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Psicologia em Pesquisa
versão On-line ISSN 1982-1247
Psicol. pesq. vol.8 no.1 Juiz de Fora jun. 2014
https://doi.org/10.5327/Z1982-1247201400010008
DOI: 10.5327/Z1982-1247201400010008
ARTIGO
O Trabalho Antropológico de Max Wertheimer e a Psicologia da Gestalt
Max Wertheimer's Anthropological Work and Gestalt Psychology
Flávio Vieira CurvelloI; Arthur Arruda Leal FerreiraI
IUniversidade Federal do Rio de Janeiro (Rio de Janeiro), Brasil
RESUMO
Este artigo pretende considerar a maneira como é habitualmente apresentada a ruptura do gestaltismo com a Psicologia que o precede e encontrar no trabalho antropológico de Max Wertheimer, especificamente no texto Über das Denken der Naturvölker, elementos que possam enriquecer esta narrativa e nos permitam olhá-la de maneira um pouco diferente. Para tanto, consideraremos como Wertheimer descreve as maneiras ditas primitivas de compreensão da quantidade e como ele encontra nelas propriedades específicas de todo. Essas propriedades de todo mostram claramente que ele já estava preocupado com problemas que seriam mais explicitamente apresentados depois, nos bem conhecidos trabalhos da Escola de Berlim em Psicologia da percepção.
Palavras-chave: Psicologia da Gestalt; antropologia; Psicologia experimental; história da Psicologia; matemática.
ABSTRACT
This paper aims at considering the manner through which the rupture between Gestalt Psychology and the psychologies that preceed it is usually presented. It aims also at finding in Max Wertheimer's anthropological work, more specifically in the text Über das Denken der Naturvölker, some elements which may enrich this narrative and allow us to look at it in a slightly different way. In order to do that, we will consider how Wertheimer describes the so-called primitive ways of comprehending quantity and how he finds out in them distinctive whole-properties. These whole-properties clearly show that he was already concerned with problems that would be more explicitly presented later, in the well-known works of the Berlin School in Psychology of perception.
Keywords: Gestalt Psychology; anthropology; experimental Psychology; history of Psychology; mathematics.
Considerações preliminares
Como diversos manuais de história da Psicologia bem indicam, um dos critérios centrais da oposição feita pelo gestaltismo, tal como formulado pela Escola de Berlim, à Psicologia que o precede é a defesa de uma compreensão dos dados gerais da experiência imediata que não reduza esta a um simples agregado de elementos sensoriais oriundos de excitações periféricas discretas. Se no médio dos psicólogos experimentais do fim do século XIX encontramos a afirmação de que a vida consciente não é senão um fluxo de dados materiais, empíricos, que se organizam por meio da ação de um fator psíquico associativo, que lhes imprime forma e permite surgir como objeto efetivo de uma dada experiência, nos trabalhos desenvolvidos por Max Wertheimer, Kurt Koffka e Wolfgang Köhler, sobretudo, encontramos a posição, diametralmente oposta a esta, de que a experiência é algo sempre já organizado, que possui os seus próprios critérios imanentes de estruturação, os quais não podem ser confundidos com nenhuma atividade sintética a partir de elementos prévios. A um modelo que entende a experiência como produto tardio de certas atividades psíquicas dirigidas a sensações, portanto, o gestaltismo opõe um modelo que entende a experiência como uma totalidade harmônica, econômica, fechada e que deve ser considerada antes nessa condição pela qual nos aparece — isto é, em sua configuração imediata, atual, da qual toda qualidade sensorial possível não passa de abstração. Não tanto uma composição meramente aditiva (Undverbindung), em que elementos discretos se somam uns aos outros sem que a sua própria inter-relação os altere, o objeto seria marcado pela suprassomatividade (Übersummativität), ou por um "ser categorialmente diferente de uma simples soma", "ser algo cujas propriedades gerais são função expressa do conjunto dado". Essa oposição, resumida na afirmação de que a experiência presente é uma Gestalt cujas partes são sempre dependentes do todo e não um produto sintético em que as próprias partes são condição genética de uma totalidade, é usualmente tomada como o critério pelo qual o gestaltismo pôde romper com a Psicologia que o precede e se firmar como um novo paradigma nessa ciência no início do século XX.
