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Trivium - Estudos Interdisciplinares
versão On-line ISSN 2176-4891
Trivium vol.10 no.1 Rio de Janeiro jan./jun. 2018
https://doi.org/10.18379/2176-4891.2018v1p.74
ARTIGOS TEMÁTICOS
Inovações freudianas no campo de estudos sobre a sexualidade perversa
Freudian innovations on the study field of perverse sexuality
Innovations freudiennes dans le domaine d'études sur la sexualité perverse
Nathássia Matias de MedeirosI; Daniel Franco de CarvalhoII
IDoutoranda em Psicologia pela Universidade Federal do Ceará. Endereço: Centro Empresarial Torre Quixadá. Avenida Barão de Studart, nº 2360, sala 1204. Bairro Joaquim Távora. Cep 60120-002. Fortaleza/CE, Brasil. E-mail: nathassiamm@gmail.com
IIProfessor do Curso de Especialização em Semiótica Aplicada à Literatura, da Universidade Estadual do Ceará. Endereço: Centro Empresarial Torre Quixadá. Avenida Barão de Studart, nº 2360, sala 1204. Bairro Joaquim Távora. Cep 60120-002. Fortaleza/CE, Brasil
RESUMO
Este artigo investiga a posição teórica freudiana acerca das perversões e suas inovações para o campo dos estudos sobre sexualidade humana por meio de uma pesquisa de metodologia qualitativa, de natureza bibliográfica. Observamos como Freud, ao analisar o processo de configuração das perversões na constituição psíquica, vai de encontro às formas de lidar com a sexualidade de sua própria época, baseadas no núcleo perversão-hereditariedade-degenerescência, e subverte o tratamento conferido à sexualidade humana ao criar o conceito de pulsão, razão pela qual a psicanálise promove uma ruptura em relação às oposições entre inato e adquirido e entre normal e patológico.
Palavras-chave: TEORIA DA DEGENERESCÊNCIA; PSICANÁLISE; SEXUALIDADE; PERVERSÃO.
ABSTRACT
This article investigates the Freudian theoretical position on the perversions and innovations for the study field of human sexuality through a qualitative research method, of bibliographical nature. We observe how Freud, in analyzing the process of configuring perversions in the psychic constitution, goes against the ways of dealing with the sexuality of his own time, based on the core perversion-heredity-degeneracy, and subverts the treatment given to human sexuality by creating the concept of drive, reason why psychoanalysis promotes a rupture in relation to the oppositions between innate and acquired and between normal and pathological.
Keywords: DEGENERATION THEORY; PSYCHOANALYSIS; SEXUALITY; PERVERSION.
RÉSUMÉ
Cet article examine la position théorique freudienne sur les perversions et ses innovations pour le domaine d'études sur la sexualité humaine par voie d'une recherche de méthodologie qualitative, de nature bibliographique. Nous observons comme Freud, que l'analyse du processus de configuration des perversions dans la constitution psychique, est un désaccord aux moyens de faire face avec la sexualité de son propre époque, basées dans le noyau perversion-hérédité-dégénérescence, et renverse le traitement appliqué à la sexualité humaine lorsqu'il crée le concept de pulsion, raison pour laquelle la psychanalyse promeut une rupture par rapport aux oppositions entre inné et acquis et entre normal et pathologique.
Mots-clés: THÉORIE DE LA DÉGÉNÉRESCENCE; PSYCHANALYSE; SEXUALITÉ; PERVERSION
A construção da sexualidade perversa enquanto objeto
Atualmente, a sexualidade configura-se como tema constante de discussões e são múltiplas as perspectivas teóricas e práticas acerca dessa questão. Desde o século XVIII, o problema passou a ser tema de uma massiva produção de discursos, o que provocou modificações nas questões relacionadas ao sexo, conforme aponta Foucault (1988). Nesse movimento, o casamento deixou de ser o grande foco das produções discursivas sociais para dar lugar às sexualidades inexploradas, periféricas, que passaram a dever ser escutadas. No campo dos desvios sexuais, desapareceu a figura do devasso ou libertino para surgir a figura do perverso, que passou a ser considerado como aquele que ia contra a lei da aliança do casamento e a ordem da natureza dos desejos.
