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Revista do NUFEN
versão On-line ISSN 2175-2591
Rev. NUFEN vol.4 no.2 São Paulo dez. 2012
ARTIGO
Antropologia da saúde e da doença: contribuições para a construção de novas práticas em saúde
Anthropology of health and disease: contribuitions to the construction of a new practice in health
Alessandra Carla Baia dos Santos; Andrey Ferreira da Silva; Danielle Leal Sampaio; Lidiane Xavier de Sena; Valquiria Rodrigues Gomes; Vera Lúcia de Azevedo Lima
Universidade Federal do Pará (UFPA)
RESUMO
Este artigo apresenta uma reflexão sobre as contribuições da antropologia da saúde e da doença para a construção de novas práticas em saúde. Para tal, apontamos os conflitos e intercâmbios entre os saberes da biomedicina e dos terapeutas populares, mostrando a importância da antropologia da saúde/doença neste debate. A análise aborda também o desenvolvimento dessa área do conhecimento, e sua contribuição para a prática mais consciente dos profissionais de saúde, a partir do reconhecimento da saúde e doença enquanto processos socioculturais. Portanto, a antropologia da saúde e da doença apresenta possibilidades de se repensar em políticas de saúde mais humanitárias, além de possibilitar a ressignificação das atividades cotidianas dos profissionais de saúde.
Palavras-chave: antropologia; profissionais de saúde; política de saúde.
ABSTRACT
This article analyzes the contributions of anthropology of health and disease for the construction of new health practices. To this end, we point out the conflicts and exchanges between the knowledge of biomedicine and popular therapists, showing the importance of the anthropology of health / disease in this debate. The analysis also addresses the development of this area of knowledge, and its contribution to practice more conscious of health, from the recognition of health and disease as sociocultural processes. Therefore, the anthropology of health and disease can bring new possibilities to rethink one health policy more human, besides enabling a new meaning to the everyday activities of health professionals.
Keywords: anthropology; health professionals; health care policy.
Resumen
Este artículo presenta una reflexión de las contribuiciones de la antropología de la salud y la enfermedad para la construcción de nuevas prácticas en salud. Para eso, hemos señalado los conflictos y intercâmbios entre lo conocimiento de la biomedicina y de los terapeutas populares, mostrando la importância de la antropología de la salud/enfermedad en este debate. El análisis se centra también el desarrollo en esta área del conocimiento, y su contribuición para la práctica más conciente de los profesionales sanitários, a partir de lo reconocimiento de la salud y enfermedad mientras procesos socioculturales. Por lo tanto, la antropología de la salud y enfermedad, presenta oportunidades para repensar en políticas de salud más humano, además para la redefinición de las actividades cotidianas de los profesionales de la salud.
Palabras clave: antropología; profesionales de la salud; políticas de la salud.
Introdução
Durante décadas e até à atualidade, a medicina científica conviveu do lado de práticas populares de cura, tentando impor seu saber como o único capaz de explicar a etiologia e cura para as enfermidades. Portanto, médicos, intelectuais e cientistas, conviviam muitas vezes, de forma pouco harmoniosa com práticas populares dos pajés, benzedeiras, homeopatas, boticários, feiticeiros, barbeiros, parteiras, sangradores, espíritas, práticas estas consideradas como "charlatanismo"1 pelos médicos.
A medicina acadêmica de tradição europeia que se constrói a partir de meados do século XVIII, e que se baseia no racionalismo e na observação, era algo bastante "novo" se comparado às outras práticas de cura, as quais se baseavam nas tradições culturais e na experiência empírica da população (WITTER, 2001).
No Brasil, a monopolização das artes de curar foi empreendimento do início do século XIX a partir da fundação da Sociedade de 1O conceito de charlatão não está apenas associado aos agentes de cura populares, mas é usado também no interior da classe médica, contra qualquer um que demonstrasse uma séria concorrência, o que evidencia as divergências entre os tipos de terapêutica médica. Medicina do Rio de Janeiro (1829), e da implantação do ensino médico pelo governo imperial em 1832 (PIMENTA, 2004).