Essa ruptura, vale salientar, não se deu apenas com os trabalhos oriundos da Psicologia elementarista, mas também com os próprios esforços iniciais de se fundamentar uma Psicologia gestaltista. Em seu artigo Über Gestalqualitäten, de 1890, Christian von Ehrenfels (2007), um dos responsáveis pela introdução do termo Gestalt nos estudos da percepção, considerou que determinados fenômenos que nos surgem à consciência, como uma melodia qualquer, possuem propriedades de conjunto, referentes a um determinado "arranjo" dos diferentes elementos sensíveis dados e irredutíveis às propriedades oriundas de cada elemento individualmente considerado. Se percebemos uma melodia como algo contínuo, fluido, marcado por frases específicas, que nos comunica um tom afetivo qualquer e que possui pontos de tensão, condução e relaxamento, temos consciência justamente de suas propriedades de conjunto, as quais não podem ser reduzidas a uma nota qualquer que componha a melodia em questão. Apesar de reconhecer tal especificidade nos fenômenos acústicos citados, o psicólogo os explica ainda pelo recurso a elementos sensoriais prévios, a qualidade formal sendo resultado de certa intervenção da memória no campo perceptivo, a qual guardaria junto às sensações atualmente dadas vestígios representacionais das sensações há pouco dadas, alterando a simplicidade dos conteúdos daquelas e permitindo o seu reconhecimento como partes de uma totalidade que se desdobra no tempo. O esquema sintético e a ênfase em elementos materiais a partir dos quais essas sínteses são operáveis não é abandonado, portanto. Essa relação de afastamento parcial em relação ao modelo psicológico de seu tempo marcaria não apenas as ideias de Ehrenfels, mas também as primeiras correntes gestaltistas, como as Escolas de Graz e Leipzig (Penna, 1978). A interpretação berlinense do conceito, portanto, seria singular também em relação a estas.
O marco introdutório dessa nova posição teriam sido os Experimentelle Studien über das Sehen von Bewegung, de Max Wertheimer (2012a), publicados em 1912, nos quais a percepção visual do movimento foi estudada a partir dos chamados fenômenos estroboscópicos. Nestes, bastante comuns em pequenos brinquedos já populares em fins do século XIX, como o fenacistoscópio, o taumatrópio e o praxinoscópio1, bem como no cinema, o que teríamos seria uma curiosa percepção de movimento suscitada pela apresentação, a certa velocidade, de imagens ou estímulos estáticos. Perceberíamos como continuidade, sequência harmônica e orientada, o que não deveria se dar senão como intermitência, descontinuidade. Ao examinar as condições de ocorrência desse fenômeno, o qual foi batizado de "fenômeno phi" pelo pesquisador e no qual teríamos um claro descompasso entre as condições físicas de estimulação do aparelho sensório e as percepções resultantes, Wertheimer teria efetuado o passo fundamental para que o dado psicológico (das psychisch Gegebene) fosse estudado antes a partir de seus critérios imanentes de estruturação do que por sua possível adequação a um estado de coisas físico, extrafenomenal, reputadamente mais legítimo. A sequência imediata disso foi a ampla realização de estudos experimentais, com forte orientação descritiva, nos quais as leis de organização da experiência seriam pouco a pouco descortinadas, surgindo nos diversos textos da escola escritos ao longo da década de 1920.
Ainda que breve, temos nessa narrativa a substância do que teria sido a ruptura e a possível superação da Psicologia elementarista e do gestaltismo incipiente pelas propostas berlinenses. Nosso propósito neste artigo, no entanto, não é considerar precisamente esse movimento ou qualquer um de seus impactos no cenário psicológico que o sucede, mas sim tomá-lo como ponto de partida para um movimento regressivo, o qual, em nosso entendimento, pode nos ajudar a compreender melhor as origens do pensamento daquela escola. Nosso propósito, portanto, é retornar a um dos trabalhos pré-gestaltistas de Wertheimer, a saber, Über das Denken der Naturvölker: I. Zahlen und Zahlgebilde, também de 1912, e buscar nele o instrumental para tanto. Dessa maneira, o que fazemos aqui é basicamente oferecer uma interpretação do texto supracitado e argumentar em favor da existência, já nos trabalhos antropológicos de Wertheimer, de concepções gestaltistas consideravelmente afins às que serão depois formalmente apresentadas em seus estudos sobre percepção. Essa tese geral já foi aventada por trabalhos recentes em história da Psicologia, como Gestalt Psychology in German Culture (1890-1967), de Mitchell Ash (1998), e Max Wertheimer and Gestalt Theory, de Brett King e Michael Wertheimer (2009), sendo nosso propósito contribuir para a sua defesa. Sabemos do risco de uma leitura histórica retrospectiva, ao recuar a proposta de um conceito a um marco anterior apontando para intenções prévias, precursores ou antecipadores (Canguilhem, 1977). Sem buscar de qualquer modo uma intenção original, sem sequer vagamente apresentá-la, o que pretendemos é defender a nossa posição com elementos extraíveis de um exame denso do referido texto de Wertheimer.
