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Analytica: Revista de Psicanálise

versão On-line ISSN 2316-5197

Analytica vol.11 no.20 São João del Rei jan./jun. 2022

 

ARTIGOS

 

Efeitos do discurso capitalista: reflexões sobre a violência na atualidade

 

Effects of capitalist discourse: reflections on violence today

 

Effets du discours capitaliste: réflexions sur la violence aujourd'hui

 

Efectos del discurso capitalista: reflexiones sobre la violencia hoy

 

 

Maria Caroline Cardoso Gomes*; Magali Milene SilvaI**

ILaço Analítico Escola de Psicanálise - Brasil

 

 


RESUMO

O artigo objetiva investigar um fenômeno que é característico da própria cultura: a violência, e sua relação com o laço social dominado pelo discurso capitalista. Elucidamos o conceito de necropolítica para caracterizar a violência tal como se apresenta na atualidade. Discutimos como as pulsões operam no processo de formação da civilização e como esta regula a agressividade, possibilitando a vida coletiva. Este artigo busca, ainda, analisar o fenômeno da violência como algo que denuncia um não funcionamento, a partir da teoria dos discursos de Jacques Lacan, especialmente a partir de uma análise do discurso capitalista. A violência aparece como aquilo que aponta para uma manifestação possível diante dessa estrutura discursiva, já que esta faz curto-circuito, rompe com algo do campo da civilização. Os próprios homens passam a interpretar-se como mercadoria, objetos a serem consumidos, mesmo que fatalmente por via desse fenômeno que nos é tão comum, mesmo que estranho: a violência.

Palavras-chave: Psicanálise, Violência, Capitalismo, Discurso.


ABSTRACT

This article aims to investigate a characteristic phenomenon of the culture itself: violence, and its relationship with the social bond dominated by the capitalist discourse. We elucidated the concept of necropolitics to characterize violence as it appears today. We discussed how the drives operate in the civilization formation process and how it regulates aggressiveness, enabling collective life. This article also seeks to analyze the phenomenon of violence as something that denounces non-functioning, based on Jacques Lacan's theory of discourses, especially from an analysis of the capitalist discourse. Violence appears as what points to a possible manifestation before of this discursive structure, as it makes a "short circuit", breaking with something from the field of civilization. Mankind themselves begin to interpret themselves as products, objects to be inevitable consumed through this phenomenon that is very common, even if strange: violence.

Keywords: Psychoanalysis, Violence, Capitalism, Discourse.


RÉSUMÉ

Cet article vise à s'interroger sur un phénomène caractéristique de la culture même: la violence, et sa relation avec le lien social imposé par le discours capitaliste. Nous avons mis en lumière le concept de nécropolitique pour caractériser la violence telle qu'elle est aujourd'hui. Nous avons discuté de la manière dont les pulsions opèrent dans le processus de formation de la civilisation et de la façon dont elle régule l'agressivité, permettant la vie collective. Cet article cherche également à analyser le phénomène de la violence comme quelque chose qui dénonce un non-fonctionnement, à partir de la théorie des discours de Jacques Lacan, notamment d'une analyse sur le discours capitaliste. La violence apparaît comme quelque chose qui indique une manifestation possible face à la structure discursive, vu qu'elle fait un court-circuit, en se détachant de quelque chose qui appartient au domaine de la civilisation. Les hommes eux-mêmes commencent à s'interpréter comme des produits, des objets à être consommés, à travers ce phénomène qui nous est si commun: la violence.

Mots-clés: Psychanalyse, La violence, Discours, Capitalisme.


RESUMEN

El artigo tiene como objetivo investigar un fenómeno característico de la propia cultura: la violencia y su relación con el vínculo social dominado por el discurso capitalista. Aclaramos el concepto de necropolítica para caracterizar la violencia tal como se presenta en la actualidad. Discutimos cómo operan las pulsiones en el proceso de formación de la civilización y cómo regula la agresividad, posibilitando la vida colectiva. Además, este artigo busca analizar el fenómeno de la violencia como algo que denuncia un no funcionamiento, a partir de la teoría de los discursos de Jacques Lacan, especialmente a partir de un análisis del discurso capitalista. La violencia aparece como lo que apunta a una manifestación posible frente a esta estructura discursiva, ya que hace un cortocircuito, rompe con algo del campo de la civilización. Los propios hombres comienzan a interpretarse a sí mismos como una mercancía, objetos para el consumo, aunque inevitablemente a través de este fenómeno tan común, aunque extraño: la violencia.

Palabras claves: Psicoanálisis, Violencia, Capitalismo, Discurso.


 

 

Introdução

A violência é tema frequente na atualidade e perpassa os mais variados campos das ciências humanas. Esse fenômeno, característico da própria cultura,1 pode ser compreendido de diversas formas, variando de acordo com a época e a cultura. Este artigo surge na tentativa de interpretar esse fenômeno a partir da psicanálise, localizando os efeitos da violência para o sujeito por meio dos discursos, isto é, do laço social.

Em 1912, Freud publica Totem e tabu, texto no qual conta o mito da origem da civilização. Segundo Freud (1912/1996), haveria uma horda primeva na qual o Urvater, ou seja, o pai soberano, teria acesso a todas as fêmeas do bando, sendo os demais machos ameaçados por este caso ansiassem desfrutar do gozo com as fêmeas da horda. Os irmãos, reunindo suas forças, teriam se rebelado contra o pai, cometendo o parricídio e estabelecendo um totem, um monumento que representaria o pai morto, cuja função, segundo Birman (2017), seria fazer-se evocar para aqueles que pretendessem o monopólio do gozo. Com o totem, teria se estabelecido uma lei, que seria, segundo Freud, o tabu do incesto e, por meio desse pacto social entre irmãos, seria fundada a civilização.

A fundação totêmica teria por função a regulação da sexualidade e da agressividade, uma vez que o imperativo de satisfação é inerente ao homem. Os impulsos violentos somente foram qualificados como tal a partir da fundação da cultura. Posto isso, podemos pensar que a civilização teria se fundado com um ato qualificado como violento. Isso significa que esses impulsos configuram parte inerente da constituição do sujeito civilizado, ou seja, a violência se constitui sincronicamente com aquilo que é humano.

Esse fenômeno se apresenta de diversas formas: explícitas, como a guerra, mas também implícitas, como o racismo, a incitação ao ódio, a criação de indivíduos excluídos e dispensáveis. Vamos nos basear, aqui, especialmente no modo como Zizek (2014) trabalha esse tipo de violência, que caracteriza como simbólica, em uma sociedade gerida pelo neoliberalismo para, posteriormente, elucidar de que forma a psicanálise pode situar a violência.

