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Revista da Abordagem Gestáltica

versão impressa ISSN 1809-6867

Rev. abordagem gestalt. vol.17 no.1 Goiânia jun. 2011

 

RESENHAS

 

Carlos Diógenes Cortes Tourinho; Veridiana Chiari Gatto

Universidade Federal Fluminense - UFF

 

 

Ciências do Homem e Fenomenologia, 1951

(Maurice Merleau-Ponty)

São Paulo: Saraiva, 1973

Ciências do Homem e Fenomenologia ([1951] 1973) consiste em uma leitura obrigatória para aqueles cujos estudos e pesquisas concentram-se em torno do exame das relações entre a fenomenologia e as ciências humanas. O livro é o resultado de um dos cursos ministrados pelo filósofo francês Maurice Merleau-Ponty (1908-1961) no início da década de 50. Sua primeira edição data de 1951 e esteve sob a responsabilidade do "Centre de Documentation Universitaire" do Collège de France. O leitor perceberá que o objetivo maior do livro consiste em evidenciar os reflexos, bem como os impactos, produzidos pelo projeto da filosofia fenomenológica anunciado por Husserl sobre as ciências humanas. Dentre as ciências do homem que sofreram tais reflexos e impactos, Merleau-Ponty concede, ao longo do livro, um lugar de destaque às pesquisas desenvolvidas em Psicologia, Sociologia, Lingüística e História. Tal leitura revelará ainda, na primeira metade do livro, o esforço do autor em clarificar a especificidade da atitude fenomenológica, bem como da estratégia metodológica adotada pela fenomenologia, mantendo-se, com isso, fiel ao projeto filosófico de Husserl. O autor destaca a originalidade do caminho inaugurado pela fenomenologia, preocupando-se em mostrar que a crítica husserliana ao psicologismo do século XIX não implicaria na aceitação de um logicismo. Já na segunda metade do livro, o leitor deparar-se-á com a tese de Merleau-Ponty segundo a qual haveria uma conciliação possível entre a "intuição de essências" (Wesenschau) - modo de conhecimento próprio da ciência fenomenológica - e o método indutivo adotado pelas ciências positivas, tese que contrariaria, de alguma maneira, a posição assumida por Husserl. Ao final, na conclusão do livro, o leitor não terá dificuldades em perceber o retorno de Merleau-Ponty à preocupação inicial para a qual nos chama a atenção no começo do livro: a de evidenciar a originalidade do caminho inaugurado pela fenomenologia. Porém, tal retorno será mediado pela discussão da problemática da temporalidade na fenomenologia, por meio da qual o autor procura mostrar que, para a atitude fenomenológica, o lugar da filosofia não se situaria nem num tempo descontínuo, nem tampouco em um olhar direcionado a verdades eternas, mas sim, em um "presente vivo" (lebendige Gegenwart) capaz de reanimar todo o passado e todo o futuro pensáveis (p. 70).

No que se refere à crítica ao psicologismo do século XIX, o autor apresenta-nos, com clareza, o argumento husserliano - apresentado nos "Prolegômenos" das Investigações Lógicas (1900-1901) - segundo o qual o erro primordial dos psicologistas consistiria em tomar as "leis do pensamento" em termos de "leis causais psicofísicas" (sugerindo inclusive, com essa abordagem, uma espécie de "física do pensamento"), de modo que o pensamento derivasse diretamente de condições psicológicas. Tal equívoco faz com que os adeptos do psicologismo (tais como, Lipps, Mill, etc.) - ao considerarem as leis do pensamento em termos de dados empíricos - acabassem por confundir o sujeito do conhecimento com o sujeito psicológico, tomando o primeiro em termos do segundo.