As estruturas do pensamento primitivo
O texto Über das Denken der Naturvölker, publicado no mesmo periódico e no mesmo ano em que os Experimentelle Studien über das Sehen von Bewegung, pertence a um período de transição do pensamento de Max Wertheimer. Entre os anos de 1905 e 1910, o pesquisador se afastou dos problemas criminológicos abordados em seu doutoramento — obtido em Würzburg sob supervisão de Oswald Külpe e inserido nas contribuições da tese do "pensamento sem imagem" à Psicologia experimental, consistindo basicamente na proposta de um método de interrogatório de suspeitos fundamentado pela Psicologia da associação. Naquele período, por ocasião desse afastamento, ele se dedicou a pequenos estudos sobre condições patológicas específicas — como a alexia, a afasia e a cegueira cortical — junto a instituições neuropsiquiátricas e neurológicas, bem como a estudos de caráter antropológico, dentre os quais se destaca a análise da música dos Veddas, uma tribo do Ceilão cujo sistema musical seria considerado um dos mais simples já observados (Ash, 1998).
O texto que buscamos analisar aqui se insere nesse momento do percurso intelectual de Wertheimer, anterior à sua dedicação prioritária ao estudo da percepção, consistindo em uma investigação antropológica acerca das formas características do pensamento matemático e da concepção de número entre as civilizações ditas primitivas — as quais se definem por hábitos, valores, tradições e crenças radicalmente afastadas daquelas difundidas entre os povos ocidentais. Seu ponto de partida é a afirmação da impertinência da pergunta acerca de quais, dentre os números e as operações matemáticas de nossa cultura, estão presentes no pensamento daquelas civilizações, uma vez que tal perspectiva, essencialmente etnocêntrica, validaria já de saída os critérios pelos quais opera a nossa cognição e os tomaria como parâmetro para avaliar a correção dos critérios divergentes. Em oposição a isso e como fio condutor de toda a sua argumentação, Wertheimer busca defender a ideia de que nossas formas de pensar matematicamente — ou, ainda, nossas formas de pensar em geral — são derivadas de nossa inserção cultural, da estrutura e do conjunto de heranças sociais em que nos desenvolvemos. A diferença imposta pela cultura na gênese das formas de pensamento seria, nesse sentido, de princípio, e não de grau — seria uma diferença categorial e que autonomizaria completamente cada grupamento social, permitindo-lhe ser avaliado apenas por seus critérios internos, e não a partir da admissão de um quadro referencial externo ao qual ele deveria se adequar. Desse modo, seriam inteiramente desinteressantes para os propósitos do psicólogo aquelas perspectivas antropológicas que veem no pensamento primitivo tão somente uma versão menos evoluída de nosso pensamento2. E é exatamente por essa consideração das formas culturais distintas como objetos de análise sui generis que Wertheimer (1912/1969) busca orientar sua argumentação3. Vejamos como ela se desenvolve.
