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Trivium - Estudos Interdisciplinares
versão On-line ISSN 2176-4891
Trivium vol.10 no.1 Rio de Janeiro jan./jun. 2018
https://doi.org/10.18379/2176-4891.2018v1p.103
ARTIGOS LIVRES
Tragédia e Psicanálise: um ensaio sobre o herói grego*
Tragedy and Psychoanalysis: an essay on the greek hero
Tragedia y Psicoanálisis: un ensayo sobre el héroe griego
João Milton Walter TavaresI; Paulo José da CostaII
IDoutorando pela Universidade de Brasília. Mestre em Psicologia pela Universidade Estadual de Maringá. Endereço: SHIS QL 19, Conjunto 6, casa 12 - CEP: 71640-265 - Brasília, D.F. E-mail: joao_milton@hotmail.com
IIProfessor adjunto na Graduação e na Pós-graduação em Psicologia da Universidade Estadual de Maringá, coordenador do Grupo de Estudos e Pesquisas em Psicanálise e Desenvolvimento Humano - CNPq-UEM. Endereço: Rua Campos Sales, 255 - ap. 102 - CEP 87.020-080 - Maringá, P.R. E-mail: pjcosta@uem.br
RESUMO
Neste ensaio, parte-se da mitologia grega, explorando a figura do herói trágico, em direção à teoria psicanalítica. Como subsídio para as reflexões aqui apresentadas foram eleitas duas obras guias: a "Ilíada" de Homero e "Héracles" de Eurípides. A primeira obra é uma epopeia, porém, no decorrer do trabalho, aborda-se uma possível leitura trágica sobre Aquiles contida na narrativa; a segunda é uma tragédia clássica e, portanto, contando com elementos bem definidos de protagonismo do herói e com a presença de um coro. Em relação à teoria psicanalítica, parte-se do mito do herói apresentado por Freud no livro "Psicologia das massas e análise do eu".
Palavras-Chave: MITO DO HERÓI; HÉRACLES; AQUILES; HORDA PRIMEVA.
ABSTRACT
In this essay, we start from Greek mythology exploring the figure of the tragic hero to psychoanalytic theory. As a support for the ideas presented here two main works were chosen, the "Iliad" by Homer and "Herakles" by Euripides. The first text is an epic, but we show that a possible tragic reading on Achilles is contained in the narrative; the second one is a classic tragedy with well-defined elements of the role of the hero and the presence of the choir. Regarding the psychoanalytic theory, it starts from myth of the hero presented by Freud in his book "Psychology of the masses and analysis of the ego".
Keywords: HERO MYTH; HÉRACLES; ACHILES; PRIMAL HORDE.
RESUMEN
En este ensayo se parte de la mitología griega explorando la figura del héroe trágico para la teoría psicoanalítica. Como subsidio para las reflexiones aquí presentadas fueron elegidas dos obras guías a la "Ilíada" de Homero y "Heracles" de Eurípides. La primera obra se trata de una epopeya, pero en el transcurso del trabajo se aborda una posible lectura trágica sobre Aquiles contenida en la narrativa, la segunda es una tragedia clásica y, por lo tanto, con elementos bien definidos de protagonismo del héroe y la presencia XXXX del coro. En relación a la teoría psicoanalítica se parte del mito del héroe presentado por Freud en el libro "Psicología de las masas y análisis del yo".
Palabras clave: MITO DEL HERÓI; HERACLES; AQUILES; HORDA PRIMITIVA
A Mitologia e a Psicanálise
Migliavacca (2004) diz que os mitos se remetem a tempos anteriores à escrita. O mito é, antes de tudo, portanto, uma informação oral passada de geração a geração, sobrevivendo através da passagem do tempo. O mito é uma forma de explicar o mundo, uma metáfora das experiências vividas pelos homens para se dizer algo que não se sabe dizer de outra forma. A sobrevivência do mito através dos mais diferentes tempos, no decorrer das civilizações humanas, dá-se por meio da linguagem metafórica utilizada, pois os símbolos permitem uma identificação com o homem, independentemente do tempo em que este tenha contato com eles. A metáfora pode-se transvestir de acordo com a necessidade e os anseios de quem a ela recorre em dado momento.
Para Campbell (1988/1990), os mitos são histórias que narram a humanidade em sua busca pela verdade, pelo seu significado. O ato de contar histórias é tão antigo quanto o próprio homem. Os mitos nascem nas buscas interiores e têm a finalidade de responder aos mistérios, uma tentativa de entender aquilo que é vivenciado.
Otto Rank (1909/1961) e Campbell (1949/1955) apontaram que diferentes culturas continham os mesmos elementos em suas mitologias, que a figura do herói era algo presente, e fizeram uma investigação apresentando pontos em comum sobre os heróis de algumas culturas. O mito do herói, por ser transmitido essencialmente pela comunicação oral - que é marcada por alta mutabilidade - foi ressignificado pelos diferentes povos, para que, a partir de sua nova modelagem, satisfizesse as expectativas humanas que ali se viessem a encontrar.
