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Revista da Abordagem Gestáltica

versão impressa ISSN 1809-6867

Rev. abordagem gestalt. vol.25 no.3 Goiânia set./dez. 2019

https://doi.org/10.18065/RAG.2019v25n3.12 

TRADUÇÃO

 

Fenomenologia aplicada: porque é seguro ignorar a epoché*

 

Applied phenomenology: why is it safe to ignore the epoché

 

Fenomenología aplicada: ¿por qué es seguro ignorar epoché?

 

 

Dan ZahaviI; Tradução: Victor PortugalII

IProfessor de filosofia na Universidade de Copenhagen e diretor do Centro de Pesquisa em Subjetividade; desde 2018 é também professor de filosofia na Universidade de Oxford. Suas pesquisas centram-se principalmente nos tópicos de fenomenologia, filosofia da mente e ciências cognitivas. Zahavi também tem trabalhado acerca de temas como Self, autoconsciência, intersubjetividade, cognição social, empatia e intencionalidade. Tem escrito diversas obras como Husserl's Phenomenology (2003) -este traduzido para português-, The Phenomenological Mind (2008/2012) com Shaun Gallagher, Husserl's Legacy (2017) e mais recentemente o livro Phenomenology: The Basics (2019). Zahavi também é co-editor responsável pela revista Phenomenology and the Cognitive Sciences. Center for Subjectivity Research, University of Copenhagen, Copenhagen, Denmark
IIUniversidade Federal do Paraná, Membro do Laboratório de Fenomenologia e Subjetividade (LabFeno)

 

 


RESUMO

A questão de saber se uma investigação e análise propriamente fenomenológicas requerem a performance da epoché e a redução não tem sido apenas discutida dentro da filosofia fenomenológica. É também uma questão que tem sido intensamente debatida dentro da pesquisa qualitativa. Amedeo Giorgi, em particular, insistiu que nenhuma pesquisa científica pode reivindicar um status fenomenológico a menos que seja apoiada por algum uso da epoché e redução. Giorgi fundamenta parcialmente tal afirmação em idéias encontradas nos escritos de Husserl sobre psicologia fenomenológica. No presente artigo examino as ideias de Husserl e argumento que enquanto a epoché e a redução são cruciais para a fenomenologia transcendental, é algo muito mais questionável se elas também são relevantes para uma aplicação não-filosófica da fenomenologia.

Palavras-chave: Fenomenologia; Pesquisa Qualitativa; Psicologia Fenomenológica; Fenomenologia Aplicada; Epoché; Redução; Husserl; Giorgi


ABSTRACT

The question of whether a proper phenomenological investigation and analysis requires one to perform the epoché and the reduction has not only been discussed within phenomenological philosophy. It is also very much a question that has been hotly debated within qualitative research. Amedeo Giorgi, in particular, has insisted that no scientific research can claim phenomenological status unless it is supported by some use of the epoché and reduction. Giorgi partially bases this claim on ideas found in Husserl's writings on phenomenological psychology. In the present paper, I discuss Husserl's ideas and argue that while the epoché and the reduction are crucial for transcendental phenomenology, it is much more questionable whether they are also relevant for a non-philosophical application of phenomenology.

Keywords: Phenomenology, Qualitative research, Phenomenological psychology, Applied phenomenology, Epoché, Reduction, Husserl, Giorgi.


RESUMEN

La cuestión de si una investigación y análisis fenomenológico adecuado requiere que uno realice la época y la reducción no solo se ha discutido dentro de la filosofía fenomenológica. También es una pregunta que se ha debatido acaloradamente dentro de la investigación cualitativa. Amedeo Giorgi, en particular, ha insistido en que ninguna investigación científica puede reclamar un estado fenomenológico a menos que esté respaldada por algún uso de la época y la reducción. Giorgi basa parcialmente esta afirmación en ideas encontradas en los escritos de Husserl sobre psicología fenomenológica. En el presente artículo, discuto las ideas de Husserl y sostengo que si bien la época y la reducción son cruciales para la fenomenología trascendental, es mucho más cuestionable si también son relevantes para una aplicación no filosófica de la fenomenología.

Palabras-Clave: Fenomenología, Investigación Cualitativa, Psicología Fenomenológica, Fenomenología Aplicada, Epoché, Reducción, Husserl, Giorgi.


 

 

Em seu núcleo, a Fenomenologia é um empreendimento filosófico. Sua tarefa não é contribuir ou ampliar o escopo de nosso conhecimento empírico, mas sim recuar e investigar a natureza e a base desse conhecimento. Dada a distinta natureza filosófica dessa empreitada, alguém poderia com razão ponderar se a Fenomenologia pode oferecer qualquer coisa de valor para a ciência positiva. Pode ela de todo informar o trabalho empírico? Entretanto, não pode haver dúvida alguma acerca da resposta a essas questões. A fenomenologia tem por mais de um século providenciado contribuições cruciais a uma variedade de disciplinas nas ciências sociais e humanidades, incluindo a psicologia, sociologia e antropologia. Dentro das últimas décadas, a fenomenologia também tem sido uma importante fonte de inspiração não apenas para debates dentro da pesquisa qualitativa, mas também para a pesquisa existente em ciências cognitivas.

Esse fato levanta questões importantes acerca da relação entre fenomenologia filosófica e fenomenologia aplicada; questões que revivem desacordos clássicos a respeito da própria natureza da pesquisa fenomenológica.

