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Trivium - Estudos Interdisciplinares
versão On-line ISSN 2176-4891
Trivium vol.13 no.spe Rio de Janeiro mar. 2021
https://doi.org/10.18379/2176-4891.2021vNSPEAp.56
A PSICANÁLISE NA HISTÓRIA
Psicologia das massas, mais ainda: fraternidade, ódio e segregação
Psychology of the masses, more: brotherhood, hatred and segregation
Psychologie des masses, plus: fraternité, haine et ségrégation
Doris Rinaldi
Professora Associada da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Instituto de Psicologia e Programa de Pós Graduação em Psicanálise. E-mail: doris_rinaldi@yahoo.com.br
RESUMO
Neste artigo, pretende-se discutir as formas como vêm sendo sustentados os laços sociais na contemporaneidade, em especial em nosso país, principalmente quando verificamos que o ódio, como paixão do ser, vem-se mostrando cada vez mais pregnante nesses laços. Tomando como ponto de partida textos freudianos que abordam essas questões, tais como O mal-estar na Cultura e Psicologia das massas e análise do eu, assim como as elaborações lacanianas sobre os discursos que sustentam o laço social, busca-se levantar algumas hipóteses sobre a formação das massas hoje, no reino da comunicação virtual propiciada pelas redes sociais, sob a hegemonia do neoliberalismo
Palavras-chave: ÓDIO; LAÇO SOCIAL; MASSAS; REDES SOCIAIS; NEOLIBERALISMO
ABSTRACT
In this article, we intend to discuss the ways in which social ties have been sustained in contemporary times, especially in our country, when we find that hatred, as a passion for being, has become increasingly pregnant in these ties. Taking as a starting point Freudian texts that address these questions, such as The malaise in the culture and Psychology of the masses and analysis of the self, as well as the Lacanian elaborations on the discourses that sustain the social tie, it is tried to raise some hypotheses on the formation of the masses today, in the realm of virtual communication provided by social networks, under the hegemony of neoliberalism.
Keywords: HATE; SOCIAL BOND; MASSES; SOCIAL NETWORKS; NEOLIBERALISM
RESUMÉ
Dans cet article, nous entendons discuter de la manière dont les liens sociaux se sont entretenus à l'époque contemporaine, en particulier dans notre pays, surtout lorsque nous constatons que la haine, comme passion d'être, s'est montrée de plus en plus prégnante dans ces liens. Prenant comme point de départ les textes freudiens qui abordent ces questions, comme Le malaise en culture et psychologie des masses et l'analyse de soi, ainsi que les élaborations lacaniennes sur les discours qui soutiennent le lien social, nous cherchons à émettre des hypothèses sur la formation des masses aujourd'hui, dans le domaine de la communication virtuelle assurée par les réseaux sociaux, sous l'hégémonie du néolibéralisme
Mots clés: HAINE; LIEN SOCIAL; MASSE; RÉSEAUX SOCIAUX; NÉOLIBÉRALISME
Os acontecimentos recentes ocorridos na esfera política em nosso país - a destituição de uma presidente democraticamente eleita através de um golpe parlamentar-jurídico-midiático, em meio à exacerbação do discurso do ódio que se disseminou principalmente pelas redes sociais e fomentou um aumento considerável de movimentos de massa, a que se seguiu, dois anos depois, a eleição pelas vias democráticas de um candidato que conduziu sua campanha pautado nesse mesmo discurso - convocam-nos a trazer algumas contribuições da psicanálise para repensar as formas como vêm sendo sustentados os laços sociais entre nós, principalmente quando verificamos que o ódio, como paixão do ser, tem-se mostrado cada vez mais pregnante nesses laços.
