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Revista da Abordagem Gestáltica

versão impressa ISSN 1809-6867

Rev. abordagem gestalt. vol.25 no.3 Goiânia set./dez. 2019

https://doi.org/10.18065/RAG.2019v25n3.3 

RELATOS DE PESQUISA

 

Usuários de crack: histórias de vida e subjetividade em narrativas audiovisuais

 

Usuarios de crack: historias de vida y subjetividad en narrativas audiovisuales

 

 

Virgínia Lima dos Santos LevyI; Daniela Ribeiro SchneiderII

IDoutoranda em Ciências Humanas pelo Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Ciências Humanas da Universidade Federal de Santa Catarina. Mestra em Saúde Mental e Atenção Psicossocial pela Universidade Federal de Santa Catarina. Psicóloga (Bacharelado e Formação de Psicólogo) pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Email: virginialevy@gmail.com
IIProfessora Titular no Departamento de Psicologia da Universidade Federal de Santa Catarina e orientadora no Programa de Pós-Graduação em Psicologia (mestrado e doutorado) e Mestrado Profissional em Saúde Mental e Atenção Psicossocial. Possui graduação em Psicologia pela Universidade Federal de Santa Catarina, mestrado em Educação pela Universidade Federal de Santa Catarina, doutorado em Psicologia (Psicologia Clínica) pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e Pós-Doutorado pela Universidade de Valencia-Espanha. Email: danischneiderpsi@gmail.com

 

 


RESUMO

Constituindo-se o uso problemático de crack como grave questão de Saúde Pública, este artigo é parte de dissertação que teve como objetivo compreender a relação entre histórias de vida e projetos de ser dos sujeitos usuários de crack com o consumo da substância e problemas a ele relacionados. Solicitou-se a cinco participantes que fizessem vídeos sobre suas histórias de vida, e que falassem sobre o processo de reflexão sobre suas trajetórias e aspectos de suas vidas presentes ou não nos vídeos. Os dados produzidos foram analisados conforme a Análise de Conteúdo proposta por Ruiz-Olabuénaga. Percebeu-se o ato de consumir crack como mais um dos atos humanos a constituir o sujeito e sua biografia, embora se torne problemático quando promove "suspensão" das outras possibilidades de vida. Verificou-se que eles tenderam a adotar discursos padronizados sobre drogas e usuários, ainda que contradigam suas próprias histórias de vida, embora reconheçam que há algo de particular na sua trajetória de uso e nos processos de tratamento/ recuperação. Esta pesquisa indica a necessidade de estratégias que fomentem a reflexão dos usuários sobre o sujeito por trás da droga, destacando aspectos universais e singulares de suas biografias, tendo na construção de narrativas autobiográficas audiovisuais um instrumento clinicamente potente.

Palavras-chave: Crack; História de vida; Comportamento do consumidor; Narrativas pessoais; Mídia audiovisual.


RESUMEN

Constituyéndose el abuso de crack como grave problema de salud pública, este artículo es parte de disertación que tuvo como objetivo comprender la relación entre las historias de vida y proyectos de ser de los consumidores de crack con el consumo de la sustancia y problemas relacionados. Se pidió a 5 participantes que hiciesen vídeos sobre sus historias de vida y hablasen sobre el proceso de reflexión sobre sus trayectorias y los aspectos de su vida presentes o no en los videos. Los datos obtenidos fueron analizados de acuerdo al análisis de contenido de Ruiz-Olabuénaga. Se observó que consumir crack es como los otros actos humanos que constituyen el sujeto, aunque se vuelve problemático cuando promueve una "suspensión" de otras posibilidades de vida. Se verificó que tienden a adoptar el discurso normalizado sobre drogas y usuarios, incluso en contradicción con sus historias de vida, aunque que reconocían que hay algo singular en el uso y en sus procesos de tratamiento/recuperación. Esta investigación indica la necesidad de estrategias que promuevan la reflexión de los usuarios sobre el "tipo detrás de la droga", destacando los aspectos universales y singulares de sus biografías, con la construcción de narrativas autobiográficas audiovisuales como herramienta clínicamente poderosa.

Palabras clave: Crack; Historias de vida; Comportamiento del consumidor; Narrativas Personales; Medios Audiovisuales.