A teoria psicanalítica tem questões centrais enraizadas no pensamento mítico. Freud utilizou os mitos, e principalmente a mitologia grega, como fonte para o amadurecimento do pensamento psicanalítico. A psicanálise utiliza os mitos como ferramenta para compreender a psique humana, tendo desenvolvido, a partir deles, conceitos e linhas de pensamento centrais para a teoria psicanalítica. Lazslo (2002) identifica esses conceitos centrais da psicanálise que têm por fonte a mitologia de mitos psicanalíticos: o Complexo de Édipo, o Falo e a Castração, a Horda Primitiva, as Protofantasias, a Cena Originária, a Pulsão, Eros, Thánatos e o Inconsciente. Para o autor, esse é o eixo mítico da teoria psicanalítica.
Como complemento a esse eixo mítico destacado por Lazslo (2002) na teoria psicanalítica, acrescentamos também o mito do herói. Para Freud (1921/2011a), é pelo mito do herói que o indivíduo consegue libertar-se de uma psicologia de massa para uma psicologia individual.
O Mito do Herói na Obra Freudiana
O mito do herói remete-se ao mito da horda primitiva trabalhado por Freud (1913/2012) em seu livro "Totem e tabu". Quando os homens se organizavam em horda, existia a figura de um líder absoluto enquanto os outros indivíduos seguiam um esquema de funcionamento de massa, isto é, todos, excluindo o líder, compartilhavam dos mesmos elementos psicológicos.
Dessa forma, distinguiam-se na horda primitiva dois tipos de funcionamento psíquico: o primeiro é exclusivo do pai que dominava a horda primitiva. Sendo tirânico, ciumento, agressivo e controlador, era o único que obtinha a plena satisfação de todos os seus desejos e a cujas vontades e satisfações todos estavam submissos. As fêmeas eram sua exclusividade, o que obrigava os outros machos a viverem em abstinência sexual. Seu funcionamento psíquico era livre, não havia privação. Como era o único membro do grupo neste papel, Freud (1921/2011a) chamou o esquema psicológico que regia este único membro de psicologia individual. O segundo tipo de psicologia é o de massas, o que restava para todos os outros membros da horda, segundo Freud (1921/2011a). São todos os filhos deste pai tirânico, submissos; estavam psiquicamente ligados entre si, compartilhavam na horda primitiva o mesmo papel e possuíam os mesmos direitos e deveres. A eles era vedada a satisfação sexual, o que lhes acarretava uma alteração de meta e de objeto da pulsão sexual, ou então um acúmulo da libido.
Em algum momento, os filhos rebelaram-se contra o pai tirânico. O bando reúne-se e mata o pai. Esse momento mítico da história da humanidade é considerado o primeiro contrato social, a primeira forma de organização entre os homens que não seja pela imposição da força. Após a rebelião e o assassinato, o remorso e o medo dominaram os irmãos, em decorrência da culpa pela morte daquele pai, que ocupava um papel ideal para eles, que era a idealização de força e segurança.
O mito do herói encaixa-se neste ponto da trajetória da horda primitiva. O único indivíduo até então regido por uma psicologia individual era o pai. Freud (1921/2011a) presumiu o mito do herói ao ver como aqueles, que eram regidos pela psicologia de grupo, migraram para um funcionamento psíquico individualizado. Para isso ocorrer, foi necessário que um indivíduo se desligasse psiquicamente do grupo e assumisse, em sua fantasia, o papel do pai, a figura que era regida por um funcionamento mental individual. Para assumir este papel, Freud (1921/2011a) coloca que este indivíduo tomou mentalmente para si o feito do bando, isto é, em seu devaneio enfrenta e derrota a figura tirânica do pai e assume a sua posição. Vale ressaltar que, ao final desse elaborado processo psíquico, tal indivíduo passa a ser psicologicamente a figura paterna com todas as suas prerrogativas já citadas. Freud (1921/2011a) chama esse indivíduo de primeiro poeta épico, porque a ele é creditada a invenção do mito heroico. O herói é aquele que toma para si o que apenas poderia ter sido feito pela horda como um todo, o assassinato do pai. Freud (1921/2011a) relata que, dessa forma, o poeta cria o primeiro ideal do Eu.
Esse ideal do Eu são as características creditadas fantasiosamente pelo indivíduo a si próprio para lhe dotar das capacidades necessárias para o enfrentamento do pai. O primeiro poeta épico tomou para si a posição narcísica que a figura do pai primordial ocupava. Freud (1921/2011a) coloca o mito do herói como aquele que possibilitou a individualização, isto é, a passagem da psicologia das massas para uma psicologia individual.
Se o mito do herói é o que nos impulsiona para uma independência psíquica, para a possibilidade de um investimento narcísico, todo indivíduo tem entranhado em si a figura heroica. Eis a condição única e necessária para herdar a independência psíquica e estar apto para compactuar do contrato social que garante, pela renúncia de certos desejos por parte dos envolvidos, isto é, dos homens que compartilham algum tipo de comunidade, a manutenção do status quo que subsidia o viver em sociedade.
O Herói e a Tragédia
Elegemos aqui a figura do herói trágico na mitologia grega como objeto para sobre ele nos debruçarmos. O herói grego está entre os deuses e os homens, é um semideus, que possui a força e coragem dos deuses, porém tem a condição humana da mortalidade, como coloca Silva (2014). É fadado a essa ambiguidade, é naturalmente um transgressor dos limites a ele impostos como mortal que é. O herói é um ser ambíguo por excelência, de constituição divina e humana, carrega em seus ombros toda a responsabilidade de ambos os mundos.
