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Tempo psicanalitico

versão impressa ISSN 0101-4838

Tempo psicanal. vol.42 no.1 Rio de Janeiro jun. 2010

 

SEÇÃO TEMÁTICA

 

A vocação irônica da psicanálise

 

The ironic vocation of psychoanalysis

 

 

Antônio Teixeira

Graduado em Medicina pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG); Especialista em Psiquiatria pela Fundação Hospitalar do Estado de Minas Gerais (FHEMIG); Mestre em Filosofia Contemporânea pela UFMG; Doutor em Psicanálise (Paris VIII); Professor Associado da UFMG

 

 


RESUMO

O autor propõe distinguir a vocação irônica da psicanálise da vocação humorística da psiquiatria, conforme a diferenciação entre uma clínica de imposição de sentido, atribuída à psiquiatria, e uma clínica de desconstrução do sentido, atribuída à psicanálise.

Palavras-chave: psicanálise; psiquiatria; ironia; humor.


ABSTRACT

The author proposes to distinguish between the ironic vocation of psychoanalysis and the humoristic vocation of psychiatry as a clinical differentiation between the imposition of meaning attributed to psychiatry and a deconstruction of the meaning attributed to psychoanalysis

Keywords: psychoanalysis; psychiatry; irony; humor.


 

 

Ao tratar da desmontagem irônica dos efeitos de significação, mediante a consideração de seu caráter de contingência, pareceu-me importante propor uma perspectiva diferencial entre a psicanálise e a psiquiatria que estivesse ligada aos respectivos efeitos de imposição e de desconstrução de sentido. Interessa-me abordar essa diferença apoiado na distinção, que eu gostaria de explicitar aqui, entre uma clínica de imposição de sentido, cuja vocação humorística estaria do lado da psiquiatria, e uma clínica de desconstrução de sentido, cuja vocação irônica se ligaria à psicanálise.

Duas questões então se colocam de imediato, no início dessa argumentação: por que correlacionar a prática de imposição de sentido a uma clínica de vocação humorística, atribuída à psiquiatria, e por que reportar a prática de desconstrução de sentido a uma clínica de vocação irônica, ligada, dessa vez, à psicanálise? No intuito de melhor esclarecer esses dois pontos, vale a pena relacionar a distinção entre psiquiatria e psicanálise proposta por Freud ([1917] 1999), que as compara, respectivamente, à anatomia e à histologia, a essa outra comparação distintiva, tomada de empréstimo a Jacques-Alain Miller (1996), entre vocação humorística e vocação irônica.

Todavia, antes de seguir essa pista, cabe ainda explicitar o uso que aqui fazemos do termo "vocação", cuja especificidade semântica é essencial ao nosso raciocínio. Pois, longe de se confundir com a ideia de uma simples tendência, o termo "vocação" concerne precisamente, como os leitores de Weber (1989) bem o sabem, à voz do Outro endereçada ao ser falante: a vocação se define segundo o modo pelo qual o sujeito responde a uma vocatio, ou seja, a um apelo do Outro constitutivo do vetor que dá direção a sua práxis. Esse termo deve conduzir-nos a conceber uma práxis enquanto determinada segundo a maneira pela qual o sujeito se vê convocado a agir, em resposta ao apelo que lhe advém do Outro.

Assim sendo, para melhor ilustrar o que, em nosso entender, apresenta-se como próprio da vocação humorística da clínica psiquiátrica, hoje destinada a responder, mais do que nunca, aos apelos do mercado mundial representado pela indústria farmacológica, em seu furor terapêutico de tudo medicalizar, vou me permitir ler aqui um curto poema de Carlos Drummond de Andrade, intitulado "Receituário sórdido". Vocês verão claramente que o poeta ali faz valer justamente os efeitos de sentido impostos pela materialidade sonora da voz, cujas assonâncias são frequentemente utilizadas nos apelos publicitários de medicamentos. Leiamos, então, o "Receituário sórdido":

Calma.
É preciso ter calma no Brasil
calmina calmarian
calmogen calmovita.

Que negócio é esse de ansiedade?
Não quero ver ninguém ansioso.
O cordão dos ansiosos, enfrentemos:
Ansipan! Ansiotex!
Ansiex, ansiax, ansiolax,
Ansiopax, amigos!

Serenidade, amor, serenidade.
Dissolve-se a seresta no sereno?
Fecha os olhos: serenium serenex...

Dói muito o teu dodói de alma?
Em seda e sedativo te protejas.
Sedax, meu coração,
Sedolin sedotex
Sedomepril.
Meu bem, relaxe por favor.
Relaxan relaxatil.
Batem, batem à porta? Relax-pan.

Estás tenso, meu velho?
Tenso de alta tensão, intensa, túrbida?
Atenção: tensoben
Tensocron tensocrin tensik
Tensoplisin.

Anda, cai no sono, amigo,
olha o sonix.
Como soa o sonil
Sonipan sonotal
Sonoasil
Sonobel sonopax!

E fique aí tranquilo tranquilinho
Bem tranquil
Tranquilid tranquilase tranquilna
Tranquilin tranquix tranquiex
Tranquimax tranquisan
e mesmo tranxilene!

Estás píssico,
Talvez de tanto desencucarem tua cuca?
Estás perplexo?
Não ouves o pipilar: psicoplex?
Psicodin psicobiome
Psicolatil?
Não sentes adejar: psicoplex?

Então morre, amizade.
Morre presto, morre já, morre urgente,
Antes que em drágea cápsula ampola flaconete
Proves letalex
Mortalin obtuaran homicidil
Thanatex thanatil
Thanatipum!

Esse curioso poema, cuja hilaridade se atesta nos risos da assistência, pode igualmente ser dito humorístico por razões que eu gostaria de comentar. Para percebê-lo, basta comparar o primeiro e o último versos: o receituário sórdido é humorístico na medida em que expõe o apelo endereçado ao sujeito desde o campo do Outro - no caso: o ideal de calma e serenidade imposto pela indústria farmacológica, em resposta ao estresse permanente da vida contemporânea do qual essa indústria depende para se manter; e eis que, de repente, esse ideal se transforma no único estado de serenidade que o campo do Outro em nosso tempo autoriza: thanatipum! - a morte, a paz dos cemitérios, o aniquilamento absoluto e silencioso do sujeito.

É nesse sentido que podemos reconhecer a essência do humor em Freud ([1928] 1999), que vai bem além de Bergson, ao ali situar a vertente cômica do supereu. No humor se manifesta a vertente cômica do supereu, na medida em que ele vem expor, pateticamente, a miséria do sujeito diante da imposição de sentido que ele sofre do discurso que o determina, ao qual ele se encontra alienado. Tal é o caso, por exemplo, da coroa de espinhos fixada sobre a cabeça daquele que se deixa determinar por um discurso que o designa como rei dos judeus (I.N.R.I.: Iesus Nazarenus Rex Iudaeorum). Não menos sórdida é a inscrição humorística "Arbeit macht frei" ("o trabalho liberta o homem"), colocada na entrada dos campos de concentração nazistas, relativa, por sua vez, a um tempo em que a capacidade de trabalho passa a determinar o valor social do ser falante. O mesmo se dá, se quisermos ainda outros exemplos, nos romances do marquês de Sade, que não se priva de expor brutalmente aquilo a que se reduz o sujeito determinado pelo discurso republicano da liberdade, cuja verdade se revela, no dizer de Lacan (1966), na intolerável liberdade do direito sem restrição ao gozo.

