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Psicologia em Pesquisa
versão On-line ISSN 1982-1247
Psicol. pesq. vol.13 no.2 Juiz de Fora maio/ago. 2019
https://doi.org/10.34019/1982-1247.2019.v13.27188
ARTIGOS
Entre psicanálise e existencialismo: a estruturação da personalidade sob condição
Between psychoanalysis and existentialism: personality structuring under conditions
Carlos Eduardo Ortolani Prado de Moura
Licenciatura plena em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC-Campinas, 1998), mestrado em Filosofia pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar/CAPES, 2010), doutorado em Filosofia pela UFSCar/CAPES/FAPESP (2015) e pós-doutorando em Psicologia com o Projeto de Pesquisa em Freud pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto (FFCLRP/USP/FAPESP)
RESUMO
O artigo visa apresentar algumas considerações do Existencialismo sartreano ao problema de uma subjetividade que existe em tensão entre a gratuidade de um vivido intencional (Liberdade) e sua condição de possibilidade: ser em situação (Determinação). É nesse aspecto que o diálogo de Sartre com a Psicologia e com a Psicanálise lançá-lo-á na tarefa de resolver o problema de uma Consciência que só se manifesta na medida em que sofre o peso das estruturas da relação com o Outro e da Linguagem. Diante de tal relação (impulso à liberdade, condições que fazem do homem um existente que se perdeu a si mesmo desde sua infância), observa-se um Sartre cada vez mais íntimo de seu interesse filosófico pela Psicanálise.
Palavras-chave: Sartre; Consciência; Intercorporeidade; Linguagem.
ABSTRACT
The aim of this article is to present some considerations of Sartre's theory of Existentialism considering the problem of a subjectivity that exists in tension between the gratuitousness of an intentional character experienced (Freedom) and its condition of possibility: being in a situation (Determination). It is in this aspect that Sartre's dialogue with Psychology and with Psychoanalysis will throw himself into the task of solving the problem of a Consciousness that only manifests itself to the extent in which it undergoes the weight of the structures of the relation with Other-Language. Considering such a relation (impulse to freedom, conditions which make man existent who has lost himself since his childhood), we see an ever more intimate Sartre of his philosophical interest in Psychoanalysis.
Keywords: Sartre; Consciousness; Intercorporeality; Language.
Pretende-se aqui destacar a dimensão existencial da corporeidade (relação com o Outro e com a Coisa do Mundo) na qualidade de um vivido de consciência, isto é, como presença no Mundo. É na condição de ser-no-mundo como escolha e ato que todo existente carrega em si um campo de significações que espelha, não só as estruturas da relação com o Outro (do meu desejo passando pelo desejo do Outro), mas também a especificidade de uma Weltanschauung (de uma concepção de Mundo iluminada por uma singularidade irredutível e situada). Nesse aspecto, toda significação suportada pelo ato só se dá em e a partir de estruturas mais profundas que possibilitam o fenômeno humano na singularidade da pessoa.
Para o Existencialismo, não é possível se pensar em uma espiral de personalização sustentada por uma dialética intemporal, já que todo ato instrumentalizado pela corporeidade do ser-no-mundo-no-meio-de-outros se dará no tempo e no espaço. Sartre e Freud poderiam aqui partir de um mesmo fundamento: todo ato é simbólico e isso na medida em que traduz um desejo ou estruturas mais profundas da personalidade. A Psicanálise, assim, apresenta-se ao Existencialismo sartreano como um método capaz explicar esse desejo ou essas estruturas no campo de suas significações. Para Sartre, nesse aspecto, toda possibilidade singular de ser articula-se com os objetos do Mundo (sejam pessoas ou coisas), portanto dão-se como possibilidades que se manifestam sob um fundo de Mundo e, sobretudo, em relação com a coisa ou com a objetificação do outro como possibilidade de assegurar a satisfação de seu desejo de ser.
Por um lado, "o mundo nos devolve exatamente, por sua própria articulação, a imagem do que somos [.] Escolhemos o mundo - não em sua contextura em-si, mas em sua significação - escolhendo a nós mesmos." (Sartre, 1943/2001, p. 507).1 Por outro lado,
O valor das coisas, sua função instrumental, sua proximidade e seu afastamento reais (que não tem relação com sua proximidade e afastamento espaciais) nada mais fazem do que esboçar minha imagem, ou seja, minha escolha (Sartre, 1943/2001, p. 508).
É nesse contexto que o leitor perceberá o esforço filosófico de Sartre em garantir a compreensão de uma subjetividade tensionada pela imagem movente da necessidade e da liberdade (Sartre, 1943/2001), que, para seguir em sua empreitada, buscará apoio em uma ontologia fenomenológica: só há ser, não por uma determinação interna do ser, mas pela determinação ontológica do ser como pura negatividade (Sartre, 1943/2001). Trata-se, por consequência, de considerar a irredutibilidade dialética do existente no seio do Mitsein - mas por sujeitos "afetados por si mesmos de Unselbststandigkeit [que] só existem sempre encarnados e sustentados em sua própria encarnação por uma liberdade" (Sartre, 1943/2001, p. 563).