De acordo com Silva (2014), o herói tem pretensões de equiparar-se aos deuses e, justamente essa pretensão é a fonte de sua desmedida, pois suas ações transgridem as regras comuns aos homens e revelam ainda mais a humanidade do herói. Ele acaba por perceber as consequências de seus atos ao ser ele próprio o causador do seu destino, por sua insolência e orgulho. Em uma situação específica em que o herói é levado a tomar decisões extremas, ele manifesta a desmedida (Silva, 2014).
Versiani (2008) explica que o herói é constituído por paixões e excessos, o desejo é representado como o perigo que leva ao enfrentamento da morte. As tragédias gregas abordavam a questão de o herói transgredir a figura de autoridade, decidindo em favor da realização do desejo em detrimento das leis sociais, e esse ato impunha-lhe sofrimentos verdadeiramente humanos. A autora fala que o herói é aquele que deve padecer, pois carrega em si a culpa trágica.
Aquiles e Héracles
Para avançar em nossa proposta elegemos trabalhar com os heróis Aquiles e Héracles, protagonistas das obras "Ilíada" de Homero e "Héracles" de Eurípides, respectivamente. Essas personagens ilustram suficientemente bem o herói trágico grego. Partiremos das peculiaridades presentes nessas duas narrativas para uma interlocução com a teoria psicanalítica acerca da figura do herói.
Partimos da hipótese de Pinheiro (2011), acerca da existência de elementos trágicos na "" no que se refere a Aquiles, mesmo que de forma incipiente, já que a obra é uma epopeia. Sabemos que o herói trágico busca a verdade em si e também compreende quem é e qual é seu lugar no mundo. Desse modo, o herói trágico é transgressor de seus limites e depara-se com as consequências de suas ações que o colocam frente a frente com o seu verdadeiro eu. As ações do herói proporcionam uma autorreflexão sobre sua natureza, proporcionando uma lucidez sobre si. A "Ilíada" ainda não traz explicitamente este movimento de descoberta de si no herói como ocorre nas tragédias, mas, como já alertou Lesky (1937/1996), nas epopeias homéricas é possível encontrar aspectos que se desenvolverão nos séculos posteriores e culminarão na tragédia. Logo, há em Aquiles aspectos deste herói trágico que possibilita essa compreensão.
O aspecto trágico em Aquiles aborda aquilo que se relaciona à sua mortalidade. Durante a "Ilíada", a questão da morte é bastante explícita. Aquiles é avisado claramente por sua mãe, a deusa Tétis, sobre a escolha que terá de fazer: ou opta por lutar na guerra de Troia e seus feitos serão gloriosos, porém terá uma vida breve; ou decide retornar para casa de seu pai e terá uma vida longa, mas fadada ao esquecimento. A glória é o objetivo de participar da guerra de todo herói, ter seu nome ecoando pelas futuras gerações através das canções dos bardos e como protagonistas de lendas; o custo, porém, de concretizar esse objetivo é, para Aquiles, altíssimo.
Tétis demonstra explícita preocupação durante toda a obra. O ponto de maior destaque é quando vai até o Olimpo pedir ao deus Hefesto que forjasse uma nova armadura para Aquiles. De toda a armadura forjada pelo deus para Aquiles, o item que se sobressai é o escudo. Ironicamente, o deus entalhou no escudo aquelas que são as linhas que mais nos fazem fugir do ambiente de guerra retratado na obra. Alexander (2009/2014) observa que Hefesto não colocou no escudo as imagens que são mais associados à guerra, mas, pelo contrário, fez uma descrição de um cenário de paz e tranquilidade, descreveu a vida comum. Podemos pensar que descreveu os frutos colhidos por aqueles que retornam da guerra. Aquiles levará à sua frente para o combate contra os troianos aquilo de que estava a abdicar com a decisão de lutar, a saber, o retorno ao cotidiano, à vida comum. O herói estava ciente de que ao optar por vingar-se de Heitor pela morte de Pátroclo e de outros companheiros que morreram por conta de sua ausência, abria mão de toda a vida que conhece. O escudo é um artefato de defesa na armadura de um guerreiro, mas, no caso de Aquiles, parece ter uma segunda função, mostrar para o mais temível dos homens, como recorrentemente é designado Aquiles, a vida que não poderá ter, caso venha a utilizá-lo (Alexander, 2009/2014).
Já em Héracles, protagonista de uma tragédia grega, a figura do herói trágico é mais explícita. O cenário inicial da peça é bastante tenso e, juntamente com uma necessidade de urgência posta desde as primeiras linhas da tragédia, gera uma agoniante expectativa do retorno do herói que se encontrava fora para a realização do último trabalho a que se vira obrigado por Euristeu. O primeiro terço da peça é utilizado para preparar a entrada de Héracles na ação. Mesmo ausente, todos falam sobre o herói, descrevendo suas ações e capacidades, exaltando sua superioridade.
Héracles vai além do limite imposto para os homens, não conhece a derrota, nem a limitação eminente da natureza humana. Reconhecendo que Héracles, por suas atitudes, transpõe a distância que separa os homens dos deuses, Hera decide puni-lo. Franciscato (2003) ressalta que é evidente a motivação de Hera ao punir o herói, na fala de Lissa: "Ou os deuses de nada valerão /e grandes serão os mortais, se não for punido" (Eurípides, s.d., p. 119). Héracles, como mortal que era, não podia ser equiparado aos deuses imortais.