Pensamento Quantitativo Não Formal, Grupos Naturais e Estruturas
Seu primeiro passo é mostrar uma forma específica de experiência de quantidade que se afasta claramente do raciocínio matemático formal. Para tanto, Wertheimer não passa diretamente a exemplos culturalmente estranhos a nós, permanecendo, em vez disso, nos limites do pensamento não primitivo. De acordo com ele, a contagem como adições sucessivas de uma unidade ela mesma invariável (1+1+1...) não é o único fator na gênese dos números, da mesma maneira que o ideal de transferência universal do pensamento, a criação de uma linguagem inteiramente unívoca e intocada por parcialidades de quaisquer ordens, não é o ideal necessário de todo pensamento numérico. Há estruturas diferentes e menos abstratas que as nossas estruturas numéricas que são usadas em pensamentos que envolvem números, não havendo distanciamento delas em relação aos contextos naturais e ordinários de que derivam. Wertheimer oferece exemplos. Na construção de uma cabana, certa quantidade de vigas de sustentação é necessária para que a armação se erga, e essa quantidade surge como parte intrinsecamente ligada à ideia de cabana, não sendo, muitas vezes, necessário contá-la ou pensar abstratamente para verificar o seu pertencimento. O mastro de uma embarcação é erguido por três estais, colocados sempre em sentido longitudinal, e o navegador não precisa de nenhum desempenho intelectual ou de nenhum cálculo para reconhecer que a ideia de mastro traz em si a necessidade desse suporte. Um membro de uma determinada família que se ausenta do jantar tem sua ausência prontamente notada, não sendo necessário que nenhum dos presentes conte quantos membros estão ali para depois inferir a ausência de um deles em específico. Um quadrado é apreendido imediatamente como tal, sem que precisemos contar o número de lados e ângulos de uma figura a princípio irreconhecível, constatar que ambos são quatro e inferir daí que se trata de um quadrado. Em todos esses casos, Wertheimer explica, há uma espécie de compreensão tácita da quantidade presente em uma determinada ideia, e nunca uma exigência de atividade cognitiva para que se chegue à consciência daquela quantidade. Compreendemos a quantidade pelo seu valor funcional dentro de uma totalidade já caracterizada por um sentido, e não pelo seu valor numérico puro, não por operações do pensamento formal que a ele se voltem.
Dentre esses agrupamentos que simplesmente se nos mostram como tais, há os chamados "grupos naturais", que expressam a união de um ou mais objetos a partir de uma relação significativa específica que se afirma em seu simples aparecer conjunto, abrindo espaço para uma ideia de mútuo pertencimento. A estrutura de "par" é exemplo disso, uma vez que ela pode dispor sobre relações de simetria entre objetos, como no caso de dois pingentes; relações de utilidade, como no caso de dois olhos ou dois sapatos ou, ainda, de quaisquer outros órgãos ou itens de mesma função; relações familiares4, como em um casal etc. Aparentemente, qualquer critério material que mostre duas coisas determinadas como duas coisas enlaçadas por um sentido comum, intimamente conectadas, irmanadas, é um critério que nos põe perante a estrutura de par. Ainda outros grupos naturais podem ser vistos quando os objetos experimentados aparecem em relações qualitativas ou espaciais específicas que favoreçam um dado agrupamento para eles. Objetos idênticos ou de natureza similar tenderiam a se agrupar naturalmente, da mesma maneira que objetos dispostos proximamente no espaço. Neste sentido, duas árvores situadas lado a lado e uma outra árvore um pouco mais distante não seriam um conjunto fechado, composto por três árvores, mas sim dois conjuntos, um composto por um par de árvores logo adiante e outro por uma árvore isolada mais além. Não será difícil observar aqui uma presença algo tímida dos pensamentos que, posteriormente formalizados, constituirão os fatores gestálticos de proximidade (Faktor der Nähe) e igualdade (Faktor der Gleichheit), introduzidos nas Untersuchungen zur Lehre von der Gestalt II, de Wertheimer (1923/2012b).
É a partir dessas primeiras elucubrações, misturadas a uma quantidade generosa de exemplos, que o psicólogo introduz a capital distinção entre números e estruturas (Gebilde):
Números são aplicáveis a qualquer coisa e a todas as coisas, a quaisquer objetos, arranjos ou grupos arbitrários, e eles próprios são, em todos os casos, os mesmos. Estruturas, por outro lado, são relevantes apenas para agrupamentos ou relações naturais entre partes e seu todo (Wertheimer, 1912/1969, p. 266).
Trata-se, nas chamadas estruturas, de uma recondução do raciocínio que envolve a apreensão de quantidade às condições materiais em que ele ocorre ou sobre as quais ele se aplica. Essas condições definem o campo de alterações possíveis do raciocínio, os limites aos quais ele deve sempre se submeter, posto que, se não o fizer, excederá o que lhe confere origem, alienar-se-á de sua razão própria e deixará, portanto, de ser. Em uma formulação mais econômica, podemos dizer que o raciocínio ocorre se e apenas se estiver em íntima conexão com o plano empírico. Dois dedos, como o polegar e o indicador, dois homens quaisquer, dois guerreiros podem ser considerados pares, mas não um filho e sua mãe, não um homem e um cavalo. Aqueles constituem diferentes estruturas de par e têm o sentido dessa estrutura garantido por relações inteiramente específicas aos objetos conjugados, mas são, não obstante, todos eles pares. Nos dois últimos exemplos, essa relação de mútuo pertencimento não se afirma. Em um raciocínio extravagante, poder-se-ia dizer que dois homens juntos são um par, bem como dois cavalos juntos, mas que um homem e um cavalo só compõem um par necessariamente dessemelhante: o de um cavaleiro e sua montaria.
