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Pesquisas e Práticas Psicossociais

versão On-line ISSN 1809-8908

Pesqui. prát. psicossociais vol.11 no.3 São João del-Rei set./dez. 2016

 

Condições de vida, pobreza e consumo de álcool em assentamentos rurais: desafios para atuação e formação profissional1

 

Living conditions, poverty and alcohol consumption in rural settlements: challenges for professional action and training

 

Condiciones de vida, pobreza y consumo de alcohol en territorios rurales: desafíos para laformación y actuaciónprofesional

 

 

João Paulo MacedoI; Magda DimensteinII; Jáder LeiteIII; Candida DantasIV

IDoutor em Psicologia (UFRN). Professor Adjunto da Universidade Federal do Piauí/UFPI. E-mail: jpmacedo@ufpi.edu.br
IIDoutora em Saúde Mental pelo Instituto de Psiquiatria da (UFRJ). Professora Titular da Universidade Federal do Rio Grande do Norte/UFRN. E-mail: mgdimenstein@gmail.com
IIIDoutor em Psicologia Social (UFRN). Professor Adjunto da Universidade Federal do Rio Grande do Norte/UFRN. E-mail: jaderfleite@gmail.com
IVDoutora em Psicologia (UFRN). Professora Adjunta da Universidade Federal do Rio Grande do Norte/UFRN. E-mail: candida.dantas@gmail.com

 

 


RESUMO

Objetivou-se investigar o consumo de álcool entre moradores de assentamentos rurais no RN e PI, identificando o padrão de uso e a relação com as condições de vida da população. Ademais, problematizar a atuação e formação profissional nesses territórios. Desenvolveu-se estudo descritivo-exploratório em 15 assentamentos nos dois estados (RN = 9 e PI = 6). Aplicou-se questionário sociodemográfico e o AUDIT em 1.999 moradores (752 homens e 1.247 mulheres). As famílias são compostas por até cinco pessoas, 47 anos em média, ganham de ½ a 2 salários, ensino fundamental predominante, fonte de sustentação na agricultura familiar, prestação de serviços, aposentadoria e programas sociais. O estudo mostrou que as condições de vida, fragilidades na infraestrutura dos assentamentos, gênero, renda, acesso aos serviços de saúde e educação, são fatores relacionados ao consumo problemático de álcool. Indica-se a necessidade de reorientar práticas e a formação profissional perante os determinantes da saúde mental da população do campo.

Palavras-chave: Saúde mental; álcool; políticas públicas; população do campo; formação.


ABSTRACT

This study aimed to investigate the alcohol consumption among residents of agrarian settlements in Rio Grande do Norte and Piauí, identifying usage patterns and the relationship with the living conditions of the population. Moreover, it aimed to problematize the professional action and qualification in these areas. We developed a descriptive exploratory study in 15 rural settlements in both states (RN = 9 and PI = 6). We applied a sociodemographic questionnaire and the AUDIT in 1,999 people (752 men and 1,247 women). The families were composed by up to 5 people, mean age of 47 years, earning between ½ and 2 times the minimum wage, predominantly primary school educational level, source of income was family agriculture, services, pension, and government benefits. The study showed that the living conditions, weaknesses in the infrastructure of the settlements, gender, income, access to health and educational services are factors related to problematic use of alcohol. These results indicate the need for guiding professional practices and qualification concerning determinants of mental health in rural populations.

Keywords: Mental health; alcohol; public policy; rural population; qualification.


RESUMEN

Se pretende investigar el consumo de alcohol entre los habitantes de asentamientos rurales en RN y PI, identificando el patrón de uso y la relación con sus condiciones de vida. Nuestro objetivo es discutir la actuación y la formación profesional para el trabajo en estos territorios. Hemos desarrollado un estudio exploratorio descriptivo en 15 asentamientos rurales (RN=9/PI=6). Se aplicó cuestionario demográfico y el AUDIT a1.999 habitantes(752 hombres y 1.247 mujeres). Las familias son compuestashasta por 5 personas, 47 años en media, renta de ½ a 2 salarios mínimos brasileños, nivel fundamental de educación predominantemente, dependientesde agricultura familiar, prestación de servicios, jubilación y programas sociales. La investigación demostró cómo las condiciones de vida, las debilidades en la infraestructura de los asentamientos, la pobreza, elgénero, la educación, los ingresos, la ocupación, el acceso a los servicios de salud y la educación, son factores que influyen en el uso problemático de alcohol. Estos aspectos deben tenerse en cuenta para reorientar las prácticas y la formación profesional en psicología desde las necesidades de salud mental de la población rural.

Palabras claves: Salud mental; alcohol; políticas públicas; población del campo; asentamientos rurales; formación.


 

 

Introdução

O álcool é a substância psicoativa mais consumida e acessível em todo o mundo na atualidade. O alto consumo é considerado um problema de saúde pública, desencadeando inúmeros prejuízos à saúde, além de impactos nas dimensões social, laboral, familiar e econômica. Em âmbito global, o consumo de álcool tem aumentado consideravelmente nas últimas décadas, com predominância em países em desenvolvimento. Observa-se, inclusive, maior aumento em países que contam com pouca presença de políticas públicas voltadas para atenção ao álcool e outras drogas (OMS, 2014).

