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Trivium - Estudos Interdisciplinares

versão On-line ISSN 2176-4891

Trivium vol.10 no.1 Rio de Janeiro jan./jun. 2018

https://doi.org/10.18379/2176-4891.2018v1p.49 

ARTIGOS TEMÁTICOS

 

O imperativo da felicidade nos dias atuais*

 

The imperative of happiness these days

 

El imperativo de la felicidad en los días actuales

 

 

Tatiana Fagundes AudinoI; Fernanda Pacheco-FerreiraII; Regina HerzoIII

IDoutoranda em Teoria Psicanalítica pelo Programa de Pós-graduação em Teoria Psicanalítica da Universidade Federal do Rio de Janeiro. End.: Conde de Bonfim 522/301, Tijuca, Rio de Janeiro. CEP: 20520-054. Telefone: (21) 979014908. E-mail: tatiaudino@yahoo.com.br
IIPós-doutoranda (PNPD-CAPES) do Programa de Pós-graduação em Teoria Psicanalítica da Universidade Federal do Rio de Janeiro End.: Marquês de São Vicente 451/402. Rio de Janeiro. CEP: 22451-047. Telefone: (21) 981127236. E-mail: fpachecoferreira@gmail.com
IIIProfessora associada do Programa de Pós-graduação em Teoria Psicanalítica da Universidade Federal do Rio de Janeiro. End.: General Venâncio Flores 100/201. CEP: 22441-090. Telefone: (21) 981328507. E-mail: rherzog@globo.com

 

 


RESUMO

Pretendemos focalizar uma das facetas do sofrimento nos dias atuais: a busca da felicidade como um imperativo. Para tanto, apresentaremos a posição de Freud para quem a realização deste projeto de felicidade do ser humano está, de saída, fadada ao fracasso, e que se contrapõe à intimação à felicidade que se observa atualmente. ara elucidar a pregnância d, servimo-nos de alguns argumentos oriundos de outros campos de saber, tais como a psiquiatria, a sociologia e a antropologia

Palavras-chave: MAL ESTAR; FELICIDADE; DEPRESSÃO; CONTEMPORANEIDADE.


ABSTRACT

This article aims to explore one of the facets of contemporary suffering: the pursuit of happiness as an imperative. We present Freud's opinion on the impossibility of realization of the modern human project of happiness, in contrast with the duty to be happy dominant nowadays. To elucidate the question, we employ some arguments from other fields of knowledge, such as psychiatry, sociology and anthropology.

Keywords: MALAISE; HAPPINESS; DEPRESSION; CONTEMPORARINESS.


RESUMEN

Pretendemos enfocar una de las facetas del sufrimiento en los días actuales: la búsqueda de la felicidad como un imperativo. Para ello, presentaremos la posición de Freud para quien la realización de este proyecto de felicidad del ser humano está, de salida, hadado al fracaso, y que se contrapone a la intimación a la felicidad que se observa actualmente. Para dilucidar la pregnancia actual de ese último aspecto, nos servimos de algunos argumentos oriundos de otros campos del saber, tales como la psiquiatría, la sociología y la antropología.

Palabras clave: MALESTAR; FELICIDAD; DEPRESIÓN; CONTEMPORANEIDAD.


 

 

Freud costumava dizer que apesar de ter inventado, ele próprio, um método científico para compreender e lidar com o inconsciente, os poetas e literatos estariam "bem adiante de nós, gente comum, no conhecimento da mente, já que se nutrem em fontes que ainda não tornamos acessíveis à ciência" (Freud, 1907[1906]/2006, p.20). A questão da felicidade, associada à busca pelo sentido da vida, é um desses temas. E apesar de não aparecer de forma explícita na pena de Freud, sabe-se que ele cogitou incluir este termo no título de um de seus mais importantes trabalhos, 'O mal-estar na Civilização', de 1930. De acordo com as notas de Strachey (2006), o título original deste manuscrito seria 'Das Unglück in der Kultur' - 'A Infelicidade na Civilização'. E, ainda, embora a noção de felicidade não tenha sido alçada ao estatuto de conceito psicanalítico, o termo 'felicidade' e seu oposto, 'infelicidade', figuram cerca de cinquenta vezes ao longo desse texto, que também possui em torno de vinte ocorrências do termo 'feliz' ou 'infeliz', o que demonstra a grande preocupação de Freud em circunscrever dita temática.