A loucura é a punição enviada por Hera por intermédio de Lissa. Héracles, enlouquecido, mata sua esposa e seus filhos, pensando serem estes os filhos de Euristeu. O herói utiliza para matar a família as mesmas armas que utilizou para realizar suas façanhas e receber toda a glória que lhe é creditada. Quando ia matar Anfitrião, seu pai adotivo, Atena coloca o herói em um sono profundo. Quando Héracles desperta percebe tudo o que acabara de fazer. É necessário para a tensão da trama que a grandeza do herói seja supervalorizada em um primeiro momento. A mudança repentina do status de Héracles é o elemento dramático da peça, passa da mais alta glória até a terrível desgraça.
As armas soam como uma materialização da culpa do herói. São elas que tornam os seus feitos reais, tanto os reconhecidamente grandiosos como a sua última ação, o pior de todos os seus feitos. As armas são, para Héracles, a concretização daquilo que existe de mais potente e de mais impotente em si (Franciscato, 2003).
Quando Héracles acorda do sono após a loucura, vê-se diante de duas decisões. A primeira é se deve tirar ou não a própria vida. A segunda, se deve manter as próprias armas, já que elas lhe recordam os seus feitos. Franciscato (2003) aponta que a aceitação das armas é, na realidade, uma aceitação de si. As duas decisões perpassam pela mesma questão: aceitar a capacidade dual presente em si, pacificar o impulso transgressor. As características que o tornam singular dentre os outros mortais, seu poder e sua força, não dispensa o herói de sua humanidade e, portanto, as condições e limites que se impõem ao herói.
O Herói Trágico e a Teoria das Pulsões
Aristóteles, na "Poética", explica que a tragédia deve seguir um sentido, da felicidade para a infelicidade. E o que leva a esse movimento trágico é uma falha cometida pelo herói, o erro trágico. Lesky (1937/1996) aborda essa questão dizendo que Aristóteles não se referia a um erro moral, mas a uma falha que nada tem a ver com a relação da intencionalidade dos atos do herói, um "erro sem culpa" (p. 44). Durante o desenrolar da tragédia, o erro trágico do herói foi originado por algo constitucional do personagem.
Mas, afinal, de que se constitui essa culpa atribuída ao herói? E, visto que esse erro é algo essencial para a tragédia, como escrevera Aristóteles, e vai além da falta moral, como podemos entender o seu significado? Pastore (2012) afirma que o sentido do trágico faz-se na dualidade, pois o herói é formado por sentimentos opostos, situando-se entre a culpa e a inocência, a lucidez e a cegueira, a loucura e a sanidade, sendo composto pelo inconciliável. O herói é inconsciente quanto à sua real natureza; porém, a ele é negado o direito de alegar o desconhecimento desta contradição que o define. Acaba impulsionado a cometer uma falha que terá consequências e da qual será responsabilizado. Da mesma forma, a visão de homem da teoria psicanalítica mostra que o indivíduo é constituído de conteúdos inconscientes. Tanto o herói, para a tragédia grega, quanto o homem, para a psicanálise, são formados por elementos inconscientes e ambos são incumbidos pela responsabilidade de suas ações.
Freud (1933/2010b), ao citar a teoria das pulsões, afirma que elas são nossa mitologia. Tanto os mitos como as pulsões, na psicanálise, são conteúdos indeterminados, mas sempre presentes. É possível estudar os mitos e as pulsões a partir das suas consequências: os mitos, a partir dos textos que se inspiraram nos mitos originais, e as pulsões, na forma como incidem no aparelho psíquico. É possível estudar as pulsões pelo que elas produzem no psíquico, assim como só se podem estudar os mitos por meio do que produzem na cultura.
As pulsões são forças opositoras que constituem o próprio homem, Freud (1933/2010b) explica que os dois tipos de pulsão são a pulsão de vida, também conhecida como Eros, pulsão sexual no sentido amplo do termo, que tem como característica um ímpeto agregador; e a pulsão destrutiva, carregada de agressividade, denominada de pulsão de morte ou Thánatos. Freud (1932/2010a) explica que esta classificação é a teorização da oposição entre amor e ódio. A primeira tem por finalidade a conservação e a união; é a partir desta pulsão que surgem a relação emocional com objetos externos, como uma relação amorosa, e a identificação, que representam todos os esforços para a manutenção da vida; já a segunda leva o homem ao ímpeto da destruição. É a partir desta segunda pulsão que o homem chega ao prazer pela agressividade. É a responsável pelas ações do homem que se direcionam ao estado inanimado, isto é, à morte. Freud (1932/2010a) alerta, porém, que o impulso de aplicar-lhes o caráter moral de bem e mal deve ser freado, pois as duas pulsões atuam de forma indissociadas. As pulsões parecem estar sempre amalgamadas, em variadas proporções, uma com a outra. As duas podem atuar tanto no próprio indivíduo quanto no mundo externo, e a incidência de uma não significa a ausência da outra. É necessário que se compreenda essa característica das pulsões para não cometer um julgamento simplista da teoria freudiana. Elas são marcadas por um paradoxo interno, são forças opostas que atuam ao mesmo tempo, porém não se anulam, em um processo de fusão e defusão.