Merleau-Ponty lembra-nos ainda que tal crítica se estenderá às abordagens positivistas nas Ciências Humanas, na medida em que as mesmas acabam por restringir todo pensamento examinado ao seu "condicionamento exterior" (na Psicologia, aos processos psicofísicos; na Sociologia, às relações sociais; na História, aos fatos históricos, etc.). Segundo o autor, esta abordagem gera o inconveniente de voltar-se contra quem a emprega (p.21). Ora, se todo pensamento está condicionado a leis que lhe são extrínsecas, o próprio pensamento de quem enuncia esta tese estará sujeito a estas mesmas condições. Husserl denunciaria, então, que tais abordagens nas ciências humanas incorreriam inevitavelmente em um ceticismo. Mas, segundo Merleau-Ponty, a crítica às teorias cujas teses insistem em extrair as leis do pensamento de tal "condicionamento exterior" (processos psicofísicos, relações sociais, fatos históricos, etc.) não levaria Husserl à aceitação de um logicismo, abordagem para a qual se admitiria, para além das cadeias de causas e efeitos psicológicos, a presença de uma esfera de verdade, lugar do pensamento propriamente dito, para o qual o filósofo supostamente se voltaria independentemente da experiência (p. 21). Tal abordagem encontra-se, pode-se dizer, em oposição à perspectiva psicologista, uma vez que, enquanto esta perspectiva procura extrair da experiência as leis do pensamento, o logicismo - ao romper o vínculo com a experiência, analisando "conceitos vazios" - incorreria em um dogmatismo. Merleau-Ponty esforça-se em mostrar, então, que o projeto da filosofia fenomenológica consistiria em uma "ciência do vivido", cujas investigações deslocar-nos-iam para a camada intencional, sem deixar, contudo, de considerar os dados sensíveis do vivido como ponto de partida da intuição originária de um dado objeto intencionado em um cogito atual.

É por meio do recurso metodológico da redução fenomenológica que Husserl superará, portanto, tanto o psicologismo, quanto o logicismo. É na medida em que suspendo meu juízo sobre a posição de existência dos entes mundanos - incluindo também a posição de existência do sujeito psicofísico, objeto de estudo da ciência psicológica - que posso entrar na vasta esfera de significações virtualmente implicadas na intenção de um objeto, adentrando na camada intencional do vivido. Ao operar a redução fenomenológica, não estou negando o mundo tal como um cético, mas apenas "colocando-o entre parênteses" para que ele possa aparecer, em sua doação originária, tal como se apresenta na esfera da consciência transcendental, o que é o mesmo que dizer, para que ele possa aparecer em sua totalidade como "fenômeno". Destarte, na luta de Husserl contra o psicologismo, mas também contra o logicismo, sua visada consiste em reafirmar a racionalidade no nível da experiência, por meio da redução fenomenológica que nos permite pensar a autêntica objetividade na pura interioridade da subjetividade transcendental.

O leitor perceberá ainda o esforço de Merleau-Ponty em evidenciar a crítica de Husserl às ciências positivas, cujo método de investigação consiste na indução (observação sistematizada de fatos particulares, descrição da regularidade desses fatos e inferência de leis gerais). Husserl apóia-se na concepção segundo a qual todas as ciências partiriam de um quadro de essências (na física, uma eidética da "coisa física"; na psicologia, uma eidética do "fato psicológico", etc.). Tal quadro seria, mediante uma atitude reflexiva, aclarado por uma ciência eidética regional por meio da intuição de essências (wesenschau). Cabe lembrar que, em Husserl, não devemos entender a essência (eidos) como essência de uma forma pura que subsiste por si mesma, mas sim, como aquilo que se procura reter no pensamento como algo de invariante acerca do que se intenciona a partir das variações imaginárias as quais a coisa pensada é submetida. Nos termos de Merleau-Ponty: "...o que não pode variar sem que o objeto mesmo desapareça é a essência" (p. 47). A crítica de Husserl às ciências positivas consiste em mostrar que tais ciências - mergulhadas na atitude natural e, por conseguinte, em um realismo ingênuo - promovem uma investigação positiva dos fatos sem considerar o quadro de essências do qual partem, desconsiderando, portanto, a intuição originária do que é investigado. Segundo Merleau-Ponty, no caso da psicologia, o conhecimento dos fatos pertenceria à ciência psicológica, ao passo que a definição das noções que permitiriam elaborar tais fatos pertenceriam à fenomenologia (p. 33). Se as leis inferidas por indução são circunstanciais, pois carecem de exatidão absoluta, Husserl esclarece-nos que a intuição de essências revela-nos a coisa em sua doação originária e, portanto, em um grau de evidenciação apodítico, em uma "ausência absoluta de dúvidas", tal como insiste em ressaltar na introdução de Meditações Cartesianas (1931).