Dados da Organização Pan Americana (OPAS, 2015) reafirmam a preocupação das autoridades sanitárias diante do aumento do consumo de álcool nas Américas. As três faixas do continente americano (norte, central e sul) consomem mais álcool que todo o resto do mundo. Ademais, nos últimos cinco anos os episódios de consumo excessivo (ECE) ou em bingedrinking aumentaram significativamente, passando de 4,6% para 13,0% entre as mulheres e 17,9% para 29,4% entre os homens. Dentre os países com maior consumo de álcool puro, per capita, o Brasil aparece na quarta posição (13,6 litros) entre os homens, empatado com os EUA, Chile e Argentina. Cabe assinalar que esses são os países da América do Sul com maior consumo de álcool puro entre os homens. No caso das mulheres, o Brasil aparece na sétima posição (4,2 litros), empatado com o Uruguai, perdendo para o Chile (5,5 litros), Venezuela, Paraguai, Argentina (5,2 litros) e Guiana (4,7 litros).

Sobre a prevalência de episódios de consumo excessivo de álcool, o documento da OPAS (2015) destaca essa prática nas Américas: um em cada cinco consumidores faz uso de álcool de maneira excessiva (ou em binge) pelo menos uma vez por mês. Esse índice, que representa 22% da população investigada, está acima da média mundial, que é de 16%. A maior preocupação é o avanço desse padrão de consumo excessivo entre os adolescentes de 15 a 19 anos, resultando no segundo maior no mundo (29,3% nos homens e 7,1% nas mulheres), perdendo apenas para os países da Europa (40% nos homens e 22% nas mulheres).

Além dos aspectos relacionados aos riscos, padrões de consumo, gênero, idade e componentes culturais (OPAS, 2015; Wolleet al., 2013), os estudos também apontam aspectos relacionados ao desenvolvimento econômico de um país, região ou continente e o próprio contexto de crises econômicas (estruturais e conjunturais) do capitalismo contemporâneo como fatores que impactam sobremaneira na saúde das populações (Antunes, 2015). Situações de desemprego, pobreza, endividamento ou perda da capacidade socioeconômica estão associadas ao surgimento de sofrimento psíquico e/ou agravamento de quadros de transtornos mentais, com destaque para depressão, ansiedade, suicídio e consumo de álcool e outras drogas (Silva, Cardoso, Saraceno& Almeida, 2015).

Muito embora os estudos sobre padrões de uso problemático de álcool em grupos vulneráveis tenham ganhado preocupação em nível mundial e nacional, há uma carência de investigações voltadas especificamente para populações rurais, principalmente em áreas de assentamentos da reforma agrária, foco deste estudo. Ao considerarmos a complexidade dos fatores anteriormente referidos, entendemos que eles ganham novos contornos e singularizações quando contrastados com as condições de vida e infraestrutura dos assentamentos. Ou seja, as fragilidades e entraves da política de reforma agrária em curso no país, aspectos ambientais, modos de produção e no trabalho no campo, aumento do desemprego, pobreza e dificuldades de acesso aos serviços de saúde, educação e proteção social, são elementos que agravam as vulnerabilidades desses moradores.

Como complicador desse quadro, os problemas de saúde mental comumente não encontram respostas em relação à complexidade de questões enfrentadas e soluções nos sistemas nacionais de saúde em nível mundial (Santana, 2015). No Brasil não é diferente, especialmente em se tratando das populações rurais. Em termos do Sistema Único de Saúde (SUS), as populações rurais enfrentam problemas de acesso aos equipamentos de saúde devido à fragilidade quanto à cobertura do Programa de Agentes Comunitários de Saúde (ACS), da Estratégia de Saúde da Família (ESF) e do Núcleo de Apoio à Saúde da Família (NASF) em suas localidades. De acordo com o Ministério da Saúde/Secretaria de Assistência à Saúde e Departamento de Atenção Básica (DAB) há 332.289 ACS e 48.410 equipes de ESF em todo o país, enquanto o teto de cobertura estabelecido é de 492.854 ACS e 96.981 equipes da ESF. Observa-se, portanto, um déficit considerável quanto à implantação dessas equipes. Tais discrepâncias refletem-se no índice de cobertura dos domicílios e moradores cadastrados em Unidades Saúde da Família (USF) em todo o Brasil: somente 50,6% e 53,3%, respectivamente, nas áreas urbanas; 70,9% e 72,3% nas áreas rurais (Malta et al., 2016). Especificamente em relação ao NASF, são 5.067 equipes (tipo 1, 2, 3) implantadas, as quais têm dado pouca cobertura às áreas rurais. Esse déficit de equipes NASF tem relação direta com as 48.571 equipes da ESF ainda não implantadas, resultando no percentual de 32% municípios (1.798) sem qualquer cobertura NASF em todo o país.

Apesar dos esforços e avanços para ampliar a cobertura de serviços em um país com dimensões continentais e uma diversidade cultural ímpar, o subfinanciamento das políticas sociais, as desigualdades sociais e os mecanismos burocráticos de gestão acabam por repercutir no acesso e uso dos serviços de saúde pela população. A recente avaliação da Atenção Básica no âmbito do Programa Nacional de Melhoria do Acesso e da Qualidade da Atenção Básica (PMAQ-AB) ratifica esse quadro. Mesmo considerando que a ESF tem se configurado como modelo de organização das ações em 95% dos municípios brasileiros, sendo a porta preferencial de entrada no sistema, chama a atenção as desigualdades de acesso. O dado mais preocupante é o fato de que das 17.202 equipes pesquisadas no PMAQ, 67,88% referiram não realizar qualquer ação direcionada à população rural, assentados e quilombolas, e em relação às que realizam alguma ação para esse público, 79,9% não contam com transporte disponível para viabilizar tais atividades e 68,79% não realizam a gestão dos casos mais graves que precisam de atendimento em outros pontos de atenção (CEBES, 2014).