Em O mal-estar na cultura (1930/2006), Freud localiza no laço social a principal fonte de sofrimento para os homens. Menciona três importantes fontes de sofrimento que nos atingem: o poder da natureza, a fragilidade de nossos corpos e os laços sociais. Para além do poder de destruição das forças da natureza e da fragilidade de nossos corpos, condenados à decadência, enfatiza que são os laços sociais que nos trazem mais sofrimento, o que lhe causa perplexidade, pois são uma criação nossa. A dificuldade de admitir que as normas criadas por nós mesmos não foram capazes de prevenir esse sofrimento, leva-o a suspeitar que haja algo de inconquistável no laço social, que diz respeito à nossa própria constituição psíquica (Freud, 1930/2006). Como já havia dito em A pulsão e seus destinos (1915/2007), o ódio é uma paixão primária anterior ao amor e "a inclinação para a agressão constitui, no homem, uma disposição pulsional original e autossubsistente, e... é o maior impedimento à civilização" (Freud, 1930/2006, p.144).
Em seu primeiro seminário (1953-54/1986), Lacan refere-se ao ódio como uma das paixões do ser, junto ao amor e à ignorância, articulando-a aos registros através dos quais aborda o psiquismo: real, simbólico e imaginário (RSI). Enquanto o amor está situado na junção entre o simbólico e o imaginário, com o real encoberto, o ódio está justamente na junção entre o real e o imaginário, deixando o simbólico na sombra. A quebra do espelho promovida pelo real desencadeia uma exacerbação do imaginário, uma vez que a destruição do outro é um polo da estrutura do eu. Como afirma, o ódio, enquanto paixão do ser, é uma carreira sem limites e quer a destruição do ser do outro, no sentido do "seu rebaixamento, da sua desorientação, do desvio, da negação detalhada, da sua subversão" (Lacan, 1953-54/1986, p.316).
O texto O Mal-estar na Cultura (1930/2006) compõe, com Psicologia das massas e análise do eu (1921/2006) e Totem e tabu (1913/2005), o conjunto mais relevante das contribuições de Freud para a análise do laço social. Retomar essa contribuição, em especial "Psicologia das massas", parece-me bastante oportuno, pois, nesse texto, Freud aborda de modo detalhado a constituição do laço social, fornecendo elementos importantes para refletirmos sobre os fenômenos atuais que implicam o sujeito no laço social e que exigem de nós, como psicanalistas, uma análise crítica e um posicionamento ético.
Em Psicologia das massas e análise do eu (1921/2006), o tema da identificação tem lugar central e é fundamental para que ele possa analisar a constituição das massas, sua estrutura libidinal. Os conceitos de Eu ideal e de ideal de eu, que apresenta em Introdução ao narcisismo (1914/2007), são introduzidos na medida em que permitem pensar a relação com o líder que é, para ele, um elemento essencial na formação das massas.
Freud apresenta, nesse texto, a mais completa versão da noção de identificação, distinguindo três modos de identificação. O que nos interessa aqui é o terceiro tipo, uma vez que é nele que localiza origem da constituição das massas, a partir da identificação baseada na possibilidade ou desejo de se colocar na mesma situação emocional, ou seja, na possibilidade de partilhar uma qualidade comum com outra pessoa ou grupo. Essa qualidade comum é a natureza do laço com o líder.
O líder ocupa, portanto, um lugar central na formação das massas e a noção de idealização é introduzida para explicar a sua função no estabelecimento de um duplo laço libidinal: a identificação ao líder pela via do ideal do eu e, a partir dela, a identificação entre os membros da massa. Freud afirma: "Uma massa primária desse tipo é uma quantidade de indivíduos que colocaram um só e mesmo objeto no lugar de seu ideal do eu e, consequentemente, se identificaram uns com outros em seu eu" (Freud, 1921/2006, p.110). Nesta referência, pode-se observar que Freud situa o líder no lugar de objeto, o que tem como efeito uma superposição de lugares - o de ideal de eu e o de objeto, em que o líder ocupa, simultaneamente, essas duas posições. Tal superposição tem efeitos hipnóticos e, para ele, a hipnose resolve em parte o enigma da constituição libidinal, das massas. Nos termos de Lacan, o Um soldaria o significante (enquanto ideal de eu) e o objeto de gozo, o que daria ao sujeito a ilusão da unidade, apagando a dimensão da perda.