Nesse aspecto, será no campo da intercorporeidade e da linguagem que encontraremos um duplo aspecto da existência: o termo vida designando um fato biológico e, ao mesmo tempo, a vida dramática do homem. Sartre concordaria com as palavras de Lacan: "os estádios instintuais [pulsionais] já estão, ao serem vividos, organizados como subjetividade" (Lacan, 1952/1998, p. 263). Essa será sua tarefa ao utilizar-se dos pressupostos da Psicanálise (lacaniana e freudiana) para resgatar uma subjetividade estruturada no seio de estruturas mais profundas de um indizível. Para tal, precisamos compreender as origens desse diálogo do Existencialismo com a Psicologia e com a Psicanálise, já que o Existencialismo sartreano se serviu dos métodos marxistas e psicanalíticos para fundamentar filosoficamente suas investigações sobre a questão: "O que se pode saber de um homem, hoje em dia?" (Sartre, 1971a, p. 7).2 Afinal, "o existencialismo, ajudado pela psicanálise, somente pode estudar situações em que o homem perdeu-se a si mesmo desde sua infância" (Sartre, 1960, p. 49).
Ora, se um dos pontos fundamentais deste artigo é colocar-se no campo da intercorporeidade e da linguagem - portanto, na produção de uma subjetividade que, necessariamente, passará pelo olhar do outro -, a questão da imagem tornar-se-á um problema a refletir. Em outros termos, se a constituição do Outro como objeto é concomitante à constituição de si como imagem (no coração do Outro-objeto [Sartre, 1943/2001) e se o Mundo nos devolve a imagem do que somos, se faz necessário decifrar o fenômeno imagem e submetê-lo à análise (Sartre, 1943/2001). É nesse contexto que o Existencialismo não existiria sem seu diálogo ambivalente (amor-ódio) com a Psicologia e com a Psicanálise. Esbocemos, assim, a imagem como problema filosófico e existencial.
O Problema da Imagem
É a partir do tema aqui proposto ("Entre psicanálise e existencialismo: a estruturação da personalidade sob condição") que pretendo pensar em um Sartre que, em sua defesa à supremacia da consciência, enfrentou as provocações teóricas trazidas pela psicologia e pela psicanálise e, como tal, procurou reencontrar nas determinações do nascimento (do vir ao mundo sob condição) a irredutibilidade ou a singularidade da pessoa humana. Tomo como ponto de partida a primeira obra publicada por Sartre, em 1936, A imaginação. A escolha não é aleatória, pois já na "Introdução" do ensaio vemos o filósofo apresentando o problema fundamental a que toda fenomenologia deve se debruçar: a relação da Consciência com o Mundo (ou com a Coisa). Falo aqui do exemplo da "folha em branco", e a resgato com a seguinte citação:
Olho esta folha branca posta sobre minha mesa; percebo sua forma, sua cor, sua posição. Essas diferentes qualidades têm características comuns: em primeiro lugar, elas se dão a meu olhar como existências que apenas posso constatar e cujo ser não depende de forma alguma do meu capricho. Elas são para mim, não são eu [...], isto é, não dependem de nenhuma espontaneidade, nem da minha, nem da de outra consciência. São, ao mesmo tempo, presentes e inertes. Essa inércia do conteúdo sensível, frequentemente descrita, é a existência em si. De nada adianta discutir se esta folha se reduz a um conjunto de representações ou se é ou deve ser mais do que isso. O certo é que o branco que constato não pode ser produzido por minha espontaneidade (Sartre, 1936/1969, p. 1).
Com isso, chegamos ao primeiro polo da relação, isto é, à constatação da existência de algo que se manifesta a partir de sua forma inerte, como algo que não é produzido pela espontaneidade da consciência. Essa forma inerte recebe de Sartre a nomenclatura de coisa.
Por outro lado, eis aí o outro polo da relação fenomenológica fundamental que procuramos, a consciência:
Em hipótese alguma minha consciência seria capaz de ser uma coisa, porque seu modo de ser em si é precisamente um ser para si. [...] Ela aparece como uma pura espontaneidade em face do mundo das coisas que é pura inércia (Sartre, 1936/1969, p. 1).