De acordo com uma visão difundida, a fenomenologia deveria, em última instância, não ser definida em termos de sua temática, mas sim em termos de seu método característico. Entretanto, sempre foi um tema de controvérsia como esse método deveria ser em seguida caracterizado. Husserl é bastante conhecido por ter argumentado que a epoché e a redução transcendental são essenciais à fenomenologia, e insistido que aqueles que consideram ambas como irrelevantes poderiam utilizar o termo "fenomenologia", porém não terão uma compreensão adequada do que ela realmente é. Como é também bastante sabido, entretanto essa não é uma visão predominante entre fenomenólogos. É incontestável que nem Heidegger ou Merleau-Ponty fizeram muitas referências à epoché e a redução, embora seja contestado se isso deve-se à sua rejeição da metodologia de Husserl ou por simplesmente tomarem isso como garantido (Zahavi, 2017). Entretanto, é possível muito antes encontrar fenomenólogos que se mostravam inequívocos em sua rejeição à virada transcendental de Husserl. Os primeiros seguidores realistas de Husserl viram o retorno fenomenológico às "coisas mesmas" como um afastamento da (o foco Kantiano na) subjetividade. Para eles, o método da fenomenologia envolvia um interesse com as estruturas essenciais, uma tentativa de obter uma "intuição pura e desobscurecida das essências" (Reinach, 1968), e mesmo que eles tenham consequentemente afirmado que o método fenomenológico envolvia uma forma de variação e redução eidética, em que se desconsidera o hic et nunc dos objetos de modo a focar em suas estruturas essenciais (Scheler, 1973), eles tiveram pouca paciência com a insistência de Husserl na epoché e na redução transcendental.

A questão de saber se uma investigação e análise fenomenológicas apropriadas requerem a performance da epoché e da redução não é, entretanto, apenas exclusiva da filosofia. É possível encontrar uma discussão semelhante dentro da fenomenologia aplicada, particularmente dentro da pesquisa qualitativa. Enquanto a Análise Interpretativa Fenomenológica de Jonathan Smith não recorre à epoché e redução, Max van Manen tem insistido que o "método básico da análise fenomenológica consiste na epoché e na redução" (2017, 2018), a qual ele então, de forma um tanto enigmática, continua a descrever como um abrir-se (epoché) e um fechar-se (redução) (Van Manen, 2017). A referência mais persistente à epoché e à redução pode, entretanto, ser encontrada em Amedeo Giorgi, que por muitos anos tem insistido que uma adaptação do método fenomenológico às ciências humanas requer essencialmente que o pesquisador "coloque entre parênteses ou separe-se de todas as teorias ou conhecimentos prévios acerca do fenômeno" e "retenha consentimento existencial do fenômeno" (Giorgi, 1994). Como Giorgi explica, é essencial que o pesquisador assuma a

atitude da redução fenomenológica, o que significa que ele precisa resistir em postular como existente qualquer objeto ou estado de coisas que estão presentes a ele. O pesquisador ainda considera o que é dado a ele, mas ele o trata como algo que está presente à sua consciência, e ele evita dizer que isso é na verdade o modo pelo qual isso se apresenta a ele (Giorgi, 2012, p. 4).

Ao defender a posição de que a pesquisa científica não pode afirmar um status fenomenológico a não ser que seja apoiada por algum uso da redução (Giorgi, 2010), Giorgi reconhece a diferença entre filosofia e ciência. O tipo de redução fenomenológica que deveria ser utilizada por psicólogos é o que Giorgi chama de redução psicológica fenomenológica (Giorgi 2012), e não a redução fenomenológico-transcendental, a qual foca na consciência como tal ao invés da consciência humana.

Meu foco a seguir será nessas afirmações, e na afirmação de que aqueles que procuram praticar fenomenologia aplicada, i.e., aqueles que buscam usar ideias fenomenológicas em um contexto não-filosófico, tem de utilizar a epoché e a redução se seu trabalho é para ser qualificado como fenomenológico1.

 

1. A Redução Fenomenológico-Transcendental

A sugestão de que há algo como uma redução psicológico fenomenológica (ou psicológico-fenomenológica) pode a princípio soar estranho2. Não teria Husserl introduzido a epoché e a redução precisamente tentando destacar a natureza filosófica distinta da fenomenologia, e para tornar claro o porquê da fenomenologia não ser uma forma de psicologia descritiva, apesar de sua decisão logo arrependida de utilizar essa etiqueta para seu projeto nas Investigações Lógicas? Para recapitular rapidamente a linha argumentativa de Husserl, em sua visão, uma série de questões epistemológicas e metafísicas fundamentais não podem ser investigadas de um modo suficientemente radical enquanto nós apenas vivemos sem problemas na atitude natural. Na atitude natural, nós simplesmente tomamos como certo que o mundo que encontramos na experiência existe independentemente de nós.

Para Husserl, esse realismo básico e natural não pode simplesmente ser pressuposto se queremos tomar seriamente a filosofia. Mais propriamente, ele deve ser criticamente examinado. Mas, para realizar isso, nós precisamos primeiramente nos afastar de nossa imersão ingênua e não-examinada no mundo e suspender nossa crença automática na existência independente-de-mente do mundo3. Mais especificamente, Husserl fala de como a epoché foca e suspende a tese geral (Generalthesis) que pertence essencialmente à atitude natural (Husserl, 1982, p.61). Ao performar a epoché, ao primeiramente colocar entre parênteses ou suspender nossa crença tácita na existência absoluta do mundo, ao não mais tomar simplesmente a realidade como ponto de partida inquestionado, nós começamos a prestar atenção em como e de que forma quaisquer objetos mundanos são dados para nós. Mas ao fa-zê-lo, ao analisar como e de que forma quaisquer objetos se apresentam a nós, nós também acabamos por descobrir os atos intencionais e as estruturas experienciais em relação aos quais qualquer objeto que apareça precisa necessariamente ser entendido. Nós acabamos por nos dar conta de que a realidade é sempre revelada e examinada a partir de uma ou outra perspectiva, e a partir disso acabamos por apreciar nossas próprias realizações, contribuições e a intencionalidade que está em jogo para que objetos apareçam do modo como o fazem e com a validade e o sentido que possuem. Quando Husserl fala da redução transcendental, o que tem em mente é precisamente a análise sistemática dessa correlação entre subjetividade e mundo. Essa é uma análise que direciona da esfera natural de volta (re-ducere) ao seu fundamento transcendental (Husserl, 1960, p.21). Ambas a epoché e a redução podem consequentemente serem vistas como elementos em uma reflexão filosófica, na qual o propósito é de nos liberar de nosso dogmatismo natural e nos tornar conscientes de nossas próprias realizações constitutivas, nos fazer perceber até que ponto consciência, verdade e ser estão essencialmente interligados (Husserl, 1982). Desse modo, de acordo com Husserl, iremos eventualmente ser capazes de alcançar a nossa principal, se não a única, questão enquanto fenomenólogos, a saber a de transformar "a obviedade universal do ser no mundo - para ele [o fenomenólogo] o maior de todos os enigmas - em algo inteligível" (Husserl, 1970, p.180).