Mas, seja como for, vê-se claramente que o humor se manifesta frequentemente como uma figura do ludibrium, na medida em que o sofrimento do sujeito, esmagado pelo discurso do Outro, deve nele servir como meio coletivo de gozo sobre o qual se apoia esse mesmo discurso. O fenômeno social do trote universitário é disso uma figura contemporânea igualmente exemplar, como o suplício da crucificação o era, segundo Quignard (1994), no caso da civilização antiga. Do mesmo modo, já que estou falando aqui da vocação humorística da clínica psiquiátrica, fica evidente que as anedotas tão frequentes nos hospitais tratam comumente o sofrimento do doente mental como objeto de diversão coletiva. Penso na conhecida anedota do psiquiatra que adverte seu paciente paranoico supostamente curado de seu delírio: "estou de olho em você, você vai se haver comigo se eu souber que você voltou com suas histórias de perseguição". Vê-se claramente que, se o humor psiquiátrico diverte-se ao expor o sofrimento do sujeito louco, ele o faz mostrando que esse sofrimento deriva, ao mesmo tempo, tanto da imposição de sentido que comanda a visada terapêutica quanto do núcleo semântico referido à própria convicção delirante que se quer tratar.

Totalmente distinta do humor se revela, por outro lado, a prática da ironia. A ironia não consiste mais em expor a miséria do fala-ser submetido à imposição do sentido pelo discurso que o determina. Ela é outra coisa. Etimologicamente falando, o termo ironia, proveniente do grego eironeia, quer simplesmente dizer interrogação, léxico que, na filosofia antiga, reporta-se ao método pelo qual Sócrates interrogante assumia uma ignorância douta para fazer aparecer a ignorância real de seus interlocutores. Ao passo que o humor manifesta os efeitos subjetivos gerados pela submissão ao sentido prescrito por um discurso, a ironia vem exibir a falta de fundamento ou a inconsistência do discurso do qual alguém se autoriza para impor um determinado sentido a um outro.

É bem conhecida a ironia socrática, visível sobretudo, se temos em mente os diálogos aporéticos, na maneira pela qual Sócrates colocava em questão os ideais que orientam o modo de vida do sujeito na pólis grega. Era exatamente isso o que Sócrates fazia, seja ao interrogar o bravo general Laques sobre o que ele entende pelo termo "coragem", da qual se acreditava dotado, seja perguntando ao jovem Mênon o que ele entende pelo termo "virtude", à qual quer se iniciar. O resultado, igualmente conhecido de todos, que aliás custou a vida à Sócrates, foi o de mostrar que o mestre dóxico, que se vale de um discurso para significar algo, não sabe efetivamente do que está falando. A ironia assim termina por denunciar a impostura que se oculta sob toda prescrição de sentido; ela revela que o campo do Outro, onde os efeitos de significação se organizam, não tem nenhuma existência fora da crença que o sustenta: não há nenhum discurso que não seja do semblante, que não se valha de um sono dogmático a sustentar o termo que o organiza e que ele não consegue tampouco explicitar.

Ora, mas é justamente através dessa abordagem interrogativa que revela, no discurso do sujeito, que ele não sabe do que está falando, deslocando o sentido do suposto referente em questão, que Freud ([1917] 1999) se propõe distinguir a psicanálise da psiquiatria. Aos olhos de Freud, a psicanálise se distingue da psiquiatria, assim como a histologia se distingue da anatomia, no sentido em que a psicanálise visa interrogar a estrutura interna dos elementos definidos de saída na composição do diagnóstico psiquiátrico. No caso mencionado por Freud a propósito de uma senhora que, aos 53 anos, sem nenhuma razão aparente, vê-se subitamente tomada por um ciúme incoercível de seu marido, o que a análise revela, sob o elemento que a psiquiatria concebe como uma falência sintomática do juízo de realidade, é a própria função do sintoma cuja inteligibilidade depende de sua possível correlação a algo distinto de seu referente original. A saber: que essa senhora sentia pelo genro uma paixão que ela não podia absolutamente admitir, o que a levava a deslocar esse sentimento para seu pobre marido que, efetivamente, não tinha nada a ver com o caso.

Vê-se claramente que a interpretação capaz de dar inteligibilidade ao caso é aquela que demonstra, ao interrogar o sentido do sintoma, que o ciúme pelo marido não é, no fundo, senão a paixão pelo genro. É possível, aliás, inscrever sua estrutura mediante uma fórmula, extraída de Barthes (1972), que admite a seguinte função proposicional: X não é, no fundo, senão Y. Se eu a proponho, é porque ela nos permite aproximar a estrutura da interpretação freudiana de algo que Barthes destaca das máximas de um grande irônico do século XVII, o Duque de La Rochefoucauld ([1664] 1977).

Para os que não leram as máximas de La Rochefoucauld, eu gostaria que esse comentário pudesse soar como um convite; para os que já as saborearam, proponho um exercício de comparação. Já que esse livro tem a vantagem de poder ser aberto em qualquer página, posto que cada máxima possui a estrutura de uma unidade autônoma, nada impede que tomemos, a título de ilustração, uma máxima retirada ao acaso. Ao abrir, por exemplo, a página 95 da edição de bolso publicada pela Flammarion, encontra-se uma máxima que enuncia: "A modéstia, que parece recusar elogios, não é senão um desejo de receber elogios ainda mais delicados" (La Rochefoucauld, [1664] 1977: 95). Ou seja: a modéstia não é no fundo senão um desejo de elogios. A mesma estrutura se repete em outra máxima, igualmente recolhida ao acaso na página 52: "o amor pela justiça, na maior parte dos homens, não é senão o temor de sofrer a injustiça" (La Rochefoucauld, [1664] 1977: 52). Ou ainda essa outra: "a clemência dos príncipes não é senão uma política para conquistar a afeição dos povos" (La Rochefoucauld, [1664] 1977: 46).

