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Revista do NUFEN
versão On-line ISSN 2175-2591
Rev. NUFEN vol.1 no.1 São Paulo ago. 2009
ARTIGOS
A psicopatologia infantil vista pelos professores: necessidades de intervenção psicológica em crianças do primeiro ciclo
The infantile psychopathologic seen by the teachers: needs of psychological intervention in children of the first cycle
Vítor Franco1
Universidade de Évora, Portugal
RESUMO
Pesquisa das necessidades de intervenção psicológica em crianças em idade escolar. Estudo abrangendo os professores das escolas do primeiro ciclo da cidade de Évora, em Portugal, correspondendo a uma população total 1278 alunos. Verificou-se haver uma percentagem de 15,26 % de crianças em relação às quais os professores referem haver necessidade de intervenção psicológica de algum tipo. Foi utilizado o TRF (Achenbach, 1991) com um grupo de 170 destas crianças, para conhecer quais os comportamentos que levam os professores a considerarem mais necessária tal intervenção, comparando-se os resultados com os de outros estudos. Foi feito também o estudo factorial dos dados obtidos, de forma a verificar de que modo os comportamentos problemáticos identificados se relacionam com as grandes dimensões da psicopatologia infantil, uma vez que o inventário utilizado foi concebido para permitir não só a identificação de comportamentos, mas também de síndromes correspondentes ás perturbações do desenvolvimento.
Palavras-chave: psicopatologia da criança, desenvolvimento, intervenção psicológica.
ABSTRACT
Research of the necessities of psychological intervention in children in pertaining to school age. Study enclosing the professors of the schools of the first cycle of the city of Évora, in Portugal, corresponding to a total population 1278 pupils. It was verified to have a percentage of 15,26 % of children in relation to which the professors relate to have necessity of psychological intervention of some type. The TRF (Achenbach, 1991) with a group of 170 of these children was used, to know which the behaviors that take the professors to consider more necessary such intervention, comparing itself the results with the ones of other studies. The factorial study of the gotten data was also made, of form to verify of that way the identified problematic behaviors if relate with the great dimensions of the infantile psychopathologic, a time that the used inventory was conceived to not only allow the identification of behaviors, but also of corresponding syndromes ace disturbances of the development.
Keywords: Psychopathologic of the child, Development, Psychological intervention
INTRODUÇÃO
Muitos dos problemas do desenvolvimento e do comportamento infantil são identificados primeiramente nas escolas, pelos professores.
Este trabalho surgiu da necessidade de conhecermos quais os comportamentos entendidos como mais problemáticos pelos professores e que os levam a considerar a necessidade de um acompanhamento psicológico.
Importa-nos explorar estas percepções, tanto mais que os professores se encontram numa situação privilegiada para a avaliação de inúmeros comportamentos da criança, podendo compará-los com os de outras, da mesma faixa etária, tornando-se assim num elemento fundamental para assinalar a existência de eventuais perturbações psicológicas ou do desenvolvimento.
OBJECTIVOS
Constituíram objectivos do presente estudo:
1. Ter uma perspectiva epidemiológica dos alunos que poderão necessitar de ajuda de um psicólogo, na população estudada, a partir das percepções dos professores.
2. Conhecer quais os comportamentos, dos alunos do 1º Ciclo, que levam os seus professores a considerarem necessária uma intervenção psicológica, e comparar os resultados obtidos com os de outros estudos, nomeadamente Fonseca et al., (1995) e Albuquerque et al., (1999).
3. Através da análise dos itens do questionário que utilizámos, averiguar quais os comportamentos mais frequentes.
4. Realização de um estudo factorial dos dados obtidos, de forma a verificar se estes se podem agrupar, uma vez que o inventário utilizado foi concebido para permitir não só a identificação de comportamentos, mas também de síndromas.
ENQUADRAMENTO TEÓRICO
Para a concretização dos objectivos da nossa investigação utilizámos o Inventário do Comportamento da Criança para Professores, de Achenbach (1991), considerando que, devido à facilidade de aplicação e à sua objectividade, os inventários são hoje o método mais utilizado na recolha de dados junto de professores, sendo também muito frequente o recurso a estes instrumentos na fase inicial (de rastreio) de estudos de maior amplitude.
Este estudo exploratório suporta-se nos resultados dos estudos de Achenbach (1991) bem como de outros estudos já realizados com base neste mesmo inventário (Fonseca et al., 1995; Albuquerque et al., 1999).
A análise factorial do estudo americano (Achenbach, 1991) encontrou uma estrutura que compreende oito factores, também denominados escalas ou síndromas. Estas escalas baseiam-se em 89 itens comuns a três instrumentos: o Inventário do Comportamento da Criança para Pais, o Inventário do Comportamento da Criança para Professores e o "Youth Self- Report Form".