 

Violência na contemporaneidade

A violência, tal como se apresenta hoje, em grande escala, institucionalizada e amplamente divulgada pelas mídias, é um fenômeno característico de nossa época. Hannah Arendt (2018, p. 10) afirma que o século XX "encontrou na violência e na multiplicação de seus meios pela revolução tecnológica o seu denominador comum".

Desde a Segunda Guerra Mundial, podemos perceber efeitos do desenvolvimento dessa tecnologia. Em relação à violência, Achille Mbembe (2018, p. 21) faz uma breve pontuação a respeito dos chamados campos de morte: "Mecanizada, a execução em série transformou-se em um procedimento puramente técnico, impessoal, silencioso e rápido".

Refletindo sobre as questões do século XX, Hannah Arendt (2018, p. 17) afirma: "O xadrez apocalíptico que se desenrola entre as superpotências, isto é, entre aquelas que se movimentam nos níveis mais altos de nossa civilização, está sendo jogado de acordo com a regra 'se qualquer um dos dois 'vencer', é o fim de ambos'". Q ue "nível mais alto de civilização" é esse que prega a paz em seus territórios e protege os seus, mas não aceita refugiados em seu território - e, contra isso, constrói muros não apenas simbólicos, mas físicos? Que "civilização" é essa que, no intuito de desenvolver técnicas, em sua sede por fazer guerras, o fazem longe de seus territórios?

Fica claro que a regra "se qualquer um dos dois 'vencer', é o fim do jogo" se aplica somente até o ponto em que tais superpotências não entram em guerra direta uma contra a outra. Entretanto, se pensarmos essa afirmação no contexto do século XXI, isto é, de globalização, deparamo-nos com o fato de que não há necessidade de haver guerra entre os países chamados de "primeiro mundo" para que se desenvolvam suas técnicas de guerra, uma vez que existe a possibilidade de se fazer conflito em outros lugares, distantes de suas próprias fronteiras.

Nesse contexto, Mbembe (2018) elucida o conceito foucaultiano de biopoder, que, de forma breve, é aquilo que " faz viver e deixa morrer. É um direito de intervir para fazer viver" (Silva, 2008, p. 146). Mbembe (2018, p. 17) acrescenta ainda que "o biopoder parece funcionar mediante a divisão entre as pessoas que devem viver e as que devem morrer", e observa a esse respeito que o "racismo é acima de tudo uma tecnologia destinada a permitir o exercício do biopoder [...] é a condição para aceitabilidade de fazer morrer" (p. 18).

Ou seja, o biopoder não só intervém para fazer valer o direito de viver, mas deixa de intervir para deixar morrer. E é preciso que isso seja feito de forma a aliviar a culpa pela agressividade exteriorizada: "a soberania exige que a força para violar a proibição de matar, estará sob condições que o costume define" (Mbembe, 2018, p. 15). Por essa razão, é necessário definir seu modo de operação, de estabelecer quem é descartável e quem não é.

Na realidade brasileira, ocorrem formas de violências legitimadas pelos discursos, sejam eles propagados pelas grandes mídias ou não, que legitimam as violências institucionais e individuais, inclusive pensando a negligência como uma forma de violência, pois, como nos afirma Mbembe (2018, p. 33), "O estado se comprometeria a 'civilizar' os modos de matar e atribuir objetivos racionais ao próprio ato de matar".

Isso levaria a uma legitimação da violência a tal ponto que tornaria naturalizadas tais práticas, como podemos ver de maneira clara em nosso contexto atual. Teles (2018, p. 22) afirma que, no cenário brasileiro, "A violência institucional do Estado prolifera, seja na omissão de um sistema prisional, como nas mortes em massa no início de 2017, seja nas ações homicidas das polícias militares nas periferias e lutas de resistência".

Os agentes de segurança pública, que deveriam atuar no sentido de diminuir a violência, são em grande parte aqueles que a cometem. Teles (2018, p. 23) nos conta que "a polícia brasileira é a que mais mata no mundo, produzindo óbitos muitas vezes sem a mínima preocupação com a legalidade de seus atos". O autor afirma ainda que se articularmos tais fatores com as principais estruturas da violência - o machismo e o racismo, segundo ele - e, junto a isso, somarmos as grandes dificuldades no acesso a direitos trabalhistas, previdência social e à precarização do trabalho, que também podem ser consideradas formas de violência relacionadas ao neoliberalismo, poderíamos nomear essa forma de violência como genocídio.

A situação do Brasil nos faz pensar principalmente nessas formas de violência que se diferenciam das aplicadas em um estado de exceção e que, entretanto, articulam-se intimamente com o conceito de necropolítica. Isso quer dizer que "ao operar certa forma de governo, a violência torna-se mecanismo fundamental de manutenção das formas de controle e dominação" (Teles, 2018, p. 24), seja ela institucionalizada, como vemos no que diz respeito à retirada de direitos e garantias mínimas, seja legitimada por certo tipo discursivo e apresentada de forma mais bruta, como nos casos frequentes de genocídio e atentados contra a vida.

Para Zizek (2014), haveria três tipos de violência que interagem entre si, a saber: a subjetiva, a objetiva e a simbólica. O primeiro tipo de violência seria aquela "exercida por agentes sociais, indivíduos maléficos, aparelhos repressivos disciplinadores e multidões fanáticas: a violência subjetiva é somente a mais visível das três" (p. 25). A violência objetiva seria aquela atribuída a um sistema e assume uma nova forma com o capitalismo, também conhecida como violência sistêmica. Em outras palavras, é a violência que "não pode ser atribuída a indivíduos concretos e às suas 'más' intenções, mas é puramente 'objetiva', sistêmica, anônima" (p. 26); é a violência responsável pela necropolítica, pela criação "automática" de indivíduos excluídos e dispensáveis. E o terceiro tipo, denominado violência simbólica, estaria encarnado na linguagem e suas formas.

A violência se apresenta de inúmeras formas; entretanto, há entre elas algo que permanece como seu denominador comum, herdeiro da lógica capitalista: o benefício de poucos em detrimento de muitos. Zizek (2014) nomeia esse tipo de violência de sistêmica: "violência inerente a um sistema: não só da violência física direta, mas também das formas mais sutis de coerção que sustentam as relações de dominação e exploração" (p. 24). É sobre esta que buscamos tratar ao longo desta pesquisa, localizando o lugar do sujeito perante o modelo de violência de nosso tempo.