No oitocentos, o Grão-Pará foi um dos vários cenários onde se observou os embates entre agentes de cura que se desvelaram em meio a epidemias como o da cólera e da lepra. De acordo com Ferreira (2003), ao analisar a ciência dos médicos e a medicina popular no início do século XIX no Brasil, aponta que durante o oitocentos a disputa entre a medicina acadêmica e as práticas de cura popular se tornou cada vez mais evidente, sobretudo em determinados contextos, como o do combate às epidemias, quando a gravidade da situação expunha a incapacidade da ciência médica de deter a propagação das doenças.
Todavia, apesar de médicos diplomados e terapeutas populares se afirmarem como saberes opostos, na prática, seus limites não eram claros, ou seja, o conhecimento desses agentes de cura se aproximavam e interagiam. Para Almeida (http://www.eeh2008.anpuhrs.org.br), há trocas culturais entre as práticas de cura dos médicos formados e dos terapeutas populares, e que, portanto, há a simbiose de conhecimento de diferentes origens e tradições Em outras palavras, durante o século XIX, nem as práticas de cura populares nem a medicina acadêmica eram conhecimentos fechados em si, mas tinham uma dinâmica que foi capaz de possibilitar uma constante recriação através dos contatos estabelecidos no cotidiano.
Atualmente, apesar da biomedicina ainda se justificar como saber hegemônico, foi com o fortalecimento da antropologia da saúde e da doença nas últimas duas décadas no Brasil que se passou a defender um relativismo relacionado ao processo saúde/doença e às práticas de saúde, onde os saberes e práticas de qualquer sistema médico são percebidos como construções socioculturais (LANGDON, 2009).
Em outras palavras, o fenômeno saúdedoença não pode ser entendido à luz unicamente de instrumentos anátomofisiológicos da medicina (MINAYO, 1991), mas deve considerar a visão de mundo dos diferentes segmentos da sociedade, bem como suas crenças e cultura. Significa dizer que nenhum ser humano deve ser observado apenas pelo lado biológico, mas percebido em seu contexto sociocultural.
Por isto, o presente artigo apresenta este debate com o intuito de refletir de que forma a antropologia da saúde e da doença pode contribuir para a construção de novas práticas em saúde. Tendo em vista que boa parte dos profissionais de saúde nos dias de hoje – seja pela dinâmica nos serviços de saúde, seja pela falta de capacitação ou mesmo pelo descaso com o usuário – ainda reproduzem um ideal positivista, impondo um modelo teórico fechado, onde o usuário do serviço não participa ativamente do processo, além de dissociar a saúde e a doença dos aspectos e dimensões históricas, sociais e culturais dos indivíduos.
Isso não quer dizer que médicos, enfermeiros, psicólogos, assistentes sociais, terapeutas ocupacionais, dentre outros profissionais da saúde, tenham que abandonar os modelos teóricos que os orienta em seus trabalhos, mas precisam ouvir o outro, possibilitando através da comunicação, o conhecimento das reais necessidades do indivíduo, considerando que eles são sujeitos de sua própria história, e que, portanto, exercem agência sobre suas próprias vidas, percebendo e agindo segundo suas experiências na vida coletiva (LANGDON, 2009).
Os agentes de cura
No tocante ao fenômeno saúde/doença, atualmente muitos estudiosos acreditam que não se pode separar as noções e práticas de saúde dos outros aspectos da cultura dos indivíduos. O modelo biomédico, apesar de possuir ainda muitos adeptos, atua lado a lado com um sistema cultural de saúde que inclui especialistas não reconhecidos pela biomedicina (LANGDON; WIIK, 2010), como por exemplo, benzedeiras, curandeiros, xamãs, pajés, pastores, padres, pais de santo, dentre outros, cujas terapêuticas de cura são produtos de variados tipos de bricolage que têm raízes em práticas milenares de diferentes tradições filosóficas, teóricas, mágicas e de misticismo (MAUÉS, 2009, p. 125).