 

 

Em suas reflexões sobre a cultura, em especial nos textos 'Moral sexual 'civilizada' e doença nervosa moderna' (1908) e 'O Mal-estar na civilização' (1930[1929]/2006), Freud aponta, como a principal causa do mal-estar moderno, a dissonância entre o que o sujeito deseja e o que a cultura lhe exige. Retoma, assim, em 1908, a distinção proposta por Von Ehrenfels entre uma moral sexual 'natural' e uma 'civilizada'. A primeira abrange a conservação da saúde, a segunda, a atividade cultural. Ehrenfels atribui à moral sexual que rege a sociedade moderna inúmeros prejuízos, salientando que, apesar de servir de pressuposto para o desenvolvimento da civilização, as sanções às transgressões sexuais, principalmente a sanção da monogamia, produzem efeitos graves, expressos no que se denominou de doença nervosa moderna.

Já nessa época, Freud chama atenção, através do testemunho de autores como W. Erb, Binswanger e Von Krafft-Ebing, para uma questão que nos é bastante familiar na atualidade: trata-se dos efeitos da revolução tecnológica, acompanhada do aumento das necessidades individuais em todas as classes sociais e da busca por mais prazer e aquisições materiais. Concebidos como paradigmáticos de uma relação de causa e efeito entre o progresso da civilização e a doença nervosa moderna, ainda assim, não considerava serem suficientes para explicar a doença nervosa. E isto porque deixavam de lado o fator etiológico mais importante: a repressão sexual. Desse modo, através da análise dos costumes de sua época, das restrições sexuais impostas pela sociedade dita civilizada e dos padecimentos nervosos de seus pacientes, Freud observou que o progresso civilizatório ocorre tanto à custa do sacrifício de aspecto significativo da vida sexual, quanto da renúncia necessária de parte do sentimento de onipotência e das inclinações agressivas no sujeito moderno.

A partir da introdução do conceito de narcisismo, em 1914, e da ideia de pulsão de morte, em 1920, é possível indicar um ponto de ruptura no pensamento freudiano, o que nos remete a uma nova perspectiva para pensarmos na temática da felicidade. Enquanto no texto de 1908, Freud vislumbrava um horizonte de harmonia entre desejo e proibição, no de 1930, este ideal seria desconstruído. Em 'O mal-estar na civilização' (Freud, 1930[1929]/2006), o sujeito freudiano ainda aparece atravessado pela moral; entretanto, o autor afirma que o processo civilizatório implica em uma perda de felicidade e um aumento de culpabilidade. O mal-estar na civilização é justamente o mal-estar advindo dessa renúncia pulsional que impede a vivência de alguns sentimentos intensos de prazer e impõe regras reguladoras da relação do sujeito com os outros.

Outro ponto fundamental a ser destacado, ainda no texto de 1930, refere-se à questão da agressividade, pois, com a introdução do conceito de pulsão de morte, o conflito passa a se estabelecer na sua radicalidade, acabando de vez com a possibilidade de um equilíbrio. A partir desta nova configuração, em que o ideal da modernidade desdobra-se na crítica de uma ilusão, o estado de desamparo do sujeito constitui-se como um modo de existência, visto que seu desejo fica remetido ao desejo do outro.

No tocante a essas considerações, Freud começou a dar relevo ao estatuto da felicidade, mais especificamente falando, da busca da felicidade. De acordo com sua argumentação, sempre buscamos ser felizes, mesmo que seja por um pequeno instante capaz de afastar-nos das perturbações da vida; contudo, observa que o projeto de felicidade, tal como imposto por nossa regulação psíquica sob o comando do princípio do prazer, está, de saída, fadado ao fracasso, pois todas as normas do universo lhe são contrárias.

Ficamos inclinados a dizer que a intenção de que o homem seja 'feliz' não se acha incluída no plano da 'Criação'. O que chamamos de felicidade no sentido mais restrito provém da satisfação (de preferência, repentina) de necessidades represadas em alto grau, sendo, por sua natureza, possível apenas como uma manifestação episódica (Freud, 1930 [1929]/2006, p.84).