 

Freud, a violência e a irredutibilidade das pulsões

Em Totem e tabu, Freud (1912-1913/2012) elabora que a civilização teria se fundado por meio do parricídio, um ato de violência cuja efetivação seria o assassinato do pai totêmico e, a partir disso, teria se estabelecido uma nova ordem. Os filhos instaurariam a lei, erguida sob a sombra do totem que a morte do pai representaria, para que se lembrasse do destino daquele que pretendesse monopolizar o gozo. É assim que, para a psicanálise, funda-se o social: por meio de um ato de violência e da instauração de uma Lei.

É somente a partir da fundação da civilização, entretanto, que se dá a caracterização do fenômeno como violento. Em outras palavras, é por meio da instituição da Lei totêmica que se torna possível dar o sentido de violento ao parricídio do pai. De forma sincrônica, instauram-se o social e a representação desse ato como violento.

Ao falarmos sobre o totemismo, que fornece as bases da organização social, torna-se inevitável falarmos sobre tabu. Podemos entender "tabu" como algo reservado, essencialmente expresso em proibições e restrições. Freud (1912-1913/2012) alega, a partir de um estudo de Wundt, que nenhum povo e estágio da cultura escapa do tabu, da proibição referente ao objeto totêmico. Freud afirma, ainda, que diante do tabu há uma ambivalência dos sentimentos. Não é sem razão o fato de que tais proibições recaiam sempre sobre atividades para as quais há um grande pendor.

As proibições do tabu, quase sempre, coincidem com as duas leis fundamentais presentes no totemismo: "não liquidar o animal totêmico e evitar relações sexuais com os indivíduos do mesmo totem que são do sexo oposto" (Freud, 1912-1913/2012, p. 61). Sendo assim, o tabu é uma ação proibida, para a qual há um forte pendor inconsciente. Ele assume a forma de uma lei que não deve ser transgredida.

A violação de um tabu envolve um perigo social, pois "deixando impune a violação, os outros se dariam conta de querer agir da mesma forma que o transgressor" (Freud, 1912-1913/2012, p. 63). Por essa razão, a lei totêmica tem a função de organizar o gozo, ou, em termos freudianos, as pulsões.2 No mito apresentado em T otem e tabu, a Lei teria a função de organizar o gozo desenfreado, aquilo que daria ao líder da horda primitiva acesso a todas as mulheres do bando e livre exercício da violência. Quando a Lei se funda, ela marca a impossibilidade de os filhos acessarem esse gozo, assumindo então a função de barrar o incesto e regulando as possibilidades de gozo sexual e agressivo com os membros de outro totem.

Freud (1915/2017), no texto As pulsões e seus destinos, explicita sua primeira teoria pulsional. O autor esclarece que o estímulo pulsional advém do interior do próprio organismo, mesmo que sua fonte possa ser externa, afirmando que "a pulsão é um estímulo para o psíquico." (p. 17). E acrescenta:

A pulsão, por sua vez, jamais atua como força momentânea de impacto, mas sempre como uma força constante. Como ela não ataca de fora, mas do interior do corpo, nenhuma fuga é eficaz contra ela. Uma denominação para o estímulo pulsional seria "necessidade", e para o que suspende essa necessidade, "satisfação". (Freud, 1915 [2017], p. 19).

Freud afirma que todo aparelho psíquico está sujeito ao princípio do prazer, regulado por prazer-desprazer, sendo a sensação de desprazer relacionada ao aumento da tensão ou pressão, e a sensação de prazer, à sua diminuição. Assim, o princípio do prazer tem como função evitar o desprazer, evitar o aumento da excitação, da pressão. Para Freud (1915/2017), a pulsão seria um conceito "fronteiriço", situado na divisa entre o anímico e o somático, entre o psíquico e o corpo, "como representante psíquico do corpo que alcança o psiquismo" (p. 25).

Freud (1915/2017) ainda atribui características específicas à pulsão, como a pressão, "seu fator motor, a soma das forças ou medida da exigência de trabalho que ela representa" (p. 25), isto é, aquilo que seria a parcela de atividade da pulsão. Além disso, Garcia-Roza (2008) aponta que a pressão é não apenas uma propriedade universal das pulsões, mas também sua própria essência.

A pressão está relacionada a outra característica da pulsão, denominada fonte, processo somático de um órgão representado na vida psíquica. Ademais, podemos falar sobre a meta ou objetivo da pulsão, que seria invariavelmente a satisfação - em outras palavras, a suspensão do estado de estimulação. E, por último, mas não menos importante, o objeto, aquilo que há de mais variável na pulsão e pelo qual ou com o qual a pulsão pode alcançar sua meta.

Para a vida em sociedade, o fato de a pressão se apresentar de maneira constante é um problema, pois sua meta exige a satisfação, apesar de Freud ter estabelecido o princípio da realidade para intermediar esse impasse. A possibilidade de saída a essa questão encontra-se no objeto, pois sua variabilidade permite a diminuição da pressão, sem jamais satisfazê-la plenamente, já que a satisfação é sempre parcial.

Em 1920, Freud, em uma tentativa de explicar as neuroses de guerra, retoma sua teorização sobre as pulsões, e ela sofre uma mudança radical. Em Além do princípio do prazer, as pulsões divididas entre sexuais e de autopreservação passam a ser consideradas em um mesmo grupo, chamado de pulsão de vida. Em contrapartida a estas, Freud (1920/2010a) propõe uma força oposta, que levaria à inanição, nomeada de pulsão de morte. Para Garcia-Roza (2008), com a introdução desse conceito, o campo psicanalítico, até então todo ocupado pela ordem, dá lugar ao caos, ao acaso. Freud (1980/2010a, pp. 164-165) afirma, assim, que o princípio do prazer não domina totalmente os cursos dos processos psíquicos:

Se assim fosse, a grande maioria de nossos processos mentais teria de ser acompanhada de prazer ou conduzir ao prazer, quando a experiência geral contradiz energicamente essa ilação. O que pode então suceder é que haja na psique uma forte tendência ao princípio do prazer, à qual se opõem determinadas forças ou constelações, de modo que o resultado final nem sempre corresponde à tendência ao prazer.