Estes factores foram designados escalas de Isolamento, Queixas Somáticas, Ansiedade/ Depressão, Problemas do Pensamento, Problemas de Atenção, Comportamento Delinquente e Comportamento Agressivo (Achenbach, 1991; Albuquerque et al, 1999) e aglutinam-se em duas grandes dimensões da Psicopatologia infantil: a síndroma de problemas de expressão interiorizada (que agrupa sintomas de natureza subjectiva) e a síndroma de problemas de expressão exteriorizada (que agrupa sintomas manifestos com um claro impacto nos contextos sociais).
Os estudos relativos à versão portuguesa deste Inventário resultaram numa estrutura bastante diferente da definida por Achenbach. Fonseca et al (1995) referem que a estrutura factorial da versão portuguesa deste inventário para professores só é parcialmente comparável à estrutura da versão americana. As diferenças dizem respeito não só ao número de factores encontrados, mas também, no caso dos factores semelhantes aos da versão americana, aos itens que os compõem. Sendo assim, foram identificados sete factores na versão portuguesa do inventário (Fonseca et al, 1995; Albuquerque, 1999), sendo eles: Agressividade/Anti-social; Problemas de Atenção/ Dificuldades de Aprendizagem; Isolamento Social; Obsessivo; Problemas Sociais/Impopular; Comportamentos Estranhos; e Ansiedade.
Não sendo nossa intenção discutir a composição factorial do instrumento, parecenos contudo um óptimo auxiliar na avaliação das problemáticas identificadas pelos professores no contexto educativo.
METODOLOGIA
Instrumento
O instrumento utilizado é composto por duas partes. A primeira parte - Ficha de Informação Geral - foi concebida especificamente para este estudo, e procura solicitar informações diversas, como dados de identificação do aluno, dos pais e relativos ao percurso escolar e funcionamento geral da criança na sala de aula. A segunda parte consiste no Inventário de Comportamentos da Criança para Professores, de Achenbach (1991). É constituída por 113 itens, identificando problemas de comportamento, dos quais dois são de resposta aberta (56h e 113), sendo o item 56 composto por oito alíneas. O sistema de resposta consiste numa escala de três pontos (0, 1 ou 2), devendo o professor colocar, à frente de cada item, respectivamente, um círculo se o comportamento for não verdadeiro, às vezes verdadeiro (ou em parte verdadeiro) ou muitas vezes verdadeiro. Esta avaliação refere-se aos comportamentos dos últimos dois meses.
As qualidades psicométricas (de fidelidade e validade) do inventário da versão americana encontram-se bem fundamentadas e documentadas no Manual (Achenbach, 1991). O Manual refere estudos de validade e fidelidade, como também estudos de correlação entre a primeira versão do inventário e a versão actual (Achenbach, 1991).
PROCEDIMENTOS
Recolha da amostra
A amostra foi recolhida a partir de um universo constituído por todas as escolas básicas do 1º ciclo da cidade de Évora, o que, segundo a DREA (Direcção Regional de Educação do Alentejo), representa 1722 crianças. O processo de recolha da amostra dividiu-se em duas fases:
Na 1.ª Fase, dirigimo-nos às escolas, pedindo aos professores que indicassem, em ficha apropriada, os alunos da turma que, segundo a sua opinião, seria bom serem vistos por um psicólogo;
Na 2.ª Fase recolhemos dados específicos relativamente ao comportamento de cada um dos alunos identificados, na fase anterior, junto dos respectivos professores, utilizando o Inventário do Comportamento da Criança para Professores de Achenbach (1991).
Caracterização da amostra
Foram inquiridos 64 professores de 10 escolas, o que corresponde a 1278 alunos abrangidos que frequentam o ensino básico. Destes, 192 foram identificados pelos professores como necessitando de serem vistos por um psicólogo.
Do total de 192 alunos identificados, foram recolhidos inventários de 170 crianças, 69 do sexo feminino (40,6%) e 101 do sexo masculino (59,4%). Estas crianças compreendem as idades entre os 6 e os 13 anos, com uma média de 8,64 e um desvio padrão de 1,71. Distribuem-se pelos 4 anos do 1ºciclo, com uma incidência maior no 4º ano (36,5%), seguido pelo 2º ano (25,9%), e por último o 3º e o 1º ano (20, 6% e 17,1%, respectivamente). A maioria destes alunos (61,2 %) vive com o pai e a mãe.
A observação dos quadros 2 a 5, permite-nos verificar que, ainda que a maior parte das crianças nunca tenha repetido o ano, existe uma percentagem muito significativa (42,9%) de alunos que já repetiram. Mais de metade (54,8%) destes alunos já necessitaram de apoio educativo especial. Verificamos também que a grande maioria (84,9%) dos alunos identificados apresenta dificuldades de aprendizagem na escola, na maior parte dos casos moderadas (55,3%).