O conflito e a ambiguidade encontrados no homem estão nesse esquema de funcionamento. As duas pulsões, de naturezas opostas, coexistem e podem atuar conjuntamente, demarcando a presença do erotismo e da destrutividade investidos no mesmo objeto.
O herói de uma tragédia vive a experiência trágica que é o excesso, o atravessar limites impostos aos homens e o aproximar-se daquilo que é exclusivo das divindades, o desejo pela transgressão (Pinheiro, 2011). O herói transita em dois mundos, o humano e o divino. O primeiro de caráter normativo, fadado aos mortais; já o segundo é transgressor, sem regras ou limites, exclusivo para os imortais. O herói, ao se aventurar por estes dois mundos, vive o paradoxo: ao mesmo tempo em que é obrigado a seguir as regras, tem o ímpeto de transgredi-las.
A partir de uma reflexão sobre as ações dos heróis gregos, pode-se afirmar que é visível na trajetória do herói a lógica pulsional aqui apresentada. A transgressão feita pelo herói não é fruto exclusivo de uma ou de outra pulsão, nem apenas de Thánatos, nem somente de Eros, mas a partir do entendimento do conceito de fusão pulsional, podem-se verificar tanto a ascensão quanto a queda do herói.
A vida psíquica humana é constituída por uma dualidade entre as pulsões que atuam nos mesmos objetos, o herói trágico apresenta uma contradição irresolvível acerca da sua natureza. Vernant (1996/2001) afirma que em uma tragédia o homem é o ponto central, a tragédia é um instrumento para a exposição dos fenômenos humanos e tem por objetivo a exposição dessa realidade inconciliável no indivíduo. Pode-se pensar, portanto, que a natureza ambígua do herói trágico se revele como uma metáfora da complexa trama pulsional humana.
No mito, encontram-se as duas forças que atuam sobre o herói. A primeira delas é a perspectiva normativa do mito, aquela que limita e define as regras atuantes na personagem; a segunda, a transgressora, carregada de excessos e de desmedidas, que leva além do permitido, mostra um impulso ilimitado do herói, que se aventura pelo proibido e pelo desconhecido.
A coexistência de duplos opostos, tanto no homem como nos mitos, demarca uma discussão fundamental presente na relação entre a perspectiva transgressora versus a perspectiva normativa, e a pulsão de vida versus a pulsão de morte. Versiani (2008) afirma que os mitos têm um importante objetivo de manutenção da civilização, pois é por meio deles que o homem consegue lidar com suas pulsões internas, apaziguando-as e, dessa forma, promover uma ordem social, que impõe sacrifícios para o próprio homem e faz com que sejam aceitas as regras básicas da civilização. Em uma tragédia, há a presença da perspectiva normativa e da perspectiva transgressora, forças opostas que se colocam em um conflito imposto ao herói; da representação do próprio homem ao ter de lidar com as diversas normas civilizatórias impostas pela ordem social, que o obriga a uma adequação pulsional perante essa realidade.
Por meio dos heróis Héracles e Aquiles, é possível fazer correlações entre o herói trágico da mitologia grega e o herói psicanalítico apresentado por Freud (1921/2011a). A figura do herói trágico auxiliará o raciocínio sobre alguns conceitos trazidos pela psicanálise.
Sobre Aquiles e Héracles como Representação da Horda
A guerra de Troia durou dez anos e a "Ilíada" retrata alguns dias do último ano da guerra. A narrativa começa quando a guerra se dirige a um desfecho: a partir do autoexílio de Aquiles, o domínio da situação passa a ser dos Troianos, e, em seguida, com o retorno do herói às batalhas por causa do desejo de vingança pela morte de Pátroclo, ocorre a inversão e, finalmente, os gregos têm uma vitória significativa sobre os sitiados. Somente a partir do relatado pela "Ilíada" é que Aquiles tornou-se excessivo, que apresentou as características que o definem como um herói. Em outras palavras, durante nove anos, a postura de Aquiles não o diferenciara dos demais homens, foi necessária sua ira desmedida para alterar o cenário estabelecido. Aquiles, sozinho, realiza aquilo de que o exército grego fora incapaz, conseguir combater todo o exército troiano. A mesma característica encontra-se em "Héracles", pois todos os habitantes da cidade de Tebas achavam-se oprimidos pelas ações de Lico, o tirano governante que tomara o lugar de Creonte, depois de assassiná-lo. Nem mesmo toda a cidade, porém, fora capaz de se defender do novo governante. Héracles surgiu como o salvador que, sozinho, consegue realizar o que a população de Tebas não conseguira, mas deveria ter conseguido. Nesses dois exemplos, há um desenho bastante parecido com aquele proposto por Freud (1921/2011a) para o mito heroico. O herói realiza aquilo que somente a horda, em sua totalidade, poderia fazer, tendo acumulado em si o poder somado de todos os homens, e que era o desejo geral.
Retornemos o mito freudiano do herói. Freud (1921/2011a) explica que o herói é aquele que assume o feito de toda a horda para si e realiza o que somente todos juntos poderiam realizar. Aquiles e Héracles cumprem exatamente esse papel. Sozinhos, fizeram o que somente seus pares juntos poderiam fazer. Tanto Aquiles e Héracles, como o herói de Freud, são compostos pela mesma característica: a representação do somatório dos seus iguais.