Garcia-Roza (2008) elucida que é possível localizar a pulsão de morte como "invisível e indizível", situando-a "para além da representação (visível) e da palavra (dizível), [...] da representação-objeto e da representação-palavra, fora do aparato psíquico e de suas determinações" (p. 159). Não é sem razão que, para exemplificar esse conceito, Freud retoma o princípio da realidade, a partir do qual afirma que sob influência das pulsões de autopreservação é possível obter um adiamento da satisfação, sem abandonar a intenção final de obter prazer. Muito embora ele mesmo pondere que "a substituição do princípio do prazer pelo princípio da realidade pode ser responsável tão somente por uma pequena parte, de modo algum a mais intensa, das experiências de desprazer" (Freud, 1920/2010a, p. 166), situando-se, assim, a pulsão de morte para além do princípio do prazer, isto é, para além do próprio aparato psíquico (Garcia-Roza, 2008).

Freud (1920/2010a) afirma que o esforço para diminuir a tensão dos estímulos, tal como se apresenta no próprio princípio do prazer, seria um dos fortes motivos para crer na existência de uma pulsão de morte. E distingue então duas pulsões, as que conduzem à morte, e as sexuais, que buscam e efetuam a renovação da vida. Para não abandonar essa hipótese, é preciso considerar as pulsões de morte conjugadas às de vida desde o começo. Essa conjugação se daria sob a forma de uma curiosa oposição entre essas forças pulsionais.

Essa é a razão pela qual o organismo vivo não alcança sua meta de vida - segundo Freud (1920/2010a), a morte - por um caminho mais curto, uma vez que as pulsões, conjugadas, operariam de forma semelhante a um curto-circuito, a partir do qual se colocariam em uma tentativa de "equilíbrio".

A pulsão de vida atua em consonância com a cultura, "reúne os indivíduos em totalidades cada vez mais abrangentes até a constituição de uma grande totalidade que é a humanidade" (Garcia-Roza, 2008, p. 163). Sua meta é a eliminação das diferenças e, portanto, do desejo - podendo esta ser considerada uma faceta violenta da pulsão de vida. A pulsão de morte, por outro lado, em sua faceta criativa, impõe rompimentos, propondo novos começos e, em sua faceta destrutiva, impede a repetição do "mesmo", "arruína toda relação fixa [...] tem como objetivo abrir uma saída vital onde uma situação crítica fecha-se sobre um sujeito e o destina à morte" (Zaltzman, 1993, p. 61).

No texto de 1921, O Eu e o Id, Freud (1923-1925/2018) ratifica que a pulsão de vida precisaria encontrar formas de manter vivo o organismo diante das tendências da pulsão contrária, que se inclinaria em direção à morte. Afirma também que o sentimento de culpa, por exemplo, seria uma dessas "soluções" encontradas para destinar a pulsão de morte. O que nos interessa, porém, é o que diz respeito à faceta agressiva da pulsão de morte, que "é tratada de várias maneiras no indivíduo, em parte é tornada inofensiva pela mistura com componentes eróticos, em parte é desviada para fora como agressão, e em larga medida prossegue desimpedida o seu trabalho interior" (pp. 67-68).

Isso significa dizer que uma parte da pulsão de morte atua vinculada às pulsões de vida e, dessa forma, tornam-se, em certa medida, úteis à vida do indivíduo. Outra parte é desviada para fora, em forma de agressão ou destruição, em outras palavras, violência. Quanto à parte da pulsão de morte que permanece no Eu, volta-se contra ele aliada ao supereu. Nosso interesse recai especialmente sobre a parcela pulsional enviada para fora sob forma de agressão e que se caracteriza pelo que chamaremos de violência.

Diante dessa colocação, podemos retomar o questionamento a respeito de como operam pulsão e civilização. O mito da horda primeva ilustra o momento de fundação da sociedade, a partir do estabelecimento da cultura. Para se manterem vivos, os irmãos teriam se rebelado contra a figura paterna e, portanto, a violência advinda da pulsão de morte poderia ser reconhecida como uma função de ruptura com algo estabelecido, no intuito de criar, isto é, abrir espaço para a pulsão de vida. Isso se dá mediante a conjunção da pulsão de vida com a de morte.

Freud (1921/2016), em 1921, no texto Psicologia das massas e análise do Eu, afirma que a psicanálise "trata o ser individual como membro de uma tribo, um povo ou como parte de uma aglomeração que se organiza como massa" (p. 15). Desse modo, é possível concluir que a civilização se funda a partir da formação de relações entre as pessoas, da formação de laços. Para Quinet (2002), o processo civilizatório "Implica uma renúncia da tendência pulsional em tratar o outro como objeto a ser consumido: sexual e fatalmente. A civilização exige do sujeito uma renúncia pulsional. O laço social é, portanto, um enquadramento da pulsão, resultando em uma perda real de gozo" (p. 17).

Essa renúncia exigida pela civilização é trabalhada por Freud, em 1930, em O mal-estar na civilização, obra na qual, além de dizer que tal renúncia provoca o mal-estar inerente à cultura, afirma que a pulsão de morte assume certa autonomia diante da pulsão de vida, e passa a ser entendida como pulsão de destruição.

 

Mal-estar na civilização: violência?

Freud (1930/2010a), em sua obra O mal-estar na civilização, afirma que os homens almejam uma forma de se tornarem permanentemente felizes. Todavia, não há consenso sobre a felicidade, " cada um tem que descobrir a sua maneira particular de ser feliz" (p. 41). O princípio do prazer estabelece sua finalidade de vida, a de evitar o desprazer. Entretanto, a meta de ser feliz permanentemente é mais difícil do que experimentar a infelicidade, já que o sofrer nos ameaçaria de três fontes, a saber: do próprio corpo, do mundo externo e das relações com os outros seres humanos.

Para compensar o desamparo, o homem desenvolveu coletivamente, ao longo do tempo, algumas soluções ou, em outras palavras, traços característicos da civilização, tais como o trabalho, a arte, a religião e o conhecimento científico, entre outros. Em O futuro de uma ilusão, Freud (1927/2014) afirma que a cultura3 humana é "tudo aquilo em que a vida humana se ergueu acima de suas condições animais e em que se diferencia da vida animal" (p. 233). Tomaremos por cultura tudo aquilo que surge na tentativa de mediar, de forjar as relações humanas.

A terceira fonte de sofrimento que nos ameaça, aquela referente às relações sociais, se dá pelo fato de haver uma insuficiência nos dispositivos que regulam a relação dos homens entre si:

Esta não queremos admitir, não podendo compreender por que as instituições por nós mesmos criadas não trariam bem-estar e proteção para todos nós. Contudo, se lembrarmos como fracassamos justamente nessa parte da prevenção do sofrimento, nasce a suspeita de que aí se esconderia um quê da natureza indomável, desta vez da nossa própria constituição psíquica. (Freud, 1930/2010b, p. 44).