Após essas considerações sobre exemplos que podem se dar no seio de nossa própria cultura, Wertheimer passa a considerar mais precisamente o pensamento primitivo. Nesse movimento, ele parece diagnosticar que as formas de pensamento quantitativo que destoam do pensamento matemático formal, indicadas como uma possibilidade em nossa configuração cultural, são uma necessidade para outras culturas. A operação numérica ou intelectual em geral é impossível de ocorrer entre certos povos se não estiver enraizada em atualidades, em um mundo natural, empírico. Para introduzir adequadamente esse caso, o psicólogo busca ilustrar como outras dimensões do pensamento formal do primitivo também se encontram na mesma condição, dependendo estritamente das efetividades que as cercam. Uma situação que mostra esse constrangimento é encontrada no caso do professor que prescreve ao aluno primitivo uma tarefa que nos parece bastante trivial e de fácil execução, apenas para vê-lo aturdido e impossibilitado de cumpri-la. Pediu-se a um menino indiano que traduzisse a frase "O homem branco abateu seis ursos hoje" e ele se recusou, mostrando-se incapaz de fazê-lo simplesmente por crer que nenhum homem poderia abater seis ursos em um só dia. Ainda que o raciocínio aqui não seja de caráter matemático, mas apenas uma operação linguística formal, ele indica a impossibilidade de a criança abstrair dos fatos mundanos para cumprir o que lhe era requisitado. Ser implausível, inverossímil, não ter lugar em um mundo efetivo implica necessariamente ser inconcebível, intelectualmente inexprimível: "Onde não houver relação natural, nenhuma conexão relevante e vividamente concreta entre as coisas mesmas, não há também conexão lógica e nenhuma manipulação lógica destas coisas é possível" (Wertheimer, 1912/1969, p. 267)5.
Outro exemplo, ainda que menos forte, pode ser encontrado em perguntas do tipo "Que são x e y?", em que ambas as variáveis são objetos que podem ser agrupados em uma categoria comum. Dirigidas ao primitivo, têm-se diversas respostas que agrupam as variáveis em uma categoria que poderia ser indicada também pelo homem civilizado, mas outras que não: se x é cão e y é gato, uma resposta recorrente em ambas as culturas seria "bichos de estimação", mas o primitivo poderia, eventualmente, responder "inimigos". Nesse caso, o valor culturalmente atribuído às duas espécies surge como mais relevante na significação do conjunto do que as outras formas possíveis de significação que têm menor especificidade cultural, que são frequentes também em outros grupamentos sociais. Trata-se ainda de um encerramento da cognição às condições concretas de vida de um povo, isto é, de uma aplicação claramente não abstrata do pensamento ao dado6.
Tipo, Outras Estruturas Numéricas e Operações com Estruturas
Esses exemplos conduzem Wertheimer a considerar as possibilidades gerais de se combinar ou arranjar itens em um determinado conjunto, realizando, em poucos parágrafos, um esboço de mereologia. Mais uma vez, ele introduz seu raciocínio por exemplos. Se quatro maçãs se encontram sobre uma mesa e uma quinta repousa sobre elas, podemos enxergar no conjunto perante nós a forma de um pentágono ou simplesmente um amontoado de maçãs, sem uma forma muito definida. De todas essas configurações possíveis — tanto aquela mais obediente à figuração geométrica quanto as tantas outras que lhe escapam —, seria possível, de acordo com Wertheimer, extrair um "tipo", uma generalidade maior à qual elas estariam todas submetidas. Essa generalidade não se limitaria a prescrever a quantidade de variações reais possíveis na configuração do objeto, mas mostraria também algo como a existência de um valor intrínseco a certas configurações em detrimento de outras. É precisamente aqui que o psicólogo esboça algumas de suas primeiras considerações sobre as leis da forma:
Em geral, toda 'Gestalt' evidencia certa variabilidade, ou, como se diz em lógica, certa 'latitude'. Um quincunce7 presta-se a uma grande variedade de intervalos, proporções, semelhanças entre suas partes materiais, etc., sem perder seu caráter original de quincunce. Mas algumas destas variáveis normalmente funcionam em conjunto de maneira mais adequada que outras. Um arranjo em particular tem seus graus de estabilidade e precisão de acordo com o predomínio de umas e não de outras variáveis. Não é verdade, entretanto, que daí se extrai um 'conceito' geral (isto é, através de eliminação lógica ou abstração de diferenças) que é mais pobre em conteúdo, isto é, com conotação mais estreita do que suas espécies. Em vez disto, há um 'análogo conceitual' geral e complexo da quinquidade em vários (mas não em ilimitados) arranjos. É o mesmo com o retângulo. Para percebermos um retângulo, não precisamos observar a retidão de seus ângulos e a existência de quatro lados nele. Em vez disto, percebemos o tipo 'retângulo', seja a figura particular grande ou pequena, larga ou estreita, vertical ou horizontal (Wertheimer, 1912/1969, p. 268).