Embora tenhamos um sistema de saúde universal e público como o SUS e uma potente ferramenta como a Estratégia de Saúde da Família (ESF) na Atenção Primária (AP), um dos grandes desafios é fazer com que suas ações se efetivem em todo o território nacional, em espaços de difícil acesso, onde as condições de infraestrutura e comunicação, os modelos de gestão pública, a falta de redes integradas e intersetoriais e a própria formação dos profissionais não acompanha as transformações do setor. Esses problemas não podem ser desconsiderados, se o objetivo é diminuir as iniquidades, ampliar o acesso e transpor as fragilidades do aparato técnico-prático e competências profissionais na oferta de ações e cuidado à saúde mental, especialmente nos casos de consumo problemático de álcool na atenção primária.

Partindo desse rol de preocupações, investigou-se acerca dos padrões de uso de álcool da população moradora de assentamentos de reforma agrária no Rio Grande do Norte e Piauí, buscando conexões com as condições de vida e trabalho no campo. Considera-se que o conhecimento das necessidades de moradores rurais é extremamente desafiante para a atuação e formação profissional dos trabalhadores nesses territórios, em especial dos psicólogos.

 

Método

Trata-se de uma pesquisa do tipo descritivo-exploratória realizada em nove assentamentos rurais do RN e seis no PI. A escolha desses assentamentos seguiu os seguintes critérios: a) assentamentos federais cadastrados no Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA); b) assentamentos com mais de cinco anos de criação pelo INCRA; c) assentamentos com o maior número de famílias cadastradas no INCRA em cada uma das mesorregiões de cada estado, possibilitando uma melhor distribuição territorial dos assentamentos investigados. A entrada em campo se deu por meio do contato com a liderança de cada assentamento. Após aprovação, as equipes de pesquisa se deslocavam para os assentamentos, onde permaneciam por 2 ou 3 dias. A aplicação dos instrumentos foi feita na residência dos moradores.

 

Table 1

 

Os instrumentos de coleta foram o Alcohol Use DisordersIdentification Test- AUDIT (Babor, Higgins-Biddle& Monteiro, 2001), adaptado e validado para o Brasil por Figlie, Pillon, Laranjeira e Dunn (1997) e questionário sociodemográfico aplicados em 1.999 pessoas, sendo 796 no RN (368 homens e 428 mulheres) e 1.203 no PI (384 homens e 819 mulheres). O AUDIT possibilita classificar o consumo de álcool em quatro tipos de padrões de uso: até 7 pontos indica uso de baixo risco ou abstinência; de 8 a 15 pontos indica uso de risco; de 16 a 19 pontos sugere uso nocivo; e acima de 20 pontos mostra uma possível dependência. O questionário sociodemográfico abordava os seguintes aspectos: renda, fonte de sustentação, ocupação, escolaridade, número de moradores residentes, idade, sexo, religião, infraestrutura dos assentamentos, condições de saúde, acesso aos serviços públicos de saúde, bem como aos programas de transferência de renda, crédito e assistência rurais, participação e organização política. Para análise dos dados referentes aos resultados do AUDIT e do questionário sociodemográfico utilizamos o software StatisticalPackage for the Social Sciences (SPSS) for Windows, versão 20. A partir do SPSS realizamos análise descritiva dos dados, na qual foi utilizada frequência absoluta, relativa e mediana (valor mínimo e máximo), bem como o teste do χ2.

 

Resultados

Perfil dos moradores que consomem álcool nos Assentamentos rurais no Rio Grande do Norte e no Piauí

Acerca do rastreamento do padrão de uso de álcool entre a totalidade dos moradores, os dados apontam que no RN 86,44% e no PI 90,02% dos respondentes ao AUDIT encontram-se abaixo do ponto de corte, indicando baixa quantidade e frequência do uso regular ou ocasional de álcool, especialmente entre as mulheres.

 

Table 2

 

 

Table 3

 

Apenas 13,56% (RN) e 9,98% (PI) dos respondentes ficaram acima do ponto de corte, revelando a presença de casos com consumo de risco, uso nocivo e dependência do álcool nos assentamentos. Isso indica que os homens consomem mais (4 a 5 vezes) e de forma mais problemática que as mulheres, resultado condizente com a literatura nacional (INPAD, 2012; Almeida Filho, Kawaki, Pellegrini Filho &Dachs, 2002), bem como com o relatório sobre consumo de álcool nas Américas, publicado pela OPS (2015).

Na Tabela 4, os dados ainda indicam que o RN apresenta frequência de participantes nas categorias nocivo e dependência mais do que no PI, bem como o dobro de mulheres que fazem uso problemático de álcool. O aumento do padrão de consumo entre as mulheres nos últimos anos, inclusive em binge, tem preocupado (OPAS, 2015), especialmente no Nordeste brasileiro, por ser a região maior consumidora de álcool no país.