Poderíamos nomear esse algo "indomável" que participa de nossa própria constituição psíquica como o que Freud denomina pulsão, já que possui algo de irredutível, mesmo que regulado pelas instituições. O que poderíamos afirmar é que a civilização exige uma medida de privação que a sociedade impõe ao homem. Silva (2012) sustenta que o homem precisa criar formas de orientação para a satisfação, formas que sempre serão vistas como forjadas, colocando um hiato entre a excitação e a satisfação (p. 45).

A cultura está baseada na repressão das pulsões. Freud (1908/2015) nos conta, em A moral sexual "cultural" e o nervosismo moderno, que é preciso que cada indivíduo renuncie às suas tendências agressivas e vingadoras, e prevê que, à medida que aumentam as exigências culturais, nesse sentido, aumentará também o número de indivíduos neuróticos.

Não é sem razão o sentimento de profunda insatisfação com o estado civilizacional. Mesmo que este tenha originado "tudo aquilo com que nos protegemos da ameaça das fontes de sofrer" (Freud, 1930/2010b, p. 44) e que tenha função de regulação dos vínculos dos homens entre si, o preço a se pagar pela exigência da civilização, de moderação e renúncia é o mal-estar.

A civilização tem traços característicos, entre os quais podemos ressaltar o uso corrente da língua, a apreciação da beleza e da limpeza, as realizações intelectuais, científicas e artísticas. Uma característica das mais importantes seria "o modo como são reguladas as relações dos homens entre si, as relações sociais" (Freud, 1930/2010b, p. 56). A isso poderíamos acrescentar a própria forma de expressão do mal-estar.

Freud (1930/2010b) já admitia que "a civilização é construída sob uma renúncia pulsional, [...] ela pressupõe justamente a não satisfação de pulsões poderosas" (p. 60). Mas, se a pulsão sempre tende à satisfação, para onde se destinariam esses "impulsos"? Freud afirma que "não é fácil compreender como se torna possível privar uma pulsão de satisfação. É algo que tem seus perigos; se não for compensado economicamente, podem-se esperar graves distúrbios" (p. 60).

Poderíamos pensar nesses "graves distúrbios" como aquilo que Freud (1930/2010b) denomina mal-estar? Certamente, podemos pensar como aquilo que permanece irredutível das pulsões. Como um excesso ligado à pulsão agressiva se direciona ao outro via violência? Sobre isso, Freud afirma que "o ser humano não é uma criatura branda, que se defende somente se atacado, mas que devemos incluir, também, uma quantidade de agressividade" (p. 76).

Para ele o próximo não constitui apenas um possível colaborador e objeto sexual, mas também uma tentação para satisfazer a tendência à agressão, para explorar seu trabalho sem recompensá-lo, para dele se utilizar sexualmente contra a sua vontade, para usurpar seu patrimônio, para humilhá-lo, para infligir-lhe dor, para torturá-lo e matá-lo. [...] Via de regra, essa cruel agressividade aguarda uma provocação, ou se coloca a serviço de um propósito diferente, que poderia ser atingido por meios mais suaves. Em circunstâncias favoráveis, quando as forças psíquicas que normalmente a inibem estão ausentes, ela se expressa também de modo espontâneo, e revela o ser humano como uma besta selvagem que não poupa os de sua própria espécie. (Freud, 1930/2010b, p. 77).

O papel da civilização seria, então, limitar essas pulsões agressivas por meio das mais variadas formas, indo desde as e xigências de renúncia da vida sexual até ideais religiosos, como a prerrogativa (impossível) de amar ao próximo como a si mesmo. Devemos nos perguntar, então: o que ocorre quando a violência é parte das próprias instituições erigidas para controlar as pulsões agressivas? Ou, em outras palavras, o que ocorre quando a civilização legitima a violência?

Na tentativa de explicar a violência, à qual o homem tem dificuldade em renunciar, Freud (1930/2010b) busca justificar aquelas que ocorrem em nossa vida cotidiana, desenvolvendo o que chamou de narcisismo das pequenas diferenças, que operaria como um escape para a pulsão agressiva, de uma maneira socialmente aceitável.

Evidentemente não é fácil, para os homens, renunciar à gratificação de seu pendor à agressividade; não se sentem bem ao fazê-lo. [...] Sempre é possível ligar um grande número de pessoas pelo amor, desde que restem outras para que se exteriorize a agressividade. [...] Dei a isso o nome de "narcisismo das pequenas diferenças", que não chega a contribuir muito para seu esclarecimento. Percebe-se nele uma cômoda e relativamente inócua satisfação da agressividade, através da qual é facilitada a coesão entre os membros da comunidade. (Freud, 1930/2010b, pp. 80-81).

Poderíamos relacionar essa reflexão àquilo que Mbembe (2018) considera essencial para que se faça operar o poder de morte, a saber, o modo pelo qual se define quem importa e quem não importa. A semelhança é inegável, embora o conceito trabalhado por Mbembe deva ser considerado uma forma mais brutal de operar o conceito desenvolvido por Freud.

Em Psicologia das massas e análise do Eu, Freud (1921/2011) afirma que o líder, ou a ideia condutora de um grupo ou uma massa, poderia tornar-se negativo: " o ódio a uma pessoa ou instituição determinada poderia ter efeito unificador e provocar ligações afetivas semelhantes à dependência positiva" (p. 55). O perigo para o qual Freud aponta é o de que os grupos fossem ligados libidinalmente não por Eros, mas a partir do ódio em comum àquilo que lhes é externo, diferente, elegível como objeto a saciar as pulsões de agressividade.

Em sua elaboração de 1930 sobre O mal-estar na civilização, Freud (1930/2010b) recupera algo que havia sido trabalhado em 1920, em Além do princípio do prazer, para retomar sua elaboração sobre a pulsão de morte, e a considera em movimento contrário à pulsão de vida, no sentido não de conservar unidade, mas de dissolvê-la. As pulsões atuariam de forma antagônica, ambas de maneira ruidosa, mas a parte da pulsão de morte que se volta contra o mundo externo poderia vir à luz como agressão e destruição, sendo então "obrigada a serviço de Eros, na medida em que o vivente destruiria outras coisas, animadas e inanimadas, em vez de si próprio. [...] a limitação dessa agressão voltada para fora teria de aumentar a autodestruição, aliás sempre existente" (Freud, 1930/2010b, p. 86).