Nestes termos, se levarmos em consideração o programa do princípio de prazer e a própria constituição humana, nossas possibilidades de experimentar a felicidade são restritas. Em relação à infelicidade, entretanto, o mesmo não pode ser dito. Ainda no texto de 1930, Freud aponta três principais fontes de sofrimento que acometem o sujeito e que, por sua vez, restringem o projeto de felicidade almejado: o próprio corpo, o mundo externo e o relacionamento com seu semelhante. A busca pela felicidade torna-se, desse modo, um esforço para afastar a infelicidade quando, por exemplo, se busca o isolamento no intuito de evitar conflitos com os semelhantes, quando procuramos agir sobre a natureza para nos proteger e, por último, quando agimos sobre nosso próprio organismo. Freud salienta que o relacionamento com o semelhante, isto é, a fonte social do sofrimento, é o mais doloroso dos três aspectos citados acima. Para lidar com este sofrimento, uma das alternativas do homem tem sido servir-se do progresso científico, na busca de transpor os obstáculos impostos pela própria civilização.

A vida humana em comum só se torna possível quando se reúne uma maioria mais forte do que qualquer indivíduo isolado e que permanece unida contra todos os indivíduos isolados. O poder dessa comunidade é então estabelecido como 'direito', em oposição ao poder do indivíduo, condenado como 'força bruta'. A substituição do poder do indivíduo pelo poder de uma comunidade constitui o passo decisivo da civilização. Sua essência reside no fato de os membros da comunidade se restringirem em suas possibilidades de satisfação, ao passo que o indivíduo desconhece tais restrições (Freud, 1930[1929]/2006, p.101).

Como consequência, esse acréscimo de segurança, advindo do recalque da agressividade e da busca de um bem comum, torna-se um obstáculo para a felicidade. Ao mesmo tempo, a diminuição dessas exigências coletivas tampouco garante felicidade ao homem, ou seja, para Freud, a balança entre satisfação e renúncia, a despeito de nossos esforços, jamais será equilibrada. O melhor que a experiência psicanalítica poderia oferecer, como terapêutica, é proporcionar a transformação do sofrimento neurótico em infelicidade comum. Em outras palavras, o processo analítico impõe-nos que nos deparemos com o lado trágico de nossa existência. Elaborar o sofrimento, transformar dor em alegria, significa suportar assumir certa dose de infelicidade como fazendo parte da vida; persistir na neurose equivaleria a insistir na possibilidade de evitar todo e qualquer sofrimento e almejar um estado de satisfação total. Essa é justamente a temática do pequeno ensaio 'Sobre a transitoriedade' (1916[1915]), no qual Freud relata um passeio pelas Dolomitas, na companhia de um amigo e de um jovem poeta. Enquanto para este a alegria resultante da fruição da beleza da natureza se esvai ante a transitoriedade do belo, para Freud, ao contrário, "o valor da transitoriedade é o valor da escassez no tempo" (Freud, 1916[1915]/2006 p.317). Nessa medida, a transitoriedade e a efemeridade apenas aumentariam o valor do que é belo. Freud está claramente impactado pelos horrores da Primeira Guerra, a mais sangrenta que já se tinha visto, perpetuada pelas nações mais civilizadas contra elas mesmas, o que o levou a insistir na necessidade do trabalho de luto para suportar as perdas ocasionais e as perdas necessárias da vida. Para tanto, seria preciso retirar a libido que se investiu para ligá-la em objetos substitutos. Agarrar-se neuroticamente aos objetos é algo que nos protegeria, apenas ilusoriamente, do encontro com nossa própria finitude.

 

"Tristeza não tem fim, felicidade sim..."

Para Freud, tal como nos versos da música de Vinícius de Moraes, a felicidade tem vida breve. Nos dias de hoje, contudo, parece que assistimos a uma inversão: acreditamos que a tristeza pode e deve ter fim, já a felicidade... O tema tem sido abordado não só pela psicanálise, mas por diversos campos com os quais ela dialoga, tais como a psiquiatria, a antropologia e a sociologia. A relevância do tema, na atualidade, pode ser esboçada através de invenções curiosas como a criação de um indicador, desenvolvido no Butão e que se espalhou pelo mundo: Felicidade Interna Bruta - FIB(1). Trata-se de um instrumento criado por alguns especialistas para avaliar o progresso de uma comunidade ou nação. Dentre os fatores avaliados estão: bem-estar psicológico, saúde, uso equilibrado do tempo, vitalidade comunitária, educação, cultura, resiliência ecológica, governança e padrão de vida. A formulação foi justificada por considerarem que o PIB - Produto Interno Bruto, ao avaliar o resultado da atividade econômica, não incluía a felicidade entre os seus indicadores.