Fica evidente que, a despeito da variação do conteúdo, a mesma função proposicional se aplica: X não é, no fundo, senão Y. Tal fórmula assume uma função estruturante na composição das máximas, nas quais sempre se trata de uma relação eminentemente deceptiva entre seus dois termos. Isso responde ao projeto irônico de La Rochefoucauld, que visa denunciar a verdade das paixões mundanas disfarçadas em virtudes pelo discurso corrente, no exercício de manutenção social das aparências. Eu proporia, então, considerar, a partir do estudo de Barthes (1972), sete características determinantes da construção das máximas que se aproximam formalmente da interpretação analítica, revelando sua estrutura subjacente:

i. assim como a interpretação sobrevêm à maneira de um corte que rompe a continuidade do discurso do analisante, a máxima se distingue da reflexão discursiva pela forma fragmentada que interrompe sua fluidez, enviando-o ao sentido fechado e autárquico das essências substantivas;

ii. do mesmo modo que a interpretação se distingue do esclarecimento, pela concisão da qual depende sua eficácia, existe, por sua vez, na economia métrica da máxima, uma afinidade particular com a dimensão do verso e do oráculo que a demarca da explicação discursiva;

iii. se, por um lado, a interpretação analítica se instaura essencialmente através de seu efeito de surpresa, a máxima deve revestir-se, por outro lado, de uma forma sutil e faiscante da qual depende seu caráter surpreendente. Esse revestimento, ao mesmo tempo brilhante e duro, é a ponta da máxima, seu ferrão, sua picada. No exemplo "se mostrar sem vaidade não é senão uma espécie de vaidade", no momento em que a máxima parece começar como um discurso comum, a ponta sobrevém pelo efeito de ruptura que fecha a frase sobre a apoteose em que eclode sua verdade inesperada;

iv. tal como a interpretação se vale dos efeitos de equívoco permitidos pelo significante, a máxima tende a realizar a equivalência através da antítese. Há um arcaísmo verbal da máxima comparável, de certo modo, ao Gegensinn freudiano. Tanto em "chora-se para evitar a vergonha de não chorar" quanto em "a recusa de um elogio não é senão o desejo de ser elogiado duas vezes" percebe-se nitidamente que a ponta da máxima exibe seu termo ao modo de uma antítese ou de uma identidade invertida;

v. se a interpretação não visa instaurar nenhum tipo de formação de compromisso, a máxima não admite tampouco uma conciliação dialética. Frases de consolação tais como "é nas quedas que o rio cria energia", "perdestes o amor mas ganhastes a amizade" não têm jamais o valor de uma máxima, que apresenta sempre algo de desesperado;

vi. do mesmo modo que a interpretação analítica visa a queda dos ideais constitutivos das identificações do sujeito, a máxima responde a um projeto de denúncia desmistificadora dos valores sociais. A relação visível na função proposicional X não é, no fundo, senão Y é um desvelamento redutor que define o mais pelo menos. O primeiro termo que se trata de desmascarar, representado pelas virtudes (a clemência, a coragem, a sinceridade), é denunciado como um semblante cuja verdade estaria dada no segundo termo, representado pelas paixões (a veleidade, a preguiça, a ambição, o temor, o amor próprio).

vii. vale finalmente salientar que a máxima comporta um estrutura abissal que a aproxima dos efeitos de desrealização da interpretação analítica: desce-se do heroísmo à ambição, da ambição à inveja, da inveja à preguiça, da preguiça ao amor próprio, e assim por diante, sem que se atinja o fundo ou a base última dessa descida. Se X não é, no fundo, senão Y, Y, por sua vez, não é, no fundo, senão Z, e assim por diante. Isso quer dizer que, no fundo, não há fundo: a máxima seria uma via infinita de decepção que acabaria por produzir uma espécie de desrealização progressiva dos semblantes, ao final da qual não resta senão o nada captado por uma voz que fala sem significar.

Se deixamos, então, para o final essa homologia, é porque interessa-nos especialmente determos-nos nesse último aspecto: ele nos instrui que a ironia, enquanto desdobramento interrogativo da realidade pelo significante, termina por produzir uma dissolução progressiva da realidade que ela interroga. Essa dissolução revela, no desdobramento significante do fato discursivo, que o significante, por si só, não se presta a referir nenhum fato que se pretende significar. Tal como Jakobson nos ensina, a partir de Saussure, e a clínica da esquizofrenia o atesta, o significante, tomado nele mesmo, não comporta nenhum tipo de articulação representativa para com o fato do discurso que se busca referir; ele somente se articula aos demais significantes do sistema de linguagem ao qual pertence, de sorte que mesmo o sujeito que ele é suposto representar para um outro significante só aparece ali, segundo Miller, sob as espécies da referência vazia. É aliás por isso, porque o significante não se encontra necessariamente ligado à função de denotação, que a interpretação freudiana pôde se deslocar do referente inicial do sintoma de sua paciente - no caso: o ciúme do marido - para uma outra cena em que se desenrola sua verdade: a paixão pelo genro.

Decerto, mas é preciso tomar cuidado antes de deixarmos nos conduzir por essa pista: corremos o risco de seguir a via da interpretação infinita, similar à descida abissal das máximas de que falamos mais acima: o ciúme de marido não é, no fundo, senão a paixão pelo genro, a qual, por sua vez, não mais seria, no fundo, do que o desejo incestuoso pelo filho, e assim por diante... Assim como o sujeito esquizofrênico, de tanto desconfiar de toda articulação discursiva, termina por se ver privado de todo recurso significativo, a psicanálise, por sua vez, de tanto denunciar o estatuto de semblante das configurações discursivas que ela desmonta, acaba se apresentando, ela mesma, como um semblante discursivo a mais a ser desmontado...

A bem dizer, seja qual for o valor do ensinamento que a psicanálise extrai da clínica das psicoses, que nos instrui a fazer vacilar, ironicamente, as representações impostas pelo discurso psiquiátrico, parece-me problemático propor, para a psicanálise, conforme sugere Miller, uma clínica cuja vocação estaria guiada pela ironia do esquizofrênico. Na realidade, não podemos, a rigor, sequer falar de uma vocação irônica do sujeito esquizofrênico, pela simples razão de que não existe vocação esquizofrênica. Não há vocação esquizofrênica na medida em que é próprio, para não dizer específico, da esquizofrenia, a recusa do apelo proveniente do Outro, segundo o uso que aqui fazemos do termo vocação. Mas o que dizer então da vocação irônica da psicanálise, se consideramos que a ironia coloca em causa precisamente a legitimidade, quando não a própria existência do Outro cujo apelo determina sua vocação? Como é possível que seja endereçado ao analista o apelo, por parte do Outro, pelo gesto irônico que coloca em causa sua própria consistência? De que maneira pode o analista responder a esse apelo constitutivo de sua vocação, sem para tanto cair na ironia infernal do sujeito esquizofrênico?

A bem da verdade, esse apelo que vem do Outro pela ironia que o coloca em causa não é, nem de longe, um fenômeno social exorbitante. Pode-se constatar, sem grandes dificuldades, que há efetivamente um apelo, por parte do Outro, pelo gesto irônico que o coloca em suspenso, aliviando-o, de certo modo, de sua própria gravidade. O personagem do sobrinho de Rameau, cujo nome dá o título a um ensaio sobre a moral composto em forma de diálogo por Diderot ([1762] 1951), disso representa, aliás, um exemplo que se tornou clássico. Esse personagem, descrito como uma miscelânea de cinismo e fanfarronice, vem representar, ao longo do século XVIII, o tipo irônico e grotesco, simultaneamente desprezado e querido pela sociedade. As pessoas de bem ao mesmo tempo que o afastam o conservam, na medida em que ele lhes oferece, pela via da desmontagem irônica dos semblantes, a única possibilidade que elas dispõem de gozar, razoavelmente, da satisfação ilícita e do descomedimento. Ele é o louco que as pessoas razoáveis conservam para não morrerem de enfado nos limites de uma existência regrada pelas normas sociais, louco cuja insanidade o Outro razoável quer possuir malgrado ele mesmo.