O leitor perceberá, a partir da página 46, que Merleau- Ponty introduz a tese segundo a qual haveria não um prejuízo ontológico entre a "intuição de essências" e a indução, conforme Husserl parece nos apontar, mas sim uma relação de parentesco entre os dois modos de conhecimento. Segundo o autor, ambos os modos constroem-se sobre uma variação: a intuição de essências assenta-se em uma variação imaginária, ao passo que a indução "... procede por variações efetivas, considerando casos múltiplos verdadeiramente realizados" (p. 47). O autor afirmanos ainda que o parentesco entre tais modos de conhecimento é ainda mais estreito. Chama-nos a atenção para a idéia husserliana segundo a qual haveria um quadro de essências do qual partiria a ciência positiva ao praticar a indução, já que o conhecimento do fato conteria um conhecimento eidético virtualmente implicado, mesmo que ainda não apercebido pelo cientista positivo. Para Merleau-Ponty, na medida em que o desenvolvimento das ciências do homem procede de forma imanente ao desenvolvimento do pensamento fenomenológico, abandonando os preceitos positivistas que outrora o nutria, não mais haveria a necessidade de manter velhas dicotomias como o possível e o atual, a essência e a existência; não mais haveria discordância entre ambos os desenvolvimentos. A relação seria, antes disso, uma relação de concordância entre tais modos de conhecimento, posto que imanente (p. 64). Desta forma, torna-se importante frisar que, para o autor, a constatação desta conciliação teria lhe permitido ir além do ponto onde o próprio Husserl jamais teria almejado ir, isto é, o de reconhecer que haveria uma "... homogeneidade fundamental dos dois modos de conhecimento, indutivo e essencial" (p. 49).

Ao final do livro, Merleau-Ponty apresenta-nos algumas considerações de Husserl acerca da temática da temporalidade, esforçando-se, uma vez mais, tal como confirmará o leitor, em evidenciar a originalidade do projeto husserliano. Segundo o autor, para Husserl, não poderíamos jamais passar além do tempo, de modo que a filosofia - como ciência onmitemporal - não se debruçaria sobre verdades que, supostamente, escapariam ao tempo, mas ocupar-se-ia daquilo que é válido para todos os tempos (p. 23). Merleau-Ponty afirma-nos que, entre os contemporâneos de Husserl, haveria uma preocupação em manter a filosofia vinculada ao presente. Dentre os autores que defenderiam esta tese destaca-se Dilthey e sua "weltanschauungs philosophie", concepção segundo a qual a filosofia não seria um conhecimento construído com base em certezas absolutas, fora do tempo, mas, ao contrário, deveria garantir certezas historicamente válidas, sempre parciais, posto que se debruçaria apenas em um dado momento histórico. Para Husserl, o filósofo que pretende se pautar por tais conhecimentos estaria imbuído de necessidades práticas de seu tempo e, portanto, indisposto a entregar sua existência à construção de uma filosofia verdadeiramente apodítica. O esforço do filósofo na construção de um sistema filosófico deveria se pautar no objetivo de construir uma philosophia perennis, que pensando o tempo atual, estaria pensando, igualmente, o tempo em geral e que seria, portanto, também uma filosofia do presente. O verdadeiro lugar da filosofia não seria, pois, um tempo descontínuo, linear, nem tampouco um tempo vazio, eterno, seria, antes, um "presente vivo" (lebendige Gegenwart) que reanimaria todo passado e todo futuro pensáveis. Merleau-Ponty afirma-nos, por fim, que Husserl é levado, no desenvolvimento ulterior do seu pensamento, a superar os dualismos entre fato e essência, tempo e eternidade, ciência positiva e fenomenologia, por não mais reconhecer "a essência fora do fato, a eternidade fora do tempo, o pensamento filosófico fora da história" (p. 74).

 

Referência

Merleau-Ponty, M (1951/1973). Ciências do Homem e Fenomenologia. São Paulo: Saraiva.         [ Links ]

 

 

Recebido em 18.04.2011
Aceito em 05.05.2011

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