A mesma superposição se produz na situação extrema do "estar amando", marcada pelo estado de fascinação e servidão que estão a um passo da hipnose. A idealização falsifica o julgamento e a instância do ideal de eu perde a sua função crítica. Cito Freud.
A crítica exercida por ela silencia; tudo que o objeto faz e pede é correto e inocente. A consciência não se aplica a nada que seja feito pelo amor do objeto; na cegueira do amor, alguns se convertem em criminosos sem remorsos. A situação total pode ser inteiramente resumida nesta fórmula: o objeto foi colocado no lugar do ideal do eu (Freud, 1921/2006, p. 107).
Ao tomar o Exército e a Igreja como exemplos de massas altamente organizadas, permanentes e artificiais, que se constituem a partir de um constrangimento externo que impede a sua desagregação, Freud afirma que, apesar de suas diferenças, ambos participam da mesma ilusão de que existe uma "cabeça", a ilusão do Um da unidade imaginária: Cristo no caso da religião ou o comandante-chefe no caso do exército, que ama igualmente todos os membros do grupo.
Não se pode esquecer, entretanto, que a identificação é um processo que está na base da constituição narcísica e, como tal, carrega uma tensão agressiva que precisa ser contida para que não ameace a existência do grupo. A agressividade interna que pode surgir como efeito dos diversos narcisismos é evitada não apenas pela idealização e pelo amor que une os membros da massa ao líder, mas principalmente porque é desviada para fora e revirada em seu oposto, no incremento do ódio em relação àqueles que não pertencem a ela, os estrangeiros. Aí se pode reconhecer o que Freud chama de narcisismo das pequenas diferenças, e os diversos tipos de racismo e segregação de que temos notícia na história. A fraternidade, nesse sentido, está na origem da segregação.
Trago esses fragmentos teóricos para pensar em algumas questões que se apresentam a nós na atualidade: como se formam hoje as massas, no regime do império do capital financeiro que se acentua no neoliberalismo? As elaborações freudianas nos ajudam a pensar em sua constituição? Em que medida o líder mantém a sua função estratégica nessa formação?
Hoje, temos novos elementos que não estavam presentes em 1921, quando Freud escreveu "Psicologia das massas". Vivemos hoje em um mundo em que a universalização promovida pela tecnociência se conjuga aos imperativos de uma economia capitalista globalizada, sob o reino absoluto do mercado. Como consequência, temos, de um lado, o discurso do excesso que se apresenta como um imperativo, indicando uma maneira sintomática de responder à cultura do consumo, que remete a um gozo desmedido. De outro, como nos alertou profeticamente Lacan em 1967, temos a segregação e a manipulação das populações, como consequência da universalização introduzida pela ciência, da qual os campos de extermínio nazistas são apenas os precursores. Diz Lacan: "Nosso futuro de mercados comuns encontrará o seu equilíbrio numa ampliação cada vez mais dura dos processos de segregação" (Lacan, 1967/2003, p.263).
Com a hegemonia do neoliberalismo, o capital produtivo é substituído pelo capital financeiro, cuja volatilidade obscurece a sua presença e faz dele algo que age em silêncio, no anonimato. Houve, portanto, uma mutação interna ao capitalismo, uma vez que o capital financeiro passa a ocupar a posição de mestre absoluto, idêntico à verdade, que comanda, na sombra, os jogos de poder. Essa nova configuração tem efeitos que podem ser mortíferos, principalmente quando implicam a imposição de uma uniformização do gozo e, portanto, da segregação.