Tudo isso considerado, seria igualmente possível dizer, no que tange à psicanálise, que, em sua vocação irônica, ela também se apoia em uma demanda que o Outro social lhe endereça; demanda que a coloca numa posição similar àquela antes ocupada pelo sobrinho de Rameau. Assim como a sociedade do século XVIII recusava o sobrinho de Rameau, ao mesmo tempo que o conservava, a sociedade contemporânea simultaneamente rejeita e preserva um lugar para o psicanalista. Afora isso, se por um lado o sobrinho de Rameau oferecia às pessoas de bem a possibilidade de gozar, pela via da pantomima irônica, de uma satisfação inadequada à sua posição social, o psicanalista, por sua vez, fornece ao sujeito contemporâneo a possibilidade de se haver, pela via do significante, com um gozo que o divide por não convir à sua representação, cuja unidade se encontra determinada pelo seu pertencimento à classe que o define no campo do Outro social.

Todavia, o analista, por mais divertido que ele possa às vezes ser, não é certamente um bufão. Ele não está absolutamente a serviço de um transbordamento do gozo liberado dos limites dos semblantes, como por longo período fez crer uma certa vulgata psicanalítica. Se sua ironia revela que, no fundo, não há fundo, que nada resta para além dos semblantes, esse nada, que ele apresenta, deve se produzir como algo, por assim dizer, positivo. Advém a ele a tarefa não de se calar, para nada dizer - como se ilustra, caricaturalmente, na anedota do analista ataráxico que recebe três pacientes após falecer -; cabe a ele antes dizer o nada, no nível do discurso do qual ele se autoriza.

Mas esse nada, do qual o analista é o suporte, como consegue ele dizê-lo? O nada, lembra-nos Barthes (1972), não pode ser tomado pelo discurso senão de viés; impossível indicá-lo diretamente. É, aliás, por isso que Baas (1998) propõe conceber o olhar do analista, por comparação com o de Sócrates, como um olhar oblíquo. O mesmo se dá, no nível do discurso, com a função do pretexto do qual nos servimos obliquamente, não para significar o que seu enunciado denota, mas para produzir o nada enquanto suporte de uma possível enunciação. Tal é o caso, retomado de Lotti por Barthes, "de mil notações tênues que não têm por objeto nem uma ideia, nem um sentimento, nem um fato, mas simplesmente o sentido muito amplo do termo: o tempo que está fazendo" (Barthes, [1953] 2000: 220-222). Essa expressão que, para o camponês cuja colheita depende do tempo, poderia ser objeto de uma comunicação plena torna-se vazia de sentido na relação citadina, mas nem por isso desprovida de importância. Esse vazio de sentido de "o tempo que está fazendo", por mais desprezado que seja, é o sentido mesmo do que se busca produzir, a despeito de sua frivolidade aparente: fala-se do tempo não para nada dizer, mas para dizer o nada a partir do qual há lugar para falar, para engatar uma conversação.

Em vez, assim, de se instalar diante do paciente pelo regime de imposição do sentido de que falamos anteriormente, em referência ao modo de funcionamento da clínica psiquiátrica, o analista irônico deve interpelar o sujeito com o breve comentário do "tempo que está fazendo". No lugar de enviar-lhe o sentido prescrito por um discurso determinado, cabe-lhe produzir apenas a frase-pretexto, vazia de sentido, sobre a qual a palavra de seu paciente pode se engrenar. Para retomar uma indicação de Heidegger, sugerida por Bernard Baas (1998), vale dizer que cabe ao analista oferecer-se ao sujeito ao modo de uma solicitude não substitutiva, sem colocar sua própria preocupação no lugar da preocupação (Fürsorge) daquele de quem ele se ocupa; ao passo que a solicitude do psiquiatra se estabelece de modo prescritivo, eximindo o sujeito de sua preocupação para lhe impor o sentido ao qual ele deve se subordinar, a solicitude do analista é radicalmente diferente, na medida em que ele não se precipita em curar o paciente, substituindo-o.

Pois se a cura, segundo Lacan ([1973] 2001) em Televisão, pode ser tomada como uma demanda daquele que sofre de seus pensamentos, a solicitude do analista se vale do fato de que a resposta a essa demanda é o próprio analisando que deve encontrar. No lugar de subtrair o analisando de sua preocupação, oferecendo-lhe a solução como algo disponível de que poderia se descartar, cabe ao analista lhe restituir a questão que seu sofrimento coloca de modo a torná-la ao máximo legível, ou seja, até o ponto em que nada mais reste a se ler. Produzir o vazio irônico equivale pois a opor a toda solicitude normativa que deriva da perspectiva assistencial dos serviços dos bens, o gesto que entrega ao analisando o questionamento de sua própria preocupação, ao expô-lo à falta de sentido que o determina.

Sabemos de resto, se continuarmos na companhia de Heidegger, que a via da solicitude de liberação, assim constituída, visa no final das contas a conduzir o sujeito à dimensão existencial da angústia pela qual ele se expõe à nulidade (Nichtigkeit) de seu Dasein, mas não iremos desenvolver esse ponto aqui. Importa-nos antes discernir a estrutura da servidão voluntária relativa ao fato de que o sujeito, em vez de buscar a via da solicitude de liberação, ordinariamente demanda a solicitude normativa que lhe permite obturar o vazio de sentido através da oferta de uma solução disponível (vorhanden).

Esse vazio de sentido diz respeito à constatação, acima mencionada, de que não há representação da realidade para além dos semblantes que a constituem. Aquele que visa a verdade para além do semblante (sang blanc) termina, no máximo, por encontrar, no dizer de Lacan, o sang rouge, a violência própria aos efeitos do real que Édipo testemunha (Lacan, [1971] 2006). Mas basta um pouco de serragem, ele acrescenta, para que o circo recomece, para que o discurso representativo retome seu lugar. Assim sendo, se sabemos que finalmente não há discurso que não se valha do semblante, mesmo que seja ao preço de denunciar sua inconsistência, sobre que base apoiar-se-ia, então, a solicitude do analista para desconstruir os semblantes aos quais o sujeito se encontra alienado? Posto que não há discurso que não seja do semblante, seria o caso de situar a solicitude do analista, em sua vocação irônica, em algum lugar atópico, extradiscursivo, desde onde seria possível submeter as configurações discursivas, impostas ao sujeito, a um processo de desmontagem permanente?

Certamente que não, conforme se verá logo mais adiante. Mas, antes de alcançar essa resposta, vale reconhecer que por aqui tocamos o ponto em que a psicanálise se encontra diante de uma questão com a qual o marxismo, enquanto dispositivo de denúncia crítica do semblante ideológico, teve ocasião de se afrontar por várias vezes: do momento em que a violência da imposição de sentido se encontra ligada aos modos de representação da realidade, como se valer de um meio discursivo para denunciar essa violência?