 

 

Introdução

Dentro - e fora - do campo da Saúde Mental, desponta hoje uma discussão importante relacionada à questão das consequências do consumo de crack e aos contextos de uso. Em levantamento de pesquisas sobre o tema, entre 2000 e 2010, destacou-se a presença de muitos trabalhos sobre aspectos gerais, universais, com foco em alterações nocivas na saúde dos usuários (42,8% dos estudos da área), mas poucos foram produzidos no sentido de compreender os aspectos subjetivos dos consumidores de crack e as implicações atreladas a estes aspectos (apenas 13,4%), conforme dissertação de Daniele Farina (2012).

Isto se aproxima do que encontramos em revisão de literatura, utilizando-se o indexador "crack users", sem determinação de ano de publicação, nas bases de dados Scielo, Pubmed e BVS. Foram encontrados 83 artigos, o que mostra o interesse de pesquisadores no tema. Porém, com os indexadores "crack and life history", apenas nove artigos foram encontrados, dos quais cinco realmente tratavam de aspectos da vida dos usuários de crack (de algum sujeito específico ou do processo de transformação de uma tal área em "Crackolândia", por exemplo). Considerando a importância de se traçar um perfil daquele que consome crack, como se fez em 22,2% dos artigos encontrados no levantamento de Farina (2012), é estratégico buscar uma "compreensão integral e dinâmica do problema" para que se possa planejar intervenções que tornem o cuidado em saúde eficaz, em consonância com o que apregoa a Reforma Psiquiátrica (Brasil, 2005; 2013a), evitando-se enfoques fechados em apenas um dos diversos aspectos da questão, ou ainda fechados somente na "oferta de 'tratamentos' inspirados em modelos de exclusão/separação dos usuários do convívio social" (Brasil, 2005).

Deste modo, ganha espaço o conceito de uma clínica que não seja voltada exclusivamente para a "doença", evitando-se tomar as pessoas reduzidas à dimensão patológica (Campos, 2005): uma Clínica Ampliada, que possa ir além da doença, do mórbido, embora sem desconsiderá-lo (clínica que não deixa de ser clínica); uma clínica que esteja "centrada nos sujeitos, nas pessoas reais, em sua existência concreta, também considerando a doença como parte dessas existências" (Campos, 2005). Sendo assim, a clínica que se propõe à "Atenção Psicossocial" deve englobar aspectos psíquicos e psicopatológicos, mas também sociais. Esta é a clínica associada aos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), embora não se restrinja (nem possa estar restrita) a eles.

É dentro desta perspectiva que se propôs este artigo, fruto de uma dissertação de mestrado. O objetivo geral deste trabalho foi compreender a relação entre as histórias de vida e projetos de ser com o uso de crack e problemas relacionados, visando contribuir com subsídios para a clínica ampliada. Para tanto, foi realizado um levantamento de histórias de vida de alguns usuários de crack; descrevendo a relação da pessoa com seu contexto sociológico (microssocial) e antropológico (macrossocial) atuais e suas implicações no uso do crack, ao discutir a função do uso do crack na vida desses sujeitos por meio das narrativas audiovisuais. Visava-se, com isso, "dar voz"1 a usuários de crack, por meio das narrativas audiovisuais.

 

Método

Propôs-se, para este trabalho, uma pesquisa de enfoque qualitativo, através da metodologia narrativa (Ricoeur, 2012), com base fenomenológica, na qual se tomou o auto-relato como um "(...) locus privilegiado" (Carvalho, 2003) em que os significados da relação do sujeito com o mundo e com sua própria história emergem, possibilitando a compreensibilidade de seu projeto e desejo de ser e de suas escolhas concretas, inclusive de sua relação com as drogas, por meio da produção de vídeos e entrevistas. Ao considerarmos que o usuário de crack é, assim como os outros sujeitos, alguém que se constitui em seus atos, ao dar sentido a suas ações e escolhas (depois de já) passadas, conforme a concepção sartriana de "sujeito", entendemos que o usuário de crack pode, ao produzir relatos sobre si, compreender e fazer compreender diversos aspectos de sua história de vida (tanto os mais particulares, singulares, como os mais gerais, "universais").

Os participantes selecionados para esta pesquisa foram usuários de crack, inseridos em tratamento em um CAPS AD situado no Rio de Janeiro (RJ), há pelo menos um ano, em condições psicológicas para narrar suas próprias histórias, segundo os técnicos de referência que lhes atendem na Unidade. Exigiu-se ainda que tivessem passado anteriormente pela "Oficina de Cinema" do CAPS, espaço de produção de material audiovisual a partir de relatos (sobre os mais diversos assuntos) dos envolvidos em cada encontro. Neste espaço, conduzido pela pesquisadora no período de julho de 2010 a março de 2014, buscava-se fomentar a expressão, o confronto e o lidar com experiências a partir da criação de vídeos, pensando a história e os modos de vida dos usuários em termos de imagem, som e outros efeitos audiovisuais - motivo pelo qual se optou por estes usuários, que já possuem experiência com o uso da linguagem audiovisual como forma de expressão, além de bom vínculo com a pessoa que lhes iria entrevistar (embora dois participantes só a conhecessem de vista e do que escutam de outros profissionais e usuários do serviço). Participaram de todas as fases da pesquisa cinco usuários, quatro dos quais ainda frequentam a unidade assiduamente, e um que se encontrava afastado, mas sentia necessidade de voltar.