No campo da tecnociência, os avanços tecnológicos, especialmente a internet, que revolucionaram as tecnologias da informação e comunicação na segunda metade do século XX, possibilitaram a criação em larga escala da comunicação virtual, através das redes sociais, permitindo a conexão de pessoas em partes as mais distantes do mundo. Se esta nova forma de comunicação possibilita, de um lado, a circulação livre da informação, aproximando o distante, de outro, constrói-se basicamente a partir de "encontros" que se fazem na virtualidade, engendrando um novo tipo de "laço". Um dos aspectos a considerar é que ela prescinde da presença do outro e favorece o anonimato. As redes sociais articulam-se fundamentalmente pelo princípio da identificação e as conexões se fazem entre "semelhantes", que compartilham principalmente imagens e signos. A primazia do imaginário deixa na sombra a dimensão simbólica e especialmente a dimensão real do outro, evidenciada no enigma que envolve a presença. A exacerbação do imaginário, sem um esteio simbólico, favorece a emergência da agressividade e do ódio. Sob o manto da "rede" pode-se dizer qualquer coisa, na tentativa de destruir o outro, caluniá-lo, sem responsabilização, nem compromisso com a verdade, porque a verdade passa a ser aquela que um número grande de pessoas "curtiu" e/ou repassou para seus "amigos".
O que temos podido observar nos últimos anos é que as redes sociais têm-se mostrado uma ferramenta fundamental de mobilização política. Seu poder é inegável como evidenciam os movimentos de massa que explodiram em diversos países, como na chamada 'primavera árabe' e em outras manifestações no continente europeu, e também em nosso país, nas jornadas de 2013 e nos movimentos que antecederam a deposição de uma presidente eleita democraticamente. Aparentemente espontâneos, respondem em grande parte a um chamado das redes. Ao contrário do Exército e da Igreja, protótipos de massas altamente organizadas, permanentes e artificiais, são massas transitórias, mas cujos efeitos são bastante efetivos, a ponto de destituir governos democraticamente eleitos e promover "revoluções" sem o uso de armas. O traço que os caracteriza é a negação radical do sistema, do status quo e da representação política tradicional, atendendo a uma convocação: mudança. Estaríamos diante de manifestações democráticas de massas que não se sentem mais representadas pela organização política tradicional? Como essas massas se formam? Qual é o papel do líder, destacado por Freud, assim como dos mecanismos de identificação e idealização?
A teoria dos quatro discursos formulada por Jacques Lacan no Seminário 17, O avesso da psicanálise (1969-70), traz importantes contribuições para pensar o laço social em termos de uma estrutura mínima de discurso, um "discurso sem palavras" (Lacan, 1969-70/1992, p.11)(1), e permite lançar algumas hipóteses em relação às indagações que trazemos. Não pretendemos explorar no espaço desse texto essa vasta contribuição de Lacan, mas gostaríamos de destacar, dentre os quatro discursos que traz inicialmente, o discurso do mestre2, e um quinto discurso que formula posteriormente, a partir de uma mutação no discurso do mestre, o discurso do capitalista3. De maneira bastante sucinta, pode-se dizer que no discurso do mestre, inspirado na dialética hegeliana do senhor e do escravo, a dominante é a lei, ou seja, o lugar de agente do discurso é ocupado pelo significante-mestre (S1) que se dirige ao outro para que ele trabalhe e produza mais-de-gozar. Nesse discurso, o significante é o do arbítrio e pode-se afirmar como idêntico a si mesmo, como puro imperativo. Essa referência remete-nos à "Psicologia das massas", quando Freud identifica na estrutura libidinal das massas os efeitos hipnóticos que resultam da superposição de lugares ocupados pelo líder, de ideal-de-eu e de objeto, presente nos grupos como o exército e a igreja. Da mesma forma, os totalitarismos do séc. XX, que representaram a tentativa de suprimir a divisão da verdade que é própria da esfera política e instaurar o reino do Um na política, poderiam ser pensados através dessa formação discursiva.