Tal é, aliás, a pergunta a que chega Derrida ([1994] 2007) no colóquio intitulado "O nazismo e a solução final: os limites da representação". Ao se interrogar, em estilo proléptico, sobre o que o filósofo marxista Walter Benjamin ([1916] 1988) teria antecipado a respeito desse acontecimento, cujo desenrolar o tiraria tão precocemente de cena, Derrida afirma, num post-scriptum dedicado à mesma conferência, que, ao menos em tese, Benjamin já vislumbrara o que estava por vir. Por considerar que o horror da solução final desafia a própria representabilidade, Derrida verifica que sua ocorrência procede, paradoxalmente, daquilo que constitui, para Benjamin, o pecado original do espírito linguístico, que diz respeito à queda (Sündenfall) da linguagem na função de representação. Pois seja qual for a pertinência da tese, sustentada por Benjamin, de que o mal advém à linguagem pela via da dimensão representativa, pela via, portanto, técnica e utilitária que arrasta a linguagem para fora de sua destinação originária de expressão e nomeação, não há, efetivamente, como contestar que a radicalização do mal ligada ao uso representativo da linguagem teria encontrado no nazismo seu maior alcance. Seu programa foi, de fato, a figura mais marcante da exploração política das técnicas representativas, conforme se atesta no uso da representação do judeu típico pela propaganda política de Goebbels, que hoje os americanos adotam em relação aos povos árabes.

Mas interessa-nos especialmente reter a suposição, presente nesse comentário suplementar de Derrida ([1994] 2007), de que seria vão e sem pertinência, aos olhos de Benjamin, todo processo jurídico do nazismo e de suas responsabilidades, do momento em que o aparelho de julgamento ainda se desenvolve sob a ótica do representável em sua objetivação histórica. Pois, se Benjamin tem de fato razão, seu argumento nos lança num impasse que desafia a nossa própria capacidade de julgamento, na medida em que o julgamento se move num campo de linguagem ligado à representação. Toda tentativa de representar a realidade da violência estaria em princípio fadada ao fracasso, do momento em que a própria relação com a linguagem representativa já se encontra comprometida com a violência de sua submissão ao uso instrumental. É como se o exercício da violência já estivesse presente na possibilidade mesma do uso ordenado que fazemos da linguagem, em sua tentativa de denunciá-la. Para entender, portanto, o que significa se servir da linguagem para se posicionar diante da violência de uma ordem hegemônica, cabe antes esclarecer que o próprio recurso da linguagem já se encontra comprometido com algum tipo de restrição normativa imposta violentamente, que em Benjamin se identifica a seu uso representativo e instrumental.

Deparamo-nos assim, no nível dessa reflexão, com uma aporia que parece colocar em cheque toda perspectiva crítica do semblante ideológico, na medida em que sua visada se move invariavelmente num campo de linguagem ligado ao semblante, em seu compromisso com a função de representação. Mas isso não quer, contudo, dizer que a linguagem se encontre limitada, nela mesma, por essa prescrição representativa. A bem dizer, por mais que essa limitação representativa venha prevalecer, no nível de seu uso discursivo, a linguagem nem por isso deixa de apresentar-se como um mecanismo formal de capacidades gerativas ilimitadas: não há nada que não se possa dizer, inclusive o próprio nada (Bourdieu, 1982). Pode-se enunciar proposições dotadas de sentido, desprovidas de referente, como também é possível enunciar proposições absolutamente desprovidas de significação sem desrespeitar os limites formais da gramaticalidade. O que nos autorizava, aliás, a falar de um efeito de desrealização da linguagem pelo significante, coextensiva à dissolução irônica do semblante, era a constatação de que a organização formal da linguagem, por mais rigorosa que seja, não impede o seu desvario semântico derivado, já o dissemos, do desligamento do significante de sua articulação representativa com o referente.

E, mesmo no que tange à articulação do discurso ao fato que por seu meio se tenta representar, está em questão mais o modo de organização que o discurso imprime à linguagem do que sua ligação representativa com um elemento exterior. Como sabemos, não passou despercebido ao gênio de Lacan a construção, por parte de Bentham (1932), de uma Theory of fictions para se pensar a constituição do objeto de coesão social - no caso o objeto utilitário - como uma ficção estritamente significante (e isso no século XIX, mais de cem anos antes, por conseguinte, do surgimento de uma teoria linguística que permitiria a Jakobson extrair de Saussure a tese, acima mencionada, de que o significante se define não pelo seu vínculo com a coisa representada, mas por sua articulação distintiva aos demais significantes): "To language, then - to language alone - it is, that fictitious entity owe their existence; their impossible, yet indispensable, existence" (Bentham, 1932: 15). As ficções são ali convocadas para constituir o "trabalho de invencível necessidade" (the work of invincible necessity) do qual a comunicação humana não pode se privar, posto que ninguém poderia ter em substância o pensamento de outra pessoa. Se Bentham propõe conceber os objetos utilitários não como realidades imanentes do mundo, mas enquanto ficções ou puros seres de linguagem, é que tais objetos somente se apresentam como fatos discursivos, para o utilitarismo, mediante o recorte que este lhes impõe, tornando-os perceptíveis enquanto objetos de repartição (Lacan, [1959-1960] 1986). É tão somente quando a ideia do bem denota um objeto de partilha que ela se torna uma variável susceptível de entrar no cálculo da fórmula do interesse, permitindo assim ao cientista utilitário pensar a coesão deste fictitious body que é a comunidade sobre a qual ele é chamado a intervir.

Resulta assim que a articulação representativa ou instrumental da linguagem depende, para se constituir, de uma imposição, de sua submissão a uma relação de poder - representada pela função do significante mestre - que não lhe é de modo algum inerente (Lacan, [1971] 2006). É em consideração a isso que Lacan ([1973] 1975) se permitirá denunciar, dois anos mais tarde, a presença do mestre no horizonte do discurso ontológico, ao localizar a referência ao ser como efeito de uma prescrição normativa. A articulação representativa do referente deriva, por conseguinte, da submissão violenta da linguagem a um princípio que somente funciona se não se deixa questionar. Trata-se de um princípio que deve ter sempre razão, mesmo se estiver errado, porque dele depende o julgamento factual sobre a verdade e o erro.

Pode-se assim inferir, sem maiores dificuldades, no que tange ao mecanismo de dominação ideológica, que ele se deve ao fato de que toda realidade representada é invariavelmente uma realidade forçada, uma realidade, enfim, determinada por um elemento de força em posição de exceção, que nela não se deixa explicitar. Mas o que dizer então, para retomar nossa última questão, da posição adotada pela psicanálise a respeito do problema do semblante ideológico, seja com relação à perspectiva que ela oferece para se pensar o mecanismo ideológico, seja com relação à percepção crítica que se tem frequentemente da própria psicanálise, denunciada como uma prática a serviço de alguma orientação ideológica determinada?