Podemos observar, assim, que a problemática da busca da felicidade tem sido tematizada nos mais variados contextos. Comte-Sponville (2001), em seu livro 'A felicidade desesperadamente', define a filosofia como "uma prática discursiva que tem a vida por objeto, a razão por meio e a felicidade por fim" (p. 8-9). Retomando a lição da filosofia antiga, que na concepção do autor, conseguia obter, através da busca da sabedoria, "certa qualidade de felicidade" (p. 5), Comte-Sponville propõe-se a resgatar a tradição da filosofia grega a respeito da sabedoria e da felicidade.

O estudo da depressão enquanto um dos transtornos mais frequentemente diagnosticados na atualidade, tem sido, por sua vez, importante fonte para se pensar na problemática da felicidade ou de sua ausência. Embora a equação que equipara tristeza e depressão seja questionável, tais estados aparecem cada vez mais associados, sendo este último considerado por muitos como o mal do século. Horwitz e Wakefield (2007), porém, afirmam que estudos cuidadosos, baseados no mesmo tipo de critério diagnóstico, indicam que a prevalência da depressão na população não teria realmente aumentado nas últimas décadas. Segundo os autores, o que mudou foi o crescente número de pessoas que buscam tratamento para depressão e que tomam antidepressivos, bem como o crescente número de prescrições desses medicamentos e de artigos em torno dessa temática na mídia, na literatura científica e na cultura popular como um todo.

De fato, desde 1980, com a publicação do DSM III (Manual de Diagnósticos e Estatística da Associação Psiquiátrica Americana), a definição de depressão passou a englobar estados genuínos de depressão e também estados intensos, antes considerados não patológicos, de tristeza. A partir dos manuais, a psiquiatria baseia-se numa lista de sintomas para definir a depressão. Aquele que tem x sintomas de uma lista que inclui humor depressivo, perda de interesse em atividades comuns, insônia, cansaço, falta de apetite e dificuldade para se concentrar por determinado período de tempo, por exemplo, é diagnosticado como tendo um transtorno depressivo.

A cada nova edição, o DSM acrescenta páginas e categorias. Em sessenta anos, o manual saltou de 130 páginas para 947, em sua quinta versão, de 2013. Essa última versão não só ampliou o número de doenças mentais, mas também aumentou as chances de alguém ser diagnosticado com os transtornos já existentes, devido a mudanças nos critérios diagnósticos de várias categorias. Uma das principais críticas ao DSM 5 é que estaria diminuindo cada vez mais a esfera do normal, transformando em doenças comportamentos até recentemente julgados comuns. Estaríamos diante de uma redução da tolerância com a tristeza? Há uma grande discussão no meio psi em torno deste fenômeno: tratar-se-ia de um aumento da prevalência dessas expressões sintomáticas na contemporaneidade? Ou do que se convencionou chamar de medicalização e patologização de comportamentos comuns, colocando em questão a fronteira entre o que é considerado "normal" e o que pode ser definido como doença mental? Constata-se que, hoje, os medicamentos antidepressivos são usados até para contornar dificuldades cotidianas, como insônia, timidez, menopausa, mau humor, etc. Em outras palavras, prometem tratar não somente sintomas ou doenças, mas também produzir e melhorar a performance das pessoas.