A materialidade da folha em branco, que em sua inércia e autonomia não existe por um capricho da minha consciência desejante, passa agora para um segundo estágio da experiência fenomenológica proposta na "Introdução" de O imaginário:
Mas eis que, agora, desvio a cabeça. Não vejo mais a folha de papel. [...] A folha não está mais presente, não está mais aí. Sei, entretanto, muito bem, que ela não se aniquilou: sua inércia a preserva disso. Ela cessou, simplesmente, de ser para mim. No entanto, ei-la de novo [ela me aparece]. [...] Mas não ignoro que esta folha ficou lá no seu lugar; sei que não desfruto de sua presença; se quero vê-la novamente é preciso que me volte para minha escrivaninha, que concentre meus olhares sobre o mata-borrão em que a folha está colocada. [...] É bem a mesma folha, a folha que está presentemente sobre a minha escrivaninha, mas ela existe de outro modo [ela existe em imagem] (Sartre, 1936/1969, p. 2).
Esse é o ponto principal da tarefa filosófica de Sartre nessa obra, isto é, saber o modo pelo qual a existência em imagem - um modo de ser da coisa - apresenta-se na qualidade de fatos psíquicos (de imagem-lembrança, de estrutura sensorial da imagem ou da imagem-coisa). Sartre, no fundo, quer saber o papel e a natureza da imagem na vida psicológica, já que ele a concebe como uma forma de consciência, uma síntese afetivo-cognitiva (Sartre, 1940).
Não se trata apenas de perguntar se a imagem permanece uma coisa autônoma na consciência - com seu conteúdo inerte, com suas leis associativas -, mas de mostrar os equívocos de uma psicologia que, na ótica de Sartre, esforça-se em se constituir como ciência reduzindo "a complexidade psíquica em um mecanismo" (Sartre, 1936/1969, p. 23) para introduzir "o fisiologismo [...] na consciência" (Sartre, 1936/1969, p. 25). Ora, partindo-se do pressuposto de que "Todo fato psíquico é síntese" (Sartre, 1936/1969, p. 161), ao estudar o domínio da consciência e o domínio do fisiológico à luz de um sistema mecânico (seja por leis lógicas ou fisiológicas) que dê conta de um poder organizador da vida psíquica colocará, inevitavelmente, a consciência como "um mero apêndice aos processos fisiológico-psíquicos" (Freud, 1950 [1985]/1994, p. 355). Com isso, e eis aí o problema, "a espontaneidade da consciência desvanecer-se-ia" (Sartre, 1936/1969, p. 118).
E não poderia ser de outro modo, pois o universo teórico que separa Sartre da Psicologia e da Psicanálise passa pela aderência do Existencialismo à fenomenologia de Edmund Husserl. No parágrafo 35 de Ideias para uma fenomenologia pura e para uma filosofia fenomenológica, de Husserl (1913/2006), por exemplo, o leitor também encontrará a descrição da experiência fenomenológica da folha branca. Do mesmo modo, nos é apresentada a experiência de tocar perceptivamente o papel como um vivido pleno e concreto do papel dado em suas qualidades, em suas propriedades objetivas (extensão no espaço, situado objetivamente em relação à coisa espacial denominada corpo) - trata-se, em suma, de um vivido de consciência. Todo percebido, segue Husserl, se dá sobre um fundo de experiência, de um estar-voltado-para (de um olhar do espírito mais do que um olhar físico).
O que quero mostrar aqui é que a ênfase de todo o processo da relação fenomenológica está voltada para a Consciência, ela é o verdadeiro guia e não pode apenas ser "o único farol [einzige Leuchte] na escuridão da psicologia das profundezas" (Freud, 1923/1993, p. 20). Mas não é somente por conta das leituras husserlianas que Sartre se nega a aceitar a noção de inconsciente em Freud ou do coisismo ingênuo da imagem na Psicologia. Sua negação é reforçada pelo pensamento filosófico do fenomenólogo alemão - disso não tenhamos dúvida -, mas já existia uma barreira conceitual que fazia parte do próprio contexto do aprendizado filosófico do jovem Sartre. Leiamos suas palavras e entendamos o que busco aqui enfatizar:
Para retornar a Freud, eu diria que eu era incapaz de compreendê-lo porque eu era um francês nutrido de tradição cartesiana, imbuído de racionalismo, que a ideia de inconsciente chocava profundamente. Mas eu não diria somente isso. Hoje ainda, de fato, eu permaneço chocado por uma coisa que era inevitável em Freud: seu recurso à linguagem fisiológica e biológica para exprimir ideias que não eram transmissíveis sem essa mediação. O resultado é que a forma pela qual ele descreve o objeto analítico sofre um tipo de cãibra mecanicista (Sartre, 1987, p. 105).3
Sartre se horroriza diante de um sistema de causalidades que faz da consciência um simples mecanismo ou uma zona de sombra da qual ela poderia surgir.