Freud (1930/2010b) afirma que quando a pulsão de destruição é domada e se apresenta de forma moderada, ela se dirige a objetos e propicia ao Eu a satisfação. Aqui, caberia ressaltar que Freud considera o pendor à agressão como uma disposição original e autônoma do ser humano e que esse seria o mais poderoso obstáculo à civilização. E salienta que " essa pulsão de agressão é o derivado e representante maior da pulsão de morte, que encontramos ao lado de Eros e que partilha com ele o domínio do mundo" (p. 90).

Em outras palavras, a civilização seria responsável por "tornar inofensiva" a disposição do ser humano em agredir, enfraquecendo-a. Mas por quais meios a civilização seria capaz de inibir essa agressividade? Quanto a isso, Freud (1930/2010b) nos diz que "a civilização controla então o perigoso prazer em agredir que tem o indivíduo, ao enfraquecê-lo, desarmá-lo e fazer com que seja vigiado por uma instância no seu interior, como por uma guarnição " (p. 92).

Freud (1930/2010b) afirma que a culpa presente na humanidade é herdeira do complexo de Édipo, adquirida quando teria ocorrido o assassinato do pai da horda primeva pelo bando de irmãos. Ali, a agressão não teria sido suprimida, mas levada a cabo. Posteriormente, conta-nos que existe uma disposição a sentir-se culpado antes do ato, e isso se dá pelo sentimento de ambivalência:

Depois que o ódio se satisfez com a agressão, veio à frente o amor, no arrependimento pelo ato, e instituiu o supereu por identificação com o pai, deu-lhe o poder do pai, como que por castigo pelo ato de agressão contra ele cometido, criou as restrições que deveriam impedir uma repetição do ato. [...] o sentimento de culpa é expressão do conflito de ambivalência, da eterna luta entre Eros e a pulsão de destruição ou de morte. Esse conflito é atiçado quando os seres humanos defrontam a tarefa de viver juntos. (Freud, 1930/2010b, p. 104).

O sentimento de culpa, introjetado e dirigido ao Eu via supereu, pode ser considerado uma saída perante a agressividade inerente ao humano em casos individuais e analisados pontualmente, ainda que Freud (1930/2010b) nos diga que "a comunidade também forma um supereu, sob cuja influência procede a evolução cultural" (p. 116), cujas origens são semelhantes ao supereu de um indivíduo. Fleitas e Susin (2016) trazem um ponto importante ao afirmarem que, apesar do desenvolvimento científico e tecnológico, o mal-estar na civilização continua presente. Ele se apresentaria sob novas formas, já que é decorrente das condições do mundo contemporâneo. Os autores sugerem que as formas de mal-estar na atualidade seriam diretamente relacionadas à forma de se expressar a agressividade: guerras, terrorismo, barbárie, desemprego, fome, instabilidade econômica, insegurança social, xenofobia etc.

O supereu da cultura, ao desenvolver seus ideais, elevou suas exigências. Assim sendo, o pendor para a agressão mútua seria balizado pelo desenvolvimento da ética como um mandamento do supereu, ainda mais se considerarmos o imperativo de satisfação presente em nossa época. Sabemos que o juízo de valor dos homens é inevitavelmente governado por seus desejos de felicidade, muito embora o homem seja incapaz de inventar dispositivos que aliviem seu sofrimento, que satisfaçam de forma definitiva a pulsão. Para Freud (1930/2010b, p. 121), " A questão decisiva para a espécie humana é saber se, e em que medida, a sua evolução cultural poderá controlar as perturbações trazidas à vida em comum pelas pulsões humanas de agressão e autodestruição".

A nós, caberia questionar o que, em nossa época, causa a insuficiência em controlar, pelo uso de leis e normas morais e éticas, as pulsões de agressão e destruição inerentes aos seres humanos. E nos questionarmos se é possível perceber a violência como efeito exclusivo da pulsão de morte, afinal, Eros, com sua força unificante, também pode apresentar facetas violentas.

Questionamos ainda qual é a relação dos sujeitos com o gozo, a mestria e o saber, isto é, n o sistema capitalista, quem é responsável por criar indivíduos excluídos e dispensáveis, o lugar que resta ao sujeito nesse modelo discursivo.

 

Violência como efeito do discurso capitalista

A s formas culturais de organizar o social se alteram com o tempo e, com elas, as formas de expressão do mal-estar e da violência. Freud nos alerta para o fato de que toda e qualquer forma cultural é falha em seu papel de evitar o mal-estar, já que ele é parte da civilização, efeito da exigência de renúncia feita ao sujeito para se inserir no social, é o preço que se paga. Para Pavón-Cuéllar (2018, p. 21),

A violência e o mal-estar, ainda que indissociáveis da cultura se agravariam, logicamente, em um sistema capitalista sustentado na mesma pulsão de morte que subjaz a violência e o mal-estar [...] enquanto a cultura em geral sustenta as complexas relações entre pulsão de vida e de morte, sua expressão especificamente capitalista, somente se fundamenta na pulsão de morte.

A forma de se apresentar os fenômenos ligados ao mal-estar, aliada ao neoliberalismo - forma atual de organização social - é brutal. Isso porque o neoliberalismo funciona sem a mediação das instituições entre os indivíduos, reduzindo o homem ao estado de produto (Dufour, 2005), retirando a dimensão singular inerente ao sujeito com o qual trabalha a psicanálise.

Para compreender como o capitalismo poderia agravar as formas de sofrimento inerentes aos seres humanos, faz-se necessário entender o que regula os laços sociais e como esse modelo de organização opera nas relações sociais. Para Silva (2012), os discursos, laços constituídos a partir da linguagem, situam um lugar para o sujeito no laço social, indicam a posição do sujeito em relação ao gozo, mestria e saber. É a partir dos discursos, dos laços sociais, que o sujeito se organiza na cultura.

Inicialmente, Lacan (1969-1970/1992) supõe a existência de quatro estruturas discursivas: o discurso do mestre, da histérica, do analista e do universitário. Afirma ainda que essas posições são flexíveis, isto é, o sujeito pode transitar por todos os discursos. Ao girar, culmina na formação de um outro, possibilitando sua articulação com os demais e organizando o social a partir de posições, de modos de gozo. Posteriormente, em uma conferência em Milão, em 1972, Lacan propõe a existência de um quinto discurso, o do capitalista.