Zorzanelli, Ortega e Bezerra Jr. (2014), remetem a Conrad quando este descreve medicalização como "um processo pelo qual problemas não médicos passam a ser definidos e tratados como problemas médicos, frequentemente em termos de doenças ou transtornos" (p. 1860). A este respeito, os autores alertam ainda para discordâncias entre os diversos estudiosos que se ocupam do tema da medicalização. Para eles, os debates em torno deste conceito têm "girado menos em torno da definição de doença, e mais daquela de páthos - de um estado cujas características passam a ser reconhecidas pela medicina, pelos pacientes e pela cultura como alvo legítimo de intervenção médica, terapêutica, profilática ou restauradora" (p. 1866). O diagnóstico de uma morbidade, embora seja um facilitador, não é a única fonte da medicalização já que rugas, sinais de envelhecimento e calvície, por exemplo, embora não sejam considerados doenças, constituem, cada vez mais, objeto de intervenção médica, como enfatiza Conrad. Assim, "[m]ais do que a criação de categorias, a medicalização envolveria a transformação do páthos em experiências medicamente descritas e manejadas" (p. 1866). Efetivamente, segundo Herzog (2003), a partir do estudo da etimologia da palavra grega e de diversas correntes filosóficas ao longo da história, o páthos pode ser compreendido tanto como um mal, quanto como fazendo parte da natureza do indivíduo. No primeiro caso, constitui-se como perigo à sua integridade, e, no último, mesmo podendo vir a representar um mal, ocupa um lugar privilegiado na compreensão da natureza humana, sendo inerente a ela. Atualmente, pode-se dizer que o conceito de páthos tem-se reduzido ao primeiro sentido, sendo associado à ideia de patologia e morbidade. Nesses termos, o que se configura como a dimensão intensiva da natureza humana e que se caracteriza por tudo que abrange as emoções e os sentimentos, parece assumir um caráter negativo, como se tristeza, timidez e angústia, ou ainda raiva, amor e ódio não pudessem mais fazer parte da vida de todos nós, pouco importando o grau de intensidade de cada uma dessas sensações.

A propósito da questão da patologização da tristeza, o psiquiatra e antropólogo Arthur Kleinman (2012), em um belo e curto artigo no qual reflete sobre a experiência de luto, questiona a última reformulação do DSM. Prestes a completar um ano da perda de sua esposa, com quem conviveu por 46 anos, Kleinman relata ainda sentir muitos dos sintomas que hoje o enquadrariam num transtorno depressivo, e, ao contrário do que se poderia pensar, ainda não quer se ver livre desse sentimento, pois acha fundamental passar pela dor para se recuperar. Como dizia Freud (1917[1915]/2006), o luto implica em um recolhimento e exige um trabalho. Além disso, com relação às emoções, Freud sempre tentou aproximar os fenômenos neuróticos dos fenômenos da vida ordinária: assim foi com relação aos sintomas neuróticos e a psicopatologia da vida cotidiana, e com a melancolia e o luto. Kleinman questiona se o luto se teria tornado algo que não mais podemos tolerar, sendo essa forma existencial de sofrimento, como qualquer dor de dente ou dor nas costas, indesejável e dispensável.

Certamente, nossa tolerância em lidar com os sentimentos ganham outro colorido de acordo com a mudança de valores na cultura e da cultura. Nesse sentido, é importante lembrar que houve momentos na tradição ocidental em que a tristeza foi altamente valorizada (Peres, 2003). A melancolia já foi, inclusive, um estado positivado, sendo associada à criatividade e à genialidade. Na Antiguidade, o melancólico era visto como quem tinha algo "a mais" do que outras pessoas, atestando uma maior profundidade da alma. Não se tratava de negar o sofrimento provocado pela melancolia, mas ela podia assumir um viés que não era necessariamente patogênico, sendo inclusive considerada como uma característica dos intelectuais. No século XIX, a tristeza dos poetas ainda provocava certo encanto. O período compreendido pelo final do século XIX até primórdios do século XXI, contudo, "marca definitivamente uma nova maneira de pensar a doença mental, a partir de visões completamente distintas, como é o caso da leitura da psicanálise e da psiquiatria biológica" (Peres, 2003, p.18). Hoje em dia, praticamente não se associam melancolia e grandeza da alma, ficando-se apenas com a ideia de insuficiência e de miséria afetiva. Na contemporaneidade, o deprimido é alguém com algo "a menos".

Pascal Bruckner (2000), em seu livro "A euforia perpétua", afirma que atualmente a felicidade deixou de ser um direito para se tornar um dever. O autor chama nossa atenção para o fenômeno contemporâneo da intolerância ao sofrimento, ressaltando que a grande mudança de valores não está na evitação do sofrimento em si, o que, afinal, constitui uma característica do ser humano, independente da época e da cultura em que se insere. A grande inversão de valores encontra-se na ideia de que não se pode sofrer, o que, vale ressaltar, apenas acarreta uma dor adicional. Nesse mesmo sentido, Fortes (2004) aponta que o sujeito contemporâneo nega não só a própria dor, mas também a interação com o sofrimento do outro.