Redigamos que, em princípio, assim como o materialismo dialético, entendido como teoria crítica da ideologia, visa explicitar as contradições ocultas pela ideologia na representação da realidade que ela permite, a psicanálise vem expor, por sua vez, no nível discordante dos sintomas, a relação do sujeito ao gozo sonegada em proveito da estabilidade de sua representação imaginária. A representação, em primeiro plano, da consciência e do eu seria uma espécie de ideologia pessoal do sujeito que a psicanálise viria desmontar. Mas é preciso ainda se perguntar se a crítica da ideologia se encontra de fato imune às relações de poder que ela se propõe denunciar, assim como examinar os meios de que ela dispõe para revelar a verdade oculta no semblante ideológico; sem omitir que, para a psicanálise, o tratamento dessa última questão, longe de se reduzir a uma especulação abstrata, responde a um problema eminentemente clínico: a psicanálise interpela o semblante ideológico na medida em que deve se haver com os efeitos sintomáticos provocados pela sonegação da verdade do desejo.

Do ponto de vista do materialismo histórico, no que diz respeito à representação do sujeito determinada pelo seu pertencimento às classes sociais, sabemos que a ideologia visa produzir a percepção dessas classes como entidades autônomas, independentes do processo histórico que as constitui, para nos fazer crer que a ela estamos submetidos, no lugar de ser seus realizadores. Sabemos igualmente, no que tange à psicanálise, que, se ela surgiu em meio a uma situação de determinação de classes geradas pelo mecanismo ideológico de controle disciplinar, não foi na forma de uma prática a mais de controle, como chegou a pensar Foucault ([1973] 2001). Ela antes surgiu em resposta ao mal-estar, testemunhado pelo neurótico, condicionado pela sua dificuldade em se submeter às representações ordenadas pelos dispositivos classificatórios impostos pelos mecanismos sociais de controle.

Não foi por acaso - já tivemos ocasião de falar disso em outro momento - que a psicanálise surgiu através da consideração da histeria, ou seja, da doença inclassificável na qual se expõe, em sua apresentação cindida, a relação do sujeito a uma verdade incompatível com sua representação. É justamente por operar com essa verdade que devemos atribuir à psicanálise o mérito de revelar, no nível da experiência clínica, os mecanismos de desconhecimento que a crítica marxista localizava no funcionamento ideológico. Tais mecanismos de desconhecimento, que na ideologia funcionam como pontos lacunares de cuja omissão seu semblante depende para se manter, irão se manifestar, no nível da experiência clínica, ao modo de um desconhecimento ativo, de um "não querer saber" que o sujeito opõe ao que não convém à representação imaginária que ele tem de si mesmo. Dali se explica, aos olhos de Freud, a reação hostil da sociedade a sua descoberta, que suscitou uma recusa passional, desprovida de exame crítico, mesmo da parte dos representantes do saber científico.

Mas por que causa tanta estranheza que tal recusa ideológica provenha do discurso da ciência? Acaso deveríamos dali esperar, como chegou a pensar Althusser (1967), uma relação ao conhecimento isenta de toda contaminação ideológica? O que dizer, aliás, da própria teoria crítica da ideologia? Seria afinal possível sustentar a ideia, presente no horizonte da crítica ideológica, de um sujeito original do conhecimento a ser alcançado mediante uma depuração contínua dos desvios que a ideologia imprime em sua faculdade de conhecer?

Se formos simpáticos com o ponto de vista de Nietzsche, de A verdade e a mentira no sentido extramoral ([1873] 1975), nossa tendência seria, é claro, a de afirmar que não. Não existe, para Nietzsche, sujeito original do conhecimento nem tampouco instinto dessa natureza, na medida em que, para ele, o próprio conhecimento é fruto de um embate político. É aliás por isso, observara Foucault ([1973] 2001), que, no lugar de falar da origem (Ursprung) do conhecimento, Nietzsche preferia falar de uma Erfindung, ou seja, de um artifício ou invenção do conhecimento, estabelecendo a sua própria existência como condicionada por um jogo de relações sociais. Nesse sentido, as condições ideológicas determinadas pelas relações de poder seriam fonte, e não entrave ao conhecimento.

Essa leitura nos coloca, portanto, diante de um segundo paradoxo mais complicado, talvez, do que o primeiro: assim como não podemos falar da violência da representação sem nos servirmos de um discurso representativo, não nos é dado tampouco conhecer a verdade por detrás de sua deturpação ideológica, se concedermos - com Nietzsche e Foucault - que a própria ideologia se estabelece como solo mesmo de constituição do conhecimento. Nada mais ideológico, aliás, do que a pretensão de habitar um lugar depurado dos semblantes ideológicos ligados à constituição do poder, ainda que em nome de uma crítica da ideologia. Não há como aceder a um observatório exterior desde onde se possa vislumbrar o lugar no qual seu mecanismo opera. A saída da ideologia nos conduz, tal como ocorre numa garrafa de Klein, para dentro dela. Zizek (1999) nos oferece uma ampla série de exemplos que nos demonstram, à exaustão, essa impossibilidade de sair da garrafa de Klein ideológica.

Assim, um processo ideológico típico consiste em atribuir uma necessidade superior a uma situação historicamente delimitada e contingente: a contingência do real é provida de sentido pela ideologia, como quando se diz que a desigualdade social é uma condição inerente ao funcionamento da sociedade. Mas a ideologia também opera no sentido inverso quando toma a necessidade como uma contingência insignificante, tanto no tratamento psicanalítico, quando se diz que o ato sintomático foi um erro sem sentido, quanto na economia, ao reduzir, por exemplo, a crise ao resultado de uma ocorrência externa, como se ela não fosse o fruto da própria organização do sistema. Existe, por outro lado, a mistificação ideológica que nos conduz a evocar a "complexidade da situação" para nos livrar da responsabilidade de agir. Mas a ideia de um sujeito responsável, livre para decidir, igualmente atende à necessidade ideológica de esconder a complexidade da trama em cujo contexto se insere o ato praticado pelo sujeito, e também define de antemão as coordenadas de seu sentido. O sistema só pode funcionar se a causa de sua disfunção for situada na culpa do sujeito responsável, como ocorre quando o FMI acusava as assim chamadas economias emergentes de não terem realizado o dever de casa (leiam-se: as diretrizes do consenso de Washington).

O fato é que não dispomos de meios para produzir, no que tange à descrição da realidade, nenhum tipo de representação ideologicamente neutra. Se a representação oficial do mapa-múndi, com a Europa acima da África, é flagrantemente ideológica, a representação inversa, com a África acima da Europa, não o seria menos. Impossível evadir-se dessa garrafa de Klein. O que sua topologia nos demonstra é que a ideologia reside ora na distorção da racionalidade, ora na própria crença referida a uma racionalidade que não esteja distorcida por alguma estratégia de poder. Não se pode criticar a ideologia de fora da realidade por ela determinada, como pretendia Sartre, em sua recusa provocativa do prêmio Nobel. Parece-nos inapelavelmente ilusória a definição sartreana do intelectual como aquele que se mete com o que não é da sua conta, como alguém capaz de emitir juízos críticos sobre os diversos modos de exercício do poder, dele se excetuando. Todo discurso depende, para se constituir, de sua conformação a algum tipo de exercício do poder, e isso também se aplica ao discurso do intelectual. Mas a atitude céptica, que consiste em resignar-se à garrafa de Klein, em dizer que não se pode sair da ideologia e em aceitar que todas as realidades não passam de jogos ficcionais, termina, por sua vez, por constituir o conformismo ideológico por excelência. Donde aliás se explica que frequentemente os escritores cépticos, como Hume ou Pirandello, tenham assumido posições políticas conservadoras.