Atualmente, apesar dessas práticas populares de cura ainda não serem aceitas pela biomedicina, acredita-se que estes embates já foram bem maiores no passado, quando agentes populares de cura eram proibidos de exercer suas terapêuticas. Segundo Almeida (http://www.eeh2008.anpuhrs.org.br), o nascimento das Faculdades de Medicina do Rio de Janeiro e de Salvador em 1832, bem como a transformação da então Sociedade de Medicina do Rio de Janeiro em Academia Imperial de Medicina, foram processos decisivos para a institucionalização e fortalecimento da medicina acadêmica, enquanto saber hegemônico.
Nesse contexto, era necessário desautorizar qualquer prática de cura realizada por terapeutas populares, os quais não possuíam nenhuma formação científica, e por isso, não poderiam atuar como os médicos letrados.
Um aspecto interessante destacado por Witter (2005) aponta para a inferioridade do trabalho manual em relação às chamadas artes liberais. Nos oitocentos, as atividades dos terapeutas populares como os barbeiros e cirurgiões estavam associadas com o sangue, o corpo e as suas partes "sujas", o que sempre depreciava o ofício deles. Ao contrário dos médicos que se identificavam com as artes liberais, as quais exigiam maior estudo e menor grau de trabalho manual.
Segundo Francisca Santos (2001), ao tratar sobre o discurso médico-higienista em Belém do Pará no início do século XX, os médicos acreditavam ter a verdade, e por isso, deveriam ensinar tanto ao governo quanto à população ignorante, guiando-os "sob as luzes da razão", orientando-os para terem uma conduta que os levem a alcançar o progresso da civilização. Nesse sentido, a política médica vem para efetivar o controle, intervindo na sociedade, policiando todas as possíveis causas de doenças, destruindo os espaços sociais perigosos.
Além de reivindicações ao governo sobre as restrições e a regulamentação do ofício de curandeiros, os médicos diplomados também contavam com o apoio da igreja católica e das Ordenações do Reino. "A igreja estabelecia a fronteira cultural entre o universo demoníaco e a cura médica associada aos saberes universitários. A medicina procurava desvalorizar o conhecimento terapêutico popular, distinguindo os procedimentos 'científicos' das crenças consideradas 'supersticiosas'" (EDLER, 2010, p. 21).
Segundo Beltrão (2004, p. 319), até mesmo os médicos, com o auxílio da igreja católica, de certa forma defendiam a concepção da doença enquanto punição. Eles acusavam as pessoas de serem "insalubres e imorigeradas", e atraíam para si as enfermidades quando não seguiam as prescrições médicas. A lógica da concepção seria a seguinte: caso as pessoas observassem as regras morais vigentes teriam uma vida saudável, sem enfermidades. Enquanto a fala dos médicos indicava preceitos, a fala dos padres indicava a graça alcançada, contudo, ambos tinham o objetivo de desautorizar as práticas terapêuticas realizadas por agentes populares.
Entretanto, apesar de todos os esforços, os médicos diplomados não conseguiram proibir a atuação dos terapeutas populares, pois nos contextos de epidemias como a cólera e a lepra, a prática médica necessitou dialogar com terapêuticas populares de cura, pois a etiologia e cura para as enfermidades eram desconhecidas, e, portanto, causavam medo e insegurança.
Foi neste contexto que o processo de popularização da medicina acadêmica se intensificou e se destacou após a divulgação do Dicionário de Medicina Popular em 1842, do médico polonês Napoleão Czerniewicz, ou simplesmente, Dr. Chernoviz (seu nome abrasileirado), no qual há referências a inúmeros vegetais e seus respectivos usos no tratamento de várias enfermidades, além de difundir saberes sobre higiene, que estava tão em voga naquele momento (CHERNOVIZ apud FERREIRA, 2003). Portanto, concomitante a um conflito social, existe a necessidade de dialogar com as práticas populares de saúde.
Acredita-se que este processo de popularização da medicina acadêmica perdura até os dias de hoje quando se observa médicos utilizando determinadas ervas, ou indicando ao usuário um tratamento espiritual, enfim, as fronteiras entre os dois saberes é, e sempre foi bastante tênue no sentido de que seus conhecimentos combinam-se e recriam novos saberes e novas práticas em saúde.