Detectamos diferenças internas entre os assentamentos quando se trata do padrão de consumo de álcool pela população, bem como entre homens e mulheres. No RN, os assentamentos Maísa (20,3%), Mata Verde (20,0%) e Paulo Freire III (16,80%) se situaram acima da média geral (13,56%) encontrada nos assentamentos do estado, concentrando também os casos mais problemáticos. No Piauí, essa é a realidade dos assentamentos Serra Branca/Serra Vermelha (20,70%) e Fazenda Novo Zabelê (16,00%), que ficaram acima da média do PI (9,98%). Identificamos também assentamentos que não registraram mulheres acima do ponto de corte nos dois estados.

Quanto às variáveis estado civil e renda, não observamos associação significativa no AUDIT nos dois estados. Todos os níveis de renda e categorias de estado civil registraram casos acima do ponto de corte e distribuídos nos diferentes padrões de uso de álcool. Identificamos que as ocupações que mais fazem uso problemático de álcool são de agricultor (56,71%) e dona de casa (7,51%), inclusive no padrão de dependência (66,63% dos agricultores e 5,26% das donas de casa), embora muitas outras ocupações tenham apresentado percentuais importantes, pois, como sabemos, grande parte dos moradores desenvolvem atividades complementares à agricultura para complementação da renda. Registramos também um percentual considerável entre os aposentados (12,88%) e entre aqueles dependentes dos programas sociais como o Bolsa Família (42,29%). O fato de os agricultores e donas de casa pontuarem mais está diretamente relacionado à associação entre o padrão de uso de álcool e o nível de escolaridade. Identificamos que quanto mais alto o nível de escolaridade dos moradores dos assentamentos, menor o número de pessoas que fazem uso problemático de álcool. Ou seja, mais de 80% dos casos que fazem uso abusivo detectados estão entre os não alfabetizados ou que têm apenas ensino fundamental completo/incompleto, realidade da maior parte dos agricultores e donas de casa dos assentamentos. A categoria baixo risco concentra os moradores que têm o ensino médio e superior, alertando para possível associação entre padrão de consumo de álcool e condições socioeconômicas, em particular, a escolaridade, nos assentamentos investigados.

Especificidades regionais no consumo de álcool nos Assentamentos rurais no Rio Grande do Norte e no Piauí

Apesar das muitas semelhanças encontradas nos dois estados entre aqueles que estão situados acima do ponto de corte no AUDIT, há algumas especificidades em relação às condições de vida nos assentamentos investigados que gostaríamos de destacar. No PI, homens e mulheres pontuaram em todas as categorias da ferramenta, com predomínio para os primeiros. Em todos os assentamentos foram detectados casos de uso de risco, nocivo e dependência, com exceção de Serra Branca/Serra Vermelha onde foram encontrados apenas casos de risco e dependência, o que é preocupante, principalmente porque há forte presença de mulheres na última. No assentamento Macambira, há algumas comunidades que registram percentuais iguais entre homens e mulheres e até mesmo somente casos de mulheres com uso problemático de álcool. Nesse sentido, observamos que homens e mulheres estão presentes em todas as categorias e que há forte predominância dos homens em todas elas. As mulheres que fazem uso nocivo pertencem ao assentamento Marrecas, e as que fazem uso dependente vivem no assentamento Serra Branca/Serra Vermelha. Em termos da faixa etária daqueles que ficaram acima do ponto de corte (9,98%), observamos que todas elas registraram casos de uso de risco, nocivo e dependência (de 0 a 9 anos: 0,9%; de 18 a 29 anos: 23,7%; de 30 a 49 anos: 36,8%; acima de 49 anos: 38,6%). Houve destaque para a faixa etária entre os 30 e 49 anos nos casos de dependência (46,2%), já que implica em mais anos de uso de bebidas. Acerca da escolaridade, conforme já indicado anteriormente, os respondentes não alfabetizados ou apenas com o ensino fundamental completo ou incompleto pontuaram nas três categorias do AUDIT, representando quase 50% da amostra. Aqueles com mais anos de estudo pontuaram significativamente mais na categoria de risco (6,2%). O mesmo ocorreu em relação à renda. As faixas de ½ SM e 1 SM registram casos nas categorias risco (34,75%), nocivo (42,85%) e dependência (20,00%), com destaque para os mais desfavorecidos economicamente. Em todos os níveis de renda há padrões problemáticos de consumo (acima de 8%). Quanto à ocupação, houve destaque no PI para duas categorias: agricultores (41,2%) e aposentados (20,2%). Eles pontuaram em todos os níveis do AUDIT, indicando a vulnerabilidade associada ao trabalho precarizado no campo, bem como às adversidades associadas à aposentaria, especialmente quando se é obrigado a seguir trabalhando, como é a realidade desses moradores. Os pescadores piauienses também apareceram no nível de risco (15,10%), resultado compreensível diante das características do trabalho da cata de caranguejo ou pesca em alto-mar; os estudantes no nível nocivo, resultado talvez associado às dificuldades de acesso, bem como de infraestrutura das instituições de ensino locais, além da influência da cultura do consumo e a grande disponibilidade de bebidas no próprio assentamento; e autônomo no padrão de dependência, vinculado à instabilidade da atividade de trabalho. No PI, não houve destaque quanto ao estado civil, com predominância dos casados (60,80%), inclusive no padrão de uso nocivo (42,90%) e dependência (43,80%), todas as outras categorias de solteiro, viúvo, divorciado, pontuaram nos diferentes níveis de uso de álcool.