Foi solicitado que cada um destes participantes construísse um curta-metragem, em que sua própria relação com o contexto atual e sua história de vida fosse o tema, elaborando roteiro próprio e fazendo a edição e montagem (escolha das cenas e trechos de que seriam compostos, além de sua ordem de apresentação e da inclusão de outros elementos audiovisuais, como imagens estáticas, fotografias, dizeres e trilha sonora, dentre outros) do filme. Esse processo de produção do vídeo foi realizado na presença da pesquisadora, que utilizou este momento como uma entrevista aberta, com gravação digital previamente autorizada pelos sujeitos de pesquisa, estando os participantes orientados quanto à possibilidade de selecionar partes que permitiriam ou não que fossem exibidas, como parte do produto final desta dissertação. Assim, foram colhidos dados através de: 1) Vídeos elaborados pelos participantes sobre a própria história de vida; 2) Entrevistas abertas durante o processo de montagem/edição destes vídeos; 3) Diário de Campo da pesquisadora, que registrou o cotidiano da pesquisa, desde a proposta até a conclusão.

Estes dados foram analisados a partir da Análise de Conteúdo, conforme concebida por Ruiz-Olabuénaga (2012), para quem leitura e compreensão de texto abrangem tanto o texto escrito quanto os textos audiovisuais, "tão importantes e básicos para a compreensão da nossa vida social" (Ruiz-Olabuénaga, 2012, p. 193-195). Para a construção da análise, três passos foram necessários: a eleição da Estratégia de Análise, posto que se deve decidir o nível de profundidade de sentido que se quer alcançar; a construção do Texto de Campo, com a reunião de palavras, frases, comentários, temas presentes no material colhido; e a construção do Texto de Investigação, que consiste principalmente na "categorização das unidades de Registro que compunham o Texto de Campo", quando se alcança o processo de "simplificar reduzindo o número de unidades de registro a um número menor de classes ou categorias", que se pode ver a seguir.

 

Resultados

Além dos vídeos produzidos pelos usuários, esta pesquisa teve como produto o levantamento de dados, examinados conforme o procedimento descrito anteriormente. No processo de categorização, os elementos similares citados pelos participantes e/ou observados pela pesquisadora foram reunidos em Categorias Temáticas, que foram agrupadas posteriormente em Núcleos Temáticos, conforme o quadro abaixo:

 


Quadro 1 - Clique para ampliar

 

Articulando-se estas categorias e núcleos temáticos com a produção científica da área (o que faremos no próximo tópico), é possível perceber muitas semelhanças entre o discurso dos participantes e o discurso acadêmico-científico, principalmente se observamos os núcleos de 2 a 4, que trazem temas muito comuns na literatura sobre o tema. Entretanto, é possível perceber também muitas disparidades - principalmente se observamos a diferença entre o discurso que se quis expor nos vídeos e o relato sobre a própria história de vida. Em alguns momentos, foi notável a discrepância entre as vivências pessoais e o tom dos vídeos, que acentuava aspectos negativos universais, por vezes exacerbando-os.

 

Discussão dos dados

Formado por cinco pessoas, com idades entre 27 e 54 anos, o grupo de participantes desta pesquisa incluiu 2 mulheres cisgêneros e 3 homens cis, diferentes níveis de escolarização, situações conjugais e profissionais. Três, dos cinco participantes, estiveram em situação de rua há menos de três anos. Todos passaram por internações em instituições específicas para tratamento de transtornos relativos ao uso abusivo de álcool e outras drogas (clínicas e/ou comunidades terapêuticas), e um deles falou mais longamente de uma passagem por um manicômio judiciário, embora outros também tenham associado consumo de drogas a relações problemáticas com a Polícia/Justiça. Atualmente todos têm um endereço de referência. Um participante cursa faculdade, e outro está trabalhando, enquanto outros dois fazem "bicos". Dois possuem relacionamentos afetivos.

