Serviços Personalizados
Journal
artigo
Indicadores
Compartilhar
Revista do NUFEN
versão On-line ISSN 2175-2591
Rev. NUFEN vol.8 no.2 Belém 2016
Resenha
Kolnai, Aurel. (2013). Asco, soberbia, odio: fenomenología de los sentimientos hostiles (Íngrid Vendrell Ferrán, Ed. & Trad.). Madrid: Ediciones Encuentro.
Yuri Amaral de Paula
Universidade Federal de Uberlândia
Nesta relevante publicação, traduzida para a língua espanhola, temos uma excelente apresentação da contribuição do filósofo húngaro Aurel Kolnai (1900-1973), ainda desconhecida em vários idiomas, cuja ampla e diversificada obra inclui uma variedade estudos sobre a vida afetiva, desenvolvidos em consonância com os fundamentos epistemológicos e metodológicos do chamado movimento fenomenológico inaugurado por Edmund Husserl (1859-1938).
Reunidos no presente volume, encontramos três principais ensaios do autor dirigidos às vivências afetivas que representam casos exemplares dos chamados sentimentos hostis, que dão título à obra: asco, soberba e ódio. Ademais, precedendo os ensaios, temos à disposição uma valiosa introdução, cuja leitura nos mostra uma reconstituição cuidadosa e amplamente informativa sobre a biografia e a evolução intelectual desse autor. A partir dessa tradução e da síntese panorâmica detalhada em forma de capítulo introdutório, Íngrid Ferrán (2013) possibilita não apenas o acesso ao autor como um meio de situar nossa leitura no escopo largo e original de sua obra relativamente desconhecida pelo público acadêmico interessado em fenomenologia.
Diretamente afetado pelos fatos históricos de sua época, tendo vivenciado o período de duas grandes guerras, motivando numerosas emigrações ao longo de sua vida, compreende-se, em acordo com Ferrán (2013), que a marca notável que reúne o extenso e, à primeira vista, heterogêneo trabalho intelectual de Kolnai foi um vivo interesse "por questões morais e sua preocupação pelo acontecer sociopolítico do século XX" (p. 12, tradução nossa). Suas contribuições se estendem com fluidez por diferentes estilos e correntes de pensamento, genericamente divididas entre quatro etapas: a primeira etapa influenciada pela psicanálise – de onde partiu para indagar questões socioculturais –, durante sua juventude intelectual na Hungría e Áustria, quando em contato com figuras influentes do movimento psicanalítico como Sándor Ferenczi, Otto Rank e Sigmund Freud; uma segunda etapa marcada pela paulatina, todavia radical transição em direção à fenomenologia, concomitante ao seu doutorado em Viena, que se constituiu como uma influência perene ao longo de sua carreira; seguida da "influência de pensadores sociais e políticos ante à iminente Segunda Guerra Mundial e, por último, uma fase próxima à filosofia analítica após instalar-se no Reino Unido" (p. 8).
A série de ensaios sobre os sentimentos hostis (asco, soberba, ódio), desenvolvidos entorno dos anos de 1930, foi em grande medida influenciada pelos trabalhos dos chamados primeiros fenomenólogos, embora Kolnai não tenha pertencido efetivamente a este grupo por razões espaçotemporais. Esses autores, entre os quais encontramos Alexander Pfänder (1870-1941), Max Scheler (1874-1928), Edith Stein (1891-1942), Moritz Geiger (1880-1937), Carl Stumpf (1848-1936), acompanharam Edmund Husserl em seu projeto inicial de investigação filosófica de tipo realista que se interessava pela descrição das experiências concretas a partir da recuperação minuciosa dos seus traços essenciais.
Sendo assim, em consonância à motivação de reforçar e dar continuidade ao empreendimento desses autores, que seguiram a Franz Brentano (1838-1917) no interesse de fundamentar uma ética dos valores baseada no estudo dos atos afetivos, pois partiam do entendimento de que os valores só podem ser apreendidos por meio desse tipo de atos, Kolnai desenvolve seus estudos a partir de uma caracterização fenomenológica dos atos afetivos destacando também seu papel na configuração de atitudes ligadas à esfera ética, apontando para possíveis formas de superação dos mesmos afetos e atitudes a ele relacionadas.
O primeiro ensaio sobre o asco, escrito em 1927, publicado por Husserl em seu Anuário (Jahrbuch für Philosophie und phänomenologische Forschung) em 1929, provocou curiosidade e estranhamento no fundador do movimento fenomenológico em função de sua temática. Suspeita-se que este ensaio teria influenciado o clássico literário A Náusea de Jean-Paul Sartre, ainda que este não tenha feito referências diretas a Kolnai. Curiosamente, também influenciou o artista Salvador Dalí, que segue a sua descrição dos objetos asquerosos em seu ensaio de 1932 entitulado "The object as revealed in Surrealist Experiment" (Ferrán, 2013).
Nesse estudo, Kolnai investiga a experiência do asco a partir de uma fina delimitação efetivada a partir da comparação com outras reações de defesa e/ou sentimentos de repulsa, como desprazer, ódio, horror, cólera, desprezo etc. Assim, dimensiona sua intencionalidade peculiar em meio a esses outros atos dos quais se aproxima, mas se diferencia. Caracteriza o asco a partir de seus traços de imediatidade ou primordialidade e sua independência relativa a outras vivências. Aponta para a corporeidade do asco e seu caráter de resposta a impressões sensíveis perturbadoras. Realiza também, a partir de uma extensa comparação com a intencionalidade da angústia (originalmente considerada pelo autor, em contraste com a descrição de Martin Heidegger, por exemplo, que não considera a intencionalidade contida nesta experiência), uma profunda elucidação eidética da intencionalidade do asco.
Prossegue sua descrição apontando os aspectos essenciais dos objetos asquerosos. Descreve a estreita relação do asco com os sentidos sensoriais (que expressa a profunda coloração estética marcada nesta vivência) especialmente o olfato, o paladar, o tato e a visão. Contudo, sua análise não se desenvolve em nível de uma descrição naturalista de aspecto exclusivamente psicofísico, mas a partir de uma análise intencional que aponta para sua correlação com matizes sensíveis particulares e como estas se manifestam e se hierarquizam com relação ao chamado asco físico. Dessa maneira, exemplifica e aprofunda em uma variedade de objetos tipicamente unidos à experiência desse tipo de asco (como a putrefação, a decomposição da matéria vida, os excrementos, as secreções corporais, a sujeira, a sensibilidade da viscosidade, moleza etc., alguns alimentos, animais, como insetos etc.).
Ainda, apresenta a original consideração a respeito da relação que carrega o asco com a vida e a morte, como um tipo de reação que se vincula ao excesso de vida e à passagem imediata desta em direção à morte. Situada nesta dualidade, descreve também a respeito da ambivalência do asqueroso que carrega implicitamente uma provocação por parte do objeto e uma tendência correlacionada no sujeito de aproximação, ao passo que ele mesmo reage com um forte impulso de distanciamento, característico da repulsa a esse mesmo convite de aproximação, copresentes no objeto asqueroso. Por fim, caracteriza e expande sua consideração sobre outro tipo de asco – o asco moral (ou ético) – que considera distinto do asco físico, pois se emancipa apontando para aspectos axiológicos peculiares não contidos neste. Finaliza o primeiro ensaio apresentando sua problematização a respeito da superação dessa experiência considerada desde o campo ético.
O segundo estudo, voltado à questão da soberba, dentre os três ensaios, se especifica pelos seus traços mais claramente católicos e maior criticidade de sua análise descritiva, motivada a promover uma fundamentação moral. Assim como em seu estudo sobre o asco, Kolnai realiza uma análise por aproximação e contraste da soberba com outras vivências de ordem experiencial e conceitualmente distintas, embora próximas e muitas vezes sejam confundidas com ela: como o orgulho, o amor próprio, a vaidade, o egoísmo. O característico da soberba, aponta o autor, é a sua "imunidade a qualquer intento de relativização" (Kolnai, 2013, p. 110) que impede em última instância ao sujeito de apreender estimativamente os seus limites e sua finitude, cegando-o em relação ao valor dos outros (seus semelhantes), objetos do mundo circundante e até mesmo a Deus, levando a um tipo de isolamento ou encerramento em si mesmo, a partir de uma retirada de toda possibilidade de consideração do valor alheio ao centro egóico que se enaltece como única fonte e destino de todo valor. Com isso, o autor considera formas de soberba, descrevendo em minúcia algumas condutas consideradas como signos da mesma. Inclui também ao final desse ensaio a tematização da superação da soberba.
Por fim, temos seu ensaio sobre o ódio. Em contraste com a tradição filosófica, que considera experiência do ódio como simples polaridade afetiva oposta ao amor, apresenta o autor uma perspectiva distinta e aprofundada sobre os caracteres concretos que o especificam. A principal diferença apontada é a de que o ódio, mesmo podendo ser considerado o contrário do amor, não apresenta esta oposição como simétrica, pois o primeiro possui um caráter mais restrito do que o segundo em sua especificidade de direção, sendo que o amor possui um repertório mais abrangente de objetos e de tendências possíveis.
Neste sentido, temos que o ódio guarda essencialmente o traço de uma exigência de aniquilação (destruição, humilhação, supressão, proscrição etc.) de seu objeto, caracterizando-se como fenômeno mais circunscrito em suas formas de expressão do que o amor. Discute também sobre a possibilidade de amar e odiar o mesmo objeto de modo que isso se mostra como uma tensão dirigida ao mesmo objeto unitário pelo qual esses sentimentos opostos se direcionam e o apreendem de maneira afetivamente oscilante e cindida. Tal como nos outros ensaios, apresenta uma demarcação que parte da comparação com outras vivências próximas, porém distintas, em relação as quais destaca os traços próprios do ódio.
Deste modo, compreendemos que o contato com os estudos fenomenológicos sobre os sentimentos hostis de Aurel Kolnai guarda a possibilidade de nos fornecer condições de vislumbrar toda a riqueza da fenomenologia enquanto trabalho cientificamente rigoroso e sistemático destinado ao esclarecimento das nossas vivências, aparentemente fugidias e incapazes de serem determinadas, mantendo-se em explícita fidelidade com seus próprios elementos intuitivos e constitutivos, dados na nossa (mais) própria experiência de nós mesmos e de nosso mundo circundante.
Referências
Ferrán, Íngrid Vendrell. (2013). Introducción. Em Kolnai, Aurel. Asco, soberbia, odio: fenomenología de los sentimientos hostiles (Íngrid Vendrell Ferrán, Ed. & Trad.). Madrid: Ediciones Encuentro [ Links ]
Nota sobre o autor:
Yuri Amaral de Paula: Psicólogo, Graduado em Psicologia pela Universidade Federal do Triângulo Mineiro (UFTM). Mestrando da Pós-Graduação de Psicologia da Universidade Federal de Uberlândia (UFU). E-mail: yuri.a.p@live.com.
Recebido em: 15/09/2016.
Aprovado em: 10/11/2016.