Mas se essa é uma interpretação correta da epoché e da redução, se ambas estão intimamente conectadas ao empreendimento transcendental de Husserl, e se ambas são introduzidas de modo a efetuar uma suspensão geral de nossa atitude natural, que permitirá um questionamento filosófico radical e uma apreciação da extensão pela qual a objetividade é uma realização constitutiva, não é então um grande erro sugerir que elas são igualmente essenciais para uma aplicação não-filosófica da fenomenologia?

Giorgi, ao argumentar do modo que o faz, entretanto, está explicitamente recorrendo ao próprio trabalho de Husserl. Seu ponto de referência é, de forma não surpreendente, principalmente os escritos de Husserl sobre psicologia fenomenológica

 

2. A Psicologia Fenomenológica de Husserl

Em conferências e textos como a Psicologia Fenomenológica de 1925, o artigo da Encyclopaedia Britannica de 1927, as Conferências de Amsterdam de 1928, e A Crise das Ciências Européias e a Fenomenologia Transcendental de 1936, Husserl insistiu que suas análises fenomenológicas poderiam prover um sólido fundamento eidético para a Psicologia. Esse é particularmente o caso quando a psicologia enfrenta o fato de que é uma ciência da consciência, e não simplesmente - tal behavioristas como Watson, afirmariam - "uma ramificação experimental puramente objetiva da ciência natural", cujo "objetivo teórico é a predição e controle do comportamento" (Watson, 1913, p.158). De modo a desenvolver-se de forma rigorosamente científica, a psicologia necessita de uma compreensão adequada da vida experiencial. Mas isso é exatamente o que a fenomenologia pode oferecer. A fenomenologia nos faz retornar aos fenômenos experienciais eles mesmos, ao invés de contentar-se com meras especulações e teorias acerca de sua natureza. Ainda, a fenomenologia pode fornecer à psicologia esclarecimentos fundamentais de seus conceitos básicos (atenção, intenção, percepção, conteúdo, etc.). Mais especificamente, Husserl argumenta que o primeiro passo de uma psicologia cientificamente rigorosa é o de obter descrições detalhadas de sua própria temática principal. Mas se cabe à psicologia descrever as estruturas intencionais da consciência, ela tem, como Husserl argumenta na Crise, que utilizar um método específico; ela precisa aplicar uma epoché universal de validade (Geltungsepoché) e efetuar o que ele chama de redução psicológico-fenomenológica (Husserl, 1970, p.239). Em suma, para que a psicologia tematize a consciência intencional em sua pureza essencial, ela precisa empregar a epoché psicológica e a redução (Husserl, 1970, p.244). Afirmações como essa também são repetidas por Husserl em conferências anteriores. No artigo da Encyclopaedia Britannica, Husserl fala de como uma psicologia pura, uma psicologia que busca capturar o essencial do mental, precisa necessariamente aplicar alguma versão da redução e da epoché (Husserl, 1997, p.91). Por vezes, Husserl fala até mesmo da epoché e redução em questão envolvendo uma colocação de parênteses em postulações transcendentais, e argumenta que como resultado da aplicação desses parênteses, se estaria em posição de descobrir a intencionalidade intrínseca do ato mental, uma intencionalidade que está precisamente preservada mesmo que o objeto não exista (Husserl, 1997, p.91, p.246). Husserl também fala em como o psicólogo fenomenológico4 deveria suspender seus preconceitos teóricos originados de outras disciplinas científicas de modo a focar no que é dado, e também que seu objetivo é o de obter insights sobre a correlação essencial entre ato e objeto (Husserl, 1997, p.218-219, p.223, p.230).

Passagens como essas parecem corroborar a posição de Giorgi. Deixe-nos porém examinar mais de perto os argumentos de Husserl. Como veremos, Husserl persegue em seus textos duas linhas de raciocínio bastante diferentes. De um lado, quando Husserl fala de como a psicologia precisa empregar a epoché e a redução para atingir a sua temática principal, ele também surpreendentemente compara isso com o modo pelo qual um físico também necessita empregar a epoché para alcançar a sua temática principal. Toda ciência precisa colocar entre parênteses temas alheios se busca focar em seu tópico específico; toda ciência precisa colocar fora de circuito aqueles fenômenos que são irrelevantes para o tópico em questão. Assim como os físicos precisam empregar uma epoché universal para estudar o corpóreo abstraído de todo o resto, também o psicólogo precisa, comparavelmente, adotar uma "atitude abstrativa" para poder focar na dimensão psíquica (Husserl, 1970, p.230-231, p.239).

É possível encontrar um tipo de consideração similar no artigo da Encyclopaedia Britannica, onde Husserl observa que o tema da psicologia é o ser psíquico da realidade animal. As realidades animais são compostas de dois níveis, o primeiro nível sendo aquele da realidade física espaço-temporal, o segundo aquele da realidade mental. Consequentemente, as realidades animais admitem diferentes tipos de investigação. Elas admitem uma atitude "sistematicamente abstrativa" (abstraktive Erfahrungseinstellung) que apenas foca aquilo que nelas é puramente res extensa. Husserl fala desse foco como "redução ao puramente físico". Entretanto, em adição, elas também permitem uma "atitude abstrativa diferentemente focada" que nos permite focar no "psíquico em sua essencialidade pura e apropriada" (Husserl, 1997, p.87). Colocando de outra forma, apenas uma somatologia física irá explorar animais e seres humanos com um foco metodicamente sistemático em apenas um aspecto de seu ser, o aspecto organísmico animado, e então a psicologia pura irá explorá-los com um foco igualmente sistemático em seu outro aspecto, o aspecto puramente psíquico (Husserl, 1997, p.127). Para o psicólogo, "a redução sistemática psicológico-fenomenológica, com sua epoché concernente ao mundo existente, é meramente um meio para reduzir a psique humana e animal à sua essência pura e apropriada" (Husserl, 1997, p.128).