Partindo destas informações, pode-se dizer que o grupo de participantes selecionados abrange características observadas no perfil nacional dos usuários de crack levantado pela pesquisa da Fundação Oswaldo Cruz (2013b; 2013c). Embora não se tratasse de pesquisa objetiva e, portanto, não se tenha procurado uma representatividade numérica, o perfil dos participantes desta pesquisa esteve bastante alinhado ao perfil encontrado na Pesquisa da Fiocruz, a não ser com relação à idade média, que foi de 42 anos nesta pesquisa - um pouco mais velhos que o perfil levantado pela Fiocruz (30 anos) e, portanto, ainda mais afastados do imaginário social de "jovens que se envolvem com droga e logo morrem", sem um repertório variado de "feitos" em seu histórico de vida. Como no perfil levantado pela Fiocruz, no entanto, os participantes desta pesquisa eram, em sua maioria, solteiros, do sexo masculino, com baixa, porém, não nula escolaridade, sem estar em situação de rua, com maior envolvimento com trabalho informal (60%) que com atividades ilícitas (6,4 a 9%) (Fiocruz, 2013b; 2013c).

Como pudemos ver, ao contar suas histórias de vida, os participantes englobaram muitos elementos para os quais apontam pesquisas anteriores, como esta da Fiocruz. Seja nas escolhas durante o processo de filmagem, seja nos discursos produzidos, os participantes traçaram uma espécie de "perfil" do usuário de crack que não contradiz o "Perfil Nacional": mulheres e homens, que tiveram contato com o processo de escolarização. Apenas um participante só teve tal contato tardiamente em relação à legislação educacional brasileira; outro cursa o Ensino Superior, e é na entrada na faculdade que inicia o seu uso de drogas. Este dado aponta para a necessidade de se investir em novos modelos de programas de prevenção ao uso indevido de álcool/ outras drogas nos ambientes acadêmicos.

Tal necessidade faz coro ao dado sobre a escolaridade dos usuários de crack em cenas de uso da Fiocruz (2013b; 2013c), que havia surpreendido a todos ao revelar que a maioria dos usuários (55%) é de pessoas que estudaram de 5 a 8 anos (da 4ª. à 8ª. série do Ensino Fundamental), e não de pessoas que jamais passaram por etapas do processo de escolarização. É possível afirmar, portanto, que embora o espaço escolar possa funcionar como um fator protetivo ao uso abusivo de substâncias psicoativas, isto não significa que o acesso à educação formal em si, sem melhores estratégias de prevenção/promoção de saúde, sobreponha-se a outros fatores, como questões psicossociais e mesmo a convivência com outros usuários dentro e fora da escola.

Embora o participante 3 fale que não iniciaria um uso de drogas hoje, por saber agora a que o levou tal uso (não sabia antes onde o "levaria"), não é a uma falta de informação sobre drogas, e sim a uma falta de habilidade em lidar com questões da vida e em conseguir um diálogo com a família que o participante atribuiu o seu uso de drogas. Este se-ria, segundo ele, um meio de se sentir alguém que "não tem medo de nada", uma contraposição a uma identificação de si como alguém que tem sido "muito covarde" e que, por não saber compreender que "o medo faz parte da nossa vida", lida com ele fazendo uso de substâncias psicoativas para esquecê-lo. Tal processo, similar ao processo que possibilitou à participante 5 "esquecer" os valores tradicionais e o sentimento de rejeição familiares e lançar-se no mundo como mulher solteira, sem filhos, fã de rock pesado e homossexual, e que possibilitou ao participante 4 esquivar-se do sentimento de rejeição, injustiça e menos-valia que veio ao se ver excluído do esporte que praticava, aproxima-se dos conceitos trazidos por Messas (2015) para explicar a questão da toxicomania. Para este autor, o uso do crack propicia uma intensa "paralisação horizontal" (Messas, 2015, p. 130), que começa na busca de atenuação de ambiguidades quanto aos amigos e ao futuro que a embriaguez oferece, método que se torna ruim pelo estado de isolamento e falsa autossuficiência que pode se produzir no consumo de substâncias como o crack, principalmente quando o contexto social restringe possibilidades. Se o uso é mecanismo que possibilita "sair um pouco" de si e de suas questões, o uso contínuo pode exacerbar demais esta "saída" (ou, como na música [Heluy, 1981] que a participante 2 sempre cantava em seu show, faz viver só de "aparências".2). Restringem-se de tal forma as possibilidades que os aspectos que compunham a biografia do sujeito vão sendo abandonados, e assim, cada vez mais difíceis de retomar (e de servir como ponto de partida para novas possibilidades de futuro - tema que foi tão difícil para os participantes).

