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Trivium - Estudos Interdisciplinares
versão On-line ISSN 2176-4891
Trivium vol.13 no.spe Rio de Janeiro mar. 2021
https://doi.org/10.18379/2176-4891.2021vNSPEAp.17
OS DISCURSOS E AS CAUSAS
A psicanálise no horizonte de nossa época
Psychoanalysis on the horizon of our time
La psychanalise à l'horizon de notre époque
Psicanalista. Professora do Programa de Pós-graduação stricto sensu em Psicanálise, Saúde e Sociedade da Universidade Veiga de Almeida e da Especialização em Psicologia Clínica da PUC-RJ. E-mail: verapollo8@gmail.com
RESUMO
O presente texto desenvolve alguns conceitos psicanalíticos, em particular o desejo do analista, ao mesmo tempo em que o associa ao horizonte da nossa época. Inicia mencionando a proliferação de novas condensações significantes e faz uma breve passagem pelo que ficou conhecido como a "querela da falo" dos anos 1950, a partir da qual se levantam questões sobre o gozo feminino. Distingue, com Lacan, a causa psicanalítica das causas encontradas na magia, na religião e na ciência. Em seguida, tece considerações sobre a política da psicanálise e recorre a algumas propostas de Angela Davis, para, no final, articulá-la também à ética que a norteia.
Palavras-chave: DESEJO DO ANALISTA; SIGNIFICANTE; CAUSA; POLÍTICA DA PSICANÁLISE; ÉTICA.
ABSTRACT
This text develops some psychoanalytic concepts, in particular the desire of the analyst, while associating it with the horizon of our time. It begins by mentioning the proliferation of new significant condensations and makes a brief passage through what became known as the "phallus querela" of the 1950s, from which questions are raised about female jouissance. It distinguishes, with Lacan, the psychoanalytic cause from the causes found in magic, religion and science. Then, she makes considerations about the politics of psychoanalysis and uses some of Angela Davis' proposals, to, in the end, also articulate it to the ethics that guide her.
Keywords: ANALYST'S DESIRE; SIGNIFICANT; CAUSE; POLITICS OF PSYCHOANALYSIS; ETHICS.
RESUMÉ
Ce texte dévellope des concepts psychanalytiques, en particulier le désir de l"analyste, en même temps qu'il le met en rapport avec l'horizon de notre époque. Il commence par la référence à la prolifération de nouvelles condensations signifiantes et fait un petit parcours par ce qu'est dévenu bien connu comme la « querelle du phalus » des années 1950, d'où sortent des questions sur la jouissance féminine. Il distingue, avec Lacan, la cause psychanalytique des causes qu'on rétrouve dans la magie, la réligion et la science. Dans la suite, il propose des considérations sur la politique de la psychanalyse et recour à quelques propoitions de Angela Davis, pour les mettre en rapport, à la fin, avec l'étique qui l'ordonne.
Mots-clés: DÉSIR DE L'ANALYSTE ; SIGNIFIANT ; CAUSE ; POLITIQUE DE LA PSYCHANALYSE ; ÉTIQUE.
A cada dia, mais evidente se torna que a foraclusão do sujeito no discurso da ciência permite não apenas o regresso à confusão entre diferença anatômica e diferença sexual, a qual se evidencia muitas vezes na demanda daqueles que pretendem "corrigir" a anatomia mediante a cirurgia, como também o mais radical afastamento entre o ato sexual e a procriação, em uma espécie de retorno à era agostiniana, quando tem início o ideal religioso de uma "concepção, não carne, mas espírito, não concupiscência, mas virtude", ideal segundo o qual a santa Virgem se teria emprenhado sem relações conjugais, mas pela fé.
Como nos posicionarmos, nós, psicanalistas, nesta era de retorno, no entanto coberto pela máscara do novo da medicina genética e das cirurgias ditas de "redesignação do sexo"? Se o significante não reflete o real, mas, antes, o determina, o que dizer da profusão de condensações, em que emergem os prefixos 'trans' e 'neo', assim como as palavras iniciadas com o vocábulo 'pós'? Fala-se em transhomem, transmulher, transgênero, neopênis e neovagina, e também em pós-moderno e pós-verdade.