Na contemporaneidade, portanto, há uma mudança nas formas de subjetivar-se, sendo algumas dessas modificações observadas no modo como o sujeito se relaciona com a dor (algo a ser evitado) e na diminuição do espaço oferecido para a interação com a alteridade. Esses dois aspectos caminham juntos, já que a alteridade não deixa de provocar uma certa dose de dor para o sujeito: o outro oferece intensidades e diferenças que trazem um estranhamento à estabilidade narcísica do eu (FORTES, 2004, p.69).

Bruckner (2000) considera que o dever de felicidade é fruto de um processo que vem ocorrendo gradualmente desde o século XVIII e se consolida no século XX. A partir dessa ideologia, predominante na segunda metade do século passado, nossas ações são avaliadas pelo prisma do prazer individual, numa espécie de intimação à euforia, que expõe os que não conseguem se adequar a esses ideais à vergonha e à depressão. Ademais, quer-se o resultado sem o esforço, isto é, sem as renúncias necessárias para alcançar tais objetivos.

O antropólogo francês Ehrenberg (2000), por sua vez, julga que a chave para compreender esse mal-estar, e, mais especificamente, o "sucesso" da depressão nos dias de hoje, está na passagem do predomínio da culpa e da disciplina para o da responsabilidade e da iniciativa. Vale, aqui, trazer sua já conhecida descrição da depressão:

A depressão (...) é a patologia de uma sociedade na qual a norma não está mais fundada sobre a culpabilidade e a disciplina, mas sobre a responsabilidade e a iniciativa. Ontem, as regras sociais comandavam conformismos de pensamento, e até mesmo automatismos de conduta; hoje, elas exigem iniciativa e aptidões mentais. O indivíduo é confrontado com uma patologia da insuficiência mais do que com uma patologia da falta, ao universo do disfuncionamento, mais do que ao da lei: o deprimido é um homem em pane (p.16).

Em outras palavras, ainda na visada de Ehrenberg (2000), com o declínio da disciplina e da organização social erigida em torno de um ideal simbólico, cada sujeito se torna livre para buscar seu caminho, sem que a ordem social lhe ofereça um referencial sólido e estável para pautar seus atos. Hoje, além de agir por conta própria, em alta velocidade e com o máximo de eficiência, este sujeito deve destacar-se e ser reconhecido por tais atos, caso contrário, passa a ser visto como incompetente ou insuficiente. Ao não sentir-se à altura da performance que lhe é exigida, ele deprime. Propondo uma distinção entre neurose e depressão, sugere que a neurose é "a consequência de um conflito no qual se é culpado (mesmo quando os sintomas depressivos dominam), enquanto a depressão é vivida como uma falha da qual se tem vergonha" (p.165).

Diversos autores dentro do campo da psicanálise, de correntes teóricas heterogêneas, vêm-se interessando também em compreender o destronamento da culpa e do conflito do lugar central que ocupavam na expressão do sofrimento psíquico e a prevalência da vergonha nos quadros clínicos da contemporaneidade. Para Venturi & Verztman (2012), é importante considerar as características narcísicas da vergonha para a compreensão das diferenças entre algumas formas de depressão na atualidade (incluindo aí o mal-estar de alguns sujeitos melancólicos) e a melancolia clássica descrita por Freud. O deslocamento da culpa, como emoção basilar e organizadora das neuroses clássicas, para a vergonha, nos quadros em que a dimensão do conflito não se apresenta de maneira significativa, coloca-nos num cenário clínico bastante diverso do da época de Freud.

 

"Eu deveria, mas não consigo"

Conforme anunciado no item anterior, transformações significativas no quadro atual apontam um panorama muito diferente daquele em que Freud inaugurou a psicanálise. O desenvolvimento tecnológico, os inúmeros avanços nas telecomunicações, na era digital e na indústria farmacêutica (com o surgimento de contraceptivos orais, antidepressivos, ansiolíticos, Viagra), na era, enfim, da globalização, em que as possibilidades são imensas, essas mudanças não só provocam o estabelecimento e o triunfo da sociedade de consumo, como também contribuem para novos ideais de felicidade e novas expressões do sofrimento psíquico na atualidade.