Para além do relato sobre o consumo (e desejo x abstinência) de substâncias psicoativas, viu-se, neste trabalho, uma série de atividades humanas, desejos, acontecimentos, como são assimilados pelos participantes. Utilizando a linguagem comum dos modelos de tratamento que conhecem, os participantes relataram suas experiências de vida a partir da questão da droga ("a restrição da identidade a apenas uma atualização de papel", diria Messas [2015, p. 135]), que foi central mesmo quando havia diversos outros fatores envolvidos no curso de suas histórias de vida. A participante 5, como vimos no Diário de Campo, vê na insatisfação com seu trabalho exigente e pouco gratificante e com um relacionamento amoroso "sufocante", além de uma vida sem atividades de lazer, um sinal de instabilidade própria, de alguém que é "fraca e faz coisas erradas." (Participante 5).

Deslegitima, assim, o próprio descontentamento, ao declarar que devia estar satisfeita por ter se tornado alguém que possui emprego, família, acesso a bens de consumo, ou seja, que se "reinseriu" socialmente e não faz uso de drogas, como se fosse esta uma "receita" para se satisfazer com a pessoa que "é" (seguir o padrão socialmente estabelecido, em vez de seguir aquilo que faça sentido para si mesma).

Desconhecendo a complexidade de seu próprio fenômeno (o consumo de drogas), surpreende-se que apenas a retirada deste elemento não seja o suficiente para que se sinta alegre e motivada para a vida, mesmo reconhecendo outros aspectos singulares que lhe constituem, como sua relação com um sentimento de rejeição que foi (se) construindo a partir das situações de sua vida.

Se considerarmos, como Sartre (1987a), que os modos de se engajar no mundo e a subjetividade se misturam, se constroem mutuamente, inseparáveis, torna-se urgente buscar estratégias de intervenção em que os usuários dos serviços de Saúde Mental com transtornos relacionados ao uso problemático de crack (assim como de outras substâncias psicoativas) possam repensar suas histórias de vida de forma integral, multifatorial. Como vimos, a questão do consumo de drogas não é, para os participantes, um fenômeno isolado dos outros que lhe ocorreram ao longo de suas vidas. Ainda que atribuam a ele um "papel central", não deixam de perceber os outros aspectos constituintes de suas histórias de vida (e, consequentemente, de si). Isto se reflete na dificuldade que relataram de falar de suas histórias sem falar de crack, e no fato de que, para falar de crack, precisaram falar de outros fatos de suas histórias:

Então fiquei quase dois anos limpa. Carnaval eu recaí. Assim... A recaída não é legal, não é legal. Não era pra falar, mas vou ter que falar porque eu não consigo... (risos). Ai, eu não consigo ser diferente! (Participante 5)

Outro dado a se observar neste trabalho é que, embora a droga seja declarada a grande impedidora dos projetos de ser dos sujeitos que a utilizam, o que se viu é que muitos outros fatores (como a perda injusta do lugar no barco em que competiria, para o participante 4) também se apresentam como "impedidores". Neste momento, a droga surge, como traz o participante 3, como meio de diminuir o medo, a angústia, e como instrumento para lidar com os impedimentos, as adversidades - algo que podemos ver na fala do participante 1:

Foi o único modo que eu, desde criança, aprendi a viver, e escolhi viver. Porque, nesse mundo, eu não tive estudo, não tive "porra" nenhuma, não tive nenhuma oportunidade. A primeira oportunidade que eu tive foi de ganhar uma pistola e poder "formar3 " na boca de fumo. Olha que "viagem"! É o sonho de qualquer garotinho da minha época. Por quê? Nunca estudou, nunca trabalhou...

Retomando a fala de Sartre sobre Valéry - "[...] é um intelectual pequeno-burguês; [...] Mas nem todo intelectual pequeno-burguês é Valéry" (Sartre, 1987b, p. 136) - não podemos dizer que todo sujeito que se encontrasse nas mesmas situações de vida por que passaram os participantes teriam produzido os mesmos desfechos, ou que teriam se construído como sujeitos iguais. O próprio discurso dos participantes traz diferenças em alguns aspectos, como a relação com os outros usuários de substâncias psicoativas, que podem ser encaradas como benéficas ou como maléficas (cabe lembrar que, como foram selecionados em uma mesma Unidade de Saúde, os participantes convivem entre si, assim como convivem com os mesmos outros usuários do serviço, na maior parte da semana!).