Ainda em 1958, portanto, há mais de meio século, ao elaborar suas "Diretrizes para um congresso sobre sexualidade feminina", Lacan pôde indagar, não sem ironia, se os psicanalistas tinham medo de vir a ter o mesmo destino de Tirésias. Relembremos brevemente o mito grego: Tirésias era um profeta de Tebas que havia atrapalhado um ato sexual entre duas cobras místicas, matando a cobra fêmea; ao fazer isso, foi transformado imediatamente em mulher, e assim viveu por sete anos, até que, em outro incidente semelhante, matou o espécime macho e voltou a ser homem. Conta-se que, então, pediram a Tirésias para responder à pergunta que inquietava a todos: "De quem é o maior gozo no encontro das carnes? Do homem ou da mulher?" Tirésias, que havia sido homem e mulher na mesma vida, era o único que realmente podia responder. Assim ele o fez, pronunciando-se nos seguintes termos: "Se dividirmos o prazer em dez partes, a mulher fica com nove e o homem com uma."(1)
Estariam os psicanalistas, como os demais falantes, sujeitos ao mesmo tabu a que Freud se refere em Totem e tabu (1913), o qual se estende do órgão genital feminino ao corpo da mulher como um todo? Por que razão o capítulo psicanalítico sobre o gozo feminino permaneceu tanto tempo debaixo de uma sombra espessa? Estas são algumas das perguntas que ainda hoje precisam ser formuladas, mas que foram levantadas primeiramente por Freud e Lacan. Ambos constataram que não lhes caberia esperar resposta das mulheres analistas, uma vez que, independentemente do sexo anatômico daquele que indaga, até mesmo os vocábulos 'mulher' e 'feminino' seguem caminhos teóricos divergentes. Que se considere, por exemplo, o "masoquismo feminino" que Freud (1924) identificou nos homens, e a impossibilidade de se enunciar o que quer que seja de "A mulher", cuja inexistência Lacan (1973) postulou em aforismo.
Numa rápida consulta à história da psicanálise, deparamo-nos primeiramente com a "querela dos anos 1930", durante a qual muitos psicanalistas, entre eles Ernest Jones, um homem com ideias feministas, segundo Freud, opuseram-se à Penisneid das meninas, asseverando a existência de um desejo feminino originário e de um gozo fálico meramente defensivo, até hoje defendido por alguns autores. No decorrer dos anos 1950, em particular na Inglaterra, deu-se o boom dos escritos sobre a contratransferência, privilegiadamente na pena de psicanalistas mulheres de orientação kleiniana.
Margareth Little (1951) chegou a propor "R a resposta total do analista às necessidades dos pacientes", responsabilizando-o não apenas por tudo que acontece com seus pacientes, mas também pelo que acontece com ele próprio, o/a psicanalista, com a psicanálise e com a comunidade analítica (Little, 1951/1987, p.51). Tamanha atribuição de responsabilidade, se assim pudermos nos expressar, foi lida por Lacan como o germe de uma elaboração conceitual sobre o desejo do analista, que ele próprio iria realizar na década seguinte. Tratava-se de indagar e construir a função do desejo do analista na direção do tratamento e na possibilidade de seu término.
A relação estreita entre desejo do analista e política da psicanálise está dada, portanto, desde esse momento, em que se ressalta a participação do analista no processo, em resposta à demanda e à transferência do analisante. Ao psicanalista competem a sustentação e o manejo da transferência, bem como o dever de interpretar, tarefas que poderiam ser comparadas à tática e à estratégia, quando comandadas e orientadas pela mesma política. Em "A direção do tratamento e os princípios do seu poder" (Lacan, 1958/1998, p.393), há um parágrafo de extrema clareza sobre este tema. Após mencionar que o analisante não é o único a pagar por sua análise, pois o analista paga também com palavras, pelo dever de interpretar, assim como paga com a sua pessoa, na medida em que a empresta aos fenômenos transferenciais, Lacan prossegue indagando: ...e haveremos de esquecer que ele tem que pagar com o que há de essencial em seu juízo mais íntimo para intervir numa ação que vai ao cerne do ser (Kern unseres Wesens), escreveu Freud, seria ele o único a ficar fora do jogo?
Ora, se Lacan se referiu ao pagamento que o analista faz no simbólico e no imaginário, este último - julgamento simultaneamente interno e êxtimo - é o preço a ser pago no real, ou seja, é o real em jogo no tratamento analítico, no discurso do analista e na comunidade de analistas.