O cartesianismo de Sartre, à luz da fenomenologia de Husserl, se interpõe como uma barreira para a aceitação da noção de inconsciente em Freud. Nesse aspecto, o conceito de intencionalidade - em que a essência de todo cogito atual é ser consciência de algo (Husserl, 1913/2006) - e a noção de vivido intencional - que resgata a singularidade concreta do ser-em-situação - surgem nesse debate com a Psicologia para reafirmar a necessidade incondicionada da espontaneidade da consciência: "a consciência pode se determinar por si mesma a existir, mas não poderia ter ação sobre algo que não seja ela mesma" (Sartre, 1936/1969, p. 126). Portanto - eis o que nos interessa nessa discussão -, se seguirmos a tese sartreana de que "A imagem é uma realidade psíquica" (Sartre, 1936/1969, p. 138), só a entenderemos na medida em que ela "é consciência, é espontaneidade pura, ou seja, consciência de si, transparência para si e não existe senão na medida em que se conhece. Não é, pois, um conteúdo sensível" (Sartre, 1936/1969, p. 126).4 Sartre, a todo custo, queria evitar dissolver a subjetividade real em uma interioridade fora do mundo ou perdê-la em nome de uma metafísica ingênua da imagem.5
Nessa perspectiva, entende-se o apaixonado esforço de Sartre em A imaginação (1936/1969) para elaborar suas críticas aos grandes sistemas metafísicos (sobretudo entre Descartes, Hume e Leibniz)6 e ao esforço dos psicólogos para encontrarem um método positivo sobre o problema da imagem (crítica aos associacionistas e adeptos da escola de Würzburgo).7 E, para encerrar essa complexa questão sobre a imagem (aqui parcialmente mencionada), resgato a pergunta que Sartre lança ao leitor de A imaginação (1936/1969): "Surpreenderíamos, mesmo, bastante, alguém que não tivesse estudado psicologia se, após ter explicado o que o psicólogo chama de imagem, lhe perguntássemos: acontece-lhe, às vezes, confundir a imagem de seu irmão com a presença real?" (Sartre, 1936/1969, p. 3). Se Sartre deixa clara sua adesão à fenomenologia de Husserl para negar qualquer forma de imagem que seja considerada um conteúdo psíquico inerte em nome de uma consciência que é espontaneidade, inteiramente atividade e translúcida a si mesma, é preciso também compreender, por outro lado, que ela somente se dá sob o paradoxo da liberdade - caso contrário, cairíamos em uma espécie de Idealismo ou refúgio transcendental.
A consciência é a liberdade, mas só há liberdade em situação: intercorporeidade e linguagem
Agora, no universo teórico de O ser e o nada (1943/2001), Sartre nos apresenta a consciência como liberdade, mas uma liberdade que não pode ser entendida como "uma faculdade da alma apta a ser encarada e descrita isoladamente" (Sartre, 1943/2001, p. 59), pois, se por um lado "Ser livre é estar condenado a ser livre" (Sartre, 1943/2001, p. 164), por outro lado "a liberdade é falta de ser por relação a um ser dado" (Sartre, 1943/2001, p. 531), que, por sua vez, "determina-se, por seu próprio surgimento, em um 'fazer'" (Sartre, 1943/2001, p. 531): "a liberdade é originalmente relação ao dado" (Sartre, 1943/2001, p. 532). Esse é o paradoxo sartreano da liberdade, em que só é possível falar de liberdade em situação e falar de situação à luz da liberdade. A subjetividade ou as condições de possibilidade de nossas experiências precisam ser pensadas, nesses termos, sob as condições de possibilidade da temporalidade e do olhar do outro. Com isso, quero resgatar a seguinte afirmação de Sartre:
O jogador [que livre e sinceramente decidiu parar de jogar] que precisa ter novamente a percepção sintética de uma situação, a qual lhe impediria de jogar, deve reinventar ao mesmo tempo o eu capaz de apreciar essa situação e que "está em situação". [...] Esse eu, como seu conteúdo a priori e histórico, é a essência do homem (Sartre, 1943/2001, pp. 67, 70).
Ora, essa essência do homem - é o que quero aqui marcar - só é histórica e a priori porque nascer é vir ao mundo sob uma dupla condição: da intercorporeidade e da linguagem.8
A condição Ontológica e Antropológica do Homem em O ser e o nada (1943/2001) se dá pela afirmação de que o fenômeno humano é fundamentalmente desejo de ser ou tendência a ser9 e é por esse desejo que se realiza outro fenômeno, o da apropriação do outro: "o desejo é uma consciência que se faz corpo para apropriar-se do corpo do outro, apreendido como totalidade orgânica em situação com a consciência no horizonte" (Sartre, 1943/2001, p. 429). Procuro com isso resgatar essa noção de desejo em Sartre em que, segundo suas palavras, "faço-me carne em presença do outro para apropriar-me da carne do outro", constituindo "para mim um meio de descobrir meu corpo como revelação fascinante de minha facticidade, ou seja, como carne" (Sartre, 1943/2001, p. 429). A estruturação da personalidade sob esse fundo de mundo, por consequência, não acontece sem essa dimensão do corpo, pois "qualquer que possa ser sua função, aparece antes de tudo como algo conhecido" (Sartre, 1943/2001, p. 255). Mas de qual conhecer Sartre fala? Claro, do "conhecido pelo outro" (Sartre, 1943/2001, p. 254).10
É o que permito chamar de uma relação de intercorporeidade pela qual o sujeito se constitui como pessoa, já que tudo aquilo o que ele sabe de seu corpo.