Quando buscamos a relação entre participação nos programas sociais, com destaque para o BF[6], e o padrão de uso de álcool, observamos nos assentamentos do PI que 43% das pessoas que pontuaram na categoria uso de risco não possuem BF; esse percentual aumenta para 50% nos casos de uso nocivo e para 75% no padrão de dependência. Esse resultado pode indicar que o padrão de consumo vai se tornando mais problemático à medida que a situação financeira vai piorando, caracterizando em difíceis condições de vida e vulnerabilidade social, associada à falta de suporte pelas políticas públicas e programas de transferência de renda. A preocupação é quanto à piora desses índices em época de crise e recessão econômica, conforme comentado anteriormente (Silva et al., 2015).

Quando olhamos para a realidade dos assentamentos do RN, observamos que apesar de em termos absolutos ter registrado menos moradores acima do ponto de corte no AUDIT (13,56%), percentualmente registrou índice bem superior ao do PI (9,98%), especialmente entre as mulheres (5,61%), já que pontuaram quase o triplo das piauienses (2,17%). Os homens do RN, ao serem distribuídos por padrão de uso, concentram-se prevalentemente na categoria risco (70%), mas pontuam em uso nocivo (n=17) quase o triplo do PI (n=6). Os assentamentos do RN também apresentaram particularidades quanto ao padrão de uso de álcool. Dos nove assentamentos, apenas três não pontuaram em todos os níveis do AUDIT, como foi o caso de União, Mata Verde e Timbó. Entretanto, o primeiro e o último apresentam casos de uso nocivo (n=1) e dependência (n=1); e Mata Verde foi o segundo assentamento mais problemático em termos do percentual de moradores situados acima do ponto de corte do instrumento (20%), só ultrapassando Maísa (20,30%). Esse assentamento foi o que registrou maior percentual de moradores acima do ponto de corte no AUDIT (20,3%) e o segundo nos casos de dependência (5,10%). Na sequência vem Paulo Freire III, seja do ponto de vista do quantitativo de moradores que pontuaram no instrumento (16,8%), seja em relação aos casos de uso dependente (3%). Resistência Potiguar ocupa o terceiro lugar. Quanto aos demais assentamentos, observamos uma distribuição mais equilibrada entre os percentuais e padrões de consumo. Timbó é uma exceção porque registrou quase 95% de consumo de baixo risco, com apenas três moradores acima do ponto de corte, sendo uma mulher. Quanto à faixa etária, moradores entre 18 e 29 anos (34,26%) e entre 30 e 49 anos (44,44%) se situam acima do ponto de corte. Na primeira estão prioritariamente os que fazem uso nocivo (52,63%) e a segunda concentra casos de risco (45,71%) e dependência (43,37%). Já os acima de 49 anos pontuam quase o dobro a menos (21,30%), indicando que o consumo problemático vai diminuindo com os anos. Das 24 mulheres identificadas acima do ponto de corte no AUDIT, 21 estão na categoria risco, duas em nocivo e apenas uma do padrão de dependência. Essas mulheres encontram-se majoritariamente em Maísa, com nove casos registrados. Marajó, União e Patativa do Assaré não tiveram mulheres fazendo uso problemático de álcool. No que diz respeito à escolaridade, a faixa do ensino fundamental completo e incompleto registrou a maior quantidade de casos nos níveis de risco (n=54), uso nocivo (n=15) e dependência (n=13). O mesmo foi observado em relação à renda: a faixa de 1 SM concentrou a maioria dos moradores nos três níveis do AUDIT (73 do total de 108 casos). Diferentemente do PI, as ocupações que mais apresentaram problemas foram as de agricultor (n=78) e donas de casa (n=9), reunindo os casos de uso de risco (n=51) e dependência (n=18) nas duas e uso nocivo entre os agricultores (n=18). Houve uma distribuição preponderante dos casados (58,33%) em todos os níveis do AUDIT, seguido dos solteiros (33,33%), mas detectou-se moradores separados e viúvos acima do ponto de corte (n=9), porém em menor proporção.

Quando buscamos a relação entre participação nos programas sociais, com destaque para o BF, e o padrão de uso de álcool, observamos que no RN (n=67; 62,04%) o resultado é muito distinto do PI (n=55; 49,10%), já que todos aqueles que ficaram acima do ponto de corte, nos três níveis de uso de álcool, são detentores do BF. Nesse caso, outros fatores são determinantes e não somente a falta de participação nos programas sociais. Diante do quadro exposto, com base nos dados sociodemográficos, aqueles que mais se destacaram como elementos disparadores de consumo problemático nos assentamentos dos dois estados foram as variáveis de escolaridade e gênero. Na pesquisa se observou o seguinte padrão: quanto menores os índices de escolaridade, maiores as tendências de adotarem hábitos de consumo arriscado. Contudo, de acordo com Oliveira Jr. e Prado (2013), se faz necessária uma visão ampliada da trama de relações que a escolaridade estabelece com outras dimensões da vida, que antepõe uma realidade engessada, impossibilitando os agricultores de planejar seu futuro e de diversificar suas fontes de renda. Assim, para lidar com essa limitação, recorrem ao uso das bebidas alcoólicas.

