nos afastaria da perspectiva do cuidado, no sentido de poder estar junto àquele que - em um pedido muitas vezes mudo - quer um acolhimento atento, é que assumimos uma postura fenomenológica. Para alcançar uma postura de acolhimento sem recair em algo policialesco foi que nos dedicamos à preparação dos profissionais de psicologia para atendimentos clínicos em situação de suicídio.
Nossos estudos sobre o suicídio em uma perspectiva existencial aconteceram de modo que estudantes e profissionais de psicologia se apropriassem de uma postura fenomenológica, e, portanto, não moralizante nem indiferente, sobre a decisão de pôr fim à vida. Para que esses estudantes e profissionais pudessem conquistar um modo fenomenológico de atendimento clínico, precisamos prepará-los mediante três vias de estudos e pesquisas: o exercício da clínica existencial; a compreensão de que as verdades acerca do suicídio são historicamente construídas; e por meio de uma aproximação clínica - para, assim, poderem apreender o sentido que está em jogo quando uma pessoa pensa em dar fim à sua vida.
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Endereço para correspondência:
Ana Maria Lopez Calvo de Feijoo
ana.maria.feijoo@gmail.com
Submetido em: 04/09/2018
Revisto em: 08/01/2019
Aceito em: 19/01/2019
1 Complexo de Agar diz respeito à terminologia criada por Chico Xavier em 1943 para referir-se às pessoas que se dispõem a ajudar e, por se julgarem invulneráveis, não pedem ajuda para si mesmas.