Um trabalho interessante desenvolvido por Maués (2009) exemplifica essa realidade. Segundo ele, um renomado cirurgião no campo da biomedicina dizia que ao realizar suas cirurgias, além de toda tecnologia que tinha a seu alcance, contava com o auxílio de um "espírito de luz". O que demonstra que, apesar de existirem às vezes tensões entre o saber da biomedicina e as práticas de cura religiosas e espirituais, elas não se anulam, mas reinventam-se de acordo com as necessidades do sujeito.
Antropologia da saúde e da doença
Neste contexto, os estudos que vêm sendo desenvolvidos no campo da antropologia da saúde e da doença, e que se intensificaram no Brasil nas últimas duas décadas, trouxeram e trazem contribuições inimagináveis e novos olhares sobre representações e práticas em saúde/doença. Para Alves e Rabelo (1998, p. 107), estes trabalhos,
Têm ampliado nosso entendimento das matizes culturais sobre as quais se erguem os conjuntos de significados e ações relativos a saúde e doença, característicos de diferentes grupos sociais, e tem servido, em grande medida, de contraponto aos estudos epidemiológicos que tendem a tratar o tema "doença e cultura" em termos de uma relação externa, passível de formulação na linguagem de "fatores condicionantes".
Conforme Canesqui (1998), a antropologia feita no Brasil, especialmente na década de 80 tem produzido conhecimentos sobre os temas alimentação, saúde, doença, que afligem principalmente as classes trabalhadoras ou outras minorias. Isto é, são estudos preocupados em investigar e analisar de forma mais conscienciosa os distintos saberes e práticas de cura, bem como suas instituições e especialistas, além da preocupação em refletir sobre os confrontos e/ou complementaridade dos cuidados médicos com outras práticas de cura.
Estes estudos são fundamentais para se começar a pensar em práticas de saúde mais humanas, e por isso, a antropologia da saúde e da doença não pode ficar desvinculada de outras disciplinas que compõe a grade curricular, em especial dos cursos que formam profissionais de saúde, pois trás inúmeras contribuições que envolvem as reflexões em torno do processo saúde/doença, cultura e sociedade, bem como são fundamentais para se repensar em formulação de políticas públicas e planejamento dos serviços de saúde.
Todavia, esta realidade não foi sempre assim. Segundo Ibáñez-Novión (1982, p. 18), antes da década de 70 a produção científica no Brasil relacionada à antropologia médica, ficava por conta dos chamados folcloristas, os quais quando falavam sobre a saúde/doença analisavam de forma dispersa e acrítica, além disso, ao tratarem das crenças e práticas médicas em sociedades rurais e urbanas relacionavam-nas ao atraso cultural, à ignorância e/ou de "sobrevivência" de formas arcaicas de pensamento e comportamento.
Do ponto de vista dos folcloristas, a medicina científica se depararia com o estágio positivo ou naturalístico, influenciada pelos princípios da razão e da ciência, características dos estágios mais desenvolvidos da civilização. Ao contrário das práticas populares de cura, as quais eram consideradas como uma sobrevivência de um estágio historicamente menos desenvolvido da medicina erudita (QUEIROZ, 1980, p. 243).
Segundo apontamentos de Oliveira (1985, p. 12), esta visão preconceituosa, em que a medicina popular é vista como uma prática feita por ignorantes, nega qualquer contribuição desta para construção de novas formas de pensar as doenças e as curas. Para a autora, quando a medicina popular é estudada deste modo, não está se levando em consideração nem os conhecimentos, muito menos as necessidades sociais e estratégias de cura criadas pelas pessoas do povo.
Lévi-strauss (1970), ao estudar os povos ditos primitivos, contestando o racismo e a noção de primitivo, contribuiu veementemente para que a ideia de que os chamados selvagens são atrasados e "menos evoluídos". Para ele, esses povos apenas operam com o pensamento mítico (magia), que em termos de operações mentais é comparável ao pensamento científico, diferindo quanto a questões do determinismo causal, global e integral para o primeiro e em níveis distintos, não aplicáveis uns aos outros, no pensamento científico (p. 31-32).