Que podemos depreender dessas afirmações? Parece-nos que, acerca dos "tipos" que podemos encontrar nas diferentes maneiras de organizar dado conjunto de objetos, duas características principais se fazem notar. A primeira delas é o fato de o tipo privilegiar determinada disposição de seus conteúdos parciais em detrimento de outras, ainda que esteja, perante as organizações mais adequada e menos adequada, da mesma maneira, desempenhando o mesmo papel. Isso quer dizer: o fato de constituir uma generalidade que estabelece as condições mais basais da ordenação de algo não faz com que toda atualização possível dessas condições apresente o mesmo valor, expresse da mesma maneira o tipo de que deriva. Há configurações mais adequadas e outras menos. Se já encontramos antes, na argumentação de Wertheimer, a aparente sugestão dos fatores de igualdade e proximidade, aqui nos parece possível encontrar um raciocínio similar ao que sustentará, em obras tardias, a ideia de Prägnanzstufe ou de boa forma. A segunda característica notável é a ênfase na completa independência do tipo em relação à atividade intelectual, o que Wertheimer busca sustentar ao afastá-lo de conceitos obtidos por derivação lógica ou por procedimentos de abstração. Não se trata de eliminar certos predicados e preservar outros por meio de qualquer espécie de exercício racional, fazendo, em um momento posterior, esses predicados que restam alçarem a condição de conceito. Tipo e conceito diferem basicamente pelo fato de o primeiro ser um puro dado, algo apreendido de forma imediata e que não exige, para surgir desse modo à experiência, nenhum desempenho intelectual. O segundo, por sua vez, depende estritamente dessas atividades, sendo sempre fruto de algum procedimento inferencial e, portanto, sempre mediato. O caráter objetivo a ser posteriormente conferido à Gestalt também já pode ser entrevisto aqui, posto que o tipo é algo que se impõe ao quadro de nossa experiência e não que esta produz por operações de qualquer natureza8.
A especificação das estruturas numéricas continua, no entanto. O uso rotineiro de expressões que indicam conjuntos ou coletivos também a ilustra, uma vez que aquelas expressões veiculam ideias de pluralidades não quantificadas (claramente distantes da matemática, portanto), como "rebanho", "tropa", "punhado", ou pluralidades seminuméricas, como "dúzia" (que nem sempre quer dizer efetivamente 12) e expressões que indicam época ou idade aproximada, como "na década de vinte" ou "em torno dos trinta", nas quais o vocábulo evocado é numérico, mas a ideia, não plenamente. Caracterizar essas estruturas como inadequadas ou vagas por sua imprecisão numérica seria errado: são ideias que povoam nossas trocas cotidianas e têm sua eficiência assegurada por elas. Ainda exemplificam isso os advérbios de intensidade ou de quantidade como "muito", "muitos", "pouco", "poucos", que indicam gradações ou magnificações de algo sem precisar um valor numérico para as mesmas. Veicula certa ideia de quantidade, portanto, sem que esta surja em um caráter matemático estrito.
A função das estruturas numéricas não é ser abstrata, variável e adequada a preceitos matemáticos, portanto, mas sim aplicável a casos concretos da vida ordinária. Elas se baseiam em agrupamentos efetuados por outros critérios que não o intelectivo. Escapam, assim, da estrita obediência a um plano uniforme de pensamento, que não admite variações e entende os números como agregados de uma quantidade única, agregados da ideia de unidade. Isso não é uma necessidade absoluta. Há culturas em que análogos numéricos servem também para a determinação de séries numéricas propriamente ditas: na Nova Guiné, por exemplo, conta-se de 1 a 5 com os dedos da mão esquerda, de 6 a 10 com os da direita, de 11 a 15 com os do pé direito e de 16 a 20 com os do esquerdo. A própria compreensão da contagem depende de condições materiais muito específicas, ligadas aos gestos e à anatomia humana. Do mesmo modo, há culturas em que se contam coisas diferentes de maneiras diferentes: certos povoados na Polinésia, por exemplo, contam peixes, frutas, homens, dinheiro etc. cada qual de uma forma. Mais uma vez, a cognição vem na esteira da materialidade.