Cada um dos discursos apresenta quatro elementos, sendo eles S1, S2, a e $. Cada um desses elementos carrega em si um significado; segundo Coelho (2006), o significante mestre (S1) representa o sujeito como perpassado e determinado pela ação significante, sendo, isoladamente, vazio de significação. O saber (S2), por outro lado, representa o sujeito e possibilita que se estruture a cadeia mínima para a significação. O objeto (a) representa a causa de desejo ou mais-de-gozar e, por fim, o sujeito ($) é marcado pela barra, deixando aberta a possibilidade de vir a ser.

Cada um dos elementos se apresenta em um lugar que é fixo na estrutura discursiva, isto é, cada elemento posto representa respectivamente o agente (desejo), o trabalho (o Outro) e, sob a barra, a verdade e a produção (perda). Tais elementos são dispostos de forma alternada, sendo sua variação dada a partir de um quarto de giro. Sendo assim, o esquema de cada um dos discursos proposto por Lacan (1969-70/1992, p. 29) aparece sob a forma de uma fórmula.

Discursos:

Lugares:
desejo      Outro                                                agente      trabalho
verdade    perda                                                verdade    produção
(Seminário 17, lição de 19-02-1970)                  (Seminário 17, lição de 10-06-1970)

O agente representa aquilo que dá o tom do discurso, é aquilo que coloca o discurso a trabalho. Já no campo do trabalho, podemos pensar como aquilo que coloca o agente a trabalho. O efeito desse trabalho é o que se encontra abaixo da barra, um produto e uma perda. No lugar da verdade estaria, segundo afirma Silva (2012, p. 183), "aquilo que mesmo que esteja oculto num discurso, aponta os efeitos que ele condiciona".

No discurso do mestre, o agente é S1 - significante mestre, que se dirige ao campo do Outro, do escravo, isto é, S2 - saber, pois o saber está do lado do escravo. Esse discurso produz mais-de-gozar, uma perda de gozo "inerente à dependência do mestre em relação ao escravo" (Silva, 2012, p. 184). Sob a barra no lado do mestre (S1) se encontra o sujeito barrado ($), indicando que o mestre nada sabe sobre sua divisão subjetiva.

O discurso da histérica, "uma espécie de sintoma do discurso do mestre" (Dunker, 2016, p. 131), tem como agente o sujeito barrado ($), que se dirige ao significante mestre (S1) demandando a produção de um saber (S2) e reprimindo a verdade de seu gozo (a). No discurso da histérica, esta aponta a falha inerente ao Outro, mas insiste em sua busca pela mestria.

O discurso do analista apresenta como agente a causa de desejo ou mais-de-gozar, o que significa que "ao invés de tomar um significante no lugar de mestria, toma o rechaço do desejo como mestria e se propõe a considerar os efeitos sobre o sujeito" (Silva, 2012, p. 185). Nessa lógica, tem como produção uma verdade singular.

O discurso do universitário toma por agente o próprio saber, que convoca o objeto no lugar do trabalho e produz um sujeito barrado ($) que esconde a verdade de que esse sujeito está a serviço do próprio mestre (S1). A divisão subjetiva é como um motor que causa sempre ao sujeito a busca por um novo saber.

Pensar uma sociedade é pensar os discursos dominantes e o modo como eles circulam. D everá ser levado em consideração que é o discurso do mestre moderno - definido por Lacan (1969-1970 [1992]) como capitalista - que está intimamente aliado ao discurso do universitário.

Na contabilidade infinita proposta pelo mestre moderno, mestre capitalista, engendrado pelo discurso universitário, há uma ordenação de equivalência, procurando reduzir tudo a números, a unidades contáveis, fazendo valer apenas aquilo que pode ser contabilizado. Nessa contabilidade, os objetos se sobrepõem ao sujeito. (Silva, 2012, p. 189).

Isso carrega em si uma dimensão de violência, na medida em que busca reduzir sujeitos a predicados contáveis e uniformizados. Em nossa era de hegemonia neoliberal, na qual, segundo Dufour (2005), o homem estaria liberado de todos os valores, sejam eles morais, sejam éticos, uma vez que esses valores não possuem valor mercadológico, caberia a nós compreender como se situam os quatro discursos frente ao quinto proposto por Lacan, o discurso do capitalista.

Vimos que por sua lógica interna o capitalismo encontra-se predestinado a fomentar nos sujeitos uma falta incessante, uma insatisfação constante, que em contrapartida deve vir sempre acompanhada pelo gozo de algum objeto descartável que produz uma fruição curta e rápida. [....] a ponto de os homens passarem a interpretar-se a si próprios como mercadoria também, no sentido de algo para ser usado e descartado. [...] desse modo não é só com os objetos que instauramos uma relação de consumo, mas também com os homens. (Lustoza, 2009, p. 50).

O discurso capitalista rompe com o funcionamento dos outros quatro, já que não se forma por um quarto de giro, mas se produz a partir de uma ruptura. O discurso do capitalista não faz laço; como Quinet (2002) nos esclarece, esse modelo de discurso propõe ao sujeito a relação com um objeto de consumo curto e rápido, com um parceiro conectável e desconectável ao alcance da mão. Podemos pensar, então, a violência - situada no lugar da verdade nesse discurso - não como negativa, mas como aquilo que denuncia o que não funciona, que não faz laço?

O discurso do capitalista opera em curto-circuito e, portanto, não é possível traçar uma leitura a partir dos lugares, como nos outros modelos discursivos. Nesse discurso,

Os vetores são cruzados, não há vetor entre o lugar do sujeito e do trabalho, entre a verdade e o produto. O sujeito figura no lugar do agente, mas se trata de um sujeito comandado pelo imperativo de gozo, comandado pelo mais-de-gozar, encarnado dos diversos objetos produzidos pelo capitalismo (gadgets ). Esses objetos, num desfile imperativo, imprimem o sujeito à busca de sempre mais, outro objeto, ainda outro e sempre mais, numa relação onde prevalece o gozo, tornando o sujeito servo do capital. (Silva, 2012, p. 196, grifo do autor).

Para Lustoza (2009), no capitalismo ocorre um enfraquecimento do laço social, já que este favoreceria uma ligação perversa com o Outro, reduzindo-o a um objeto a ser violentado. Assim, o mal-estar proveniente em nossa civilização não está desvencilhado dessa modalidade discursiva, dominante em nossa época. Portanto, faz-se necessário compreender como tal discurso apresenta a violência como verdade. Segundo Santos e Teixeira (2006), nesse modelo de discurso, tudo seria permitido, não havendo mais barra, não havendo mais impossível. "A violência então é uma manifestação possível dessa estrutura. Quando tudo é permitido, nada é permitido; a ética do desejo dá lugar ao fardo pesado do imperativo do gozo. A satisfação se efetua sem o apoio na singularidade da fantasia" (p. 167).