Neste ponto, pode-se levantar a pergunta sobre o que diferencia a comunidade analítica do que Freud (1921) chamou de "massas artificiais", nas quais as relações verticais parecem mais sólidas que as horizontais. Massas em que uma fala vazia pode vir à tona, isto é, uma ecolalia sem subjetivação da matéria significante, uma fala cujo ponto de origem não é a "falta-a-ser" - um dos nomes do desejo para Lacan -, mas a causa eficiente de um ritual mágico qualquer, ou a causa entregue a Deus que corta todo acesso à verdade. Se não, a causa dita "científica" em que o verdadeiro não passa de uma letra V, aposta ao final de uma proposição, atestando apenas a existência de uma sequência lógica de enunciados. Dito de outro modo, se a magia, a religião e a ciência, assim como a psicanálise, todas elas lidam com as categorias da causa e da verdade, é justamente neste nível que cada uma dessas práticas se distingue radicalmente de todas as outras. Refiro-me, aqui, à distinção entre as quatro práxis, tal como Lacan (1965) a estabelece em A ciência e a verdade, partindo das quatro causas aristotélicas: causa eficiente, na magia; causa final, na religião; causa formal, na ciência; causa material, na psicanálise.
Dizemos que o desejo do analista é advertido das incidências possíveis do real e, por isso, não é trágico. Dizemos, também, que não pode ser um desejo inflexível, como tampouco pode ser "desejo de", pois deve consistir em um lugar vazio de significante e de sentido, de modo a permitir a emergência dos significantes do desejo do Outro. Deve ser um lugar acolhedor da angústia expectante, operando contra as significações já conhecidas. E ainda, um desejo de obter "a diferença máxima entre o significante e o significado" (Lacan, 1964). Acredito que esta definição que Lacan propõe em uma das lições finais do Seminário 11 não é da ordem da evidência, justamente por supor certo conhecimento de Linguística. Se o acesso ao significado é algo que se dá via significante, por que e como distingui-los?
Um significante representa o sujeito em seu deslizamento metafórico-metonímico, o que significa dizer que nunca o alcançamos por si e em si, mas só o apreendemos enquanto substância de gozo, isto é, apenas o bordejamos. Um significante se ouve, e isso não é pouco, porque é preciso escutá-lo em sua duplicidade de som e de sentido, ciente de que a predominância da vertente do sentido costuma obscurecer a escuta da sonoridade dos enunciados. Um significado se lê, e isso não é pouco, porque a letra toca no real, mas também se deixa imaginarizar. Com ela, pode-se fazer um traço unário, operando a subordinação do Um englobante ou da classe ao Um diferencial ou da singularidade. Como bem observa Zizec (1988, p.224), o traço unário, que se produz no nível das palavras, é o excedente, o x inominável que faz do elemento real, agora nomeado, um objeto causa de desejo e de mais-de-gozar; a passagem do enunciado classificatório do tipo "todo judeu é avarento, cosmopolita etc..." para a afirmação singular "Fulano é assim porque é judeu"; neste segundo tempo o vocábulo "judeu" implica um x inominável.
De origem latina, o prefixo trans, em suas variantes: tras, tra e tres, indica o movimento para além de, através de, posição para além de, posição ou movimento de través, intensidade (2). Nesse sentido, a psicanálise, na medida em que tiver sido esclarecida de seus próprios fins e de seus limites, sempre foi e sempre será uma prática trans. Não é contingencial, mas necessário, que a transferência, malgrado seus paradoxos a favor ou contra possíveis êxitos terapêuticos, seja um de seus conceitos fundamentais. Não há psicanálise sem transferência, a qual também pode interrompê-la, ou até impedi-la.
A indeterminação do sujeito - penso onde não sou, sou onde não penso - favorece "o apelo à identificação [que] leva ao engano da transferência" (Lacan, lição de 20 de janeiro de 1965). Em contrapartida, se a psicanálise encontra seu eixo no desejo do analista, ela permite o "passe" do fenômeno da identificação à transferência propriamente dita, assim como permite a nominação do gozo e a assunção de um nome próprio. Nesta lição do Seminário 12 sobre os problemas cruciais da psicanálise, Lacan comenta que só se pode dizer de um homem que ele é mortal, ou seja, que pertence à categoria universal homem, enquanto ele não tiver um nome. A assunção do nome próprio, diferente do patronímico, é aquilo que o singulariza, por ser a um só tempo uma imagem sonora e uma marca simbólica do desejo do Outro. Em outros termos, o nome é aquilo que potencialmente imortaliza um sujeito qualquer enquanto discurso.
Não importa tanto que o real seja o impossível da palavra verdadeira, quanto a existência de um grito que corte, cave ou atravesse o silêncio -transfira-o - porque o silêncio é um laço, "um nó fechado entre algo que é um entendimento e algo que é Outro; esse nó que pode repercutir quando um grito se coloca aí de través" (Lacan, lição de 20 de janeiro de 1965).