A realização do desejo da horda, como foi visto, é livrar-se da tirania do pai, porém isso acarreta a perda da figura paterna centralizadora e, desse paradoxo entre o desejo da transgressão da norma e a supressão do desejo, surge o causador da dualidade heroica. Pode-se encontrar a culpa trágica tanto em Héracles como em Aquiles - e neste último, alguns elementos que mostram traços desta culpa, oriunda de um erro cometido por ele.
Quando Aquiles confronta Agamêmnon, faz um desafio à hierarquia. Como demonstra Alexander (2009/2014), Aquiles vê-se em igual direito que Agamêmnon, mesmo sendo este um rei. Tal ato já demonstra o impulso à transgressão por parte de Aquiles, o ato de rebelar-se contra o rei é ir contra o status quo daquele arranjo social em que se inseria.
A natureza heroica de Aquiles iria levá-lo a cometer o erro provocador da ruptura com a ordem social se viesse a participar da guerra troiana, isto é, o herói iria ser levado à transgressão e, em razão disso, a punição não tardaria em chegar, após seus atos transgressivos. No caso de Aquiles, tal punição seria a morte breve do herói. A decisão de Aquiles de tomar parte na guerra de Tróia estava ligada diretamente à mortalidade do herói.
Em Héracles, ocorre também uma ruptura da ordem social. O herói, que é irrefreável diante da adversidade e realiza tudo aquilo que se propõe a fazer, não conhecia a face da derrota. Tal tipo personalidade é incompatível com um mortal e também com a vida nas cidades gregas, como observa Franciscato (2003). Um dos exemplos dos excessos de Héracles é que sua chegada à cidade de Tebas seja comparada à chegada de Zeus. Em outro momento, sua potência é comparada à do deus Apolo. Héracles transpõe o abismo que separa os mortais e os imortais ao ser comparado a dois deuses, é posto pelos cidadãos tebanos na mesma posição de um deus salvador. Por essa característica, Héracles não se enquadra na condição de um homem capaz de viver a vida em sociedade, é preciso que seja punido e passe por um declínio social, para somente então, poder viver entre os homens, como faz no final da tragédia, ao acompanhar seu amigo Teseu para a cidade de Atenas.
O herói do mito freudiano é também responsável pela ruptura da ordem social, pois o poeta, ao narrar o mito do herói, "...desce até à realidade e eleva seus ouvintes até à imaginação. Mas os ouvintes entendem o poeta, eles são capazes de identificar-se com o herói a partir da mesma relação nostálgica com o pai primevo" (Freud, 1921/2011a, p. 103).
Freud (1932/2010a), ao falar sobre a estrutura social, explica que, durante a evolução da cultura humana, é chegado um momento em que se percebeu que a união de diversas forças menores se sobrepunha à força maior de um indivíduo. O poder que agora é compartilhado por um grupo comum está pronto para voltar-se contra todo indivíduo que novamente tentar impor sua vontade sobre os demais.
Tanto Aquiles quanto Héracles são punidos por se destacarem de seus iguais. Ao acumular sobre si a realização do desejo de toda a horda, os heróis entraram em um campo proibido, pois alguns desejos não podem ser realizados em detrimento da manutenção das regras sociais e, caso isso ocorra, para Freud (1932/2010a), a violência de toda a horda é dirigida a este homem.
Sobre uma Leitura Psicanalítica da Tragédia Grega
Em "Héracles", de Eurípides, encontramos a descrição feita por Freud (1913/2012) sobre a relação entre o herói e o coro na tragédia: tem-se uma personagem diferenciada de todo o resto e um coro, que se põe ao lado do herói, torce por ele durante as suas ações e se compadece durante a sua queda. Héracles realiza o que todo o coro deseja. Freud (1913/2012) afirma que o herói trágico é o representante do pai primevo, e que o herói deve arcar com a responsabilidade que seria de todo o coro, a culpa trágica recai sobre o herói.
Quanto a representação do pai primevo pelo herói trágico, tem-se um entendimento de que o herói do mito freudiano inicialmente se identificou com a figura do pai primevo, e, em resolução parecida com o que ocorre no complexo de Édipo no indivíduo, ocorreu um retorno da energia libidinal que estava dirigida a um objeto externo para um investimento no próprio indivíduo, uma espécie de narcisismo secundário. Em outras palavras, a libido que anteriormente era dirigida ao pai, passa a ser investida novamente no próprio herói. Para utilizar a mesma terminologia que Freud (1923/2011b), pode-se afirmar que ocorre um precipitado da identificação do pai primevo em um ideal de Eu no herói. O pai passa a ser parte integrante do herói, como propõe Freud (1921/2011a): "Assim como o pai fora o primeiro ideal do garoto, agora o poeta criava o primeiro ideal do Eu no herói que substituiria o pai" (p. 102).
Assim, como ocorre no complexo edípico individual, ao internalizar-se essa identificação objetal, tem-se um processo de formação reativa: ao mesmo tempo em que o herói deve ser o pai, também nunca poderá sê-lo (Freud, 1923/2011b).
A noção de ideal do Eu guarda uma semelhança com o herói. Pode-se inferir que o processo de criação do herói deu-se por uma identificação do poeta com a figura do pai primevo. O herói passa a ser constituído com as características do pai, porém, ao mesmo tempo que ele adquire toda a potencialidade desse pai, é também proibido de manifestá-la, e, caso o faça, será punido. No herói, encontra-se uma retração do investimento libidinal de identificação com o pai primevo que, devido à retração, passa a ser investida no próprio herói.