Esta mesma ideia de selvagem enquanto primitivos e atrasados, a qual Lévistrauss contesta, é aplicada aos agentes de cura populares por meio dos relatos dos folcloristas. Porém, não se pode desconsiderar o fato de que são trabalhos pensados em uma época e em um contexto histórico bem diferente de hoje, cujos discursos no meio científico, pelo menos boa parte deles, estavam voltados a uma ideologia de valorização negativa dos saberes e práticas populares, mas que apesar disso, não se tornam menos importantes, pois nos deixaram um rico legado de registros e inúmeros dados que, sujeitos a cuidados, podem ajudar em estudos sobre fontes bibliográficas (IBÁÑEZ-NOVIÓN, 1982).
No Brasil, nos últimos vinte anos, os estudos e pesquisa sobre saúde, cultura e sociedade têm se multiplicado, e na última década, a antropologia da saúde/doença vem se consolidando como espaço de reflexão, formação acadêmica e profissional de médicos, enfermeiros e outros profissionais da área da saúde no país (GARNELO; LANGDON, 2005).
Nesta perspectiva, os profissionais de saúde começam a desenvolver concepções menos preconceituosas em relação às práticas de cura popular, dirigindo cuidados mais responsáveis às pessoas e suas famílias, levando em consideração que a atenção à saúde é um sistema social e cultural2, em sua origem, estrutura, função e significados (OLIVEIRA, 2002, p. 68).
Neste sentido, as práticas de cura populares não podem ser vistas isoladamente de outros fenômenos que se estruturam na sociedade brasileira. Como aponta Oliveira (1985), elas devem ser compreendidas juntamente com outras práticas sociais cujas determinações são construídas historicamente e socialmente.
Acredita-se, contudo, que não existem práticas genuinamente médicas ou genuinamente mágico-religiosas, mas, no máximo, recursos distintos que se complementam. De acordo com Laplantine (1986, p. 220),
Enquanto a intervenção médica oficial pretende apenas fornecer uma explicação experimental dos mecanismos químicobiológicos da morbidez e dos meios eficazes para controlá-los, as medicinas populares associam uma resposta integral a uma série de insatisfações (não apenas somáticas, mais psicológicas, sociais, espirituais para alguns, e existenciais para todos) que o racionalismo social não se mostra, sem dúvida, disposto a eliminar.
Conforme Buchillet (1991), as interpretações que os agentes populares de cura fazem no tocante às desordens corporais, o fazem sempre em referência às regras sociais e culturais, ou seja, cada indivíduo, no tocante ao processo saúde/doença leva em consideração uma organização social, religiosa ou simbólica específica da qual faz parte. O que não significa dizer que há a ausência de um saber elaborado.
Em estudo desenvolvido por Wawzyniak (2009) com agentes comunitários de saúde (ACS) no Tapajós (Pará), observou-se que esses profissionais de saúde lidam com comunidades ribeirinhas cujas concepções de saúde/doença se relacionam com crenças e imaginários como o "assombro de olhada de bicho" 3, em que um "bicho" ou "assombro de bicho" tem a capacidade de causar doenças nas pessoas. Neste trabalho o autor mostra a importância da atuação do ACS nessas comunidades, cujo trabalho transita entre o modelo biomédico e o sistema terapêutico tradicional.
A enfermagem transcultural de Leininger
A enfermagem como ciência e arte do cuidado assume papel fundamental na vida do ser humano, afinal A história da humanidade mostra, desde os seus primórdios, que os seres humanos precisam de cuidado para sobreviver, para viver com saúde, felicidade e bem estar, e para curar-se em situações de doenças (PIRES, 2009).
Sabe-se que esse cuidar em enfermagem tem o sentido de promover a vida, o potencial vital, o bem estar dos seres humanos na sua individualidade, complexidade e integralidade. Abrange um encontro entre pessoas com o objetivo terapêutico, de conforto, de cura quando isso é possível, mas também de preparo para a morte quando inevitável (PIRES, 2009).