Quanto ao discurso do capitalista, mestre moderno, Lacan chama a atenção para que a mutação do discurso do mestre antigo se produz a partir do momento em que o gozo passa a ser contabilizado. No discurso do capitalista, há uma inversão da fração do lado esquerdo do discurso do mestre, em que o Significante mestre (S1) no lugar de agente é permutado com o do sujeito ($), que antes estava colocado abaixo, no lugar da verdade. O sujeito assume o lugar de agente e o S1 vai para o lugar abaixo, da verdade enquanto a outra fração permanece idêntica ao discurso do mestre. Lacan assinala que essa mutação produz um curto-circuito, não havendo circulação dos elementos, o que é indicado pelas setas que introduz em forma de cruz, do qual resulta o não estabelecimento do laço social. O que nos interessa destacar é que o lugar da verdade nesse discurso é ocupado pelo significante do mestre moderno, o Capital e sua promessa de gozo, que faz com que o sujeito, na condição de agente que não agencia nada, reste fixado a essa verdade, desconhecendo a sua divisão e atuando a ordem do mestre: goze, consuma! O supereu surge na sua face mais cruel como imperativo de gozo.
Essas formulações de Lacan podem-nos ajudar a pensar como, em tempos de neoliberalismo, operam as redes sociais, e a lançar algumas hipóteses sobre as novas modalidades de formação das massas.
No que diz respeito aos efeitos da comunicação pelas redes sociais na esfera política, tornou-se público escândalo da Cambridge Analytica, envolvendo o Facebook, que influenciou decisivamente o resultado das últimas eleições americanas, assim como a decisão de saída da Grã-Bretanha da Comunidade Europeia, no chamado Brexit. A partir de informações colhidas entre os usuários do Facebook, foi criado um modelo estatístico que permitia traçar o perfil de cada um desses usuários com base em suas manifestações na rede - likes - sobre temas diversos e, com isso, abordá-los, um a um, através de mensagens personalizadas, que trocavam justamente em seus interesses particulares; de pacotes de mensagens anônimas, cujo objetivo era atingir cada um e, ao mesmo tempo, formar um discurso comum que atendesse a determinados fins políticos. Bem ao estilo de como opera o discurso do capitalista, tal como formulado por Lacan em 1972, que busca tocar cada um em seu gozo, alimentando a expectativa de gozo com a promessa de gozo garantido.
Estaríamos diante, então, de um processo de fragmentação da massa, como estratégia de propaganda e manipulação da informação, mas que tem como objetivo reconstituí-la em seguida, formando uma nova massa que se reunifica por razões diferentes em torno de um determinado discurso ou de traços típicos de um candidato, sem que este precise sustentar suas mensagens em presença, no efetivo encontro com os seus pretensos eleitores. Em outras
palavras, sem que seja preciso colocar-se como um líder, alçado ao lugar de ideal de eu junto aos seus seguidores. A comunicação pelas redes, através de mensagens anônimas incumbe-se, em parte, disso. Nas massas tradicionais, o lugar do líder e a veiculação de sua mensagem se sustenta publicamente, em presença, ou seja, no discurso do mestre. Já a estratégia política através da mediação das redes e seu anonimato que, ao se dirigir a cada um em seus "gostos" particulares, procura domar as diversas formas de gozo e produzir uma uniformização do gozo a ser vendido como ideal, mais parece adequar-se ao estilo do discurso do capitalista.
Minha hipótese é de que nesse processo um líder é forjado como aquele que imaginariamente encarna esse ideal. O caldo de cultura que favorece essa possibilidade é o sentimento de desamparo provocado pela ideia de caos social, cujos principais elementos são a insegurança, a violência e a corrupção. Esse "ambiente" faz surgir um discurso radicalmente negativo, que se apresenta como novo. É nesse contexto que o discurso do ódio, em sua face disruptiva derivada da pulsão de morte, emerge, paradoxalmente, em lugar do ideal.