Da impossibilidade, portanto, de se constituir um observatório externo para localizar o ponto no qual se exerce a dominação ideológica deriva sua aparição espectral que tanto interessou a Jacques Derrida (1993). Por carecer de um ponto de localização, a ideologia se espectraliza. A aparição do inaparente de que fala Derrida a propósito da relação ao poder diz justamente respeito ao Espectro da ideologia enquanto aparição destinada a ocultar as contradições internas da realidade sobre a qual o seu objeto transparece. Tal é o caso do fetichismo da mercadoria, o qual implica a insólita espiritualização do corpo da mercadoria para apagar, de sua percepção, as relações de poder envolvidas em sua produção.

Se podemos, contudo, dizer, na esteira de Zizek (1999), que a psicanálise nos permite ir além dessa perspectiva espectral, é na medida em que ela nos instrui que o espectro como tal já é uma defesa, um recuo de algo para o qual a própria ideologia seria a resposta sintomática. Esse algo, ao qual a dominação ideológica responde, e do qual depende, reciprocamente, o consentimento subjetivo à dominação ideológica - no sentido, proposto por La Boétie, da servidão voluntária -, está referido ao fato de que não há realidade sem espectro. Não há realidade sem espectro, no sentido em que não se pode cobrir inteiramente o real com o simbólico. A aparição espectral vem preencher justamente o furo do real, produzindo o seu ocultamento necessário para que uma realidade surja. O espectro ideológico germina, portanto, do esforço de se cobrir a cisão provocada pelo real sobre o simbólico, mediante a legitimação da crença que encobre a violência do poder, fornecendo-lhe o elemento batizado por Pascal ([1897] 1976) de fundamento místico de sua autoridade.

Se nos referimos, portanto, a uma servidão voluntária em relação recíproca com a dominação ideológica, é porque efetivamente existe, como complemento essencial ao poder que domina, uma vontade de submissão ou mesmo um cálculo de interesse por parte de quem se deixa ludibriar: "embora a ideologia recubra e esconda o interesse do poderoso, ela serve também, ao menos em parte, ao interesse do oprimido" (Prado Jr., [1976] 2008: 336). O espectral se redobra, assim, de seu anonimato discursivo, visto que não podemos localizá-lo sequer em referência ao discurso do opressor. Sua consistência está dada "na colaboração que a polêmica esconde" (Prado Jr., [1976] 2008: 336), observa Bento Prado Jr., em sua instigante leitura de Rousseau. Inútil, portanto, tomar partido, em nome da ideologia, do oprimido contra o opressor, uma vez que ambos compartilham "de uma sintaxe única que permanece idêntica por sob a tempestade do confronto entre os partidos adversos" (Prado Jr., [1976] 2008: 336). Não se trata de separar o bom discurso do mau discurso, mas sim de apontar a lógica que os articula a uma forma de sociabilidade comum, posto que a língua, longe de se corresponder ao mero reflexo da representação das coisas, é antes a expressão das formas instituídas de negociação do poder político.

O que está de fato em questão, sob o espectro anônimo da ideologia, diz respeito ao fato de que as formas assim instituídas não recobrem integralmente o corpo social; é na cisão provocada pelo real sobre o simbólico que se revelam os pontos de impasse por onde se insiste algo que escapa à negociação, o qual concerne não propriamente a uma pretensa dimensão da liberdade, como quer Zizek, mas ao problema do ato e da decisão. Se, para Lacan, o analista tem horror do seu ato, assim como o sujeito recua com pavor espectral diante da decisão, é porque tanto um como outro o colocam na mira de uma situação sobre a qual não existem meios de deliberação ou consulta, situação sobre a qual, no entanto, é preciso se posicionar. O que se teme, no fundo, não é o espectro. O espectro é antes uma proteção contra algo mais apavorante: a decisão que não se garante mais pelo encadeamento estruturalmente ideológico do sentido prescrito pelo significante mestre, decisão da qual o sujeito se protege pela via da submissão consentida. Essa consideração do furo a ser vedado pela ideologia leva Lacan a dizer, a propósito da metafísica, em sua Introdução à edição alemã dos escritos, que ela passa seu tempo tentando tapar o furo da política (Lacan, [1973] 2001).

É no lugar, portanto, desse furo irredutível do real que a ideologia busca tapar, como limite inerente que impede a sociedade de se constituir como totalidade fechada, que a psicanálise deve intervir. Zizek (1999) chega a dizer que o marxismo, por não ter dado a esse furo o tratamento conceitual devido, termina por vê-lo retornar como efeito de uma ontologização do espectro, seja na forma do culto à personalidade do líder que desembocou no stalinismo, seja mesmo na forma do messianismo que em Benjamin ([1916] 1988) se encarna, misticamente, na manifestação redentora da violência divina. Se a psicanálise, para tratar conceitualmente esse furo, teve que num certo momento se valer, ainda que precariamente, da teoria mítica da horda primitiva encabeçada pelo líder, é por perceber que em resposta a esse furo se constituiu, em posição de exceção, a dimensão social da soberania.

 

O PROBLEMA DA EXCEÇÃO SOBERANA

Por esse motivo sustentamos, em certo sentido, que a teoria do jurista Carl Schmitt, em que pese seu comprometimento execrável com a ideologia nazifascista, interessa mais à psicanálise do que a doutrina do jurista liberal Kelsen, malgrado a simpatia pessoal de Freud por esse último. É em Schmitt, e não em Kelsen, que encontramos a definição do soberano como aquele que decide sobre o estado de exceção, em resposta ao caso para o qual a deliberação ou a consulta técnica ao saber da situação não têm nenhuma validade (Schmitt, [1922] 2006). Sendo o caso dito excepcional a própria manifestação do furo do real por não caber, em sua exposição concreta, no âmbito das situações regidas pela norma geral, o soberano, em contrapartida, por ser aquele que decide sobre o estado de exceção, não pode ter, tampouco, sua definição inferida a partir do caso normal. A decisão que o constitui, em seu significado autônomo, não pode ser deduzida do conteúdo de uma norma.