RESULTADOS
O processo de análise dos dados divide-se em duas fases: A primeira fase consiste numa descrição epidemiológica, procurando estimar a percentagem de alunos que, segundo os professores, poderão necessitar de ajuda de um psicólogo. Esta análise permite-nos perspectivar os recursos de atendimento psicológico de crianças que seriam necessários para cobrir as necessidades identificadas pelos professores. Na segunda será feita numa análise estatística dos dados, procedendo-se à sua apresentação descritiva e análise factorial.
1. Descrição Epidemiológica
O número de alunos identificados pelos professores como necessitando ser vistos por um psicólogo representa 15,26% da amostra. Tendo em conta à população total de 1722 alunos, poderemos estimar que aproximadamente 263 dos alunos da população poderão ter necessidade de um psicólogo, segundo a percepção e opinião dos professores. Cerca de metade destes já tem apoio educativo especializado e um pouco mais apresenta dificuldades de aprendizagem.
2. Análise Descritiva
Apresentamos no Quadro 6, os itens cujas médias foram, respectivamente, as mais altas e as mais baixas. Para cada item assinalámos também a sua correspondência aos factores encontrados por Fonseca et. al (1995), que contêm itens cuja saturação factorial era igual ou superior a .30, com excepção para o factor 1 e 2, onde a saturação factorial era de .40.
Os itens relativos à atenção e concentração (itens nº 78 e 8) são os que os professores referem como sendo mais frequentemente motivo de preocupação. Logo de seguida surgem três outros itens relativos à aprendizagem e qualidade do trabalho escolar. Com médias superiores a 1 há ainda mais dois itens relativos à incapacidade de terminar trabalhos iniciados e à dificuldade em seguir instruções.
Todos estes itens com médias mais altas se inserem no Factor que no estudo de Fonseca et al. (1995) é designado como Atenção/dificuldade de aprendizagem. Com médias ainda bastante elevadas encontramos também alguns itens componentes do Factor Agressividade/anti-social.
Estes resultados parecem apontar para que maior parte dos problemas identificados pelos professores nas crianças, e que os leva a considerarem que elas que necessitam de algum tipo de intervenção psicológica, estão relacionados com as dificuldades de aprendizagem, os problemas de atenção, e também com aspectos do comportamento antisocial.
Há um vasto grupo de itens que apresentam valores médios muito baixos, sendo, por isso muito raros entre os alunos identificados pelos professores. A sua utilidade parece ser mais de tipo clínico e remeter para o estudo individual da caracterização de cada criança. Como se pode ler no Quadro 7, esses itens (com excepção do 70) também não encontram correspondência em nenhum factor do estudo de Fonseca et al. (1995).
3. Análise factorial
Uma vez que a nossa amostra não representa a população infantil em geral nem uma população clínica, e, por isso, se afasta dos estudos anteriormente efectuados e já referidos, quisemos estender a nossa análise a uma metodologia que nos permitisse encontrar as grandes dimensões dos comportamentos identificados como problemáticos.
Aliás, mais do que a frequência dos comportamentos considerados problema interessa-nos entender quais os principais tipos ou factores que agregam tais comportamentos e absorvem a preocupação dos professores.
Utilizámos para isso uma Análise de Componentes Principais que nos levou à extracção de 5 factores mais importantes, dos quais 2 são especialmente relevantes, sendo que o primeiro se destaca dos demais, e é responsável por 23% da variância (Quadro 8).
Analisando cada um dos factores verificamos que este 1º factor se relaciona com problemas de tipo relacional ou disciplinar na sala de aula, na sua quase totalidade de tipo impulsivo, ou seja, em que a falta de auto-controle do aluno, subjacente ás suas acções e comportamentos, parece ser a preocupação fundamental para o professor.
O peso deste factor parece ser interessante porquanto faz sobressair dimensões especialmente relacionais relativas à sala de aula e menos problemas específicos de aprendizagem, como poderíamos supor a partir da análise descritiva precedente.
O segundo factor (9,6 % da variância) podemos designá-lo por dimensão Ansiedade/ Depressão. Aqui o professor parece remeter para dimensões mais internas do aluno, em grande parte de tipo depressivo (reservado, pouco á vontade, choroso) e alguns de carácter mais ansiógeno e de instabilidade comportamental.
O terceiro factor contém essencialmente comportamentos de tipo obsessivo e inibitório; o quarto, as perturbações relacionadas com a linguagem e a comunicação, e o quinto relativo ao isolamento.