Se esses comentários são tomados de forma literal, a epoché e a redução psicológicas possuem quase nada em comum com o modo como a epoché e a redução fenomenológicas são normalmente compreendidas na teorização fenomenológica. O propósito da última não é de ignorar ou excluir qualquer coisa de sua consideração. Na verdade, ao suspender ou neutralizar uma certa atitude dogmática em direção à realidade, nós deveríamos precisamente entender melhor essa mesma atitude e vir a apreciar os processos que em primeiro lugar a possibilitaram. Não é coincidência que Husserl ocasionalmente compara a performance da epoché com a transição de uma vida bidimensional a uma tridimensional (Husserl, 1970, p.118). Como ele escreve na Crise:

O que deve ser mostrado em particular e acima de tudo é que através da epoché é aberto ao filósofo um novo modo de experienciar, pensar e teorizar; aqui, situado acima de seu ser natural e acima do mundo natural, ele não perde nada de seu ser e de suas verdades objetivas (Husserl, 1970, p.152).

Por conseguinte, não deveria ser surpresa que Husserl argumente que a redução psicológico-fenomenológica e a epoché são inautênticas e não-genuínas (Husserl 1997, 128). Agora, há razões adicionais óbvias bastante razoáveis para Husserl chegar a esse veredito. A psicologia pura, ou psicologia puramente descritiva, ou psicologia fenomenológica (diferentes noções convergentes) são todas ciências positivas mundanas diretamente habitando dentro da atitude natural. Mesmo que o psicólogo fenomenológico efetue algum tipo de epoché vis-à-vis com o mundo e que se abstenha de postulações existenciais, tanto a vida intencional que ele está investigando quanto os fenômenos psíquicos que ele está descrevendo permanecem fatos mundanos no que pertencem a animais e seres humanos que habitam um mundo pré-existente, tido como certo (Husserl, 1997, p.128). Nessa medida, o psicólogo fenomenológico precisamente não é um filósofo, mas um cientista positivo que deixa algumas questões fundamentais não-questionadas. Claramente, essa é precisamente a razão porque a epoché e a redução psicológico-fenomenológicas precisam ser nitidamente distintas de suas contrapartes fenomenológico-transcendentais.

Mas é aí onde emerge a segunda entrelaçante linha de raciocínio de Husserl. Em algumas ocasiões, ele fala de como a redução psicológica é o primeiro passo preliminar, e como a redução transcendental pode então ser considerada um segundo passo purificador (Husserl, 1997, p.172), cuja efetuação radical do projeto de psicologia descritiva irá por necessidade motivar. Como ele coloca, é possível começar sem nenhum interesse em filosofia transcendental e estar meramente preocupado em estabelecer uma psicologia estritamente científica. Se tal tarefa é buscada de forma radical, e se as estruturas da consciência são investigadas com suficiente precisão e cuidado, será eventualmente necessário, de modo a dar o passo completo, efetuar a virada transcendental, e dessa forma atingir a fenomenologia transcendental. Em alguns momentos, Husserl explicitamente enfatiza as vantagens propedêuticas de abordar a fenomenologia transcendental dessa forma, i.e. através da psicologia fenomenológica (Husserl, 1997, p.174, p.251). Eu logo retornarei a essa motivação; mas, por enquanto, é apenas importante entender que realmente podem haver razões para considerar a epoché e a redução psicológico-fenomenológicas como sendo mais alinhadas à epoché e à redução fenomenológica genuínas do que, digamos, a epoché e a redução supostamente performadas pelo físico ou o matemático. Há, porém, um alto custo por esta próxima afinidade. Aqui está o que Husserl escreve na Crise:

Assim nós entendemos que na verdade uma aliança interna indissolúvel é obtida entre a psicologia e a filosofia transcendental. Mas dessa perspectiva nós também podemos antever que deve haver um caminho através do qual uma psicologia concretamente executada poderia levar a uma filosofia transcendental (Husserl, 1970, p.206).
***

Portanto, vemos com surpresa, penso, que no desenvolvimento puro da ideia de psicologia descritiva, que busca trazer à expressão o que é essencialmente próprio às almas, ocorre necessariamente uma transformação da epoché e redução fenomenológico-psicológica em transcendental (Husserl 1970, 256).

Em última análise, a epoché e redução psicológico-fenomenológicas não constituem um meio termo estável entre a ciência naturalística e a fenomenologia transcendental. Esse é o motivo pelo qual Husserl eventualmente argumenta que não há algo como uma psicologia pura não-transcendental, e que não há sentido em tratar fenomenologia e psicologia transcendental de forma separada. Nas Meditações Cartesianas, ele escreve que a psicologia enquanto estudo da consciência contém uma dimensão transcendental e portanto é no fim parte da filosofia transcendental (Husserl 1960, 147). Na Crise, Husserl escreve que "a psicologia pura em si é idêntica à filosofia transcendental enquanto ciência da subjetividade transcendental" (1970, 258), e que "psicologia pura é e pode ser nada além do que foi buscado anteriormente pela ponto de vista filosófico enquanto uma filosofia absolutamente fundamentada, que pode realizar a si mesma apenas enquanto filosofia fenomenológica transcendental" (1970, 259).

Até agora, ambas as estratégias argumentativas buscadas por Husserl deixam um tanto questionável se a epoché e a redução são realmente essenciais à psicologia fenomenológica. Em uma primeira leitura, a epoché e redução psicológicas possuem pouco em comum com a redução e epoché fenomenológicas exceto parte do nome. Em uma segunda leitura, elas possuem muito em comum, porém esse fato em última análise debilita a própria independência da psicologia fenomenológica, a qual se buscada e desenvolvida de forma consistente será necessariamente transformada em fenomenologia transcendental. Colocando em outras palavras, há algo intrinsecamente auto-debilitador na proposta de que a psicologia fenomenológica, entendida como um distinto método de pesquisa qualitativa diferente de ambas a psicologia naturalista e a fenomenologia transcendental, deve efetuar passos que, se executados corretamente, irão levá-la a ser absorvida pela fenomenologia transcendental.

 

3 A purificação transcendental

Entretanto, Husserl mesmo em algumas poucas ocasiões sugere uma saída desse impasse. Ao final da Crise, por exemplo, Husserl escreve que o psicólogo fenomenológico poderia retornar à atitude natural após ter performado a virada transcendental, e que ele posteriormente poderia praticar uma psicologia transcendentalmente informada ou uma psicologia positiva enriquecida (Husserl 1970, 258). Uma ideia similar pode ser encontrada nas Conferências de Amsterdam, onde Husserl argumenta que, após ter sido primeiramente estabelecida uma firme fundação transcendental, é possível deslocar-se de volta à atitude natural e então reinterpretar tudo que havia sido estabelecido transcendentalmente enquanto estruturas psicológicas (Husserl 1997, 248).