Em nossa era, um psicanalista deve sustentar-se publicamente contra as violências racista e sexual. Finalizo com as palavras de Angela Davis (2018, p. 130-131), em 9 de janeiro de 2015, na Universidade de Bogazici, Istambul, Turquia.
As violências racista e sexual são práticas não apenas toleradas, mas explicitamente - ou, se não explicitamente, ao menos implicitamente - encorajadas. Quando essas formas de violência são reconhecidas - e com frequência elas são encobertas e tornadas invisíveis -, na maioria das vezes são os exemplos mais dramáticos da exclusão e da discriminação estruturais. [...] (Davis, 2018, p. 130-131).
Não nos esqueçamos do impacto das manifestações na praça Tahir e do movimento Occupy em todo o mundo. Será que poderíamos incluir aqui o movimento #elenão (3)? Angela Davis propõe-nos distinguir entre o efeito, nem sempre visível, e o impacto "dessas ações criativas e inovadoras em que as pessoas aprenderam a estar juntas sem a estrutura do Estado, a resolver problemas sem ceder ao impulso de chamar a polícia", impacto que pode ser inspirador na construção de solidariedades transnacionais. Se quisermos a expansão da liberdade e da justiça nos países em que não existem - entre os quais a autora não poderia deixar de nomear o Brasil - "teremos de fazer algo totalmente extraordinário, precisaremos ir às últimas consequências. Não podemos continuar a fazer o mesmo. Não há como se resolver em torno do centro. Não podemos agir com moderação. Teremos de ter disposição para nos erguer e dizer "não" unindo nossas almas, articulando nossas mentes coletivas e nossos corpos, que são muitos."
A política da psicanálise, assim com a ética que a norteia, nunca foi política da moderação, ou ética da temperança. A ética do não todo não é aristotélica. Nesta era trans, que é a nossa, precisamos mais do que nunca apostar com Lacan na inversão da máxima de Boileau: não se trata de primeiro pensar bem, para depois enunciar com clareza, mas de enunciar bem, para que a interpretação siga seu caminho, e produza impacto, como limite da ausência de diálogo (Lacan, 1971-72/2003, p. 549).
Para quem se lembra da sexta pergunta, feita a Lacan em Televisão (1973/2003, p. 533): "Que posso saber? Que devo fazer? Que me é lícito esperar?", indagando o que Kant chama de "o interesse da nossa razão", resumo aqui as suas respostas: só posso saber o que tem estrutura de linguagem, mas aquele que sustenta seu desejo não indaga do outro o que fazer. E não se deve deixar levar pela esperança ingênua, se quiser seguir na trilha aberta por Freud e repaginada por Lacan.
Referências
Davis, A. (2018) A liberdade é uma luta constante. São Paulo: Boitempo. [ Links ]
Freud, S. (1976) O problema econômico do masoquismo. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. vol. XIX. Rio de Janeiro: Imago (Original publicado em 1924) [ Links ]
Freud, S. (1976) Psicologia das massas e análise do eu In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. vol. XVIII. Rio de Janeiro: Imago. (Original publicado em 1921) [ Links ]
Freud, S. (1976) Totem e tabu In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. vol. XIII Rio de Janeiro: Imago. (Original publicado em (1913[1912-13] [ Links ])
Lacan, J. (1964) O Seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2ª ed. Revisada, 1985 (Original publicado em 1973). [ Links ]
Lacan, J. (1965-1966) O Seminário, livro 12: os problemas cruciais da psicanálise. Lição de 24 de fevereiro de 1965. Inédito. [ Links ]
Lacan, J. (1973) Televisão. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. [ Links ]
Lacan, J. (1998) A ciência e a verdade In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. (Original publicado em 1965) [ Links ]
Lacan, J. (1998) Diretrizes para um congresso sobre sexualidade feminina In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. (Original publicado em 1958). [ Links ]
Little, M. (1987) 'R' - la réponse totale de l'analyste aux besoins de son patient In : Heimann, P. et al. Le contre-transfert. Paris: Navarin. [ Links ]
Zizec, S. (1988) O mais sublime dos histéricos. Hegel com Lacan. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. [ Links ]
1 https://pt.wikipedia.org/wiki/Tirésias
2 Buarque de Holanda, A. Novo Dicionário da Língua Portuguesa, 1ª ed., 12ª impressão. Editora Nova Fronteira S.A., p.1396.
3 Refiro-me aqui ao movimento de protesto contra a candidatura de Jair Bolsonaro às eleições presidenciais do Brasil, em 2018.