Um agravante vem engrossar a fileira de dificuldades que a questão comporta. Trata-se de circunscrever o que vem a ser sofrimento humano. Uma vez que o sofrimento humano é uma emoção que faz parte de nosso arsenal, em que contexto passa a ser considerado como expressão de uma perturbação, de um padecimento psíquico? Em geral, o termo "sofrimento" é associado à dor, ao desprazer e/ou à infelicidade. Em Freud, muitas vezes aparece associado à culpa decorrente de um conflito entre os impulsos desejantes e a renúncia em nome do bem-estar social, ou seja, entre o que se quer e o que se deve fazer. É desse modo que o sofrimento se manifesta nas ditas neuroses clássicas. Outra forma de expressão de sofrimento, tal como explicitado por Ehrenberg (2000), pode estar vinculada ao sentimento de insuficiência, de incapacidade diante da exigência de sucesso que caracteriza a atualidade. O que se configura como uma das características dos tempos atuais é precisamente esta imposição que leva àquilo que comumente se denomina como baixa autoestima.

Nesta medida, não é sem razão que muitos autores, como Fortes (2009), vão identificar os tempos atuais com a cultura de um hedonismo. Essa cultura se define por considerar a busca incessante e excessiva do prazer como o único propósito da vida. Em outros termos, o prazer funciona aí como o bem supremo e sua busca se torna, então, uma tentativa de fuga da dor/desprazer através da negação do sofrimento. O mundo atual, segundo Ehrenberg, é um mundo altamente individualizado, é o mundo da iniciativa e, por isso, ter sucesso depende exclusivamente de cada um. Nada fora de si oferece qualquer garantia.

Reforçando-se essa ideia: ter sucesso, hoje, é algo que depende primordialmente, e quase que exclusivamente, da competência do sujeito. Fica patente, aí, o esforço requerido em termos de decisão e iniciativa do indivíduo para alcançar seu objetivo. Tudo se passa na esfera individual. É preciso decidir independentemente do outro, do outro que, com seus quereres, pode inclusive ameaçar a busca do sujeito. Assim, o espaço reservado ao outro na vida de cada um fica reduzido. O que daí se depreende é a concepção de um ser autônomo cujo destino está em suas próprias mãos; como efeito desta injunção, dá-se o isolamento, na medida em que o outro funciona como uma ameaça à estabilidade narcísica do sujeito (Fortes, 2013). Fracassar nessa empreitada solitária torna o sujeito incompetente, desqualificado e desvalorizado.

Conforme vem sendo ressaltado aqui, distinguir a época atual com a marca da depressão tem sido consensual entre vários profissionais da saúde mental e de pesquisadores na área das ciências humanas. Nesse contexto, os sintomas que prevalecem na contemporaneidade - pânico, fobias, compulsões - apresentam-se tendo, como pano de fundo, dois tipos de sentimentos - vergonha e humilhação - que expressam a dificuldade do sujeito de estar à altura da exigência de competência que lhe é imposta (Venturi & Verztman, 2012). As queixas mais ouvidas nos consultórios remetem à ideia de insuficiência frente a um ideal que o sujeito se sente intimado a atingir. Embora não tenhamos a pretensão de desenvolver considerações diretamente clínicas na presente argumentação, é importante frisar que a questão do desejo pouco comparece nessas falas marcadas por expressões como "eu tenho que", "eu deveria", "eu não consigo". No lugar do desejo, há um imperativo.

Na esteira desse pensamento, o apelo ao prazer imediato impera na sociedade contemporânea como única possiblidade de alcançar a tão almejada felicidade. A cultura da imagem valoriza o ideal instantâneo, ou seja, não há mais tempo a perder, é preciso entrar na corrida desenfreada do culto ao corpo, do sucesso profissional, do consumo exagerado. E, nesse contexto, a mídia articula, de forma exaustiva, felicidade e consumo: as pessoas mais felizes são as que mais consomem. A mensagem é clara, a felicidade tornou-se um bem e está aí, à espera de quem estiver disposto e/ou tiver condições de comprá-la. Fortes (2009) retoma o pensamento de Baudrillard (1981) de que, em nossa sociedade, adquirir objetos traduz a ilusão de que a demanda de felicidade pode ser preenchida pelo consumo. E, nessa lógica, conforto e bem-estar podem ser entendidos como sinônimos de felicidade.