Ora, o imperativo de gozo presente e característico do neoliberalismo, somado à sua forma de execução, sem a mediação institucional para regular o gozo desenfreado, não poderia resultar de maneira diferente. Utilizar-se do outro como objeto a ser consumido sexual e fatalmente se torna um horizonte possível; o gozo não é mais impossível, emergindo sob a forma de um real sem lei. A violência - tal como se apresenta hoje - é, portanto, efeito da ruptura dos laços sociais, desse gozo não mais barrado, da captura capitalista que visa obturar o sujeito dividido a partir do consumo.

 

Considerações finais

O debate sobre a violência não se esgota na psicanálise; para conduzi-lo, devemos considerar esse conceito numa interface que perpassa diversas áreas. A partir da afirmação "a violência sempre existiu, o que se altera são suas formas de apresentação", verificou-se que as características da violência se alteram de acordo com o tempo e a cultura. Nesse sentido, o conceito de necropolítica surge como uma forma de caracterizar a violência presente em nosso tempo. Para tanto, faz-se necessário considerar esse fenômeno em um sentido sistêmico. Como afirma Zizek (2014), a violência sistêmica é inerente a um certo tipo de sistema e o faz operar, sendo fundamental em nosso modelo de organização social, o capitalismo.

A necropolítica, isto é, o poder de morte, forma de operar do que chamamos de violência sistêmica, é responsável por criar indivíduos excluídos e dispensáveis, por determinar o modo como o poder de morte opera, definindo quem é descartável e quem não é.

Freud nos conta, todavia, que cabe às instituições a função de mediar e regular o gozo desenfreado, limitando as pulsões agressivas inerentes ao homem. E, como vimos, tanto pulsão de morte quanto pulsão de vida contribuem, cada qual em sua particularidade, para a caracterização da violência na atualidade. Não seria possível atribuir a causa desse fenômeno a uma ou a outra, já que tanto a pulsão de morte quanto a de vida - em sua meta de fazer ligações a qualquer custo, mesmo com a aniquilação de qualquer singularidade - colocam um problema para a civilização, na medida em que sua meta se apresenta sem barreiras.

É essa a mesma lógica do neoliberalismo, cujo imperativo é o de gozo. Ora, sem algo que possa balizar a busca pela satisfação, deparamo-nos com um grande problema. Para Dufour (2005), nesse modo de organizar a cultura, o homem estaria liberado de todos os valores, sejam eles morais, sejam, uma vez que eles não possuem valor mercadológico.

Portanto, o imperativo cristão de amar ao próximo como a si mesmo estaria, mais do que nunca, impossível de ser levado a cabo. Freud já nos dizia que nada é mais contrário à natureza humana original, o que nos leva a concluir que o Estado e suas instituições podem, na falha de se instituir como gestor das pulsões agressivas, acentuar e até mesmo naturalizar o resultado de um não contingenciamento dessas pulsões. De acordo com Pavón-Cuéllar (2018), o Estado poderia assumir outra forma de expressão da violência, embasado no discurso capitalista, tornando-se uma máquina de matar, seja pelo monopólio da violência física, seja pela pobreza, miséria e fome.

Isto é o que o conceito de necropolítica nos apresenta: a política de violência, de morte, adaptada e gerida pelo Estado. Ora, o problema é justamente esse quando os agentes ou instituições do Estado, que supostamente deveriam atuar no sentido de diminuir a violência, são aqueles que a cometem, pois, a civilização, embora fundada em um ato de violência, tem como intuito o contingenciamento das pulsões agressivas e a gestão dos laços sociais.

Os laços sociais, ou discursos, teoria formulada por Jacques Lacan para situar um lugar para o sujeito na civilização, indicam uma maneira de pensar a pulsão do ponto de vista de algo que a organiza. É a ferramenta utilizada para pensar os efeitos específicos de um modelo de organização social sobre o sujeito, já que este está submetido às condições históricas de um determinado tempo, consequentemente, a um certo tipo discursivo dominante.

Os discursos seriam então aquilo pelo qual é possível estabelecer um modo de gozo possível com a vida coletiva, isto é, com a civilização. Isso funciona bem até Lacan apresentar um modelo discursivo denominado discurso do capitalista, que, por não apresentar barra ao gozo, torna tudo possível: " a ética do desejo dá lugar ao fardo pesado do imperativo do gozo" (Santos & Teixeira, 2006, p. 167).

A violência aparece, assim, como aquilo que denuncia, apontando para uma manifestação possível dessa estrutura discursiva. Algo nesse modelo de discurso faz curto-circuito, rompe com algo do campo da civilização, fomenta nos sujeitos uma falta incessante sempre acompanhada pelo gozo, que aponta algum objeto descartável para produzir uma fruição curta e rápida. A partir disso, os próprios homens passam a interpretar-se como mercadoria, algo a ser usado e descartado, isto é, os homens passam a ser também objetos a serem consumidos, mesmo que fatalmente por via desse fenômeno que nos é tão comum, mesmo que estranho: a violência. Diante disso, a psicanálise se apresenta como ferramenta para escutar a violência como possibilidade de construir alternativas.

 

 

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*Especialista em Teoria e Clínica Psicanalítica pela Universidade José do Rosário Vellano (Unifenas). Graduada em Psicologia pela Universidade José do Rosário Vellano.
**Doutora em Psicanálise pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). Mestra em Psicologia pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Graduada em Psicologia pela Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ). Membro do Laço Analítico Escola de Psicanálise.
1Neste artigo, os termos "cultura" e "civilização" serão recorrentes e poderão ser lidos como sinônimos.
2Em sua obra, Freud utiliza o termo Trieb, geralmente traduzido para "instinto". Assim, procedem tanto a versão traduzida do inglês, da editora Imago, como na edição mais recente traduzida diretamente do alemão, da editora Companhia das Letras, utilizada neste artigo. Entretanto, será utilizado o termo "pulsão" para tradução do termo Trieb, uma vez que esse termo marca a especificidade do campo humano que queremos destacar.
3Vale ressaltar que Freud utiliza o termo kultur, traduzido para o português como civilização, muito embora aqui não tenham sido realizadas grandes diferenciações entre os termos.

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