CONCLUSÕES
Os dados obtidos permitem-nos pensar que:
1- Existe uma percentagem muito importante de crianças, das escolas do 1º ciclo do ensino básico de Évora, cujos professores entendem que necessitam de algum tipo de intervenção psicológica. O que nos leva a reflectir sobre a importância de haver respostas adequadas, em número de psicólogos e qualidade da sua formação, às necessidades de avaliação, orientação e intervenção identificadas pelos professores. Seria também interessante verificar, em estudos posteriores, se a percentagem de crianças necessitando de psicólogo se relaciona, de algum modo com outro tipo de variáveis sociais, culturais e económicas.
2- As características mais frequentes nos alunos estudados referem-se ás dificuldades escolares, de aprendizagem, e os comportamentos que se reflectem directamente sobre a qualidade do trabalho escolar (nomeadamente a atenção e concentração). Tal não é de estranhar dada a natureza da amostra. No entanto a identificação das dificuldades escolares diz-nos relativamente pouco sobre os aspectos psicológicos subjacentes ou sobre a diferenciação entre as dimensões pedagógico-didácticas e as dimensões psicológicas e psicopatológicas envolvidas na actividade de aprendizagem.
3 - A análise factorial dos questionários mostra-nos, no entanto, que o factor mais importante tem a ver com dificuldades sentidas na dimensão relacional da sala de aula e com o comportamento dos alunos do ponto de vista disciplinar. O que nos mostra, uma vez mais, a importância da relação educativa no processo de ensino-aprendizagem (Franco, 2004).
Esta constatação tem consequências a dois níveis: da formação de professores e do apoio que os psicólogos lhes podem fornecer. A ênfase nos aspectos didácticos (tão continuamente enfatizado agora face ás novas tecnologias) não pode secundarizar a dimensão relacional, sob pena de aumentarem os casos em que o professor não se considera capaz de promover aprendizagem, subentendendo ele, e por vezes os próprios psicólogos, que o problema e a patologia radicam no aluno, que seria instável, hiperactivo ou mal comportado. Por outro lado, aos alunos que precisam de psicólogo, pode corresponder, em muitos casos, um professor que precisa do apoio e da consultadoria de um psicólogo. Tanto a formação como este apoio profissional têm essencialmente a ver com as dimensões relacionais vividas na sala de aula e no processo ensino-aprendizagem.
4 - Há também um factor importante relacionado com a depressão e ansiedade, que nos remete para as dimensões do sofrimento emocional, tantas vezes pouco cuidado. Nesses casos o trabalho clínico não pode ser substituído por boas intenções pedagógicas.
Uma vez que a estrutura factorial depende inteiramente da amostra e da população estudadas, não admira que a que encontrámos difira da dos estudos referenciados para a população portuguesa que usaram ou uma população indiferenciada ou uma população clínica. Esta aproxima-se mais da população clínica mas não patológica.
Por outro lado, o TRF e a metodologia que utilizámos poderão ser úteis para a compreensão das dificuldades das crianças, aos olhos dos professores, em diferentes contextos culturais.
O precisar ou não de psicólogo será, no entanto, mais do que um evidenciar de uma patologia. Será sempre a forma como um psicólogo profissional pode estar ao serviço do indivíduo (professor e aluno) e do seu sofrimento emocional.
REFERÊNCIAS
ACHENBACH, T. Manual for the Teacher’s Report Form and 1991 Profile. Burlington, VT: University of Vermont, Dep. Of Psychiatry, 1991.
ALBUQUERQUE, C. P.; FONSECA, A. C.; SIMÕES, M. R.; PEREIRA, M. M.; REBELO, J. A. O Inventário de Comportamento da Criança para Professores: Estudo com uma amostra Clínica. Psychologica, n. 21, p. 113-128, 1999. [ Links ]
FONSECA, A. C.; SIMÕES, A.; REBELO, J. A.; Ferreira, J. A. O Inventário de Comportamentos da Criança para Professores – Teachers Report Form (TRF). Revista Portuguesa de Pedagogia, Ano XXIX, n. 2, p. 81-102, 1995.
FRANCO, V. Os ursos de peluche do professor – psicanálise, educação e valor transicional dos meios educativos. Porto: Afrontamento, 2004.
HARTMAN, C. A. & al. Syndrome Dimensions of the Child Behaviour Checklist and the Teacher Report Form: A Critical Empirical Evaluation. Journal of Child Psychology and Psychiatry, n. 40, v. 7, p. 1095-1116, 1999. [ Links ]
Artigo recebido em 25 de novembro de 2008
Aceito para publicação em 2 de fevereiro de 2009
1 Doutor em Psicologia. Pesquisador na Universidade de Évora, Portugal. Diretor do Departamento de Psicologia e Educação. e-mail: vfranco@uevora.pt