vem da forma como os outros lhe veem. Assim, a natureza do meu corpo me remete à existência do outro e a meu ser-Para-outro. Descubro com ele, para a realidade humana, outro modo de existência tão fundamental quanto o ser-Para-si, que denominaremos ser-Para-outro (Sartre, 1943/2001, p. 254).
E é por essa noção de corpo como um conhecido pelo outro como situação antropológica fundamental (do ser-para-si-para-outro) que faço um salto cronológico de O ser e o nada (1943/2001) para o Volume I de O idiota da família (1971) - o que me permite trazer à discussão final a estruturação da personalidade sob esta dupla condição: da Linguagem e da Intercorporeidade.
Gustav Flaubert, um dos expoentes da literatura francesa do século XIX (autor de Madame Bovary), é analisado por Sartre através de suas obras e cartas. Flaubert, criança não desejada, superprotegida e passiva (Sartre, 1987, p. 96), nasceu em situação - como todo existente - e é na primeira infância que, nas palavras de Sartre, "O adestramento começa" (Sartre, 1971a, p. 11). A situação fundamental desse adestramento se dá por um Outro que está presente como testemunha, como meio opressor e como exigência, mas, sobretudo, na medida em que essa criança é inevitavelmente inserida entre "os imperativos inanimados do alfabeto" (Sartre, 1971a, p. 12). A questão da Linguagem ou da Palavra, em O idiota da família (1971), encontra sua máxima importância no pensamento sartreano. É nessa fase que Sartre procura unificar o método dialético (do materialismo histórico de Marx) com a interpretação psicanalítica, visando aí encontrar a irredutibilidade dialética do "drama livre da pessoa" (Sartre, 1983, p. 13) ou do "drama único da sua infância" (Sartre, 1960, p. 91).11
No Capítulo I, do Volume I, de O idiota da família (1971) - "Um Problema" -, Sartre elabora toda uma perspectiva da Linguagem (sentido, significação, relação com a palavra, valor significante, materialidade verbal) como um meio condutor de comunicações articuladas, pelo qual, através do Verbo e nas relações humanas, a criança é atingida. É por esse atingir, em que "não há Ego sem Alter, sem Alter Ego" (Sartre, 1971a, p. 24), que a relação com o Outro traz algo de "inarticulável" (inarticulable), uma espécie de "anomalia indizível" (anomalie indisable) (Sartre, 1972, p. 9), pois "na criança a linguagem é má condutora; através dela, não apenas o laço [le rapport] com o outro é falseado, como também o é, no mesmo movimento, o laço [le rapport] consigo mesmo" (Sartre, 1971a, p. 24).12 Nesse sentido, não só a Linguagem se faz laço, mas também a própria carne.
No Flaubert adulto, e em cada gesto seu, encontra-se expressa sua infância ("a luz negra da infância")13 e a estruturação de sua personalidade passa pelo mal-estar psicossomático de sua proto-história. Trata-se do "distúrbio da relação original que une a criança, carne em vias de eclodir, à [...] mulher fazendo-se carne para alimentar, cuidar, acariciar a carne de sua carne", ou seja, uma mulher que "se faz carne para que uma carne seja feita homem" (Sartre, 1971a, p. 56). No próprio fato do aleitamento, das funções digestivas e excretoras do bebê e dos cuidados de higiene oferecidos pelo amor materno, a criança passa por "sensações duplas": a carne pressionada é, ao mesmo tempo, exploração de si e exploração, posterior, de outra carne (a da mãe). Nesse campo de intercorporeidade adulto-infans "o orgânico e o intencional se confundem" (Sartre, 1971a, p. 54), o organismo, sob a ação de fatores fisiológicos é a cada dia moldado pelos cuidados que lhe prestam, estruturando "o primeiro laço do bebê com o mundo e consigo mesmo" (Sartre, 1971a, p. 61). É a partir dessa determinação original, dessa interiorização do ambiente familiar em uma situação objetiva que se compreenderá a singularidade irredutível de Gustave Flaubert.
Para Sartre, essa condição antropológica fundamental dar-se-á em e a partir da reciprocidade das relações humanas, isto é, pela singularização dos organismos individuais (irredutibilidade do existente) segundo sua presença no campo prático - portanto, pelas dimensões de sua alteridade (de seu Para-si-Para-Outro) em relação com as exigências da materialidade inorgânica e inerte (com a coisa do Mundo). A vida, por consequência, será compreendida pela especificidade de um movimento espiralado, ou seja, na medida em que a pessoa "volta a passar sempre pelos mesmos pontos, mas em níveis diferentes de integração e de complexidade"(Sartre, 1960, p. 71). Trata-se do esforço de Sartre em apreender o homem sob um conjunto de determinações para, ao mesmo tempo, resgatá-lo a partir de seu drama pessoal e concreto.14 E se desejamos falar de caráter, de personalidade, de psiques de massa, precisamos pensar tais noções a partir de uma situação real ou a partir de uma situação antropológica fundamental que envolva tanto as coerções internas quanto as contingências da infância (a proto-história). Como ressaltou Sartre (1960), se queremos examinar a fundo os homens reais, temos de evitar recorrer aos fetichistas da interioridade (fétichistes de l'intériorité) e, ao mesmo tempo, considerar o existente na dimensão do ser-no-mundo instituído - afinal, "ninguém pode viver sem fazer-se, isto é, sem superar rumo ao concreto o que fizeram de sua pessoa" (Sartre, 1971a, p. 648).
É nesse sentido que a relação de sedução está clara em Gustav Flaubert na medida em que ele é moldado pela "estrutura patética da afetividade" (Sartre, 1971a, p. 57) à luz das condutas maternas. Sartre concordaria plenamente com Laplanche:
A sedução não é uma relação contingente, [...] episódica. Ela se baseia na situação da qual o ser humano não pode escapar, que chamo de situação antropológica fundamental. Essa situação antropológica fundamental é a relação adulto-criança (Laplanche, 2002/2015, p. 107).
O desejo intrapsíquico primordial, assim, se inscreve na intersubjetividade da relação boca-seio e é sob essa tal condição que "a estreita proximidade com o corpo materno e o apego ao prazer que dispensa são, em todo sentido, incomparáveis" (Green, 1993/2006, p. 96). É nesse clima de concretude intervivencial que encerro com uma citação de Sartre sobre "doença mental":
Creio também que não se pode estudar ou curar uma neurose sem o respeito original à pessoa do paciente, sem esforço constante para compreender a situação básica e revivê-la, sem uma diligência para encontrar a reação da pessoa a essa situação e considero - como os senhores, julgo - a doença mental como uma saída que o organismo livre, em sua unidade total, inventa para poder viver uma situação insuportável. Por esta razão tenho no mais alto apreço as suas pesquisas, em especial o estudo do meio familiar considerado em grupo e em série, e estou convicto de que seus esforços contribuem para acelerar a aproximação do tempo em que a psiquiatria será, finalmente, humana (Sartre, 1976b, p. 7).
Considerações Finais
Se por um lado Sartre deparou com uma Psicologia e com uma Psicanálise que procuravam se sustentar por um discurso (do Inconsciente ou de conteúdos psíquicos) que fazia da Consciência uma sombra das estruturas mais profundas do funcionamento da alma (ou do Cogito, na linguagem sartreana), por outro lado ele precisaria considerar os determinismos da vida psíquica. Contudo, ele jamais poderia pensar nessa problemática a partir de uma ontologia que se sustentaria sobre um materialismo mecanicista,15 fazendo da Consciência um mero apêndice dos processos da alma que estruturariam o movimento de personalização - sendo este "um acontecimento arquetípico e certo drama que se desenrola em cada um de nós" (Sartre, 1971b, p. 1.151, grifo nosso). Diante disso, desejou-se aqui pensar a subjetividade como modo de ser, de maneira que o fenômeno humano fosse colocado na dimensão de uma objetivação psíquica e na dimensão da apreensão dos atos do indivíduo como uma unidade da pessoa16 que precisa ser vista como uma constituição predominantemente distinta da exigida para as coisas naturais (a pessoa não é objeto ou um ser substancial de coisa, e toda objetivação psíquica traz consigo um grau de despersonalização).17
Assim, a pessoa estrutura-se a partir de seus atos intencionais iluminados pela unidade de um sentido e não pode ser pensada fora do imediatamente vivido: ela "não é um ser substancial de coisa" (Heidegger, 1927/2012, p. 155). Não se nega a possibilidade de estruturar, segundo uma egologia, as diversas formas de manifestação fenomênica do fator humano (dentre elas, como se destacou, a intersubjetividade e a linguagem).18 Assim, uma "ciência da vida" dar-se-ia por um viver que não é somente pura subsistência, mas "algo a mais"19 que se compõe como vida - e isso no sentido de algo ontologicamente indeterminado no seio das determinações do entorno.
"A história de uma vida, qualquer que seja, é a história de um fracasso. O coeficiente de adversidade das coisas é de tal ordem que anos de paciência são necessários para obter o mais ínfimo resultado" (Sartre, 1943/2001, p. 527). E ainda é preciso obedecer à natureza para comandá-la, ou seja, inserir minha ação nas malhas do determinismo. Bem mais do que parece fazer-se, o homem parece ser feito pelo clima e a terra, a raça e a classe, a língua, a história da coletividade da qual participa, a hereditariedade, as circunstâncias individuais de sua infância, os hábitos adquiridos, os grandes e pequenos acontecimentos de sua vida (Sartre, 1943/2001).Eis aí a verdadeira e inevitável experiência do páthos humano entre o Destino (Ανάγκη) e a práxis como luta palmo a palmo contra toda determinação recebida e constitucional (da existência submetida ao ser, isto é, ao Outro [Sartre, 1971a]).
Como diria Freud, não se pode evitar a busca do equilíbrio (impreterível, mas já fracassado) entre o impulso à liberdade (Freiheitsdrang) e a revolta do indivíduo contra a configuração cultural (Gestaltung der Kultur) que pesa sobre ele: o ser humano defenderá sempre sua demanda de liberdade individual contra a vontade da massa (Freud, 1930 [1929]/1994). No caso, os sintomas, as satisfações substitutivas dos sujeitos - que lhes foram negadas pelas exigências da massa - "se tornam fontes de sofrimento ao lhes causar dificuldades com o mundo circundante e com a sociedade" (Freud, 1930 [1929]/1994, p. 105). Desse contexto poder-se-ia inserir a seguinte reflexão sartreana: "o homem, estando condenado a ser livre, carrega nos ombros o peso do mundo inteiro: é responsável pelo mundo e por si mesmo enquanto maneira de ser" (Sartre, 1943/2001, p. 598). O Diálogo entre o Existencialismo e a Psicanálise, portanto, revela-se como um precioso caminho de grandes interlocuções e basta-nos a audácia (e a paixão) para nele se aventurar.
Referências
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Endereço para correspondência:
Carlos Eduardo Ortolani Prado de Moura
Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto/USP
Av. Bandeirantes, 3900, Monte Alegre
Ribeirão Preto - SP -Brasil - CEP: 14040-901
cemoura73@gmail.com
Recebido em: 01/05/2019
Aceito em: 03/07/2019
1 As traduções das obras em francês e espanhol são livres.
2 Cf. também Sartre, 1987, p. 92. Em outro momento, afirma Sartre: "Desde o início eu utilizei conjuntamente os dois métodos. Eu considerei que é impossível falar de uma criança sem situá-la em sua época" (Sartre, 1976a, p. 100).
3 A metáfora que Sartre utiliza aqui para criticar a psicanálise (crampe mécaniste) remete à ideia de um coisismo a que a consciência encontra-se submetida, isto é, ela se faz sombra ou um mero apêndice frente à supremacia de um fisicalismo ou de um naturalismo que sustentariam o discurso metapsicológico - lembrando-se de que estou falando de uma leitura sartreana sobre Freud à luz daquilo o que ele considera ser uma "mitologia coisista" (Sartre, 1943/2001, p. 87) ou uma "mitologia do inconsciente" (Sartre, 1987, p. 105).
4 Apenas por uma questão de observação - não há tempo para tratar do assunto neste momento -, Sartre fez uma reelaboração dessas suas teses fenomenológicas para inseri-las no contexto de sua ontologia fenomenológica de O ser e o nada (1943/2001). Se aqui a ênfase se dá pelo pano de fundo da fenomenologia husserliana, lá o contexto se deu iluminado pela metafísica, ou melhor, ontologizado (relação de ser a ser) pela questão que se coloca entre o ser e o nada. "O ser está por toda parte à minha volta, parece que posso tocá-lo, agarrá-lo; a representação, como acontecimento psíquico, é pura invenção dos filósofos. Mas deste ser que 'me cerca' por todos os lados e do qual nada me separa estou separado precisamente por nada, e esse nada, por ser nada, é intransponível" (Sartre, 1943/2001, p. 254).
5 É preciso "examinar a fundo os homens reais e não os dissolver em um banho de ácido sulfúrico" (Sartre, 1960, p. 37).
6 Com o equívoco de terem estabelecido "a identidade de natureza entre imagem e sensação" (Sartre, 1936/1969, p. 22).
7 Sartre trava ali uma intensa batalha contra Alfred Binet (L'étude experimentale de l'intelligence; l'ame et le corps [1922]), Albert Spaier (La pensée concrete [1927]), Théodule-Armand Ribot (L'imagination creatrice [1914]), Hippolyte Taine (De l'intelligence [1870]), entre outros. Para resumir: ou recorriam a uma metafísica ingênua da imagem ou a um coisismo ingênuo das imagens (Sartre, 1936/1969).