Agora é possível a reflexão sobre outra afirmação feita por Freud (1913/2012): que o herói deve sofrer pela culpa trágica para livrar o coro da tragédia da culpa. A culpa trágica a que se refere é o assassinato do pai, algo realizado por toda a horda, porém, no processo de criação do mito heroico, isto é, na fantasiosa realidade desse primeiro poeta, toda a ação passa a ser de autoria de um único indivíduo capacitado com o poder da horda. Freud (1913/2012), quando faz uma correlação entre a relação do coro, sempre presente na tragédia, e o herói, refere-se ao fato de que o coro é apresentado de forma coletiva representando os muitos, enquanto o herói representa o único. Durante o desenvolvimento de uma tragédia, diversas são as posturas encontradas na atuação do coro, mas todas demonstram uma simpatia pelo herói. O herói, segundo Freud (1913/2012), carrega em si uma culpa que seria de toda a horda. O crime que era de responsabilidade de um colegiado de irmãos é agora assumido por um único, por aquele que deve sofrer para livrar todos os outros da culpa. O herói acumula o poder e a culpa do coro, o seu sofrimento é a salvação pelos erros deles.
Sobre a Ascendência do Herói Grego
Interessante também é a ascendência do herói grego. Todo herói da mitologia grega tem uma ascendência divina e humana. Os heróis estudados aqui não fogem à regra: Aquiles é filho de Tétis, uma deusa, e Peleu, um mortal; Héracles é filho de Zeus, o mais poderoso dos deuses, e Alcmena, uma mortal. Os heróis gregos transitam entre dois mundos, descendem de imortais, porém não desfrutam desse privilégio. A imortalidade é reservada àqueles que descendem exclusivamente de imortais.
Pode-se pensar também no mito do herói freudiano em que todo indivíduo é descendente do pai da horda, pois somente a ele é permitido a realização dos desejos, todos os outros machos eram obrigados à abstinência sexual, portanto, o herói freudiano também tinha uma ascendência especial, ele é filho do único membro da horda que detinha a liberdade quanto vontades e desejos.
O divino na mitologia grega, assim como o pai primevo na teoria psicanalítica, é marcado pela ausência de limites. Os deuses e o pai podem tudo realizar, não têm nenhuma restrição quanto aos seus desejos, todos estão sujeitos a suas vontades; já os mortais e os irmãos da horda não têm tal privilégio. Dependem de aprovação para realizarem aquilo que querem, são limitados pela atuação e pela vontade dos deuses e do pai primevo. O herói da mitologia grega carrega desde o berço características divinas e humanas, ambíguas e incompatíveis; também, o herói do mito freudiano, que uma vez pertenceu à horda e, portanto, fora submisso aos desejos do pai, mas, em seguida, tendo sido capaz de assassinar o pai, rompeu as atitudes esperadas da posição que ocupava como membro da horda. O ímpeto da transgressão está nas duas figuras - tanto no herói grego quanto no herói freudiano -, em ambos existe o aspecto inconciliável norteador dos respectivos mitos, que promoverá o desencadeamento dos fatos chegando até a ruptura dos limites impostos ao herói.
Assim como o herói apresenta essa dualidade presente desde o seu nascimento, o homem psicanalítico também demonstra tais características. As pulsões estão presentes em todos os aspectos da vida humana. A dualidade pulsional é algo essencial para a visão do homem na perspectiva psicanalítica. Freud (1932/2010a) observa que tanto a pulsão erótica quanto a destrutiva são essenciais, pois "é da atuação conjunta ou contrária de ambos [os tipos de pulsões] que surgem os fenômenos da vida" (Freud, 1932/2010a, p. 427). O homem não seria quem é sem a condição ambígua que é a sua própria existência.
É possível fazer um simples paralelo entre a visão do homem psicanalítico e o herói da mitologia grega, pois ambos têm uma origem enraizada na dualidade. Não é possível o nascimento de um herói sem as facetas humana e divina, pois de outro modo não seria ele marcado pela ambiguidade. Ou seria um deus, cujos desejos e vontades não conheceriam quaisquer limites à sua satisfação, ou seria um humano - na concepção da mitologia grega - submetido a limitações nas realizações de seus desejos, fadado a um jogo de regras de que lhe seria impossível escapar. Da mesma forma, o homem psicanalítico é marcado também pela ambiguidade das pulsões de Eros e Thánatos, que interatuam em um complexo esquema, como já visto.
Sobre a Dualidade e o Aspecto Normativo e Transgressor do Mito
A desmedida pode ser encontrada tanto em Aquiles quanto em Héracles. Suas ações são marcadas por uma grandeza que excede a capacidade humana. Mas não é ausente a questão humana no herói, pois, durante a trama, recordam-se a eles os limites e as regras impostas aos mortais.