Para tanto, esse profissional enfermeiro deve ser capaz de considerar os aspectos socioculturais como imprescindível ao cuidado humanístico, além de compreender que o processo saúde-doença é subjetivo e que está inserido em diferentes contextos culturais, isto é, a forma que cada indivíduo experimenta esse processo está enraizada nos valores, nas crenças, nas práticas, nas representações sociais e simbólicas, no imaginário, nos significados, enfim, no jeito próprio de cada cultura explicar e interpretar esse fenômeno (MELO; CABRAL; SANTOS JÚNIOR, 2009).
Nesse sentido, estudos realizados por Madeleine Leininger, enfermeira norteamericana, foram essenciais para empoderar o corpo da enfermagem no sentido de valorizar as crenças, valores e práticas dos mais diversos povos durante sua prática profissional, a partir da teoria transcultural do cuidado. Esta teoria provê uma estrutura holística e compreensiva para examinar sistematicamente diferentes dimensões da cultura, dentro de uma perspectiva de Enfermagem (BRAGA, 1997), e foi desenvolvida a partir da antropologia a qual trouxe contribuições significativas para o aprimoramento do cuidar em enfermagem.
Para Leininger (1985), há diversidade no cuidado humano, com características que são identificáveis e que podem explicar a necessidade do cuidado transcultural de enfermagem. Assim, o profissional enfermeiro deve tentar ajustar sua prática cotidiana do cuidar levando em consideração as crenças, valores e modos das culturas para que se possa oferecer um cuidado eficaz e significativo para os indivíduos.
O cuidado transcultural se torna ainda mais importante quando nos deparamos com regiões, como a Amazônia, que apresenta um complexo e diversificado contingente populacional e sua diversidade sociocultural. São populações tradicionais como, por exemplo, os indígenas, as populações caboclas, quilombolas, ribeirinhos, seringueiros, e imigrantes recentes das várias partes do país (CONFALONIERI, 2005). Essa singularidade faz com que essa região se constitua num excelente campo para as mais variadas práticas de cura, que incluem práticas de terapeutas populares, médicos, intelectuais e cientistas.
Por isso, é de fundamental importância que os profissionais enfermeiros, os quais lidam diariamente com essas populações, possam adotar em suas práticas de saúde um cuidado cultural que seja congruente com as crenças e padrões de comportamento relacionados à saúde e doença do cliente e famílias, conhecendo, compreendendo e prevendo o cuidado terapêutico popular, sem se prender a um modelo eminentemente biomédico. Leininger, citada por Gualda e Hoga (1992),
Acredita que a teoria transcultural seja capaz de predizer e explicar os padrões de cuidado humano das diversas culturas, bem como possibilitar a identificação de valores, crenças e práticas populares pelos profissionais de enfermagem. Acredita ainda que por meio deste conhecimento, as decisões e ações de enfermagem podem tornar-se congruentes e benéficas para aqueles que são assistidos (p. 70).
Guarda e Hoga (1992), a fim de facilitar a compreensão do conjunto de elementos que estruturam a teoria de Leininger, fizeram a tradução desses conceitos que foram elaborados por Leininger. O primeiro deles é a ideia de cultura que envolve valores, crenças, normas de comportamento e práticas relativas ao estilo de vida, aprendidos, compartilhados e transmitidos por um grupo específico, que orientam o pensamento, as decisões e ações dos elementos pertencentes ao grupo.
O outro conceito fala da visão de mundo que se caracteriza pelo modo como os indivíduos percebem seu mundo e universo, e nele inserem sua perspectiva de vida. E a estrutura social que representa um processo dinâmico e de natureza interdependente, compreendendo elementos estruturais ou organizacionais da sociedade e o modo como esses interatuam e funcionam. Incluem os sistemas religioso, familiar, político, econômico, educacional, tecnológico e cultural, delimitados pelo contexto linguístico e ambiental.
Acredita-se que os conceitos e proposições trazidas por Leininger, reafirmam o compromisso social que a enfermagem deve assumir a cada dia. Portanto, nós, profissionais da saúde, precisamos compreender os contextos sociais e culturais em que os usuários estão envolvidos, para tanto, não é necessário desconsiderar nossa formação acadêmica, mas tentar transitar nestes diferentes contextos (biomedicina e medicina popular), valorizando o saber das pessoas e atentando para suas subjetividades, enquanto atores históricos de sua realidade cultural.