O tratamento conceitual da dimensão de exceção soberana, enquanto resposta aos efeitos da incidência do real sobre o simbólico, deveria assim nos permitir evitar o seu recobrimento espectral na medida em que nos convoca a pensá-la do ponto de vista de uma decisão que ao real responde. Trata-se de uma decisão que aplica a lei, dela se desaplicando, para retomarmos uma expressão cara a Carl Schmitt ([1922] 2006). No que diz respeito à clínica psicanalítica, usualmente atribuímos à posição do Pai essa dimensão soberana, no sentido em que ele "normalmente" suporta a função de exceção, desaplicando-se da norma que sua decisão engendra. Mas, no lugar de se conceber o Pai como vetor de uma função lógica que responderia à incidência do real sobre o simbólico, o que se verifica, tanto entre muitos autores da clínica psicanalítica quanto em várias teorias que da psicanálise se valem, é a tendência, que visamos questionar, de se atribuir-lhe as propriedades imaginárias plenas do poder impositivo.

O modo, aliás, mais comum e, por que não dizer?, ideológico de se pensar essa dimensão da soberania, enquanto lugar de resposta à incidência traumática do real sobre o simbólico, consiste em fazer apelo ao imaginário, no sentido, agora comentado, de conceber a instância soberana segundo os predicados da plenitude. Dessa concepção deriva a adesão de Carl Schmitt ([1922] 2006) ao hitlerismo, assim como a analogia, por ele proposta, em sua Teologia política, que situa o milagre como sendo o caso excepcional e Deus como princípio de intervenção soberana, soberania cuja função, no modelo familiarista, estaria representado pelo poder paterno. A referência canônica desse dispositivo imaginário é quase que invariavelmente o direito romano, sobre o qual a cultura ocidental constituiu o discurso do direito.

Numerosas são também as teses que se valem do postulado imaginário relativo à plenipotência da exceção soberana, as quais habitualmente concebem o mal-estar contemporâneo como um fenômeno decorrente do declínio progressivo do poder paterno. Tanto a tese de Pierre Legendre (1989), que se refere ao desencadeamento coletivo da psicose na modernidade como corolário de uma carência crescente do pai, quanto as formulações que hoje em dia concebem as formas de manifestação das patologias atuais como efeitos decorrentes da perda da baliza paterna, apoiam-se numa mesma tendência de se condicionar a eficácia de sua posição soberana à plenitude imaginária do seu poder.

O fato é que dessa orientação não escaparia, por um certo período, nem mesmo o jovem psiquiatra Jacques-Marie Émile Lacan, leitor confesso de Émile Durkheim. Fica claro que a percepção lacaniana do mal-estar contemporâneo, descrita nos complexos familiares, de 1938, como fenômeno decorrente contração da família patriarcal ao talo reduzido do laço conjugal, encontra sua fonte nos cursos ministrados por Durkheim em 1892 (Lacan, [1973] 2001). O pai moderno nitidamente aparece, numa relação comparativa ao grande patriarca antigo, como uma figura singularmente deficiente, tanto aos olhos de Durkheim quanto do Lacan durkheimiano, ocupando assim, para retomarmos uma expressão de Deleuze, o lugar das essências desfalecentes, desde onde se renovam os apelos nostálgicos para restaurar-lhe o sentido eminente do qual o homem moderno teria se distanciado.

Mas o fato, salientado com grande pertinência por Zafiropoulos (2001), é que os estudos da escola de Cambridge viriam demonstrar amplamente, a partir de 1970, que a forma conjugal da família nem de longe corresponde a um fenômeno moderno. Sua existência remonta a antes do século XVI, e mesmo na Roma antiga, a quem os adeptos do patriarcado sistematicamente se referem, a forma conjugal da família foi igualmente predominante. A tese, portanto, relativa aos benefícios sociais do patriarcado e aos efeitos nefastos de seu declínio conjugal, longe de ser objeto de um estudo científico, revela-se, no final das contas, como uma fantasmagoria do pensamento de Durkheim.

Por esse motivo interessa-nos enfatizar, seguindo ainda a leitura do livro de Zafiropoulos (2001), que o Lacan que propõe um retorno a Freud, a partir de 1951, é um Lacan essencialmente distanciado da fantasmagoria patriarcal de Durkheim. O Lacan do retorno a Freud é antes de tudo um Lacan essencialmente influenciado pelo estruturalismo, cujas leituras de Jakobson e de Claude Lévi-Strauss lhe permitiram conceber de maneira radicalmente distinta o estatuto da função de exceção. Para entender isso, vale lembrar que se o espectro ideológico se manifesta, como foi dito mais acima, na impossibilidade estrutural de se recobrir o real pelo simbólico, essa mesma impossibilidade se encontra examinada no fato da inadequação, indicada por Lévi-Strauss ([1950] 2003) em sua Introdução à obra de Marcel Mauss, entre o significante e o referente que se busca significar. Porém o que a leitura estruturalista de Lévi-Strauss nos permite perceber a esse respeito é que a potência do significante mana em dar conta dessa inadequação, potência sem a qual o pensamento simbólico não poderia se exercer, reside não em sua plenitude, mas em seu essencial esvaziamento de símbolo em estado puro, ou seja, em seu valor simbólico zero. Trata-se de um significante que gera a possibilidade de um discurso significativo na medida em que ele próprio não comporta nenhum tipo particular de significação. É nesse sentido que podemos identificá-lo ao elemento de exceção que organiza a possibilidade de um discurso deliberativo, desde que não seja alvo, ele próprio, de nenhum tipo de deliberação.

Se o Lacan do retorno a Freud é, pois, como enfatiza Zafiropoulos (2001), um Lacan profundamente marcado pelo estruturalismo, ele o é na medida em que o pensamento estruturalista foi efetivamente o instrumento que lhe permitiu emancipar-se da formulação falaciosa do patriarca durkheimiano, ou seja, da plenipotência imaginária da função de exceção. Foi somente em posse dessa leitura da função do significante mana, extraída de Lévi-Strauss, que Lacan pôde finalmente encontrar a tese, fundamentalmente freudiana, que localiza a função de exceção, fora de toda referência à plenitude imaginária do pai, no esvaziamento simbólico do pai morto. O pai morto, enquanto suporte da função simbólica, designado pelo significante do nome do pai do qual depende a operação de capitonagem essencial ao efeitos de significação, é antes de tudo um significante insignificante, um significante cuja eficácia depende justamente do esvaziamento de todo conteúdo significativo (Lacan, [1956-1957] 1994).

No lugar, portanto, do patriarca plenipotente das fantasmagorias nostálgicas que nutriam a tese de Émile Durkheim, temos, com o estruturalismo, que a exceção depende, para funcionar, não mais da manifestação plena do seu poderio, mas do seu apagamento no campo que ela organiza, denotado em Lacan pelo matema S (A barrado). Esse significante de exceção, sem o qual os demais significantes nada representariam para o sujeito, nada mais é do que um traço que se traça de seu círculo sem poder ali ser contado, simbolizável pela inerência do -1 em relação ao conjunto dos significantes (Lacan, 1966). A exceção, para funcionar, deve antes de tudo poder se apagar, como já intuíra o legislador Sólon, na Grécia antiga, que, ao ser convocado a agir numa situação de exceção, prontificou-se a ir-se embora após instaurar a decisão reguladora.

 

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Recebido em 19 de dezembro de 2009
Aceito para publicação em 24 de maio de 2010

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