Em um perspicaz artigo de 1991, David e Cosgrove sublinharam essas sugestões de Husserl e buscaram desenvolvê-las ainda mais. Como eles observam, se seguirmos Husserl, deveríamos reconhecer que a psicologia fenomenológica deve em última análise ser situada dentro do framework da filosofia transcendental. Ela tem de ser estabelecida sobre a base de um esclarecimento transcendental fundamental, enquanto disciplina radicalmente reformada e fundamentalmente remodelada que deixou de lado sua ingenuidade transcendental (Davidson e Cosgrove 1991, 88). A principal diferença entre ela mesma e a própria fenomenologia transcendental é simplesmente que a primeira não permanece no solo transcendental, mas retorna à esfera mundana constituída (Davidson e Cosgrove 1991, 88). Mas como uma psicologia que vem após a redução transcendental difere de uma executada antes dela? A que tipo de psicologia isso equivale? Ao esmiuçar mais detalhadamente como essa psicologia transcendentalmente purificada aborda seu tema principal, Davidson & Cosgrove argumentam que ela está interessada na relação intencional/ motivacional entre pessoa e mundo, e que ela começa com uma consideração em primeira-pessoa e subjetiva das experiências relevantes. Em contraste com outras abordagens que podem compartilhar tal interesse, porém apenas de forma a obter uma melhor compreensão acerca do explanandum que será causalmente explicado pelo apelo a diferentes mecanismos subjacentes, a psicologia fenomenológica procede de forma diferente. Ela rejeita o framework naturalístico de acordo com o qual experiências são objetos naturais ocasionados por causas físicas, e em vez disso mantém um foco exclusivo no sujeito psicológico e em suas experiências no mundo-da-vida (Davidson e Cosgrove 1991, 92). Como eles escrevem: "Ao invés de tentar explicar sua experiência com base em causas subjacentes, nós tentamos analisar seu sentido e estrutura a partir da perspectiva do sujeito enquanto foi vivido por ele" (Davidson e Cosgrove 1991, 93). Para Davidson e Cosgrove, psicologia fenomenológica transcendentalmente purificada é consequentemente uma psicologia que considera os significados e estruturas das experiências do sujeito enquanto surgindo de sua própria contínua atividade constitutiva, ao invés de serem meros efeitos de causas naturais. Eles também argumentam que, como resultado de ter primeiro passado pela redução transcendental, o psicólogo fenomenológico está apto a deixar para trás a "atitude natural" das experiências cotidianas no mundo-da-vida em favor de uma "atitude pessoal" da ciência humana (Davidson e Cosgrove 1991, 93).

Esta última observação deveria, entretanto, nos fazer refletir. Nós realmente precisamos performar a redução transcendental de modo a sermos capazes de ganhar acesso à essa atitude pessoal? E a última realmente envolve um afastamento da atitude natural? Ambas as afirmações revelam uma confusão fundamental. A atitude pessoal (ou personalista) não é oposta à atitude natural, mas à atitude naturalista. Para Husserl, a segunda atitude é uma transformação teorética da atitude personalista, que é a atitude em que nós normalmente vivemos, a atitude de nossa vida cotidiana (Husserl 1989, 240, 252). Em resumo, a atitude pessoal não apenas está situada dentro da atitude natural, mas ela também é a atitude que é nosso ponto de partida, ao invés de algo que precisamos alcançar através de um procedimento filosófico complicado. Mas se a psicologia fenomenológica não precisa ser transcendentalmente purificada para permanecer na atitude natural, requer ela então de todo a epoché e a redução fenomenológicas? Como havíamos visto, Davidson & Cosgrove argumentam que o psicólogo fenomenológico precisa manter um foco exclusivo nas experiências dos sujeitos, bem como buscar analisar seu sentido a partir dessa perspectiva pessoal, mas novamente, não é isso o que pesquisadores qualitativos tipicamente buscam fazer? Não estão eles de forma geral considerando a experiência humana um tópico digno de vasta exploração? Não buscam eles tipicamente tomar de forma séria afirmações e preocupações experienciais de seus sujeitos participantes? E não conseguem fazer isso tranquilamente sem ter de preocuparem-se com a epoché e a redução fenomenológicas?

Isso é precisamente o que Morley nega em um artigo de 2010. Morley basicamente concorda com a análise de Davidson & Cosgrove e argumenta que o psicólogo fenomenológico deve primeiramente efetuar a redução transcendental e alcançar uma atitude transcendental hiper-reflexiva antes que ele ou ela possa retornar à dimensão psicológica e aplicar a redução psicológica (Morley 2010, 228-229). Porém, Morley também defende que, a não ser que o pesquisador qualitativo perceba que objetividade é algo que é mantido por nós, e a não ser que ele liberte a si mesmo da convicção firme e arraigada de que o mundo existe independentemente de nossa consciência dele, ele não poderá manter seu comprometimento com a pesquisa qualitativa, mas irá retornar ao paradigma naturalista mainstream, com seu foco em explicações causais e medições quantitativas (Morley 2010, 223-224).