Nos assentamentos visitados, encontramos uma realidade: não há acesso à educação de qualidade e atendimento em saúde, precárias condições de moradia, de renda, sem coleta pública de lixo e acesso à água encanada, produzindo impactos na realização dessas expectativas de melhoria de vida. Nesse sentido, por não terem acesso à escolaridade, muitos jovens e adultos se veem limitados em projetos de vida e oportunidades de trabalho. Se não optam pela agricultura familiar, o que é ofertado são trabalhos muito desgastantes física e psiquicamente, com baixa remuneração e sem garantia de direitos, ou terminam migrando para outras regiões, o que traz como consequência a descaracterização dos modos de vida do campo e seu esvaziamento. Isso leva a uma relação de dependência dos programas de assistência do governo federal. A falta de investimento sistemático na agricultura familiar, a sobrecarga do trabalho agrícola e a não garantia de direitos trabalhistas, nas situações que existem outros vínculos de trabalho, são elementos de risco para consumo problemático de álcool, pois a bebida versa como alternativa de alívio e relaxamento diante das precárias condições do cotidiano (Mello, 2015).

Ademais, esse cenário de poucas oportunidades se articula com o fenômeno das secas e duradouros períodos de estiagem, que assola o nordeste brasileiro, mostrando as precárias condições em que vivem muitos agricultores. A falta de estratégias sistemáticas do poder público nessas áreas para lidar com esse fenômeno, que é histórico, faz com que os moradores fiquem mais vulneráveis às variações climáticas e consequentemente aos problemas de saúde (Camurça, Alencar, Cidade & Ximenes, 2016). Relacionar tais dimensões às condições de vida e precária infraestrutura dos assentamentos constitui um importante exercício para favorecer uma visão ampliada do fenômeno, percorrendo suas múltiplas determinações, que vão desde os fatores macroestruturais que retratam a realidade de como o capitalismo produz o espaço rural marcado pela pobreza e desigualdade social. Entendemos que esse tipo de abordagem qualifica e amplia as possibilidades de compreensão e intervenção dos profissionais que atuam nesses cenários.

 

Reflexões para atuação e formação profissional no cuidado integral para usuários de álcool em contextos rurais

Com a Reforma Psiquiátrica e a Estratégia de Atenção Psicossocial em curso há mais de 25 anos, tem havido um esforço para substituir o modelo manicomial de cuidados para uma perspectiva territorial e comunitária. Porém, a realidade da Atenção Psicossocial em funcionar como coordenadora de cuidados em uma rede integrada de serviços e articuladora de ações comunitárias e intersetoriais, incorporando a saúde mental, ainda apresenta muitos problemas e enfrenta barreiras importantes (Giovanellaet al., 2015).

Sobre a atenção às pessoas com problemas relacionados ao uso de álcool e outras drogas, as ações realizadas pela rede de saúde são basicamente ofertadas pelos CAPS ad e CAPS ad III, que têm sua cobertura voltada para localidades que contam com população acima de 70 mil habitantes e 150 mil habitantes, respectivamente (Brasil, 2011a).Em função da alta demanda, são serviços que acabam centrando as ações nas áreas urbanas das cidades. Por isso, muitas vezes, estão distantes da população rural, erigindo barreiras em relação ao acesso. Resta às equipes da atenção primária a responsabilidade para dar respostas às demandas de álcool e outras drogas, as quais ocorrem de forma pontual e isolada devido à fragmentação dos sistemas e redes de atenção em saúde.

Inúmeros são os estudos que indicam dificuldades das equipes da atenção primária na atenção à saúde mental, inclusive dos psicólogos (Costa, Lima, Silva &Fioroni, 2015; Iglesias & Avellar, 2014; Dimenstein & Macedo, 2012). No que tange à questão do álcool (e do crack e outras drogas), as resistências e inabilidades ganham destaque (Macedo, Dimenstein, Pereira & Lima, 2015). Corroborando o que diz Machado (2013), os autores acima indicam que os trabalhadores apresentam dificuldades básicas quanto ao acolhimento e oferta de cuidados iniciais aos usuários com problemas relacionados a uso de substâncias na APS. Tais dificuldades têm uma dimensão técnica, mas também ética, já que o preconceito e estigma estão fortemente associados a esses usuários. Muitos se perguntam como acolher, o que fazer e o que propor; outros, acabam se recusando, têm medo, afastando o público do serviço. Além disso, o próprio usuário muitas vezes não está disposto a receber cuidados ou iniciar um tratamento. Assim, a abordagem dessas situações precisa estar associada a uma ampla compreensão tanto do fenômeno do uso/dependência de substâncias, em sua complexidade, quanto dos determinantes sociais e condições de vida, além do alcance e a finalidade das práticas de atenção em saúde.

Ampliar o olhar para os determinantes sociais da saúde mental (Santana, 2014, 2015) tem sido fundamental para introduzir mudanças na perspectiva da produção do cuidado na atenção aos usuários de álcool e outras drogas, alinhado com as estratégias da Redução de Danos, de garantia de direitos e promoção da cidadania. O perfil e as especificidades regionais dos assentamentos investigados, contrastados com as condições de vida apresentadas anteriormente, revelam esse processo de determinação da saúde da população do campo, especialmente pelo fato de que um em cada quatro brasileiros que vivem no campo encontra-se em situação de pobreza extrema (Mello, 2015). Trata-se, portanto, de uma realidade que não pode passar despercebida pelas equipes profissionais da atenção primária e psicossocial da saúde, inclusive pelos psicólogos, que tradicionalmente acabam centrando seu olhar para aspectos intrapsicológicos e pessoais, desconsiderando as determinações do processo saúde-doença/cuidado.

Quadros de desigualdade social se expressam como importante fator que predispõe aos problemas psíquicos e uso de substâncias. Segundo Silva e Santana (2012), a desigualdade social produz exclusão, violência, fome, vergonha, desfiliação, e quando associada a outras condicionalidades como escolaridade e gênero tem-se um quadro que acentua a condição de pobreza e aumenta a incidência de transtornos mentais e uso de substâncias de forma problemática. Nesse sentido é preciso que os profissionais tomem a pobreza em uma perspectiva multidimensional, para além da insuficiência de renda, pois incorpora dimensões objetivas e subjetivas do fenômeno, que dizem respeito tanto ao não acesso a bens, produtos e políticas (educação, saúde, habitação, trabalho, etc.) quanto a aspectos relacionados a injustiças e privações em diversos âmbitos, inclusive com repercussões de ordem psicossocial e não apenas o monetário (Cerqueira, 2009; Cidade, Moura & Ximenes, 2012; Sawaia, 2009).

É nesse panorama que os ACS e as equipes dos NASF e da ESF encontram as populações rurais e os territórios dos assentamentos de reforma agrária. São profissionais que operam em um cenário onde a pobreza, a desigualdade e a exclusão têm ampla visibilidade. Porém, essa violação é invisível, produz violência, abusos, perdas de anos de vida, perda dos laços sociais e familiares, não acesso aos serviços fundamentais, perda da capacidade de participação social, etc. Desse modo, requer olhar atento e sensível dos profissionais para estabelecer relações de suporte e cuidado diante desse conjunto complexo de necessidades das populações rurais. Ademais, a compreensão dos profissionais acerca do uso de substâncias não é muito diferente da concepção hegemônica da sociedade. Usuários de álcool e outras drogas são vistos pelos próprios profissionais como cidadãos desprovidos de direitos, inclusive do direito à saúde e aos serviços de boa qualidade. A situação ideal para muitos profissionais é que os usuários interrompam o consumo de substâncias antes mesmo de chegar aos serviços de saúde.

Quanto aos serviços de saúde, além de estarem geograficamente distantes dos assentamentos, na maioria das vezes, há um distanciamento dos profissionais e uma oferta precária de ações, tanto pelo aspecto estrutural (equipamentos, instalações) quanto pela fragilidade com que a atenção e o acolhimento são realizados, ou seja, são ações marcadas por atitudes desencontradas da realidade social e cultural dos assentamentos, tal como indicado por Costa et al. (2015); Iglesias e Avellar (2014); Dimenstein e Macedo (2012); Macedo et al. (2015).

A maioria dos municípios brasileiros ainda não avançou na sistematização, análise de informações e definição de indicadores em saúde mental como ferramenta de gestão da clínica e reorientação dos processos de trabalho das equipes de saúde. O efeito disso é a fragmentação e isolamento dos níveis de atenção no SUS, a ação focada em procedimentos e a falta de continuidade no cuidado. Nesse sentido, Dimenstein, Lima e Macedo (2013) chamam atenção para a inexistência de rotinas de trabalho e linhas de cuidado para as queixas em saúde mental na atenção primária; ressaltam a dificuldade em produzir convergência de princípios e práticas entre as equipes, indicam que a ação profissional é quase sempre voltada para a doença, com foco no consumo de procedimentos e encaminhamentos para os níveis especializados de atendimento e, por fim, destacam o número reduzido de ferramentas de trabalho para atuar em diferentes âmbitos (pessoal, familiar e sociocultural), com ações intersetoriais amplas, envolvendo promoção, prevenção, diagnóstico e tratamento, reabilitação e cuidados paliativos voltados para o território.

No que tange à Política Nacional de Saúde Mental, não há uma diretriz estabelecida de atenção e cuidado à população rural, apesar de constituir um coletivo cujas especificidades geram demandas particulares associadas às condições de vida e trabalho e, consequentemente, de atendimento especializado nos casos de transtornos mentais e dependência química. Mesmo na mais recente política pública voltada à saúde integral das populações do campo e da floresta (Brasil, 2011b), não há qualquer referência à saúde mental, seja para indicar as particularidades territoriais, sociais e culturais que marcam os modos de vida dessas populações e, consequentemente as necessidades de saúde, os modos de adoecer e de cuidado, seja para nortear o planejamento e ordenamento das redes de atenção, assim como a oferta de ações e serviços de caráter psicossocial.

A literatura tem apontado para o enorme desafio quando se trata da efetividade das políticas e das ações de saúde em cenários de iniquidade social, voltadas para populações vulneráveis (Barros, Campos & Fernandes, 2014; Gama, Campos & Ferrer, 2014). Produzir cuidado integral e culturalmente sensível para esse tipo de população demanda esforços de distintas ordens, indo desde investimentos em infraestrutura, contratação de equipes profissionais mais diversificadas e flexíveis e processo de educação permanente, até a transformação de ações programáticas e modelos tradicionais de gestão e gerência dos serviços.