Ideal decaído, o discurso do ódio tomou as ruas em diversas partes do mundo e encontrou nas redes um ambiente propício a sua proliferação. Em 2013, alguns cientistas políticos chamaram a atenção para isso, mostrando o surgimento de uma semântica política niilista, que permeia esse discurso como aquele que sustenta a violência e até mesmo o extermínio do outro, simplesmente por ser ele o outro (Santos, 2013). Nesses últimos anos, assistimos à banalização do discurso do ódio em nosso país, a partir de uma exacerbação do imaginário que enceguece, pois cor da pele, gênero, opção sexual, classe social, posição política, expressão de ideias que se diferenciam do discurso hegemônico, sustentado pelos interesses do capital e veiculado pela grande mídia, são motivos para manifestações de violência e promessas de destruição.
Nesse ponto, gostaria de voltar a Freud, quando se refere às massas que se mantêm unidas a partir da ilusão do amor do líder a todos os membros do grupo, sem esquecer que este amor comporta um componente de ódio àqueles que não fazem parte da massa, que se manifesta em situações extremadas. Nessas situações, em que o líder ocupa simultaneamente o lugar de objeto e de ideal, Freud alerta que a instância crítica do ideal do eu, ou seja, sua face de supereu, é silenciada, a consciência moral não funciona mais e o amor ao líder justifica o seu discurso e atribui-lhe até certa inocência. Como ele diz, "na cegueira do amor, alguns se convertem em criminosos sem remorsos" (Freud, 1921/ 2006, p.107). Isso nos faz lembrar o que caracterizou as massas no período da ascensão de Hitler ao poder na Alemanha, que as observações de Freud antecipam.
Essas observações são também oportunas para pensarmos nos tempos atuais, em que o discurso do ódio se explicita de forma contundente e passa a hegemonizar a cena política, com seus efeitos de violência e destruição que evidenciam de forma marcante a presença da pulsão de morte. Nesse contexto, vemos ressurgir o líder pelo avesso, que, ao encarnar o discurso do ódio, veiculado de forma maciça pelas redes sociais, não lidera, mas libera, como alguns têm apontado: libera o gozo da destruição do outro, só por ele ser o outro. Fruto da combinação dos efeitos das modernas tecnologias da Internet e das redes sociais sob a égide do discurso capitalista em tempos de neoliberalismo e da força da psicologia das massas, expressa-se nas organizações tradicionais de massas como a Igreja e o Exército.
Referências
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Freud, S. (2006). El malestar en la cultura. In: Obras completas, vol. 21. Buenos Aires: Amorrortu. (Original publicado em 1930 [1929] [ Links ])
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Freud, S. (2007). Introducción del narcisismo In Obras completas, vol. 14. Buenos Aires: Amorrortu. (Original publicado em 1914). [ Links ]
Freud, S. (2007). Pulsiones y destinos de pulsión. In Obras completas, vol. 14. Buenos Aires: Amorrortu (Original publicado em 1915) [ Links ]
Lacan, J. (1978). Du discours psychanalytique. In: Lacan in Itália, Milão: La Salamandra. [ Links ]
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Lacan, J. (2003). Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da Escola [1967] In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. (Original publicado em 2001) [ Links ]
Rosário, M. (2013). Wanderley Guilherme: o ódio ganhou as ruas. In: O cafezinho, 09 de jul. 2020. Disponível em: https://www.ocafezinho.com/2013/07/09/o-odio-ganhou-as-ruas /" https://www.ocafezinho.com/2013/07/09/o-odio-ganhou-as-ruas/ Acesso em: 30 de jul.2018. [ Links ]
(1) Os elementos do discurso são S1, S2, $ e a e os lugares:
agente outro (gozo)
verdade // produção (mais-de-gozar)
(2) Discurso do mestre:
(3) Discurso do Capitalista: