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Revista EPOS
versão On-line ISSN 2178-700X
Rev. Epos vol.7 no.2 Rio de Janeiro jul./dez. 2016
ARTIGOS
Permanência de mulheres em situação de violência: compreensões de uma equipe multidisciplinar*
Permanence of women in violence situation: comprehensions of a multidisciplinary team
Milena Nogueira AzevedoI; Paula Rúbia Oliveira do Vale AlvesII
IGraduada em Psicologia (FTC). Psicóloga do Caps. Coordenadora do Nasf/75.991635011. E-mail: milenaazevedo.psi@gmail.com
IIMestre em Estudos Literários (UEFS). Especialista em Saúde Mental (UFBA). Graduada em Psicologia (UFBA). Professora universitária. Psicóloga. 75. 991994404. E-mail: paularubia@uol.com
RESUMO
A Violência Contra a Mulher (VCM) perpetrada por parceiro íntimo tem apresentado crescimento significativo no Brasil, sendo considerada uma questão de Saúde Pública. Assim, neste trabalho, o objetivo foi identificar a compreensão de profissionais lotadas num Centro de Referência de Atendimento à Mulher (CRAM), no interior da Bahia, acerca das causas de permanência de mulheres em situação de violência. Participaram deste estudo seis funcionárias e ex-funcionárias do CRAM. Trata-se de uma pesquisa de campo, qualitativa, de cunho exploratório e descritivo. Para coleta de dados, foi utilizado um questionário semiestruturado e observação direta. O material foi analisado e categorizado por meio da técnica de análise de conteúdo. A interpretação teve como base o referencial psicanalítico e pesquisas recentes sobre o tema. Os resultados indicam a existência de duas categorias temáticas: a primeira envolve a percepção sobre VCM, que inclui o conceito de gênero, os danos provocados pela violência e o elevado índice de permanência da mulher na relação. A segunda traz as possíveis causas que configuram essa permanência: dependência financeira, filhos e dependência emocional. Enfatiza-se a importância do fortalecimento da rede socioassistencial, bem como as contribuições da Psicologia e da Psicanálise para possibilitar uma escuta singular da condição em questão.
Palavras-chave: violência contra a mulher; reincidência; escuta singular.
ABSTRACT
Violence Against Women (VCM) perpetrated by intimate partner has presented significant growth in Brazil, being considered a Public Health issue. Thus, the objective of this study was to identify the understanding of professionals at a Reference Center for Assistance to Women (CRAM), in the interior of Bahia, about the causes of permanence of women in situations of violence. Six CRAM employees and former employees participated in this study. It is a field research, qualitative, exploratory and descriptive. A semistructured questionnaire and direct observation were used for data collection. The material was analyzed and categorized using the technique of content analysis. The interpretation was based on the psychoanalytic framework and recent research on the subject. The results indicate the existence of two thematic categories: the first involves the perception about VAW, which includes the concept of gender, the damage caused by violence and the high rate of permanence of women in the relationship. The second, brings the possible causes that shape this permanence: financial dependence, children and emotional dependence. Emphasis is given to the importance of strengthening the social-welfare network, as well as the contributions of Psychology and Psychoanalysis to enable a singular listening of the condition in question.
Keywords: violence against women; recidivism; singular listening.
INTRODUÇÃO
A violência é um fenômeno multifacetado, complexo, e que atinge um elevado número de pessoas, com diversas consequências (KRUG, et al., 2002); apesar disso, sua definição ainda é carregada de ambiguidades e imprecisões. Birman (2006) considera a violência uma questão complexa, que exige, pelas suas características, a adoção de uma perspectiva interdisciplinar que abarque concepções da filosofia, ciências humanas e das ciências sociais.
Assim, na direção de uma conceituação para o tema, no livro Violência e Psicanálise, Costa (1986) a define como a utilização desejada da agressividade com finalidades destrutivas, a qual pode ser consciente, voluntária, racional, deliberada, ou mesmo inconsciente, irracional e involuntária. Pontua, também, que o objeto da agressividade humana é arbitrário, pode ser deslocado e é regido pelo desejo. Para ele, a ação agressiva só é significada como violenta caso o sujeito violentado perceba naquele que violenta o desejo pela destruição (de morte, de fazer sofrer).
Para a Organização Mundial de Saúde (KRUG et al., 2002), a violência caracteriza-se como o uso intencional, real ou a ameaça da força física e do poder, contra outra pessoa, contra si próprio ou contra um grupo ou comunidade, que implique ou que tenha possibilidade de lesionar, assassinar, efetuar algum tipo de dano psicológico, deficiência no desenvolvimento do agredido(s) ou privação. No Relatório Mundial de Violência e Saúde (KRUG et al., 2002), destaca-se a inclusão do tipo de violência que não resulta diretamente em lesão ou morte, mas causa problemas psicológicos, sociais e físicos.
Assim sendo, a ocorrência da violência interpessoal, suas implicações e significados para o sujeito (agredido) e perpetrador convocam também a compreensão de como os outros atores (familiares, amigos, categorias profissionais) não envolvidos diretamente no episódio(s) entendem a questão.
Pelo que foi exposto, tratando-se especificamente da violência contra a mulher, e em resposta ao aumento expressivo do número de casos ocorridos, associados, principalmente, à violência perpetrada por parceiro íntimo no âmbito doméstico (SCHRAIBER et al., 2007), torna-se imperativo entender de que forma outros sujeitos compreendem a permanência de mulheres na situação de violência referida.
Vale notar que este fenômeno ganha expressividade nos dias de hoje, especialmente, após as movimentações feministas a partir do século XX (MOURA et al., 2012). Nesse contexto, os reflexos e reincidências deste tipo específico de violência têm ganhado destaque nos estudos do problema (SCHRAIBER et al., 2007; WAISELFISZ, 2015).
De acordo com Waiselfisz (2015), entre 2003 e 2013 houve um incremento de 21% nos homicídios contra mulheres nos índices nacionais. Em âmbito internacional, de acordo com a Organização Mundial de Saúde (WAISELFISZ, 2015), o Brasil, num grupo de 83 países, ocupa a 5ª posição, com um dos maiores indicadores de VCM. Além disso, a reincidência da violência acontece em quase metade dos casos (49,2%). Segundo Fernandes (2003 apud MOURA et al., 2012), a VCM tem sido considerada uma questão de saúde pública, atingindo, preferencialmente, a população economicamente ativa. Assim, em decorrência de tudo o que já foi citado, muitos avanços no que se refere às políticas públicas de enfrentamento a esta violação têm sido empreendidos no Brasil.
Nessa direção, em resposta aos reiterados casos de absolvição de autores de homicídios contra mulheres nos anos 1970, em todo o país, movimentos feministas iniciaram uma priorização dessa temática, culminando na criação da primeira Delegacia de Defesa das Mulheres DEAM, em 1985, no Estado de São Paulo, mediante o Decreto nº 23.769/85. Entretanto, vale salientar que o delito "homicídio" não foi contemplado pelo decreto. Somente em 1996, tal delito se inseriu na competência das delegacias da mulher (SILVA, et al., 2011).
Inicialmente, as DEAMs assumiram a denominação de Delegacia de Defesa da Mulher, na atualidade, são denominadas Delegacias Especializadas no Atendimento à Mulher, superando o cunho estritamente criminal e incluindo serviços que integram a Rede de Atendimento à Mulher em Situação de Violência. No âmbito dela, vale ressaltar que:
(...) o papel dos Centros de Referência de Atendimento à Mulher (CRAM) como um espaço de acolhimento e atendimento psicossocial, que possibilita uma reflexão sobre a condição feminina e a violência de gênero, orienta e encaminha para os serviços de saúde, de assistência social, de qualificação profissional e de natureza jurídica. A consolidação desses Centros permite, também, que as Delegacias recuperem sua função policial de registrar, por meio da escuta qualificada e não julgadora, o relato da história de cada mulher, de apurar e investigar a violação de direitos e infrações penais, e possibilitar a punição dos agressores (SECRETARIA ESPECIAL DE POLÍTICAS PARA AS MULHERES, 2006b, p. 39).
Enquanto instrumento importante para o enfrentamento da violência, o CRAM surge como porta de entrada na prevenção e atenção à violência contra a mulher, uma vez que objetiva a ruptura da situação de violência e a promoção da cidadania. Sob a perspectiva multi e interdisciplinar, com o apoio de técnicos das áreas social, psicológica e jurídica, oferece orientações e informações importantes, assumindo o papel de articulador dos serviços existentes em âmbito governamental e não governamental, integrantes da Rede Especializada (SECRETARIA ESPECIAL DE POLÍTICA PARA AS MULHERES, 2006a).
Nesse mesmo ano, foi promulgada uma lei para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, conhecida como Lei Maria da Penha, de nº 11.340/2006 (BRASIL, 2011, 2006). No texto da normativa vigente, há de se destacar a importância de assegurar a garantia dos direitos fundamentais à mulher, independente de raça, classe, etnia, orientação sexual ou outro marcador social, favorecendo uma vida sem violência, bem como a preservação da saúde deste público.
Após esta conquista, em agosto de 2007, houve o lançamento do Pacto Nacional pelo Enfrentamento da Violência Contra as Mulheres. Parte da Agenda Social do Governo Federal, que versou sobre a integração entre os estados, municípios e união, com vistas à promoção das ações de enfrentamento à violência e descentralização das políticas públicas, por meio de um acordo que teve como base a transversalidade de gênero, a intersetorialidade e a capilaridade das ações planejadas (BRASIL, 2011).
Mais recentemente, com o objetivo de fortalecer ainda mais o enfrentamento à violência, foi criada e promulgada a Lei de nº 13.104/2015, denominada Lei do Feminicídio, que "determina o feminicídio como circunstância qualificadora do crime de homicídio, incluindo-o no rol dos crimes hediondos" (BRASIL, 2015, p. 1).
É possível perceber, desse modo, que houve um deslocamento da problemática do campo privado para o domínio público, com a interferência do Estado, a partir das Leis e ações integradas propostas pelo governo, incluindo, assim, o CRAM. O que implica a inserção de novos atores neste cenário: equipe multiprofissional que acolhe a demanda em questão. Sob esta perspectiva, a pergunta que se faz é a seguinte: sob a ótica desses profissionais, quais as possíveis causas para a permanência da mulher numa relação de violência perpetrada por parceiro íntimo?
Assim, a pesquisa em questão vem conceituar a violência tomando como base documentos oficiais e pesquisas significativas sobre o tema; analisar os dados coletados em campo acerca da compreensão do fenômeno pelos profissionais em questão e discutir as possíveis causas da continuidade da relação da mulher com o parceiro, à luz do referencial psicanalítico e das pesquisas recentes sobre o assunto.
Portanto, considerando os prejuízos psicológicos, sociais e físicos causados pela VCM (CÔRTES, 2008), a análise das informações amplia significativamente o conhecimento acerca do tema, assim como os impactos disso na concretização do objetivo principal do CRAM, que é a prevenção de futuros atos de agressão e promoção da suspensão do ciclo de violência (SECRETARIA ESPECIAL DE POLÍTICA PARA AS MULHERES, 2006a).
Vale ressaltar que este estudo tem como foco a discussão das violências no âmbito das relações heterossexuais, não descartando a ocorrência do fenômeno entre a população LGBTTI (Lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais, intersexuais). Questão, inclusive, que deve ser problematizada, haja vista sua invisibilidade no que diz respeito ao reconhecimento da existência de violências dentro dessas configurações, como também por estar intrinsecamente relacionada ao conceito de gênero (CEZARIO et al., 2015).
MÉTODO
Participantes
Os critérios de inclusão para seleção da amostra se basearam nos seguintes aspectos: ser do sexo feminino; ter, em média, dois anos de atuação no serviço, mesmo que não esteja vinculado ao CRAM atualmente; ser técnica de nível superior, ou coordenadora e possuir experiência com mulheres que permanecem na relação em situação de violência. Foram entrevistadas ao todo seis pessoas, entre elas, funcionárias e ex-funcionárias do local.
Materiais
A coleta de dados realizou-se a partir da aplicação de um questionário semiestruturado, contendo nove perguntas abertas relacionadas à VCM; no entanto, as questões norteadoras pertinentes ao problema desta pesquisa foram: a definição de VCM; reincidência na violência e principais (ou principal) causas que fazem com que as mulheres permaneçam na relação violenta. Apesar disso, considerando a natureza do material aplicado, outros aspectos que surgiram dos discursos também foram gravados e/ou transcritos e utilizados. Vale destacar que apenas uma das participantes aceitou gravar as respostas, o que limitou, de certo modo, a obtenção de maiores informações com as demais.
Procedimentos de coleta de dados
A presente pesquisa adotou o delineamento qualitativo, caracterizado por Breakwel et al. (2010) como a descrição de processos e apontamento de diferenças no modo como esses processos se apresentam ao longo do tempo. É descritiva, na medida em que objetiva identificar e apresentar a compreensão das profissionais atuantes no CRAM, em um município do interior da Bahia, a respeito das causas atribuídas por elas à permanência da mulher na relação de violência. Constituiu, portanto, uma imersão em campo, de caráter exploratório.
Atendendo aos critérios estabelecidos na Resolução do Conselho Nacional de Saúde (CNS) nº 466/12 (BRASIL, 2013), que trata das diretrizes e normas regulamentadoras de pesquisas que envolvam seres humanos, o presente estudo iniciou-se apenas após a aprovação no Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Tecnologia e Ciências (Certificado de Apresentação para Apreciação Ética CAAE: 54711416.2.0000.5032). A etapa posterior consistiu na ida da pesquisadora ao local de estudo e apresentação da proposta aos sujeitos. Todas foram informadas sobre os objetivos da pesquisa e esclarecidas a respeito, através da leitura pormenorizada do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). A partir da aceitação, duas vias do TCLE foram assinadas, uma entregue à participante e outra à pesquisadora.
Entre julho e agosto de 2016, uma vez por semana, no turno da tarde (no mínimo 1h30min e no máximo 3 h de observação diária), foram realizadas também observações diretas no CRAM e posterior registro em diário de campo, a fim de identificar como ocorre a dinâmica individual e grupal do atendimento às mulheres reincidentes. No entanto, como não foi possível a observação direta dos atendimentos, devido à necessidade de preservar o sigilo e a privacidade das assistidas, a imersão foi feita apenas no espaço das salas de espera, onde há o acolhimento das mesmas.
Procedimento de análise de dados
Os dados foram submetidos à análise de conteúdo, que tem por objetivo principal "conhecer aquilo que está por trás das palavras sobre as quais se debruça" (BARDIN, 1977, p. 44). Este tipo de análise compreende a fragmentação de um texto, buscando evidenciar os indicadores que permitam inferir sobre outra ótica, que não a que é expressa no conteúdo. São três etapas de análise: a primeira, a "pré-análise", objetiva a organização dos dados, através da escolha dos mais convenientes e dos indicadores para a interpretação deles. A segunda fase consiste na exploração do material, enumerando os temas obtidos. Por fim, há o processo de inferência e interpretação das informações com base nos indicadores (BARDIN, 1977).
Na pesquisa em questão, foi realizada uma análise qualitativa de conteúdo, caracterizada como a ênfase no significado e não na quantificação (BREAKWEL et al., 2010). Para a interpretação do material coletado, foram utilizados referenciais de base psicanalítica, bem como pesquisas recentes sobre o tema, a fim de identificar as interlocuções possíveis.
Considerando a necessidade de preservar as identidades das participantes, optou-se por usar o termo Participante (P) abreviado e o respectivo número relacionado à ordem na tabulação dos dados (P1, P2, P3, e assim por diante).
RESULTADOS E DISCUSSÃO
Conforme descrito no método, o material em questão foi obtido por meio da aplicação de questionários semiestruturados e observações em campo no CRAM e submetidos à análise de conteúdo por categorias temáticas. Os resultados obtidos corresponderam a duas categorias e seus respectivos núcleos de sentido:
Violência contra a mulher
No que se refere à categoria VCM, especificamente perpetrada por parceiro íntimo, o núcleo temático "Comportamento numa relação íntima que provoca danos" vem indicar os prejuízos biopsicossociais resultantes. Segundo a Participante 4 (P4): "A violência por parceiro íntimo é definida como comportamento dentro de uma relação íntima que provoque dano físico, sexual ou psicológico."
Nesta fala fica explícita a relação com o que define a Lei nº 11.340/2006, conhecida como Lei Maria da Penha, criada em 2006 (BRASIL, 2011, 2006). A Lei define a violência doméstica e familiar como "ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial" (BRASIL, 2006, p. 2). Reconhece, assim, a existência de cinco tipos de violência doméstica mais comuns, sendo elas: física, psicológica, sexual, patrimonial e moral.
No contexto de estudo, as violências patrimonial e moral não foram citadas por nenhuma das participantes. Vale ressaltar ainda a maior incidência da violência psicológica em relação à física e à sexual indicada na maioria das respostas. Entre todas as participantes, oito vezes a palavra "psicológica" foi citada, seguindo, respectivamente, da física e da sexual, cada uma, quatro vezes. Fato este confirmado por diversos estudos sobre o tema (SCHRAIBER et al., 2007; MOURA et al., 2012; COSTA et al., 2015).
De acordo com o artigo 7º da Lei Maria da Penha, a violência psicológica se caracteriza como:
II [...] qualquer conduta que lhe cause dano emocional e diminuição da autoestima ou que lhe prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem, ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação (BRASIL, 2006, p. 2).
Ainda nesse sentido, P5 entende por VCM "Qualquer conduta que diminua a sua autoestima, seja ela física ou emocional. O mais comum é a violência diária de forma psicológica que diminui a mulher, de modo a lhe tornar submissa e dependente emocionalmente". A fala da P5 vai ao encontro da definição de violência psicológica referida na Lei, dado que revela o caráter progressivo e contínuo, bem como os efeitos psicológicos danosos à mulher violentada.
Os participantes consultados também caracterizam o fenômeno como violência de gênero. Segundo P3, a VCM é definida "primeiramente, na desigualdade de relações de gênero em alta magnitude". Outra participante sinaliza a importância do papel social da mulher e o impacto disso na ocorrência da violência: "Na maioria dos casos, o parceiro é muito machista e não respeita a condição da mulher perante o papel atual da mesma na sociedade, este é um entre tantos outros fatores que levam à violência" (P2).
Nesse contexto, as participantes pontuam a existência de uma relação entre a violência e o gênero, considerando, ainda, a influência do papel social da mulher. Para compreender como se concebe o conceito de gênero, é necessário refazer o processo histórico das construções sobre este ‘universo'. Nesse sentido, Birman (2001) pontua que no início do século XIX se forjou um discurso sistemático acerca da diferença sexual, especialmente por conta da reivindicação de igualdade de direitos na Revolução Francesa. Nesse caso, havia uma ‘naturalização e essencialização'1 do ser homem e ser mulher. Para Birman (2001), enquanto marca desse contexto, "o discurso da diferença sexual esboçaria uma ontologia dos diversos sexos, que se discriminariam definitivamente, isto é, de forma incontornável e irreversível" (p. 35).
Desse modo, a hierarquia entre os sexos fundou-se, a partir de então, no registro biológico, determinante para as diferentes inserções nos espaços sociais, legitimada pelo determinismo corporal que direciona destinos bastante discriminados para o macho e para a fêmea. Com o objetivo de contestar essa realidade, desconstruindo tais discursos, o feminismo se impôs (BIRMAN, 2001).
Nessa direção, a fim de delimitar e circunscrever um novo olhar e espaço para a mulher, as feministas desenvolveram o conceito de gênero. Definição essa que, distinta da lógica biologizante até então existente, passa a considerar as construções históricas e sociais relacionadas aos homens e mulheres. Assim, para Scott, "o gênero é elemento constitutivo de relações sociais baseadas nas diferenças percebidas entre sexos, [...] e é forma primária de dar significado às relações de poder" (SCOTT, 1995, p. 86). A autora ainda propõe que, enquanto componente constitutivo das relações sociais, o gênero implica pensar quatro elementos que se inter-relacionam, são eles: representações simbólicas evocadas através dos símbolos culturalmente disponíveis (Eva e Maria, como símbolos de mulher); os conceitos normativos que expressam as interpretações fixas dos significados dos símbolos, impostas como únicas possibilidades (‘essencialização' do papel da mulher); concepção política da noção binária e rígida do homem e da mulher; e o quarto aspecto das relações, que é a identidade subjetiva do sujeito (SCOTT, 1995).
Nesse sentido, pensar o gênero como construção sócio-histórica, produtora de significados inerentes às relações de poder, implica enxergá-lo no imaginário social, simbólico, normativo, rígido e inflexível relacionado a tudo aquilo que concerne ao ‘universo' masculino e feminino. Assim, pontua-se a importância de reconhecer que os papéis baseados em normas binárias e rígidas, em que transitam homens e mulheres, podem ser promotores de condutas violentas. Essa é uma das facetas da história.
No quesito alto índice de permanência na relação após a reincidência, grande parte das participantes concordaram. A maioria das assistidas retorna ao serviço assistencial em decorrência de permanecerem na situação de violência, porém, nem todas decidem continuar o acompanhamento. Segundo P6, "em torno de 90% ou até mais retornam porque sofreram VCM novamente...".
Nesse aspecto, tanto na fala das entrevistadas, quanto na observação realizada, notou-se a grande reincidência de casos de permanência em situação de violência, além da forma como isso afetava a vida desses sujeitos e das próprias profissionais. Em uma das observações ocorreu que duas assistidas chegaram ao CRAM e solicitaram que alguém as atendesse. Ao se dirigir ao portão, a profissional diz: "Olha ela!", ao que a assistida responde: "Bom sinal, né? Quando a gente vem é sinal de que está viva!". Esta última frase demonstra a gravidade dessa situação, que coloca a vida da mulher em risco.
Apesar disso, em outra resposta, fica evidente o desligamento de um dos principais serviços do CRAM: "é grande o número de mulheres que perpetuam no ciclo de violência e desistem dos procedimentos jurídicos" (P5). Vale ressaltar, também, que de julho a agosto/2016, das observações realizadas no turno vespertino, o quantitativo de mulheres que compareciam ao serviço variava de nenhuma a no máximo três. Tal situação pode engessar a possibilidade de minimização ou ruptura da violência por parte da Rede.
Ainda nesse sentido, outra participante pontua a motivação para o desligamento: "várias delas dizem não ter interesse em participar mais, pois tinha se reconciliado com o seu parceiro" (P4). Isso sugere que a violência pode ser desconsiderada logo após a reconciliação, o que mantém a possibilidade da manutenção do seu ciclo.
Confirmando esses dados, em uma pesquisa realizada em Vitória da Conquista-BA, foi realizado um levantamento dos inquéritos policiais em decorrência da violência contra a mulher, em que as denunciantes retiraram a queixa contra o agressor. Os dados apontaram que mais de 50% das mulheres declararam não ter interesse em dar continuidade aos procedimentos (SOUSA; CUNHA, 2015). Esse contexto pode levar a uma descontinuidade das ações prestadas pela Rede, o que, talvez, acabe comprometendo todos os outros dispositivos socioassistenciais, inclusive o próprio CRAM.
Segundo as participantes (P6, P2), há uma falta de visibilidade do serviço em outros espaços, o que pode implicar uma baixa frequência das mulheres. Assim, na tentativa de reverter tal situação, buscam divulgar os serviços oferecidos no CRAM em instituições de ensino públicas e privadas e outros dispositivos existentes na cidade (como, por exemplo, naqueles do âmbito da Saúde e Ação Social).
Principais causas da permanência da mulher na relação violenta
Dependência financeira
Na maioria do material coletado na categoria 2, a dependência financeira sobressaiu como fator importante para a manutenção do vínculo com o parceiro, mesmo após a violência. Segundo P5: "A principal é a financeira, tendo em vista a dependência econômica da maioria delas." Nesse quesito, grande parte das pesquisas indica esse fator como um dos principais; em outras, esse mesmo aspecto aparece como secundário, mas existente e importante para a manutenção da relação (FONSECA; LUCAS, 2006; COSTA et al., 2015; IDALINO; LOPEZ, 2015; SOUSA; CUNHA, 2015).
De acordo com o jurista baiano Gomes (1981 apud FONSECA; LUCAS, 2006), a dependência financeira cuja razão pode ter sido a proibição do homem a mulher trabalhar, falta de oportunidade ou ‘zona de conforto', leva a mulher a recorrer ao marido, o que pode facilitar a violência, ao se utilizar disso como forma de poder sobre ela.
Num estudo realizado num bairro periférico de Salvador-BA, com o objetivo de identificar o perfil socioeconômico de mulheres e homens em situação de violência conjugal, observou-se que, apesar de 60% delas referirem alguma fonte de renda, apenas 6% se consideraram independente financeiramente. Assim, é importante levar em conta os outros atravessamentos correspondentes a essa realidade, como as questões da raça/etnia, escolaridade, desemprego e do próprio gênero, como sinaliza Silva e Sadenberg (2008) numa pesquisa sobre VCM em Conceição do Coité-BA.
Nessa direção, vale ressaltar também que a violência contra a mulher não se restringe ao público financeiramente dependente, abarcando diversos estratos socioeconômicos (COSTA et al., 2015). Isso sinaliza que, apesar da grande incidência de mulheres dependentes financeiramente no contexto de estudo, não significa a inexistência de casos de violência doméstica para com aquelas com maior nível socioeconômico.
Filhos
A dependência socioeconômica parece ter relação também com os filhos. Nesse sentido, a preocupação com a sobrevivência das crianças, haja vista o afastamento do agressor do lar e o risco de não continuar mantendo financeiramente a família, por conta da denúncia, pode levar a mulher a continuar no ciclo de violência, como sugere Gomes et al. (2013).
Numa das falas, P6 coloca: "A maioria tem filhos, praticamente todas... e a partir de três filhos. E outra... quando era menos de três filhos ainda eram jovens, tipo, adolescentes ainda... vamos supor, aos 14 anos, 15 anos, entendeu?." Ratificando esta informação, em âmbito nacional, de acordo com a Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres (2016), foi registrado no 1º semestre de 2016, através do Ligue 180, que 78,72% das mulheres que sofreram violência doméstica possuem filho(as) e que 82,86% presenciaram ou também foram vítimas da violência. Assim, a fala da participante e os dados supracitados sinalizam para dois fenômenos: 1) gravidez precoce e 2) inserção de outros atores no cenário violento.
Outro ponto que merece destaque são aquelas mulheres que permanecem na situação, não por conta dos ‘filhos menores', mas porque são pressionadas por familiares e, especialmente, pelos filhos pré-adolescentes, adolescentes e adultos a permanecerem na situação de violência, o que não descarta a possibilidade de existirem aqueles contra a permanência da relação. Na pesquisa realizada em Vitória da Conquista-BA, pôde-se perceber exatamente essa realidade. Muitas mulheres retiram a representação contra o agressor, em decorrência, frequentemente, dos filhos discordarem da atitude da mãe (SOUSA; CUNHA, 2015).
Dependência emocional
Assim como é alto o índice de violência psicológica, parece grande a relação entre a permanência na violência e a dependência emocional da mulher ao agressor, como corroboram pesquisas recentes sobre o tema (COSTA et al., 2015; IDALINO; LOPES, 2015).
Sobre isso, P5 pondera: "[...] por uma criação machista, acaba sempre acreditando que o homem mudará, o que envolve também a questão do romantismo de mulher, a qual sempre acredita num conto de fadas em que tudo terá um final feliz." Nesse sentido, ao que parece, há um componente social articulado à dependência emocional da mulher, de modo que a idealização do amor romântico é um importante fator gerador da mesma. Como apontam também outras pesquisas sobre o tema (IDALINO; LOPEZ, 2015).
Já de acordo com P6:
As causas podem ser várias... a gente não pode determinar uma causa, "é por causa disso que acontece!", cada caso é um caso [...] mas para mim, há um gostar, na minha maneira de pensar doentio [...] E que elas não conseguem muitas vezes sair da situação e que eu vejo que algumas tentam sair e até conseguem, porque quando querem sair, conseguem, mas tem outras que não conseguem porque a gente vê que não fazem nenhum esforço para conseguir aquilo.
Esse discurso parece reproduzir uma frase que circula no imaginário popular referente à conivência da mulher diante da agressão: "Se a mulher apanha é porque gosta!", como pontua Silva (1992 apud CARNEIRO; FRAGA, 2012). Segundo Ravazzola (1997, 1999 apud NARVAZ, 2006), fica implícito uma transferência da responsabilidade do verdadeiro agressor para o sujeito agredido. Pode-se considerar tal posicionamento equivocado, uma vez que a existência de sentimentos afetivos para com o agressor, muitas vezes, não elimina o sofrimento presente na situação.
Nesse sentido, cabe problematizar o trecho da fala da P6: "não fazem nenhum esforço para conseguir". Para uma tentativa de compreensão da questão, Lima e Werlang (2011) realizaram um estudo sobre a violência contra a mulher, numa perspectiva psicanalítica. Pôde-se identificar que mulheres que reincidem em relações violentas podiam ter uma história de vida marcada por experiências traumáticas, especialmente com os pais, o que implicou a ‘compulsão à repetição'2 e escolhas conjugais de parceiros violentos. Desse modo, "a vulnerabilidade decorrente da violência e do desamparo resultou em um encadeamento de repetições que as aprisionou a relacionamentos destrutivos (ibidem, p. 519)".
Nessa direção, observou-se no CRAM, a partir das falas das participantes, o grande número de mulheres que repetiam o episódio de violência com outros parceiros. Segundo P6, essas mulheres sempre relataram que "não tinha mais jeito", "é falta de sorte", e retornavam ao serviço em decorrência da relação atual.
Desse modo, acredita-se que muitas mulheres não conseguem romper o ciclo de violência por questões que fogem ao seu controle, e não pela ausência de ‘esforço' para conseguir sair da situação. Além das considerações tecidas acima, a partir das observações feitas, a própria procura do serviço já é uma tentativa de sair da situação, a mulher se posiciona como agente de ruptura do ciclo de violência, como pontua Silva e Sadenberg (2008). Assim, não se trata de vontade deliberada, como parece referir a participante.
A respeito do que foge ao controle, impedindo que se mantenha a decisão de romper com a violência vivenciada, recorre-se à proposição freudiana que aponta para causas inconscientes. Nesse contexto, parte do trabalho psicanalítico visa à elaboração das resistências,3 "que efetua as maiores mudanças no [sujeito] e que distingue o tratamento analítico de qualquer tipo de tratamento por sugestão" (FREUD, 1911-1913/1990, p. 97). Assim, "a partir da psicanálise, cada mulher deve poder e querer se fazer escutar em sua singularidade, o que faz obstáculo à uniformidade de comportamento [violento]" (MORAO, 2016, p. 7). Deve-se possibilitar a cada mulher, em sua singularidade, questionar-se: o que a mantém nesta posição de dependência emocional?
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os resultados desta pesquisa apontam para a existência de duas categorias: 1) relacionada à percepção das profissionais a respeito da VCM, que aponta o gênero feminino como um possível fator de risco para a vivência da violência numa relação íntima, bastante frequente e reincidente; e 2) remete às causas de permanência em relações de VCM.
A partir das respostas obtidas nas entrevistas, as causas prevalentes referem-se a motivos concretos e objetivos (dependência financeira e filhos), ficando em terceira posição a dependência emocional, motivo subjetivo que coaduna com o imaginário popular a respeito da permanência de mulheres em relações violentas.
Assim, o serviço multidisciplinar prestado pelo CRAM busca intervir sobre as motivações concretas e subjetivas supracitadas, oferecendo alternativas para a saída da situação. Apesar disso, tendo em vista a recorrência do desligamento de mulheres do serviço, torna-se importante também ações que visem à sensibilização quanto à importância da assistência oferecida no CRAM. Sugere-se mais discussão e produção teórica e prática a respeito da questão, além de um maior fortalecimento do trabalho com a rede intersetorial na perspectiva de mais monitoramento e acompanhamento das ações realizadas, com o objetivo de favorecer o alcance dos resultados.
Considerando a necessidade de maior aprofundamento do fenômeno VCM, este estudo não pretende ser conclusivo, mas sim provocativo. Logo, não se desconsidera o que foi apontado pelas profissionais em relação às causas de permanência em situação de violência (dependência econômica e filhos), bem como os motivos apresentados pela literatura pesquisada. No entanto, enfatiza-se a importância da Psicologia e, em especial, da Psicanálise, por se tratar do corpo teórico próprio ao inconsciente, para possibilitar uma escuta individualizada desse sujeito na tentativa de levá-lo a uma resposta (especialmente, nos casos em que não existem motivos tidos como "concretos", mas apenas a dependência emocional) à questão que subjaz toda essa problemática: "Por que não consigo sair dessa situação que sei que é danosa para mim?", e a partir das possíveis formulações posteriores, possibilitar que cada uma construa suas próprias estratégias de enfrentamento, particulares a cada vivência.
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Notas
1 Para Birman (2001), a naturalização consiste na perspectiva pela qual a natureza diferenciada dos sexos femininos e masculino era reflexo exclusivamente dos aspectos biológicos (anatômico e fisiológico). Já a essencialização foi instituída pelo paradigma da diferença sexual, que postulou a existência de diferenças radicais entre o ser homem e o ser mulher.
2 De acordo com Roudinesco e Plon, consiste num "processo inconsciente e, como tal, impossível de dominar, que obriga o sujeito a reproduzir sequências (atos, ideias, pensamentos ou sonhos) que, em sua origem, foram geradoras de sofrimento, e que conservaram esse caráter doloroso" (1998, p. 656).
3 "Conjunto das reações de um analisando cujas manifestações, no contexto do tratamento, criam obstáculos ao desenrolar da análise" (ROUDINESCO; PLON, 1998, p. 659).
Recebido em: 28/5/2017
Aprovado para publicação em: 5/10/2017
* Agradecimentos a todas e todos os profissionais, que fortalecem a Rede de Enfrentamento à Situação de Violência e fomentam discussões e afetações, nos seus variados campos de atuação e saberes.