No final do século XVIII e início do século XIX, surgiu uma nova tecnologia de gestão do sexo, desenvolvida ao longo de três eixos: pedagogia, medicina e demografia (Foucault, 1988). Foi uma tecnologia do organismo que se construiu em torno da medicina, da necessidade de normalidade e do problema da vida e da doença. Esse processo tornou possível que a medicina do sexo se separasse da medicina geral do corpo, convertendo-se em um domínio específico.
Nesse movimento, as perversões tomaram o lugar da devassidão e da extravagância, que configuravam antigas categorias morais vigentes na sociedade. Com o novo estudo da hereditariedade, passou-se a considerar que o sexo poderia transmitir doenças para as futuras gerações, trazendo junto a isso a exigência de uma "responsabilidade biológica". Tal consideração impunha a necessidade do controle das relações sexuais por meio de programas de eugenia. Assim, a medicina do sexo e tais programas complementavam-se e se sustentavam mutuamente, conforme sentencia Foucault: "O conjunto perversão-hereditariedade-degenerescência constituiu o núcleo sólido das novas tecnologias do sexo" (1988, p. 130).
Assim, Foucault (1988) demonstra como a sexualidade foi atravessada por questões ligadas à normalidade e à doença a partir da modernidade. O julgamento moral das perversões passa a ficar em segundo plano e abre espaço para o destaque da dicotomia normal/patológico. O autor assinala que a Psicanálise, até os anos de 1940, foi a única que se opôs, de fato, aos efeitos desse sistema.
O questionamento sobre o que é da ordem do sexual, como afirmam Pinheiro e Magalhães (2010), está no cerne da teoria e prática psicanalíticas desde suas origens. Jorge (2007) indica que, antes de Freud, havia algumas formulações sobre a sexualidade, como a psicologia associativa de Binet e a teoria da degenerescência de Krafft-Ebing, mas estas eram simplistas e perpetuavam a discussão acerca da dicotomia médica hereditário/adquirido. É possível, entretanto, considerar que a Psicanálise propõe um novo conceito de sexualidade e opera um corte em relação aos estudos contemporâneos a Freud.
O que Freud realmente inaugurou no campo dos estudos sobre os "desvios" sexuais? Como Freud rompeu com as teorias sobre a sexualidade que giravam em torno do núcleo perversão-hereditariedade-degenerescência apontado por Foucault? Como Freud se afastou da dicotomia normal/patológico que circunscrevia as perversões? Essas são algumas das questões que orientam o presente estudo. Nesse sentido, temos como objetivo maior a investigação da posição teórica freudiana acerca das perversões e de quais inovações tal posição teria trazido ao campo dos estudos sobre a sexualidade perversa, marcado até então pela teoria da degenerescência.
A pesquisa contou com uma metodologia do tipo qualitativa, de natureza bibliográfica e ancorada em um referencial psicanalítico. Foi desenvolvida em três passos metodológicos principais. O primeiro deles consistiu no levantamento bibliográfico e realização de leituras acerca da perversão em geral. A leitura desses textos foi guiada pela postura psicanalítica à qual se referem Coelho e Santos (2012), na qual o pesquisador deve realizar suas análises fazendo uso da interpretação e das construções, com o objetivo de ir além do que a leitura lhe proporciona à primeira vista.
O segundo passo inspirou-se, ainda por meio de revisão bibliográfica, no método de pesquisa em Psicanálise proposto por Laplanche (1992), autor que destaca a importância da análise histórica da Psicanálise. O método de pesquisa desenvolvido pelo autor baseia-se na leitura histórica, problematizante e interpretativa dos textos psicanalíticos. Por fim, realizou-se a análise e a interpretação dos achados obtidos durante os passos metodológicos anteriores, através da tecelagem de discussões, reflexões e conclusões, tendo sempre em vista o objetivo principal da pesquisa.
A sexualidade perversa na segunda metade do século XIX: Krafft-Ebing e a teoria da degenerescência
A teoria médica da degenerescência foi elaborada inicialmente na França do século XIX por médicos alienistas, como Morel, Magnan e Legrain. Foucault (1999) indica que tal sistema de pensamento, que se fundamenta na transmissão dos desvios sexuais através das gerações familiares, foi a essência do saber médico sobre a loucura e a anormalidade a partir de meados daquele século.
Na época de Freud, Krafft-Ebing, a partir de uma noção advinda de Morel, atribuía a causa das perversões à degenerescência, enquanto Binet e alguns outros teóricos atribuíam ao determinismo adquirido. Apesar de tal conflito, se considerarmos o que afirma Foucault (1988) sobre o fato de que a essência das teorias e práticas acerca da sexualidade na segunda metade do século XIX repousava sobre o conjunto perversão-hereditariedade-degenerescência, Richard von Krafft-Ebing, psiquiatra alemão, apresenta-se como um teórico de grande destaque na época, tendo sido citado tanto por Foucault quanto por Freud(1), no que diz respeito aos estudos sobre a sexualidade.
Pereira (2009) indica que o trabalho de Krafft-Ebing foi fundamental para que as diversas manifestações desviadas da vida sexual humana passassem a ser consideradas como transtornos médico-psiquiátricos, tendo sido capaz de unificar em um livro vários conhecimentos médico-psiquiátricos que circulavam de forma desordenada. Foi assim que Krafft-Ebing redigiu, em 1886, a sua Psychopathia Sexualis, obra de teor classificatório dos mais diversos comportamentos sexuais humanos. Trata-se de um pioneiro sumário médico sobre aquilo que viria a ser considerado como perversões.
Além da classificação, organização e discussão de vários tipos de perversões sexuais, Psycopathia Sexualis traz numerosos relatos de casos. Krafft-Ebing (1969) optou por descrever os detalhes mais chocantes dos casos em latim, visando a dificultar o acesso leigo a esse conteúdo. A obra, em seu título, já anuncia que pretende ser um estudo médico-legal das psicopatologias sexuais, para o uso de médicos e juristas. O autor descreve, nesse livro, diversas psicopatologias: paradoxia, anestesia e hipoestesia sexuais, hiperestesia sexual, sadismo, masoquismo, fetichismo, exibicionismo, homossexualidade, pedofilia erótica, gerontofilia, zoofilia, tendências amorosas singulares, autossexualismo e outras anomalias sexuais nas quais o instinto possui tendências contrárias.
Ao considerar quais seriam as origens das patologias, Krafft-Ebing (1969) parte da concepção de que as perversões possuem uma natureza hereditária e degenerativa. O psiquiatra alemão chega a diferenciar perversões adquiridas, que seriam ligadas a condições externas ao indivíduo, das perversões chamadas verdadeiras, que teriam natureza congênita e degenerativa.
Krafft-Ebing (1969) entende o instinto sexual como uma lei fisiológica. Ele afirma que o processo psicofisiológico que incorpora o conceito de instinto sexual é constituído tanto pelas representações que impulsionam ao contato corporal ou espiritual com outra pessoa, o que ele chama de instinct de contrectation, quanto pelas sensações que partem dos órgãos genitais e impulsionam a uma satisfação genital, o chamado instinct de détumescence.
A tese da degenerescência, por ele representada, entende que o instinto sexual possui uma natureza que repousa sobre a sua finalidade essencial: a reprodução da espécie. "A perpetuidade da espécie humana não está lançada à sorte, nem ao capricho dos indivíduos: um instinto natural a garante, e ele demanda imperiosamente, irresistivelmente satisfação" (Krafft-Ebing, 1969, p. 11, tradução nossa). De acordo com essa tese, existiria uma atração natural, recíproca e inescapável entre o sexo masculino e feminino que possuiria a sua fonte nos genitais de cada um. "Os indivíduos sexualmente diferentes se sentem mutuamente atraídos pelos benefícios do espírito e do corpo, e quando eles escolhem-se, eles mantêm os favores um pelo outro" (Krafft-Ebing, 1969, p. 13, tradução nossa). Tudo o que ultrapassa essa finalidade reprodutiva é considerado como uma perversão decorrente da degenerescência do instinto sexual.
A teoria degenerativa da sexualidade irá encontrar um sólido suporte na teoria evolucionista. O autor de Psycopathia Sexualis elogia alguns autores evolucionistas e utiliza algumas de suas formulações. Também afirma que as condições hereditárias exercem influência até mesmo sobre a libido e a virilidade. Ele compreende que "[...] se o desenvolvimento individual recapitula as etapas da filogênese, as aberrações sexuais surgem como distúrbios do comportamento ontogenético" (Valas, 1990, p. 13-14). A partir desse prisma, o autor alemão passa a entender o canibalismo como um modo primitivo da sexualidade e a origem da homossexualidade na bissexualidade originária da espécie e do embrião (Valas, 1990).
A primeira tópica freudiana e as perversões
A primeira tópica freudiana caracteriza-se pela tríplice divisão do aparelho psíquico: consciente, pré-consciente e inconsciente. Durante esse período de seu pensamento, Freud realizou diversas elaborações a respeito das perversões. Assim, pretende-se aqui destacar algumas dessas considerações, que se mostram valiosas para o entendimento das rupturas por ele promovidas em relação aos estudiosos da sexualidade perversa de seu tempo.
Nesse primeiro momento de seu pensamento, Freud ocupa-se de posicionar a perversão como algo inicialmente presente em todos os seres humanos. Trata-se aqui de retirar a perversão do estatuto patológico, para situá-la no campo do universal. A formulação freudiana sobre a sexualidade perversa polimorfa na infância (1905/1996) dá suporte para que se possa pensar a perversão enquanto paradigma da sexualidade humana.
No seu texto Fragmento da análise de um caso de histeria (1905[1901]/1996), é apresentado o caso de sua paciente Dora. Apesar de se tratar de um relato de histeria, o autor tece considerações fundamentais sobre as perversões que irão claramente posicionar o seu pensamento em relação a alguns de seus contemporâneos, como Krafft-Ebing.
No mesmo texto, as perversões sexuais são definidas como "[...] transgressões da função sexual tanto na esfera do corpo quanto na do objeto sexual" (p. 55). O autor indica ainda que existem certos germes da perversão em todas as crianças que são suprimidos e redirecionados para objetos mais "nobres" e mais valorizados pela cultura, o que configura o processo chamado de sublimação. No caso das perversões, há uma inibição de tal processo. Dessa maneira, todo ser humano teria possuído o germe da perversão em seu desenvolvimento psíquico e por tal motivo todos os neuróticos possuiriam inclinações perversas, que são recalcadas e tornadas inconscientes. "Por isso suas fantasias inconscientes exibem um conteúdo idêntico ao das ações documentadas nos perversos, mesmo que eles não tenham lido a Psycopathia Sexualis de Krafft-Ebing [...]" (Freud, 1905[1901]/1996, p. 56).
Freud (1905[1901]/1996) reforça ainda que os psicanalistas devem deixar de lado os próprios julgamentos e reações morais ao encontrar essas questões na clínica. O autor indica que a indignação que normalmente as manifestações perversas causam deve ser neutralizada por meio do questionamento sobre quais seriam os limites do que se chama de vida sexual normal. O que é do campo do normal na sexualidade modifica-se ao longo do tempo e de acordo com cada cultura. Freud ressalta que a homossexualidade, que é indicada em seu texto como a perversão mais detestável, era considerada normal e até mesmo exaltada na Grécia antiga. Também afirma que todas as pessoas fogem, em alguma medida, do que é considerado normal na vida sexual.
Assim, ele se afasta de uma linha de pensamento que considera as perversões como anormalidades, uma vez que questiona o que é normal e anormal e indica que, na verdade, elas encontram-se presentes até nos neuróticos, ainda que recalcadas. O autor afirma ainda que "As perversões não são bestialidades nem degenerações no sentido patético dessas palavras" (1905[1901]/1996, p. 55-56), opondo-se claramente às teorias degenerativas.
É ainda nesse texto que ele formula a sua célebre frase: "As psiconeuroses são, por assim dizer, o negativo das perversões" (1905[1901]/1996, p. 56). O autor também desenvolve esta noção no texto Sobre a psicopatologia da vida cotidiana, afirmando que os fantasmas inconscientes podem coincidir com os atos perversos (1901/1996). Em outras palavras, o que o perverso coloca em ato, o neurótico apenas fantasia.
Outro texto que também possui importância capital para o pensamento freudiano sobre as perversões é Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905/1996). No primeiro ensaio, ele separa dois tipos de aberrações sexuais: os desvios em relação ao objeto sexual e os desvios em relação ao alvo sexual. Como desvios do objeto sexual, enumera a inversão, os animais e pessoas sexualmente imaturas como objetos sexuais. Já sobre os desvios do alvo sexual, menciona as transgressões anatômicas e as fixações de alvos sexuais provisórios.
Jorge (2007) afirma que a homossexualidade era uma temática tratada por diversos trabalhos empreendidos pelos sexólogos anteriores a Freud. Segundo Pereira (2009), muitos médicos desse período investigavam sobre a natureza da homossexualidade e seus estudos nessa área normalmente buscavam estabelecer as diferenças entre a depravação e a natureza homossexual.
Para Freud (1905/1996), a homossexualidade trata-se de uma inversão do objeto sexual, que, em vez de ser uma pessoa do sexo oposto, torna-se uma pessoa do mesmo sexo. Estipula que os invertidos dividem-se em três tipos: absolutos, anfígenos e ocasionais. Afirma que a inversão ocorre devido tanto a um caráter inato quanto a múltiplas influências acidentais, mas diz que nem a hipótese do inatismo nem das influências diversas explicam sozinhas a origem da inversão.
No mesmo texto, critica a tese degenerativa, afirmando que o conceito de degeneração era utilizado indiscriminadamente e que, desse modo, poucos casos escapavam às classificações do que seria degeneração. Indica ainda que os invertidos não são degenerados, uma vez que não apresentam outros desvios graves à norma e que a sua eficiência no funcionamento em sociedade não está prejudicada. Freud também entende que a inversão não pode ser totalmente explicada pela dualidade entre o congênito e o adquirido.
Dos desvios do objeto sexual, ele extrai uma conclusão que será fundamental para a conceituação de perversão sexual: a de que a pulsão existe independentemente de seu objeto, pois ela não é determinada pelas excitações que este possa provocar, desempenhando os objetos um papel secundário.
Sobre os desvios com respeito ao alvo sexual, afirma que as transgressões anatômicas acontecem quando há uma supervalorização libidinal do objeto sexual, o que pode levar à supervalorização ou fetichização de determinadas partes do corpo do parceiro, e, em nível patológico, chega-se a substituir o ato sexual por práticas relacionadas a essa valorização. Também aqui fala sobre o sadismo como uma perversão manifestada ativamente, e sobre o masoquismo como uma perversão passiva que funciona como um retorno do sadismo sobre o próprio sujeito.
No segundo ensaio, intitulado "A sexualidade infantil", ele afirma que a pulsão é parcial e possui zonas erógenas, que são partes do corpo que se tornam sexualmente prazerosas, como a boca, o ânus e os genitais. A criança, ao longo de sua constituição psíquica irá ter as suas pulsões parciais constituídas a partir dessas zonas. Por tal motivo, a sexualidade da criança possui um caráter perverso-polimorfo, dada a existência de diversas fontes de prazer. Mais tarde, no período de latência, essa característica da sexualidade infantil será recalcada. Aqui também se percebe a noção freudiana de que todos possuem o germe da perversão, uma vez que todas as crianças possuem uma sexualidade perversa polimorfa.
Questões sobre as perversões na segunda tópica freudiana
A observação clínica de novos fenômenos relacionados à repetição leva Freud (1920/1996) à publicação do texto Além do princípio do prazer. Tais fenômenos diziam respeito a algo que ele reconhecia como um conteúdo que escapava ao princípio do prazer, que passará a ser identificado como a Pulsão de morte, em oposição à Pulsão de vida. Essa nova concepção vai contra o antagonismo anteriormente por ele defendido, que repousava entre Pulsões do eu e Pulsões sexuais. É formulada então a segunda tópica, que passa a considerar nova relação entre essa nova classe de pulsões, redimensionando assim a dualidade da primeira tópica já citada. É também nesse momento de seu pensamento, ao formular os enlaces entre o horror da castração e o fetichismo, que Freud categoriza a perversão como uma estrutura clínica, ao lado da neurose e da psicose (1927/1996).
Em Uma criança é espancada, Freud (1919/1996) pensa sobre as perversões, particularmente com o masoquismo, em um nível etiológico. Ele indica que nossas inclinações perversas podem desmanchar-se na infância ou podem tornar-se a base para a construção de uma perversão vitalícia. Nesse momento, o autor passa a entender que pode também haver um masoquismo primário, nomeando então a junção das duas tendências pulsionais primárias (sadismo e masoquismo primários) como pulsão sadomasoquista.
Ainda nesse contexto da segunda tópica, Freud (1924/1996) discute sobre a relação entre princípio do prazer e pulsões de vida e de morte para melhor entender o masoquismo. Ele aponta que, de acordo com o princípio do prazer, todo aumento de tensão psíquica deveria ser desprazeroso e todo alívio de tensão deveria ser prazeroso. Entretanto, diversas são as situações em que o contrário acontece, o que o leva a concluir que não se trata apenas de uma questão quantitativa em relação à tensão psíquica, mas também qualitativa. Formula então três configurações do masoquismo: erógeno, moral e feminino. Dessas diferentes apresentações do masoquismo, apenas o feminino - em que há uma negação da castração - pode tornar-se uma perversão masoquista propriamente dita.
Já no texto sobre o fetichismo, Freud (1927/1996) afirma que o perverso, aqui já definido em relação às três estruturas clínicas - neurose, psicose e perversão -, desmente a castração, criando um substituto para o falo que falta nas mulheres: o fetiche. Realiza-se um deslocamento do valor do pênis para outro objeto ou parte do corpo, por meio de um mecanismo chamado regressão. Trata-se de uma defesa frente à angústia da castração, pois ao desmentir a castração da mãe, a criança protege-se da sua própria. Diante do que não há no corpo da mãe, o perverso recusa esse fato e opera uma regressão da qual o objeto fetiche é o paradigma. O sujeito, diante da falta reconhecida no corpo da mãe, desmente esta "visão", fixando-se no ponto em que o seu olhar anteriormente parou, elegendo aí objetos que passam a funcionar como substitutos do objeto que o sujeito "não viu", como peças do vestuário feminino. O fetiche ocupa o lugar do falo faltoso e com isso o perverso se protege do horror da castração. Freud observa que a especificidade do fetiche é que ele seja uma condição para que o sujeito tenha acesso ao sexo.
Não é verdade que, depois de a criança ter feito sua constatação a respeito da ausência de pênis na mulher, ela tenha resgatado intacta sua crença de que as mulheres possuam um falo. Ocorre que a criança ao mesmo tempo manteve essa crença, mas também a abandonou. No conflito entre o peso da percepção indesejada e a força de seu contradesejo, ela chegou a um compromisso intermediário, tal como só poderia ocorrer sob a égide das leis inconscientes do pensamento - os processos primários. Sim, em sua psique, a mulher teve um pênis, mas esse pênis não é mais o mesmo que antes. Outra coisa tomou seu lugar e tornou-se um substituto, de modo que esse substituto herda agora todo o interesse anteriormente dirigido a seu predecessor (1927/1996, p. 162).
O perverso vai oscilar sempre entre negar e reconhecer a castração, apresentando uma postura dividida em relação a isso. Como indica Freud (1919/1996), a castração encontra a sua expressão mais clara no vai e volta entre o desmentido e o reconhecimento: "[...] os fetichistas têm uma atitude cindida em dois. Em casos especialmente refinados, tanto a renegação, quanto a castração se infiltram na constituição do fetiche" (Freud, 1927/1996, p. 165).
