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Trivium - Estudos Interdisciplinares

versão On-line ISSN 2176-4891

Trivium vol.4 no.1 Rio de Janeiro jan./jun. 2012

 

RESENHAS

 

Agradeçamos por "Angústia" (e pela angústia)!

 

 

Carlos Alberto Guedes Campos

Psicanalista, Membro da Escola Letra Freudiana, Mestre em Psicologia Clínica pela PUC-Rio carloalbertoguedescampos@gmail.com

 

 

Livro: "Angústia", Sonia Leite - Rio de Janeiro: Zahar, 2011 (passo-a-passo; 92) 95 pags.

 

O LIVRO

O impactante processo de atravessar a leitura do pequeno volume trazido à luz por Sonia Leite motiva cada frase desta resenha que é, antes de qualquer coisa, um agradecimento. Agradecimento pelos impactos do livro na clínica e na vida, agradecimento pelos efeitos de transmissão e pelo compromisso com a especificidade da experiência de ensino em psicanálise, por parte da autora. Editado pela Zahar, (na instigante coleção passo-a-passo), "Angústia" traz à mente aquela consagrada metáfora dos melhores perfumes em sua relação com os menores frascos. Em se tratando de um livro, e de psicanálise, vale acentuar que a metáfora só vale pela relação - excelente conteúdo em apresentação diminuta. Ao contrário de um bom perfume, o livro não é fácil de usar e nem necessariamente agradável. Como tudo o que toca na verdade, ele pode até ser difícil e exigir uma boa dose de esforço e trabalho.

O trabalho a que me refiro não é imposto por sua forma e menos ainda por sua linguagem; o livro é muito bem escrito, a linguagem é fluida e os desdobramentos do tema são bem apresentados e explorados pela autora. Então, que trabalho é esse? De onde ele vem? Vem da exposição do leitor aos temas que o livro levanta, de sua importância, e, de seu conteúdo. E das sombras que o livro projeta. As principais questões que a obra pretende responder são: "Mas, afinal, o que é a angústia? E o que a psicanálise tem a oferecer para aquele que se vê atravessado por tal experiência?". O percurso de construção das diversas respostas parece ser o processo de feitura do livro e é o caminho que atravessamos em sua leitura. Um caminho cheio de desdobramentos possíveis nos é ofertado antes de chegarmos ao encontro de uma síntese excepcional como essa: "A angústia é, ao mesmo tempo, ponto de interrupção, ponto de sideração e ponto a partir do qual seguem os trilhos do desejo.". Como se vê, as respostas que constrói não são nem definitivas nem redondas, tampouco facilmente palatáveis. São - isto sim - muitas e muitas vezes, causa de trabalho no campo subjetivo do leitor.

 

O INÍCIO DO CAMINHO

A introdução apresenta, a partir de exemplos da clínica, a angústia como "a presença inexorável de um sofrimento que invade o corpo do sujeito." E anuncia: "A angústia é real." Considerando questões em torno da singularidade da experiência de angústia em sua relação com o corpo e com a noção de urgência, a autora apresenta a importância do tema e segue, a partir daí, para uma identificação de referências que contribuem para introduzir o tema da angústia, via filosofia; ela percebe, em Platão, "uma das primeiras referências indiretas à experiência da angústia como ausência de representação e sentido". Nessa parte, pontua também a ideia da fé como resposta para a angústia, tanto no Cristianismo, quanto em outras religiões. Mais à frente, nos revela como, a partir do corte da Idade Moderna, o tema ganha mais relevo e importância. A angústia chega mesmo a ser apresentada como o caminho que "efetiva a relação do espírito consigo mesmo e com sua condição".

Sonia Leite destaca, ainda naquela parte, um ponto de aproximação da visada de alguns filósofos, existencialistas, e a visada da psicanálise (apesar de ter o cuidado de ressaltar a distância conceituai entre a praxis psicanalítica e os fundamentos filosóficos): a experiência da angústia pode possibilitar uma travessia em que se descubram outras possibilidades. Uma distinção preciosa é feita quanto à proposta da psicanálise: Há elaboração possível, através de tratamento psicanalítico, da angústia neurótica, mas, não é possível curar ninguém da angústia como encontro com a falta última (real) - "pano de fundo da existência". Após apresentar alguns dos filósofos do existencialismo em suas reflexões sobre o tema, resume: a angústia ocupa uma posição central na experiência do homem com sua própria existência.

 

AS PEDRAS DO CAMINHO

Diz-se que as pedras são elementos fundamentais para que se reconheça o caminho. Ressaltando a noção foucaultiana de que "cada época, cada cultura, cria o seu modo próprio de explicar o que é doença e o que é sofrimento humano, estabelecendo também modos próprios de solucioná-los", a autora constrói outra parte do livro em que aborda os descaminhos da 'evolução' da clínica psiquiátrica e a expansão do poder discursivo da medicina e do saber médico em sua forma (quase) hegemônica de interpretar e tratar o que seja da ordem das doenças e do sofrimento mental. Um dos pontos fundamentais desse percurso é a abordagem das mudanças de paradigma que levam a "uma ostensiva medicalização da sociedade como um todo" - denúncia de formas asilares mais sutis.

Nessa parte, a autora pontua ainda as mudanças culturais que correspondem à expansão do discurso médico científico e como essas mudanças nas noções de tempo e espaço, sacrificam o que seria prazeroso para cada sujeito em nome de uma submissão progressiva ao mundo cientificista que se apresenta como virtualmente capaz de responder a todas as demandas dos seres humanos, mas produz um efeito paradoxal: "É curioso pensar que, atualmente, com a expansão indiscriminada do uso de medicamentos (...) o que se verifica é a prescrição de medicamentos que funcionam mais como forma de silenciamento do sujeito do que propriamente como tratamento.".

Em seguida, enfocando particularmente o lugar da angústia na psiquiatria contemporânea, Sonia Leite demonstra, com precisão, o processo de desaparecimento da clínica psiquiátrica e, consequentemente, do trabalho com a etiologia das doenças que apoiava uma prática de tratamento propriamente dito. Ela demonstra como o crescimento exponencial de categorias de classificação de transtornos mentais (descritos de uma forma a-teórica) "produz efeitos na expansão da indústria farmacêutica, que, associada à lógica do consumo, apresenta constantemente novos e mais avançados produtos." Além disso, sustenta ainda que talvez possamos supor que o alívio psicológico resultante da nomeação de enigmas do sujeito, por parte do discurso médico, seja causa da aceitação de sua hegemonia. Mas, destaca: "Essa nomeação, no entanto, acaba por excluir o próprio sujeito e sua responsabilidade sobre o sintoma. A inquietação é silenciada, mas também as possibilidades de inscrição do sujeito e do seu desejo são perdidas.". É nesse ponto que o livro avança em direção à psicanálise.

 

MAIS CAMINHO

O leitor vai encontrar, ao longo desta outra parte do percurso, muitas indicações sobre as especificidades da Psicanálise em sua abordagem do sujeito, da angústia e do desejo. Algumas ideias e definições são apresentadas e discutidas de modo a causar trabalho; tanto ao leitor leigo, capaz de se orientar em novos caminhos, quanto ao psicanalista, favorecido pela precisão das balizas que o texto apresenta. Sonia Leite demonstra a centralidade do tema da angústia ao longo de toda a criação da Psicanálise, por Sigmund Freud. Ela atravessa os pontos chave do texto freudiano na constituição das teorias da angústia em sua imbricação com a constituição da própria psicanálise. Destaque para as relações entre angústia e recalque e para as relações entre angústia e desejo, ambas muito bem apresentadas.

Ainda no percurso amplo que a autora realiza pelo texto freudiano, as nuances trazidas na aproximação de diversas das questões levantadas por Freud são comentadas a partir de um recurso pontual a formulações lacanianas; por exemplo, nos aportes de Lacan à distinção entre gozo e desejo. Essa trama de idas e vindas traça um mapa inteligente e causador de trabalho. É um daqueles livros com a qualidade rara de fazer retornar aos textos (do próprio livro, de Freud e de Lacan) e nunca encontrar o mesmo e sempre avançar um pouco.

O traçado da angústia na experiência subjetiva, assim como na formação do analista, tangencia pontos próximos ao desamparo e à ameaça infantil da perda do amor. E esse pequeno livro não nos poupa deste percurso que aponta para a angústia de castração. Na parte em que se dedica à angústia em Lacan, fica patente o quanto a autora se ocupa da transmissão da psicanálise, nesse livro. Isso porque, além de construir um breve e profundo percurso pela obra de Lacan, ela segue a estratégia de diálogo com os conceitos lacanianos e desses com Freud, instrumentalizando o leitor leigo para mais uma aproximação da seara da angústia na psicanálise e incitando o leitor psicanalista que se vê lançado ao trabalho - causado tanto pelo livro quanto pelo tema! (É como se Sonia Leite fosse o mais-um de um cartel sobre a angústia do qual a gente participa, com ela, com Freud e com Lacan, ao longo do trabalho de leitura).

No final do livro se abrem mais caminhos. A abordagem sobre a travessia da angústia como experiência possível no percurso de uma análise é o ponto em que a autora nos permite uma aproximação maior com a angústia. E nos faz sentir a intimidade da experiência da angústia com a ética da psicanálise e com a ética do desejo, via travessia da fantasia - homóloga à travessia da angústia que se pode experimentar em uma análise. Muito do que o livro traz esbarra em uma dificuldade no caminho da psicanálise, isto é, não se conhece verdadeiramente psicanálise sem experiência com o próprio inconsciente (via experiência de análise). De qualquer forma, isso é, na verdade mais um dos méritos do livro: ele transmite algo da psicanálise a quem o lê através da angústia, apresentada como experiência possível e possibilitadora, à qual podemos chegar a agradecer. Portanto, agradeçamos por "Angústia", o livro; e agradecemos pela angústia, a experiência.

 

 

Recebido em: 4/3/2012
Aprovado em: 16/6/2012