8 Sobre o tema da intercorporeidade, conferir o artigo de Simanke (2016).
9 "Assim, a ontologia nos ensina que o desejo é originariamente desejo de ser e se caracteriza como livre falta de ser. Mas ela nos ensina também que o desejo é relação com um existente concreto no meio do mundo e que este existente é concebido segundo o tipo do Em-si" (Sartre, 1943/2001, p. 631).
10 Nesse contexto, é interessante resgatar algumas ideias de Sándor Ferenczi. No Capítulo VIII, do Volume II, das Obras completas ("O desenvolvimento do sentido de realidade e seus estágios"), Ferenczi nos mostrará que, na passagem processual do estágio-prazer (onipotência de pensamento ou sentimento de onipotência, período de vida passado no corpo da mãe) ao estágio-realidade (reconhecimento das forças da natureza) em que se desenvolve o Ego, é preciso levar em conta os cuidados maternos. O recém-nascido adapta-se à nova situação, o desejo de satisfações pulsionais enfrenta as adversidades do real. A realização de desejo, nesse novo momento do processo, "está vinculada a uma nova condição: a criança deve produzir certos sinais" (Ferenczi, 1913/2011, p. 51). A criança, portanto, aprende progressivamente a fazer de seu corpo linguagem gestual: imitação com a boca os gestos de sucção (desejo de ser alimentado), contração abdominal (desejo de ser tocada), estender a mão (obtenção do objeto que deseja) - o que Ferenczi chama de gestos mágicos. Em outro momento, aprende-se a passagem do simbolismo gestual para o simbolismo verbal: "Assim se estabelecem essas relações profundas, persistentes a vida inteira, entre o corpo humano e o mundo dos objetos, a que chamamos relações simbólicas" (Ferenczi, 1913/2011, p. 54). No Capítulo I, do Volume IV, das Obras completas ("A adaptação da família à criança") vemos que essa adaptação da criança à nova fase cumpre o papel decisivo em sua vida psíquica (trauma do nascimento, desmame, modificações fisiológicas, supressão dos "maus hábitos"), de modo que a "aprendizagem do asseio pessoal" nada mais é do que a adaptação da criança de "suas necessidades primitivas às exigências da civilização" e é aí que se formará o "caráter" da criança - a "mecanização de um certo modo de reação" (Cf. Ferenczi, 1928/2011, p. 1-6). O asseio, conclui Ferenczi, não tem nada de inato e é nesse aspecto que o Superego será por ele compreendido como "o resultado de uma interação do ego com uma parte do ambiente" (Ferenczi, 1928/2011, p. 13).
11 Sartre nos dirá, ao fazer um estudo biográfico de Jean Genet: "Ou seja, a palavra é simultaneamente objeto sonoro e veículo de significação [a fala é gesto e a palavra é coisa]" (Sartre, 1952/2002, pp. 295, 372).
12 A adesão à Linguagem enquanto condição estruturante da personalidade fica mais evidente com a seguinte afirmação de Sartre: "Para mim, Lacan clarificou o inconsciente enquanto discurso que separa através da linguagem ou, se preferir, enquanto contra-finalidade da fala: os conjuntos verbais se estruturam como conjunto prático-inerte através do ato de falar." (Sartre, 1987, p. 97).
13 "la lumière noire du premier âge" (Sartre, 1971a, p. 55).
14 Como no drama concreto da vida individual a que se refere Politzer em sua Crítica aos fundamentos da psicologia (Cf. Politzer, 1928/1968, pp. 205-207).
15 Uma espécie de "materialismo metafísico" que lançaria uma "parcela do homem [concreto] para fora do mundo" (Sartre, 1937/1978, p. 86).
16 Entende-se aqui a noção de "unidade" tendo em vista que a neurose é um esboço de solução do indivíduo ao problema do dever-ser - como observado na análise existencial que Sartre faz sobre Gustave Flaubert (Cf. Moura, 2017, p. 428-446).
17 Um movimento de despersonalização em sentido heideggeriano, ou seja, ao compreender que "À essência da pessoa pertence o existir somente na execução dos atos intencionais; e, assim, ela, por essência, não é objeto. Toda objetivação psíquica e, portanto, toda apreensão dos atos como algo psíquico é identicamente uma despersonalização" (Heidegger, 1927/2012, p. 155).
18 Lembrando-se de que, para Sartre, é do Cogito que uma egologia deve partir (Sartre, 1937/1978, p. 27) e isso por uma consciência que é ser concreto e sui generis - mas não pela mediação de uma relação abstrata e injustificável de identidade, já que a consciência é ipseidade (Sartre, 1943/2001).
19 A existência humana, para Sartre, será apreendida sempre como um "algo a mais", como um "en plus" (Sartre, 1983, p. 317) ou como um "de trop" (Sartre, 1943/2001, p. 120) irredutível ao discurso analítico.