Considerações finais: Sobre as inovações de Freud em relação aos estudos sobre a sexualidade perversa de sua época
A partir do que foi exposto, é possível perceber que Freud não trabalha apenas descrevendo e classificando as manifestações perversas no nível dos fenômenos que se apresentam a ele na clínica, como era característico dos autores de sua época na abordagem das perversões. Krafft-Ebing, mesmo levantando algumas teorizações sobre a questão instintual e os seus desvios, não chega a criar uma teoria de fato, como faz Freud. Por meio da
Psicanálise, tornou-se possível teorizar sobre as perversões tanto como um paradigma da sexualidade humana quanto como uma estrutura clínica específica, como são as neuroses e as psicoses, causando assim uma revolução no campo dos estudos sobre a sexualidade.
No início deste artigo, foi exposto como Foucault (1988) demonstra que, na modernidade, o julgamento moral perdeu espaço para o dualismo "normalidade versus patologia", no que diz respeito à sexualidade humana. Dualismo este que é tão característico dos trabalhos dos psiquiatras e sexólogos do final do século XIX, período em que Freud também inicia suas investigações psicanalíticas.
Diante do que foi aqui apresentado, é possível afirmar que, com Freud, surge um novo conceito de sexualidade. Como aponta Jorge (2007), formulações de cunho teórico sobre o assunto são construídas por Freud em um momento no qual os demais autores expunham seus casos clínicos sem diálogo algum com uma construção teórica de base. Como já se disse, a psicologia associativa de Binet e a teoria da degenerescência de Krafft-Ebing são exemplos de concepções que se situavam na antiga dicotomia médica entre hereditário e adquirido, pensando-a em relação aos problemas levantados pela sexualidade, sem que nenhum conceito específico pudesse ser extraído desse debate.
É inegável que estes autores foram responsáveis por lançar uma importante problemática sobre a sexualidade, introduzindo-a no campo da ciência. Freud, no entanto - como afirma Jorge (2007) -, vai além, pois pensa na sexualidade humana em sua ruptura com o que é natural. Na Psicanálise, tal categoria será pensada como outra versão da natureza, como uma père version. Com Freud, não se trata mais de estabelecer indicadores de normalidade e utilizá-los como parâmetros para considerar o patológico, mas sim de situar a natureza no campo da norma e de situar o humano como, necessariamente, perversão da norma.
Como nos lembra Marques (2010), a noção de instinto categorizava como perverso todo comportamento sexual que não levasse à procriação. Freud também inova a partir de sua noção psicanalítica de pulsão, em contraposição à concepção de instinto sexual presente nas teorias degenerativas. Ele sustenta que a pulsão é parcial e não contempla apenas a função biológica da reprodução, não permitindo então que a sexualidade humana seja restrita à genitalidade. Com isso, o conceito de pulsão subverte o tratamento conferido até então à sexualidade humana, promovendo uma ruptura em relação à oposição entre inato e adquirido, assim como entre normal e patológico, oposições antes sustentadas pelos trabalhos dos sexólogos e psiquiatras pré-freudianos.
A partir dos desdobramentos das formulações teóricas freudianas acerca da sexualidade em torno da noção de perversão, é possível chegar à conclusão de que não há como identificar as perversões apenas no nível dos fenômenos, especialmente na clínica psicanalítica. É preciso que se leve em consideração o inconsciente e suas relações com a linguagem. Também com relação a esse ponto, é notório o quanto se distancia e inova o trabalho de Freud acerca das perversões em relação aos teóricos da sexualidade do final do século XIX, que trabalhavam tanto na clínica quanto em suas produções teóricas, a partir da nosografia e de obras de molde inventário.
Nota
(1) Freud (1905/1996), ao escrever os "Três ensaios sobre a sexualidade", coloca-se a partir de vários teóricos de sua época que escreviam sobre o tema. No primeiro ensaio, Freud afirma, em nota de rodapé, que as suas considerações referenciam-se a alguns autores: Krafft-Ebing, Moll, Moebius, Havelock Ellis, Schrenck-Notzing, Löwenfeld, Eulenburg, Bloch e M. Hirschfeld. Cita ainda as publicações do Jahrbuch für sexuelle Zwischenstuffen.
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Recebido em: 20/04/2016
Aprovado em: 18/10/2016