Se essa avaliação fosse correta, iria obviamente corroborar com a posição e abordagem fundamentais de Giorgi. Entretanto, é mesmo verdadeiro que você não pode conduzir pesquisa qualitativa a não ser que você tenha primeiramente passado por uma purificação transcendental e a não ser que sua pesquisa seja continuamente apoiada por um framework filosófico-transcendental? Suspeito que a maioria dos pesquisadores qualitativos iriam discordar e simplesmente continuar com suas próprias pesquisas sem sentirem compulsão alguma em começar a ler Husserl. E o que dizer sobre aqueles que desejam conduzir uma pesquisa fenomenológica? É razoável insistir que qualquer um que deseje conduzir pesquisa em fenomenologia aplicada, qualquer um que deseje utilizar a fenomenologia em pesquisa educacional, psicologia experimental, pesquisa em enfermagem, ciências do esporte, antropologia, sociologia, estudos literários, etc. tenham que primeiramente aprender a suspender a tese geral e várias outras pressuposições metafísicas arraigadas sobre um status de um mundo independente da mente e "resistir de supor enquanto existente qualquer objeto ou estado de coisas que se façam presentes" (Giorgi 2012, 4)? Se profissionais de saúde desejam utilizar ideias fenomenológicas em sua prática clínica, estariam eles proibidos de empregar tais noções como mundo-da-vida, intencionalidade, empatia, experiência pré-reflexiva e corpo vivido de modo a entender como diferentes dimensões da existência humana são afetadas na patologia, doença ou circunstâncias difíceis da vida, a não ser que primeiro dominem os meandros teóricos da epoché e da redução? Não apenas penso que tais afirmações não possuem justificativa teórica, como também tem se mostrado contra-produtivas. Ao invés de deixar pesquisadores qualitativos engajarem com os fenômenos eles-mesmos, têm os desorientado por fazê-los preocuparem-se acerca de meta-reflexões metodológicas e gerado uma grande quantidade de publicações, nas quais protagonistas e antagonistas igualmente debatem-se com esses conceitos complexos, e tipicamente, no fim, acabam interpretando ambos de forma errônea.

Para alguns exemplos, considere inicialmente as interpretações de Langdridge e Paley. Enquanto Langdridge afirma que Husserl, através do processo de colocar entre parênteses, buscou "transcender [...] a correlação noética-noemática e tomar uma "visão de Deus" sobre a experiência" (Langdridge 2008, 1129), Paley escreve que Husserl, através da redução fenomenológica tentou "escapar da experiência (em direção à dimensão da consciência pura)" (Paley 2013, 148). Qualquer um familiarizado com o trabalho de Husserl saberá que ambas interpretações são interpretações errôneas. Para uma leitura mais solidária, considere van Deursen, que em um artigo de 2015 argumenta que Husserl empregou três reduções separadas (van Deursen 2015, 60): a redução fenomenológica, a redução eidética, e a redução transcendental. Enquanto a primeira, segundo van Deursen, foca nas noeses e nos processos de consciência e a segunda foca nos noemata e objetos de consciência, o foco da redução transcendental é no sujeito da consciência e na natureza do ego (van Deursen 2015, 60-65). A preocupação de van Deursen refere-se bastante ao uso da fenomenologia na prática terapêutica, e é possível que esse modo de discutir o procedimento fenomenológico pode ser valioso em um contexto terapêutico. O que é bastante seguro, entretanto, é que a descrição de van Deurzen não possui fundamento algum nos escritos de Husserl. Não apenas Husserl não distingue a redução fenomenológica e transcendental (vide nota 1 abaixo), porém, ainda mais importante, sugerir que a redução fenomenológica foca apenas nas noeses e não no noemata; afirmar que a redução transcendental foca apenas no sujeito e no ego, e não nas noeses e noemata; e insistir que a redução eidética busca apenas descobrir as características essenciais e invariantes dos objetos da consciência e não os atos de consciência, são todas afirmações que fundamentalmente falham em respeitar e reconhecer o correlacionismo de Husserl, o fato de que o objetivo de sua análise fenomenológica não é investigar ou o objeto ou o sujeito, ou o mundo ou a mente, mas investigar sua própria intersecção, inter-relação ou correlação (Zahavi, 2017).

A referência à redução eidética apenas complica mais as questões. Finlay, por exemplo, não apenas têm argumentado que precisamos colocar entre parênteses o mundo natural se desejamos compreender as estruturas essenciais do fenômeno (Finlay 2008, 2, 4), mas também tem apresentado a redução eidética como o passo final do método fenomenológico, um passo que pressupõe a performance prévia da redução transcendental (Finlay 2008, 5, 7). É, entretanto, difícil ver porque isso seria verdadeiro. A tentativa de distinguir características essenciais daquelas que são particulares, acidentais ou incidentais, é fundamental para muitos dos empreendimentos científicos. O físico, o químico, o biólogo e o economista estão todos, de diferentes modos, tentando obter insights fundamentais, insights que capturem o essencial ao invés daquelas características acidentais do tópico sob investigação. Assumir que eles podem fazê-lo apenas após terem performado a epoché e a redução transcendental faz pouco sentido.

 

4 O foco descritivo

A este ponto, pode ser tentador simplesmente mudar de estratégia argumentativa. Talvez o melhor argumento de porquê deveriam psicólogos fenomenológicos, ou qualquer outra pessoa interessada em uma aplicação não-filosófica da fenomenologia empregar a epoché e a redução, não deve ser encontrado no trabalho específico de Husserl em psicologia fenomenológica e em suas afirmações tardias concernentes à convergência final da psicologia e filosofia transcendental, mas sim em alguns de seus escritos iniciais.

De acordo com uma interpretação, por exemplo, é apenas ao performar a epoché que nossa própria vida consciente pode tornar-se um tema adequado de investigação. Nossa preocupação natural e habitual é com o mundo não-psíquico. Quando vivemos na atitude natural, somos inevitavelmente absorvidos por e preocupados com objetos e eventos mundanos, com o o quê da experiência. Ao performar a epoché, ao colocar entre parênteses nossa crença implícita na existência de um mundo independente-da-mente, podemos finalmente reorientar nossa atenção em direção ao como da experiência, deste modo revelando aspectos e dimensões das nossas vidas subjetivas que nós normalmente negligenciamos e ignoramos (Petitmengin et al. 2018, 2).

De acordo com uma interpretação diferente, o objetivo da epoché é suspender nossas várias pressuposições teóricas. O que temos que colocar entre parênteses são nossas ideias preconcebidas, nossos hábitos de pensamentos, nossos preconceitos e suposições teóricas. Ao fazer isso, ao abandonar nossa bagagem teórica, podemos realizar uma virada sem preconceitos em direção ao objeto e chegar à cena com uma mente aberta, de modo a deixar os objetos revelarem a si mesmos assim como são (Finlay 2008, 1-2). Finlay também fala em como a atitude fenomenológica (envolvendo a epoché e a redução) contribuem para uma abertura empática ao mundo que nos permite entrar em contato com os fenômenos eles-mesmos (Finlay 2008, 29).