A equação que iguala felicidade e prazer instantâneo força o sujeito a agir segundo uma lógica mercantilista, sem que seu desejo entre em questão. Sem referências externas e coletivas que balizem os caminhos do desejo, o sujeito contemporâneo é lançado em uma espécie de deriva. Neste sentido, Kaës (2012) sugere que o mal-estar (malaise) atual seria mais bem caracterizado pelo neologismo "malser" (malêtre), sem hífen, como em maltraitance, malformation ou désêtre por caracterizar um choque que atinge de forma mais radical nossa possibilidade de estar no mundo com os outros. Segundo o autor, o termo "crise", ou múltiplas crises, não seria o mais adequado para caracterizar esse choque, e sim mutações, isto é, mudanças estruturais e processuais em diversos níveis da organização da vida: psíquica, social, econômica, cultural.

No século XIX, a psicanálise revelou a repressão da sexualidade. Embora as pessoas se sintam, hoje, mais libertas sexualmente, aprisionam-se de outros modos. O dever de ser feliz a qualquer preço torna-se muitas vezes uma dessas prisões. Esta sociedade hedonista e permissiva não deixa, portanto, de ter suas normas e imposições. Se a cultura moderna propunha o adiamento da realização do desejo em nome de ideais coletivos, a cultura pós-moderna, beneficiando o prazer, incita-nos ao ideal do gozo total e imediato.

 

 

O mal-estar que prevalecia na época de Freud não era desse teor. Era o mal-estar da culpabilidade, resultante do conflito entre o ego e o superego. Freud considerava o superego, ao menos em suas primeiras formulações, como elemento fundamental e estruturante da civilização humana e, no plano da história individual, como o meio através do qual o sujeito se constitui como ser moral e social, inibindo grande parcela de agressividade que se voltaria contra o mundo externo. Posteriormente, Freud permitiu articulações importantes entre o superego e o conceito de pulsão de morte. Efetivamente, nos dias atuais, podemos perceber uma dimensão pulsional do superego que se mostra muito mais violenta em suas formas de manifestação, assumindo uma vertente desatinada e tirânica, veiculando a injunção de um gozo sem limites, muito distante da dinâmica do desejo.

Por fim, cabe lembrar que, em Freud, o sintoma tem algo de necessário, ele é de certa forma estruturante. Não é algo a ser eliminado e nem deve ser visto como sinal de insuficiência; ao contrário, é uma solução que o sujeito encontra para lidar com seu mal-estar. A psicanálise aposta que o sintoma e o sofrimento não podem ser abolidos completamente, eles precisam ser escutados. Nestes termos, o sintoma possui uma positividade, fala da singularidade daquele sujeito. A questão é o que fazemos com esse sintoma e como nos posicionamos para lidar com nosso sofrimento. Nas palavras de Gondar (2004):

[U]m sintoma ou um modo de sofrimento podem ser vistos como tentativas de traçar linhas de fuga, como formas particulares de criar derivas ante os imperativos universais ou, em suma, como uma possibilidade de resistência aos projetos homogeneizadores. A partir dessas brechas, desses intervalos de liberdade que o sofrimento instaura, pode-se exercer, na clínica, um trabalho de subjetivação" (p. 130).

O debate em torno do número alarmante de diagnósticos de depressão serviu-nos, neste artigo, para indicar e contextualizar as questões centrais do sujeito contemporâneo diante da felicidade. Do ponto de vista psicanalítico, não se trata evidentemente de oferecer uma solução, quer para o sofrimento que se expressa como conflito em termos de desejo e proibição (culpa), quer para aquele que se apresenta como insuficiência (vergonha), mas, parafraseando Gondar (2004), de enxergar o sofrimento como estratégia de existência diante de problemas colocados para um sujeito que talvez não tenha encontrado palavras ou ações mais afirmativas para enfrentá-lo. Na era dos transtornos e do furor classificatório, a escuta psicanalítica pode ter um importante papel de desinstalar o sujeito da alienação que muitas vezes ele encontra no diagnóstico médico e apostar em sua possibilidade de reinvenção.

 

Nota:

(1) Fonte: http//www.felicidadeinternabruta.org.br.

 

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Recebido em: 03/03/2017
Aprovado em: 21/06/2017

 

 

* Esse artigo é resultado das pesquisas que as autoras veem desenvolvendo no Núcleo de Estudos em Psicanálise e Clínica da Contemporaneidade da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UERJ, Br)

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