Podemos ressaltar ainda um último aspecto que nos é relevante na argumentação de Wertheimer — as suas explicações sobre as operações que podem ser feitas com as estruturas numéricas. Se, em nossa matemática, temos nas diferentes operações aritméticas nada além de diferentes arranjos de unidades numéricas abstratas e indiferenciadas, nas operações realizadas a partir de estruturas numéricas, o que temos é a formação de estruturas mais amplas a partir das estruturas básicas ou de estruturas mais básicas a partir de estruturas mais amplas, em um processo ordenado, que nada tem de arbitrário. As operações feitas em estruturas devem sempre se conformar às exigências naturais da estrutura de origem: "Certos arranjos predeterminam, através de sua forma, certas divisões" (Wertheimer, 1912/1969, p. 270). Podemos encontrar um corte claro da relação que números e estruturas numéricas desempenham com fatos empíricos nos exemplos seguintes:
Se eu quebro um graveto, o cálculo ordinário dirá que eu tenho 'dois' gravetos. Mas quando eu quebro uma lança, eu não tenho duas lanças. No primeiro caso, 'dois' é abstrato — eu comecei com uma unidade e mais tarde tive duas. No outro exemplo mais concreto, temos uma estrutura em que as partes ainda dependem do todo de que derivam (por exemplo, uma é uma parte de ponta; a outra, uma parte de haste) (Wertheimer, 1912/1969, p. 271).
É certo que posso ainda abstrair do surgimento de dois novos objetos no segundo exemplo e afirmar que, de um objeto, passei a dois, ignorando por completo quaisquer informações de conteúdo acerca das situações inicial e final. Isso é correto do ponto de vista matemático, mas não descreve a compreensão que somos instados a ter quando simplesmente vemos aquela transformação ocorrer. Essa compreensão é natural e definida pela passagem de uma estrutura a duas outras que lhe são subordinadas, que têm o seu sentido estritamente dependente do sentido originariamente dado. A condição necessariamente abstrata das partes, tema fundamental do gestaltismo tardio, pode ser encontrada já aqui e com muito mais clareza do que todas as demais ideias já pontuadas em nossa interpretação.
Conclusão
Sendo essa a argumentação de Wertheimer, o que podemos encontrar de relevante nela? Como ela pode nos oferecer recursos para melhor compreender os primeiros esboços da teoria da forma? Segundo as exposições do psicólogo, podemos dizer que, entre as possibilidades de formação de estruturas que lidam com quantidade, mas não a tematizam matematicamente, encontram-se:
- ações, formas de relação interpessoal e sentidos objetuais culturalmente produzidos, cuja apreensão imediata traz tacitamente uma compreensão de quantidade;
- agrupamentos naturais, que se definem por alguma espécie de convergência entre objetos, seja por seu aspecto, função, familiaridade ou localização espacial, e que afirmam uma ideia numérica a partir desses critérios em nada intelectuais;
- estruturas que indicam pluralidades não quantificadas e pluralidades seminuméricas, que mostram possibilidades de lidarmos com quantidades sem saber seu valor preciso.
Em todos os casos, temos rupturas com o padrão matemático formal de se entender a lida com números e o pensamento numérico, bem como aparições, no horizonte de nossa experiência, de ideias articuladas, de totalidades significativas, que trazem a quantidade como parte dependente de seu sentido. A sobredeterminação da parte pelo todo, sustentamos, é já presente em Über das Denken der Naturvölker antes mesmo de sua enunciação mais explícita, encontrada na última passagem da exposição de Wertheimer anteriormente recuperada, quando ele fala das operações entre estruturas. Afirmar que, a partir de meu comprometimento com um sentido diretamente expresso pelo dado, posso inferir certas ideias de quantidade é estar já no registro da sobredeterminação, da mesma maneira que afirmar que o sentido de estruturas derivadas é definido pelo sentido de uma estrutura originária. E esse é precisamente o ponto de corte entre as teorias prévias da experiência e a teoria efetivamente gestaltista.