Os heróis apresentam características que os levam a uma situação desconhecida, além de seus próprios limites. Campbell (1949/1995) chama esse evento de travessia do primeiro limiar. É o momento em que o herói cruza a fronteira e vai além de onde lhe era permitido ir. Héracles cruza essa fronteira por meio do excesso contido em suas capacidades, na demasiada força, no violento desejo de vingança. Já Aquiles, que é diferenciado dos outros guerreiros por sua superioridade nas habilidades bélicas, somente se excede, mostrando toda sua capacidade, após a morte de Pátroclo. Tanto Aquiles quanto Héracles aproximam-se das capacidades divinas em suas respectivas histórias, o que pode significar, em uma interpretação psicanalítica, que o herói, ao fazer a travessia dos limites impostos aos mortais, se aproxima muito da imagem daquilo que, para ele, é proibido: a representação do pai.
Desse modo, pode-se pensar em duas questões norteadoras: sofreria o herói uma espécie de complexo de Édipo mitológico? O que significa fazer a travessia prevista por Campbell?
Freud (1921/2011a), ao falar sobre a figura do pai no complexo de Édipo, afirma que a criança toma o pai como modelo por meio de uma identificação. Depois de um tempo, porém, a criança percebe que o pai se torna um obstáculo entre ela e a mãe, e passa a ter uma relação hostil em relação ao genitor. O autor explica que a identificação ocorrida com a figura paterna é, desde o início, ambivalente, ora apresentando ternura e carinho, ora dirigindo a ele impulsos agressivos. É a partir da introjeção dessa identificação que se forma o ideal do Eu.
Em Aquiles, dá-se a transgressão do limiar quando o herói retorna aos campos de batalha e faz frente a todo um exército. Sua atuação aproxima-se da de um deus no que se refere à habilidade em combate, mas o herói invade um espaço que não lhe cabia, por isso a punição. Na "Ilíada", vê-se claramente o que Lesky (1937/1996) afirma sobre o trágico presente nas epopeias: Aquiles, ao transgredir as normas impostas aos homens, utiliza habilidades sobre-humanas para realizar feitos que o agraciariam com fama, glória e fortuna, encaminhando-se para o funesto destino da morte.
A dualidade é imposta a Aquiles tanto no aspecto transgressor quanto no normativo. O mito mostra suas duas facetas, o herói vive um momento de glória - o ponto alto da narrativa -, em que grandes realizações ocorrem; no entanto, a punição não tarda a vir. A passagem do limiar dito por Campbell (1949/1995) é um ponto sem retorno, a norma se impõe àquele que o transgride.
Quanto à transgressão, Vidal-Naquet (1982/2008) relata que "na tragédia grega, a norma só é colocada para ser transgredida, ou porque já foi transgredida; é nisso que a tragédia depende de Dioniso, deus da confusão, deus da transgressão" (p. 232). Não por acaso as tragédias surgiram na celebração a Dioniso, pois as peças que ali se representavam mostravam com louvor a influência do aspecto transgressor do deus. Retomando Migliavacca (2004), tem-se que os mitos foram criados como um instrumento explicador daquilo que era percebido pelo homem. Dessa forma, o próprio mito de Dioniso foi criado para explicar algo, alguma coisa do espírito humano que necessitava de uma origem, e este algo é a natureza transgressora.
Os mitos já continham em si as ideias que foram utilizadas pelas tragédias no século V a.C., como o incesto e o parricídio, por exemplo; mas esses mitos não podem ser considerados trágicos em si, pois está ausente o julgamento de tais atos. Somente com os tragediógrafos é que foi adicionado o caráter transgressivo à narrativa. Esse julgamento seria realizado pelo próprio expectador da peça, representado no espetáculo trágico pelo coro (Vidal-Naquet, 1982/2008). A narrativa trágica coloca no palco um cultuado herói, conhecido pela plateia como realizador de incríveis façanhas e reconhecido pelos seus atos, o que lhe dá um status superior. O século V a.C. é o momento ideal para o surgimento dessa interpretação dos mitos, espaço cultural único em que há um contexto social e psicológico ideal para tocar daquela maneira o que as tragédias contam. E o tema central da tragédia é o próprio homem e sua dualidade.
Considerações Finais
Em "Porque a guerra?", Freud (1932/2010a) explica que parece existir na história da humanidade, desde os tempos mais primordiais, um processo de evolução cultural, uma quebra do status quo da estrutura da organização social. A hipótese do mito do herói apresentada pelo autor pode ser uma dessas etapas, o momento em que o homem ressignificou sua própria visão de mundo e de homem. Ao explorar o herói, é possível entrar em contato com esse histórico humano, com esse momento que marcou a ruptura de um modo de funcionamento psíquico dando lugar a outro, o que, como toda mudança, deixou marcas perceptíveis na produção cultural e na estrutura psíquica humana.
As discussões que surgem no contato entre a psicanálise e os mitos são muitas, as apresentadas aqui são uma tentativa de explorar parte da riqueza desse tesouro cultural. São inúmeras as possibilidades que se abrem. As verdades contidas nos mitos, quando acessadas, dão um sentido para os anseios humanos, tal qual a clínica psicanalítica permite ao analisando a percepção consciente de aspectos inconscientes, isto é, ao se utilizar da linguagem para dar forma a algo sentido. Busca-se fazer algo semelhante quando se estudam os mitos, e, quem sabe, provocar um insight cultural e significar a partir de uma nova linguagem o que neles foi, há muito, depositado.
Referências
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Recebido em: 24/05/2016
Aprovado em: 30/11/2016
* As reflexões deste artigo fazem parte de uma pesquisa mais ampla apresentada como dissertação de mestrado do programa de pós-graduação em psicologia da Universidade Estadual de Maringá.