Considerações finais
A história como filha de seu tempo vêm nos mostrando quão complexo é o fenômeno saúde/doença, o qual deve ser entendido não de forma isolada, mas agregando aspectos sociais, culturais, políticos e econômicos, bem como necessita do olhar de diferentes atores sociais em torno de um bem comum: assegurar a saúde das pessoas.
A medicina científica sempre se apresentou como detentora do monopólio do saber médico, tentando desautorizar práticas populares de agentes como benzedeiras, parteiras, curandeiros, feiticeiras, dentre outros. Todavia, médicos diplomados e agentes de cura popular apesar de conviverem de forma pouco harmoniosa – cada um dentro de suas limitações – também interagem enquanto saber e prática.
Atualmente, apesar da grande intolerância por parte de muitos profissionais da saúde os quais ainda conservam o modelo biomédico no exercício de suas atividades cotidianas, as terapêuticas populares, mágicoreligiosas, permanecem vivas nas raízes dos mais variados povos, afinal quem nunca recorreu ao chá de erva-doce ou do boldo a fim de aliviar problemas digestivos ou intestinais? Ou quem nunca recorre à espiritualidade quando têm algum problema seja de ordem física, psíquica ou emocional? Claramente, vivemos e recriamos crenças e tradições milenares de acordo com o contexto cultural e social em que estamos inseridos.
Nesse sentido, a antropologia da saúde e da doença contribui profundamente para nossa formação enquanto profissionais da saúde, uma vez que, proporciona reflexões em torno do fenômeno saúde/doença, bem como sua relação com aspectos sociais e culturais dos povos, ressaltando que o conhecimento biológico, por si só, não é suficiente para entender a complexidade desse fenômeno.
Portanto, o culto dos santos, a fé nos espíritos das florestas e dos rios, nos pajés e nas parteiras, a confiança nas orações e nos encantamentos, o conhecimento e fé nos remédios caseiros, enfim, todas as crenças sobre a saúde e doença mantidas por diferentes povos no mundo, devem ser consideradas pelos profissionais de saúde que, dentro de suas possíveis limitações, precisam recriar sua prática cotidiana, aproximando-se da linguagem e realidade simbólica dos indivíduos.
Além disso, a antropologia da saúde e da doença oferece possibilidades de se repensar em políticas de saúde menos segregacionistas e voltadas particularmente, às necessidades das classes mais desprovidas. Para tanto, é essencial compreender o contexto social e cultural em que o indivíduo está inserido, considerando que estes usuários transitam de forma tranquila entre os diferentes setores de atenção à saúde, seja a biomédica ou a medicina popular.
No mais, é essencial resgatar a cultura para o centro da relação entre indivíduo e profissionais de saúde, observando que é preciso entender e valorizar as práticas populares de cura dentro de seu contexto. Não se trata de desconsiderar a prática da biomedicina, mas de agregar as contribuições dos dois saberes em prol de programas e políticas de saúde mais eficazes.
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Recebido em: 13/06/2012
Aceito em: 14/09/2012
1.Emprego aqui o termo "revolução" no sentido que Benevides (2001) utiliza, ou seja, uma forte mudança em estruturas sociais, em um curto período de tempo.
2. A cultura oferece uma visão do mundo, ou seja, uma explicação sobre como o mundo é organizado, de como atuar (...) é a cultura de um grupo que provê aos atores sociais definir técnicas, classificar e organizar as coisas de um modo geral. Ver: LANGDON; WIIK, 2010.
3"Também conhecido como o "mau olhado de bicho", afeta tanto o indivíduo quanto o grupo, uma vez que existe a possibilidade de o "mau-olhado atacar" outros membros da família ou da comunidade. Frequentemente, é consequência de um comportamento considerado condenável em relação ao uso dos recursos naturais ou da quebra da reciprocidade dos humanos entre si ou com os nãohumanos" (WAWZYNIAK, 2008, p. 32).