Por meio de informações como essas, parece-nos inteiramente razoável a crítica da afirmação tão frequente, já apresentada em nossa breve introdução, de que as teses gestaltistas da Escola de Berlim teriam tido início apenas nos estudos sobre o fenômeno phi. Muito do que posteriormente veríamos em seu arcabouço conceitual consolidado encontra-se já aqui, se não como tema explícito, pelo menos como etapa claramente identificável dos argumentos de Wertheimer. Para uma compreensão menos focal e, eventualmente, mais positiva desse problema, talvez valha o exame de textos ainda anteriores dos gestaltistas de Berlim (ou mesmo de Carl Stumpf) para encontrar vestígios de uma interpretação distinta do conceito de Gestalt e mesmo das tarefas da Psicologia.
Referências
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Endereço para correspondência:
Flávio Vieira Curvello
Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro
Avenida Pasteur, 250, Pavilhão Nilton Campos – Praia Vermelha
CEP 22290-902 – Rio de Janeiro/RJ
E-mail: fv.curvello@hotmail.com
Revisto em 23/07/2013
Revisado em 14/01/2014
Aceito em 19/01/2014
1 Para uma exposição abrangente desses instrumentos, conferir Crary (2012).
2 De que é exemplo a chamada tese do pré-logismo dos povos primitivos, representada por Lévy-Bruhl (King & Wertheimer, 2009).
3 Devemos ressaltar aqui um problema de tradução que nos parece relevante para a devida compreensão dos argumentos de Wertheimer. Como já registra o próprio título do trabalho aqui analisado, o psicólogo se refere ao pensamento dos Naturvölker, ou dos povos cujo modus vivendi é mais estreitamente conectado com a natureza do que o modo tipicamente ocidental e contemporâneo. Em nossos estudos, encontramos três traduções distintas do termo Naturvölker para o inglês: Ellis, tradutor de Wertheimer (1912/1969), refere-se a primitive people, optando pela tradução mais imediata; Ash (1998), a "primitive people", com aspas, ou a naturally thinking people, importando algo do tema do artigo — a análise do pensamento — para a própria expressão; e King e Michael Wertheimer (2009), a aboriginal people, empregando um adjetivo habitualmente de uso mais restrito como se ele fosse efetivamente um adjetivo geral. Optamos por manter a tradução "povo" ou "pensamento primitivo", ainda que, tomados isoladamente, os termos possam sugerir um etnocentrismo ausente nas investigações de Wertheimer. Cremos que, se o psicólogo for levado a sério quando busca afirmar que o estudo das formas de pensamento culturalmente circunscritas deve se dar pela consideração de cada cultura como âmbito sui generis de análise, essa impressão será desfeita e não lançará dificuldades à leitura do presente artigo. Não haveria nada como uma diferença evolutiva entre as formas de pensamento dos primitivos e as nossas, como buscaria afirmar o já citado pré-logismo.
4 Wertheimer diz "biológicas".
5 Luria (1976), de uma certa forma, também vincula a solução corriqueira de silogismos a situações concretas. À diferença de Wertheimer, esse autor vincula essa forma de solução de problema a um modo mais primitivo.
6 Consideramos esse exemplo menos forte porque ele não nos mostra uma impossibilidade concreta da cognição, como o exemplo anterior, mas sim uma dificuldade em abrir mão dos critérios materiais de significação mais imediatamente acessíveis em prol de outros critérios ainda materiais, mas que são menos próximos. A simples troca de critérios ou de conteúdos norteadores do pensamento nos parece menos relevante para mostrar a tese de Wertheimer do que o efetivo bloqueio intelectual apontado no caso anterior. Isso também limita o alcance do termo "abstração", usado para caracterizar a possibilidade de troca em nossa última sentença.
7 Padrão geométrico em que quatro pontos formam um quadrilátero e um quinto ponto se situa exatamente no ponto em que ambas as diagonais do quadrilátero cruzam. Se o quadrilátero for um quadrado, a imagem será a da face número cinco de um dado de seis lados.
8 Há que se evitar a confusão dessa objetividade com uma existência natural, em si e por si, real em última instância, do tipo experimentado. Toda a argumentação de Wertheimer supõe a produção cultural das categorias descritas. Elas não são, portanto, naturais ou reais no sentido especificado. Isso não as impede, contudo, de serem objetivas: as estruturas sociais as criam e elas se nos impõem como dados que significam os objetos do mundo.