Ambas as interpretações são bastante difundidas, e ambas podem ser tomadas para corroborar a ideia de que qualquer um interessado em fenomenologia aplicada deve utilizar a epoché e a redução. Porém, ambas as interpretações estão erradas. A afirmação de que precisamos da epoché de modo a observar nossa experiência interna é incorreta não apenas por sugerir que a atitude fenomenológica deveria envolver tal reorientação em direção à experiência interna, mas também por propor que algo como a epoché deveria ser necessária para tal reorientação. A afirmação de que nós precisamos da epoché para colocar entre parênteses quaisquer crenças, opiniões ou noções preconcebidas sobre o fenômeno que está sendo pesquisado é igualmente incorreta, no que ela combina a contribuição específica da epoché (suspender a tese geral da atitude natural) com uma rejeição mais geral da especulação e da explicação, em favor da descrição. Porém, é errôneo ver essa preocupação com a descrição (mesmo as descrições cuidadosas de estados psicológicos) como algo que especificamente demanda a introdução e o uso da redução e epoché fenomenológicas. Não apenas Brentano já em sua Psicologia de um Ponto de Vista Empírico defendeu a necessidade de uma psicologia descritiva e de um estudo cuidadoso da experiência interna, mas quando Husserl nas Investigações Lógicas escreveu "Nós absolutamente não podemos nos contentar com 'meras palavras' [...]. Significados inspirados apenas por intuições remotas, confusas e inautênticas -ou por qualquer intuição que seja- não são suficientes: nós precisamos retornar às 'coisas elas-mesmas'" (Husserl 2001, I/168), ele não havia introduzido as noções de epoché e redução. Ainda, como já apontado, muitos dos seguidores iniciais de Husserl que inspiraram-se em sua insistência na importância de direcionar-se às coisas enquanto encontradas na experiência, não viram motivos para seguir Husserl em sua subsequente insistência no uso da epoché e da redução. Em 1914, Reinach, um dos seguidores iniciais mais talentosos de Husserl proferiu uma influente fala introdutória "O que é fenomenologia?" Ao longo de sua conferência, Reinach explicou a natureza da atitude fenomenológica, enfatizou a importância de aproximar-se da coisa ela-mesma, explicou como alguém poderia vir a aprender acerca de experiências que nem havia percebido que possuía, entretanto, sem mencionar nem ao menos uma vez a epoché e a redução em sua conferência.

É bastante conhecido que Husserl frequentemente se queixava que aqueles seguidores iniciais que haviam falhado em segui-lo em sua virada transcendental tinham, em última análise, falhado em realmente entender seu projeto filosófico, haviam falhado em completamente compreender o que é a fenomenologia. Estou inclinado a pensar que Husserl estava certo (Zahavi 2017). Eu penso que a epoché e a redução são essenciais para filosofia fenomenológica, e que Reinach nessa medida estava carecendo de algo crucial. Eu apenas não pen-so que isso seja igualmente verdadeiro para cada aplicação não-filosófica da fenomenologia.

A esse ponto, o psicólogo fenomenólogico pode estar tentado a simplesmente apelar à autoridade de Husserl. Husserl argumentou que a psicologia fenomenológica requer a execução da epoché e da redução. Por que simplesmente não aderir às suas instruções? Em adição às razões já fornecidas de porque isso seria uma má ideia, também deve ser indagado porque Husserl começou a mostrar esse interesse em psicologia fenomenológica. A partir do contexto, deveria ser óbvio que ele nunca considerou isso um fim em si mesmo, mas na verdade sempre um meio para alguma outra coisa, isto é, a filosofia fenomenológica. Ao longo dos anos, Husserl perseguiu diferentes estratégias quando referia-se à atitude "não natural" do filosofar fenomenológico (cf. Kern 1962). Uma dessas estratégias foi o caminho sobre a psicologia fenomenológica. Quando avaliado o trabalho de Husserl acerca do tópico, é consequentemente importante ter em mente que Husserl estava primordialmente interessado na questão de como facilitar a entrada no pensamento filosófico apropriado, e não em prover instruções concretas de como coletar e analisar dados ou como conduzir entrevistas ou experimentos. Consequentemente, parece ser um engano fundamentar primordialmente um framework metodológico nos apontamentos superficiais de Husserl sobre como desenvolver uma fenomenologia não-filosófica.

 

5 Conclusão

Qual é então o resultado dessas reflexões? Como se espera que seja evidente, não estou propondo que a fenomenologia não deve ser aplicada ou que pesquisadores qualitativos não deveriam buscar inspiração na filosofia fenomenológica. A fenomenologia tem ao longo dos anos provido contribuições cruciais para uma vasta gama de disciplinas empíricas e auxiliado a desafiar teorias dominantes como o psicologismo, behaviorismo, positivismo e outras formas de reducionismo. O motivo pelo qual ela tem conseguido fazê-lo com sucesso é parcialmente porque a fenomenologia está longe de ser mera atividade descritiva. A fenomenologia também oferece considerações teóricas próprias que podem desafiar modelos existentes e suposições subjacentes. O fato de que a fenomenologia também possui essa relevância não-filosófica, o fato de que ela serviu como poderosa fonte de inspiração para tantas disciplinas é parte de seu valor duradouro. Minha preocupação por enquanto tem sido apenas com a questão de saber se aqueles que buscam aplicar ideias fenomenológicas em um contexto não-filosófico precisam utilizar a epoché e a redução. Estaria Giorgi correto em insistir que a pesquisa científica não pode clamar um status fenomenológico a não ser que seja apoiada por algum tipo de redução (Giorgi 2010, 18)? Estaria Morley correto quando ele em uma discussão sobre metodologia de pesquisa fenomenológica qualitativa escreve, "É sempre sobre a epoché"? (Morley 2010). Eu obviamente discordo. Existem outras características da filosofia fenomenológica que são muito mais relevantes para um pesquisador qualitativo (cf. Gallagher e Zahavi 2012; Zahavi 2018; Zahavi e Martiny 2019).