Desponta neste trabalho, portanto, uma importância da valorização das formas de intervenção que valorizem os aspectos singulares dos usuários, ainda que muitas variáveis comuns entre eles existam, como o alinhamento à racionalidade advinda do Modelo Moral e/ou do Modelo Biomédico, assumidas em seu processo de tratamento, como, por exemplo, nos grupos de Alcoólicos Anônimos e Narcóticos Anônimos (Schneider, 2010). O participante 4, por exemplo, inicia seu vídeo com o uso da frase-padrão de início de depoimento dos grupos de mútua-ajuda: "Boa tarde! Meu nome é X., sou mais um adicto em recuperação. E estou aqui pra falar um pouco da minha vida".

Este tipo de grupo parte de uma premissa generalizante: "se você quer o que nós temos, pode fazer o que nós fizemos" (Burns e Labonia Filho, 2011), ou seja, para chegar à "recuperação", o caminho é fazer exatamente o mesmo que fizeram outros "recuperados". Paradoxalmente, mesmo afiliados a esta filosofia, os que a conhecem, como os participantes da pesquisa, percebem que há algo de individual no que chamam de "recuperação":

Agora, a recuperação é individual, porque cada um tem, faz a sua recuperação do jeito que você acha melhor. Porque o que é bom pra mim de repente não pode ser bom pra ele. E o que é bom pra ele de repente não pode ser bom pra mim, entendeu? Por isso que eu falo: a recuperação é individual. [...]. É de cada um. (Participante 4).

Se o sujeito está se criando constantemente através de seu existir no mundo, em constante diálogo com ele, não é surpresa que, ao participar de grupos de mútua-ajuda, a filosofia deste grupo também passe a fazer parte da constituição desses sujeitos (negando ou afirmando-a), como um constituinte que auxilia o sujeito a "ser" ou como um "afunilador indesejado", assim como o que acontece com o próprio uso da droga. Isto foi observado nos discursos deles: para o participante 1, por exemplo, a única maneira de se incluir em um projeto de futuro para ele próprio e para "qualquer garotinho de sua época" de infância/adolescência (desde que "sem estudo e sem trabalho", explica) era aderir à oportunidade de participar do tráfico de drogas, e o uso de crack se relaciona com oportunidades sexuais que não descreve como possíveis sem a mediação da droga. Esta oportunidade responde tanto aos anseios econômicos quanto aos de sensação de pertencimento/filiação, algo também descrito por outros participantes, como o 4, que se reinsere no mundo primeiramente por via da identidade hippie, e depois pela retomada do contato com a família, passando pela sensação de acolhimento nos grupos de tratamento, e a participante 2, cuja relação com a irmã e os amigos, tornou-se, desde muito cedo, mediada pelo consumo de drogas. Estes relatos também se somam ao que foi obtido pela pesquisa da Fiocruz (2013a; 2013b), que trouxe que, além da vontade/curiosidade de sentir o efeito da droga (sem que houvesse espaço para se compreender a motivação dos entrevistados para desejar tal efeito), grande parte dos entrevistados colocou, como fatores que desencadearam o uso de crack e similares, a pressão dos amigos e os problemas familiares ou perdas afetivas.

Sendo assim, em consonância com o modelo dos Determinantes Sociais em Saúde (Buss e Pelegrini Filho, 2015), o consumo e o abuso do crack não se restringiu, na história de vida destes participantes, a questões orgânicas, mas se deu em um emaranhado de questões em diversos níveis, do mais particular ao mais comum, questões microssociais e macrossociais. A relação com a droga foi descrita como um mediador frente ao mundo, um modo de nele tomar parte, ignorando-se outros aspectos da realidade que lhes era apresentada e que, muitas vezes, lhes foi hostil: algo que, por vezes, é adequado e necessário, embora em outros momentos possa se tornar ruim por restringir o repertório de possibilidades de ser/estar no mundo, como aponta Messas (2015).

Neste sentido, vimos Núcleos (e Categorias) Temáticos que aludiram a diversas áreas da vida que se relacionam a um engajamento no mundo, trazidas na dicotomia "ser-sem-drogas"/"ser-com-drogas". Houve momentos em que se falou das drogas enquanto possibilitadoras de sentimentos mais "palatáveis" e outros em que se falou de perdas que: 1) "levaram" ao consumo de drogas, e 2) "decorreram" do consumo de drogas; mas foi constante uma diferenciação entre ser alguém que tem a droga e ser alguém que tem e merece o resto das coisas e possibilidades existentes no mundo.