Para avançar nesse difícil cenário, continua-se a apostar no fortalecimento das políticas públicas em termos estruturais e mecanismos de gestão e avaliação, bem como retomar os processos formativos no âmbito da graduação e pós-graduação e também com o fortalecimento das ações de educação permanente. Incorporar ações e experiências consideradas como "boas práticas em saúde" tem sido fundamental para introduzir mudanças na perspectiva da produção do cuidado na atenção aos usuários de álcool e outras drogas. A busca ativa dos casos pelas equipes da ESF e NASF, em parceira com os ACS é um importante passo na ampliação do acesso: identificação dos casos, ações de triagem, acolhimento das necessidades e condições de vida, intervenções breves, suporte familiar, acompanhamento dos projetos terapêuticos de forma longitudinal e compartilhado, incluindo planos de abstinência (se for o caso) e em consonância com ações previstas pelas estratégias de redução de danos. Podem fazer monitoramento de riscos, vulnerabilidades e funcionalidades, apoio e trabalho motivacional para realização de projetos futuros e promoção de direitos, reinserção e reabilitação psicossocial (Ronzani, 2008; Lima, 2010; Sapori& Medeiros, 2010; Totugui, Giovanni, Cordeiro, Dias & Delgado, 2010).

Pesquisas apontam que pessoas com uso de substâncias geralmente não buscam os serviços de saúde espontaneamente. São os familiares que costumam buscar ajuda (Machado, 2013). Aproximar-se desses usuários e familiares, por meio de visitas domiciliares e agendamento de consultas, para uma avaliação clínica geral, não necessariamente abordando inicialmente as dificuldades com o uso da substância, pode ser uma primeira abertura para romper com as dificuldades do usuário de não procurar os serviços. Esperar que o usuário venha pedir ajuda, mesmo sabendo que quando isso acontece é quando ele já está bastante debilitado em decorrência de problemas provenientes do uso da substância, não auxilia na construção de cuidado.

Destacamos também as estratégias de triagem e intervenção breve (TIB) para o uso abusivo de substâncias (Ronzani, 2008)devido ao potencial de vínculo que apresentam e efetividade quanto ao monitoramento do tratamento. De uma forma geral, a intervenção breve apresenta um enfoque educativo e motivacional, em que o principal objetivo é desencadear a decisão e o comprometimento com a mudança dos pacientes, com a finalidade de reduzir o risco de danos ocasionados pelo consumo exagerado de substâncias psicoativas e alterar padrões de consumo.

O conhecimento de todos os elementos acima referidos potencializa as ações protetivas e preventivas para pensar estratégias de cuidado e suporte aos indivíduos e famílias com problemas relacionados ao uso de álcool (e outras drogas). Além disso, responde aos anseios da falta de referência e compreensão sobre a problemática, objeto de reclamação de quase a totalidade das equipes da APS. Souza e Ronzani(2012) apontam que a formação do profissional da saúde ainda é bastante deficitária quanto às demandas relacionadas ao uso de substâncias psicoativas em todo o mundo. Embora questões relacionadas ao uso de substâncias sejam prevalentes em vários países e considerados um grave problema de saúde pública, muito pouco se tem feito no sentido de ampliar o acesso dos profissionais às informações relativas às habilidades específicas para se detectar o problema precocemente e intervir de forma eficaz.

 

Considerações finais

Conhecer a realidade do álcool nos assentamentos de reforma agrária nos mostrou o quanto as condições de vida, as fragilidades na infraestrutura dos assentamentos, gênero, escolaridade, renda, ocupação, acesso aos serviços de saúde e educação, são fatores influenciadores do consumo problemático nesses contextos. Além disso, dificuldades de acesso aos bens e serviços, como trabalho (emprego), transporte, políticas públicas e espaços de convivência/lazer, expõem essas populações a situações de vulnerabilidade. Em termos de políticas públicas, há muito a avançar, visto que não há diretriz específica para as populações do campo, em termos de saúde mental, de forma que as diretrizes integralidade e intersetorialidade sejam refletidas e pensadas de acordo com o regime do território no qual se inserem. É necessário um olhar mais cuidadoso e apurado para as populações do campo, saber do que eles precisam, de que forma funcionam como comunidade, quais os pontos fortes e fracos. Os profissionais ainda ocupam um lugar longe dessa realidade.

Apostamos, nesse sentido, em um modelo de formação profissional em que os trabalhadores analisem as determinações das necessidades sociais e de saúde mental das populações rurais, na perspectiva de operar dispositivos de escuta e intervenção sobre os processos psicológicos e psicossociais mobilizados pelas condições de vida e situações de pobreza, que certamente complexificam as necessidades de atenção e cuidado, em particular dos usuários de álcool e outras drogas. Temos assistido mudanças relativas à formação em saúde provocadas pelos Programas de Residências Multiprofissionais em Saúde (MS e MEC), Programas de Educação pelo Trabalho para a Saúde ou Saúde Mental (PET-Saúde/MS e MEC) e Centro Regional de Referência em Crack, Álcool e Outras Drogas. Almeja-se que essas iniciativas, além de outras concernentes à extensão universitária, possam incluir componentes curriculares e cenários de práticas que favoreçam o diálogo e a vivência dos profissionais com a realidade das populações do campo, das florestas e das águas.

Formar a partir de campos de atuação vivencial e de atualização profissional contínua, possibilitando o aprendizado coletivo no trabalho, com metodologias que valorizam o saber prévio dos alunos, profissionais e comunidades, é romper com os paradigmas tecnicistas produtores de procedimentos e não de processos de cuidado (Dimenstein & Macedo, 2012). Esperamos, portanto, que tais experiências possam inspirar práticas e posturas profissionais de maneira a reorientar as formas de atenção às necessidades em saúde mental da população do campo.

 

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Recebido em: 30/03/2016
Aprovado em: 15/09/2016

 

 

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