Permita-me como conclusão fazer um apontamento histórico. Se se considera como a fenomenologia tem com sucesso sido aplicada em disciplinas como psicologia, psiquiatria, sociologia, antropologia etc., ao longo dos últimos 100 anos, é notório como raramente é encontrada referência e utilização da epoché e da redução, muito menos algum compromisso com o projeto transcendental de Husserl.

Algumas das primeiras influentes aplicações da fenomenologia foram nos campos da psicopatologia e da psicologia experimental. Já em 1912, Jaspers publicou um curto artigo delineando como a psiquiatria poderia beneficiar-se da fenomenologia Husserliana (Jaspers 1912). Alguns anos depois, Minkowski refletiu sobre como a filosofia fenomenológica poderia ser relevante para a prática clínica e argumentou que o uso de um framework e uma abordagem fenomenológicos poderiam auxiliar o psiquiatra a compreender melhor o mundo do paciente. Ao mesmo tempo, entretanto, ele também enfatizou como a filosofia fenomenológica poderia aprender a partir de seu envolvimento com a psiquiatria e psicopatologia. Investigações psicopatológicas, por exemplo, poderiam direcionar a um refinamento das análises fenomenológicas, na medida em que eles possam apontar para aspectos e dimensões específicos da experiência que os filósofos haviam negligenciado (Minkowski 1970, xxxix, 6, 171). No campo da psicologia experimental, figuras como Katz não apenas argumentaram que a fenomenologia de Husserl era indispensável à psicologia (Katz 1950, 18, 1999, 5), como também mostraram como insights e idéias da fenomenologia poderiam direcionar a melhores experimentos e teorizações, assim como técnicas experimentais poderiam ser usadas para refinar as observações e explorações fenomenológicas, e assim tornar as descobertas mais confiáveis e acessíveis intersubjetivamente5.

O que primariamente exerceu uma influência nestas e outras figuras contemporâneas como Schilder, Straus e Buytendijk frequentemente foram, entretanto, ideias já articuladas nas Investigações Lógicas. Essas ideias incluíam a insistência na importância em tratar o fenômeno em sua completa concretude, a importância de descrições sem preconceitos, e a ambição de evitar o que Spiegelberg chama de "o constrangimento do fenômeno pelas teorias preconcebidas" (Spiegelberg 1972, 308)6. Em contraste, a insistência de Husserl na epoché e na redução, sua explícita defesa do idealismo transcendental, sem mencionar suas conferências sobre psicologia fenomenológica não parecem ter tido tanto impacto -Buytendijk é conhecido por ter dito que as Conferências de Amsterdam de Husserl fracassaram em impressioná-lo (Spiegelberg 1972, 282). Spiegelberg finaliza sua impressionante pesquisa Phenomenology in Psychology and Psychiatry argumentando que é urgente libertar-se de algumas das tecnicalidades da filosofia de Husserl se é para ser possível um verdadeiro intercâmbio em ambas as direções entre a psicologia e fenomenologia, e ele explicitamente alerta contra um "retorno ortodoxo à Husserl" (Spiegelberg 1972, 366). Nós deveríamos nos perguntar qual abordagem produziu os resultados mais impressionantes, inovativos e influentes: a abordagem heterodoxa dos psiquiatras e psicólogos fenomenológicos clássicos ou a recente e mais ortodoxa abordagem de Giorgi e colegas.

 

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Revisão Técnica realizada pelo grupo do LabFeno/UFPR
* Publicado originalmente na revista Continental Philosophy Review (ISSN 1573-1103), em 09 de Abril de 2019. DOI: https://doi.org/10.1007/s11007-019-09463-y. Licensed under the CC BY 4.0 license: https://creativecommons.org/licenses/by/4.0/. Agradecemos à editoria, a permissão para tradução.
1 Ao avaliar essas afirmações, terei de entrar em algum nível de detalhe com o trabalho de Husserl. Claramente isso não quer sugerir que Husserl é o único filósofo que pesquisadores qualitativos deveriam acessar e dedicar seu tempo, embora a posição de Giorgi possa ser interpretada como acarretando exatamente isso. Colocando de outra forma, pesquisadores que foram primariamente atraídos e inspirados pelo trabalho de Heidegger, Sartre, Merleau-Ponty ou Levinas irão sem dúvida ter seus próprios problemas com as afirmações de Giorgi.
2 Uma nota sobre terminologia é necessária. Husserl não é sempre consistente em sua escolha de termos. Embora ele ocasionalmente fale de uma redução fenomenológico-psicológica (Husserl 1997, p.128, p.235), ele mais frequentemente chama isso de redução psicológico-fenomenológica (Husserl 1997, p.112, p.126); porém, por vezes, simplesmente fala da redução psicológica (Husserl 1977, p.179, p.128). Husserl também utiliza o termo redução fenomenológica e redução transcendental de forma intercambiável (Husserl 2019, p.284), e frequentemente fala da redução fenomenológica-transcendental (Husserl 1969, p.258; 2019, p.331). Seria um grande erro sugerir - baseado no uso desses diferentes termos - que Husserl estava operando com seis diferentes reduções.
3 (Nota do Tradutor). O termo mind-independent é de difícil tradução para o português. Bastante utilizado na literaturafenomenológica contemporânea em língua inglesa, refere-seàquela consideração - realista - de que há um mundo queexiste mesmo sem ter uma consciência que o pense. Tal proposta é, para a fenomenologia, errônea, uma vez que existeuma necessária constituição do mundo a partir da intencionalidade da consciência.
4 (Nota do Tradutor): Buscamos a partir daqui, e em diante, traduzir o termo do original "phenomenological psychologist" por "psicólogo fenomenológico".
5 O que já encontramos naquela época é consequentemente um vívido exemplo do que posteriormente tornou-se conhecido como uma relação de mútua iluminação (Varela et al. 1991, 15) ou de esclarecimento mútuo (Gallagher 1997). Não era uma questão de simplesmente importar e aplicar idéias prontas de um lado para o outro; não era uma rua de via única da filosofia para psicologia, mas um intercâmbio de mão dupla, onde ambos os lados poderiam se beneficiar da interação.
6 Nota do Tradutor: A citação que Zahavi faz de Spiegelberg é de difícil tradução literal, uma vez que refere-se à aplicação de "camisa de força" pelas teorias sobre os fenômenos.No original: "premature strait-jacketing of the phenomena bypreconceived theories".

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