 

Considerações Finais

Mais que o desejo de fazer algo fora dos padrões, de adotar uma conduta antissocial, ou mais do que algo inesperado e poderoso que toma conta do ser do usuário, o consumo de crack, assim como outras atividades humanas, insere-se nas histórias de vida dos consumidores a partir de uma trama de situações e de relações das quais se possibilita apreender, a posteriori, um sentido. Na execução da narrativa autobiográfica, o consumo de crack não aparece como elemento desconexo, mas como mais um elemento dentre tantos outros que desvelam "sentidos de ser", embora tenha um papel de destaque. Este papel pode ser atribuído não apenas à relevância deste uso nos percursos da vida destes participantes, mas também ao foco atual dos participantes na questão do uso/não-uso, ao fato de terem sido escolhidos em um CAPS AD, ou ao fato de terem sido selecionados para uma pesquisa sobre usuários de crack, como foram informados na entrevista inicial e na apresentação do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, e mesmo pela influência da mídia e do contexto cultural atual que põe luzes nesta substância, demonizando-a. Da mesma forma, também revela a condição de usuários de um serviço de saúde, um CAPS AD, submetidos a uma racionalidade técnica que lhes define horizontes de percepção de si e de seus sofrimentos e problemas relacionados ao uso de substâncias.

Pelas narrativas audiovisuais, foi possível compreender o uso de crack como uma experiência que teve um peso grande para os participantes e que se relaciona com o modo como as histórias de vida dos participantes foram ganhando sentido ao serem narradas. Verificou-se que os próprios usuários reproduzem a lógica hegemônica, demonizadora do uso do crack, quando predominam em suas falas questões relativas ao uso da substância e utilizam pouco a oportunidade de falar sobre si em termos de sua trajetória singular. Em vista disto, tendem a adotar discursos padronizados sobre drogas e usuários, buscando passar lições morais para os prováveis expectadores de seus vídeos, de como não seguir o "nefasto caminho que tomaram", ainda que estes discursos contradigam as suas próprias experiência de vida e as possibilidades que vem construindo mediados por processos de tratamento/ recuperação ou por retomada de relações familiares, afetivas, de estudo ou de trabalho, embora reconheçam que há algo de particular no seu fenômeno do uso e nos processos de tratamento/recuperação.

Daí a importância do método da narrativa, através do uso do audiovisual, como recurso de coleta de dados, que incentivou um olhar de ruptura com o hegemônico, ao provocá-los a pensarem mais sobre as próprias histórias e sobre o modo de con-tá-las. Com isso, o participante da pesquisa pôde realizar reflexões mais aprofundadas sobre si mesmo do que faria se tivesse sido orientado apenas a falar diretamente sobre suas histórias ou a responder perguntas previamente elaboradas. Isto foi mais visível no caso do participante 4, que trouxe, como efeito do produzir e pensar sobre as gravações para o vídeo, uma mudança de perspectiva e atitude com relação à questão de voltar ao trabalho e ao esporte. Em um primeiro momento, queixava-se das oportunidades perdidas, sem citar outras oportunidades; em novo encontro, conta-me que haviam lhe oferecido a oportunidade de voltar a integrar uma equipe de Remo para competições de veteranos no mesmo clube em que treinava quando adolescente, junto com a possibilidade de emprego no mesmo clube (é instrutor de duas modalidades de artes marciais). Diz que não havia ficado animado, mas que agora pensava em aceitar. Pergunta-me se acho que deve. Conversamos sobre o quanto se ressentia, em seu vídeo, de não poder retornar ao esporte, e ele decide, após me ouvir, que é válido aceitar. Faz, assim, o caminho inverso do afunilamento existencial que o uso problemático de crack, junto com suas outras circunstâncias de vida, tinha ajudado a produzir, e volta a enxergar como possíveis as oportunidades que se encontravam no mundo (muitas lhes eram negadas por ser usuário de crack, mas outras já se apresentavam e ele é que não "acreditava" nelas e/ ou em si...).

Este "afunilamento", que deixa o usuário "paradão na esquina4 ", como disse o participante 1, pelo que pudemos ver, não se restringe apenas ao crack, mas pode acontecer das mais diversas formas, e acabar por ser ou não algo funcional para o sujeito. Por conta disto, convém ter um olhar crítico às propostas de tratamento que se centram na meta única da abstinência e focam na promoção de papéis identitários apoiados em um elemento único -afastar a droga, de forma rígida, como o que acontece em algumas clínicas especializadas e nos grupos de mútua-ajuda, desconsiderando as ricas histórias de vida por trás deste uso problemático. Com uma filosofia que julga que todos os usuários sejam iguais, estes locais podem dificultar a abertura do indivíduo às possibilidades de ser perdidas e não focar na construção de novas possibilidades de forma mais personalizada, coerente com suas habilidades, desejos e seu histórico, constituindo um novo tipo de afunilamento existencial (ao trocar de um suposto "viver-para-o-crack" para o "viver-para-o-grupo-de-mútua-ajuda"), o que dificulta o processo de reinserção social e retomada de atividades (trabalho, estudo...) e dos laços sociofamiliares.

Dentro desta perspectiva, pode-se dizer que esta pesquisa aponta para a necessidade de estratégias de intervenção em que os usuários dos serviços de Saúde Mental com transtornos relacionados ao uso problemático de crack (assim como de outras substâncias psicoativas) possam repensar suas histórias de vida de forma integral, multifatorial e "personalizada", onde o modo como o usuário compreende e constrói a si mesmo e às suas relações com o mundo (isto é, sua história de vida) seja respeitado e levado em consideração, e não apenas seus sintomas comuns. Neste sentido, uma das possibilidades de intervenção é o próprio uso de oficinas terapêuticas em que se possa trabalhar com as narrativas audiovisuais, como as que eram desenvolvidas na Unidade, com objetivo de fomentar a reflexão sobre as relações possíveis entre si mesmos e o mundo, como forma de ampliar os horizontes de futuro, e apoiar os planejamentos calcados nestes novos horizontes, processo preconizado pela Política Nacional de Saúde Mental, apoiada no PTS - Projeto Terapêutico Singular. Embora o PTS traga em si a proposta de construção conjunta profissional-usuário de um cuidado personalizado, apoiado nas particularidades de cada caso, tais particularidades acabam invisibilizadas diante das tentativas de padronização dos tratamentos. Deste modo, o usuário acaba por não perguntar por si, pelo seu sentido de ser, e sim pela substância, como pudemos notar na surpresa do participante 3 com a proposta desta pesquisa.

Propõe-se, portanto, a reflexão sobre a potência clínica deste dispositivo, de desfocar das questões simplesmente relativas ao abuso de crack, mas desvelar o conjunto de ações humanas que se escondem por detrás desta "cortina de fumaça". Desta forma, a realização de oficinas em que se possa tanto assistir narrativas audiovisuais, quanto criar as próprias mídias, pode servir como método para outros temas de pesquisa e de clínica, e mesmo para a formação profissional - principalmente para a formação dos profissionais que precisam deixar os modelos generalizantes e aprender a trabalhar sob a lógica do "caso-a-caso", do vínculo, da produção de dispositivos que possibilitem a irrupção do sujeito dentro da clínica e como mediação para retomar seu projeto de ser em questão na situação de suposta dependência, ainda mais quando se trata de população vítima de estigmas sociais.

 

Referências

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Recebido em 12.05.2018
Primeira Decisão Editorial em 21.08.2018
Aceito em 28.08.2018

 

 

1 Atualmente, existe uma discussão quanto à adequabilidade do uso da expressão "dar voz", com a sugestão da substituição por "passar o microfone", em alusão à ideia de que os usuários possuem "voz"; que apenas não é ouvida. Optou-se, contudo, por uma fidelidade ao texto original, embora sem minimizar a importância desta discussão.
2 A participante fez, durante uma década, um espetáculo semanal em que cantava algumas músicas vestida como homem, e aos poucos se despia para revelar que era mulher. Procurando na Internet, encontrei a música que era sempre a segunda a ser cantada: "Aparências" (Heluy, 1981). Nesta música, aparece o trecho: "Aparências, nada mais, nada mais, sustentaram nossas vidas que, apesar de mal vividas tem ainda uma esperança de poder viver".
3 O verbo "formar", neste contexto, refere-se ao ato de assumir compromisso perante outrem que também se compromete lealmente, de modo recíproco; no caso, frente aos colegas de "quadrilha".
4 O participante dá novo sentido a uma expressão que aparecia no refrão de uma música que costumava cantar na Unidade: "Parado na Esquina". Enquanto nesta canção temos como eu lírico um personagem que diz ficar parado na esquina para observar as meninas que passam em direção ao baile funk, levantando a possibilidade de vir a se relacionar com elas em um futuro próximo, na fala do participante estão "parados na esquina" aqueles que, enterrados no cemitério ali próximo, não terão mais qualquer possibilidade de executar novos atos, por estarem encerradas as suas vidas.

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