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Tempo psicanalitico

versão impressa ISSN 0101-4838

Tempo psicanal. vol.42 no.1 Rio de Janeiro jun. 2010

 

RESENHAS

 

A perversão comum

 

Common perversion

 

 

José Durval Cavalcanti de Albuquerque

Psiquiatra e membro psicanalista da Sociedade de Psicanálise Iracy Doyle (SPID)

 

 

RESENHA DE:

Lebrun, J.-P. (2010). A perversão comum; viver juntos sem outro. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 352 páginas.

O autor, Jean-Pierre Lebrun, tornou-se mais conhecido entre nós através do livro O homem sem gravidade (2003), no qual entrevista Charles Melman. A publicação, dirigida ao leitor leigo, não se propunha a amarrações teóricas, sendo uma transcrição de uma conversa sobre o pós-moderno, suas consequências para o campo da psicanálise e o sujeito contemporâneo.

Lebrun publica, um ano depois, O mundo sem limite (2004), pretendendo conferir uma consistência teórica às questões suscitadas por este homem sem gravidade associado a uma nova economia psíquica, organizada pelo gozo e não pelo recalque, que se caracterizaria pela impossibilidade da transferência e pelo esvaziamento da subjetividade. O autor imprime ao prefácio deste livro um caráter apocalíptico ao descrever o quadro de Francis Bacon, "Três estudos de personagens ao pé de uma crucificação" no qual três figuras quais quimeras monstruosas guardavam em comum uma voracidade sem compaixão, uma fome automática e incontrolável e uma força de ódio ao mesmo tempo delirante e indiferenciada, produzindo uma angústia e dispersando o público que para lá acorrera, em uma exposição londrina em abril de 1945. Neste mesmo momento, em Milão, Mussolini e Clareta Petacci restavam mortos, pendurados em ganchos de açougue expostos à execração pública, enquanto que no norte europeu, em Bergen-Belsen e Dachau, prisioneiros eram liberados mostrando logo depois para o mundo os matadouros nazistas. Isto serve de material para o psicanalista belga lançar a pergunta: não seriam estes acontecimentos antecipatórios de uma "inumanização", de uma "desespeciação" da espécie humana?

Ora, Freud, em 1932 (1976), respondendo à pergunta que Einstein lhe fizera a respeito do que se fazer para proteger a humanidade da maldição da guerra, situa a crueldade como algo que não tem fim. É através da violência, escreve, que os conflitos de interesse entre os homens são resolvidos. E, retomando o mito da fundação cultural, Freud argumenta que no princípio, em uma horda humana primitiva, era a força muscular que decidia sobre a posse ou a vontade do outro e até mesmo seu aniquilamento. Mais tarde, o refinamento intelectual introduz as armas; porém o objetivo de uma facção infligir danos e desmantelar a força da outra permanecia o mesmo. Além de tudo, lembra Freud, assassinar um inimigo satisfaz uma inclinação pulsional que confirma a crueldade como pertencente à ordem do humano e da espécie. Demasiadamente humana.

No livro intitulado A perversão comum, objeto da nossa resenha, Lebrun (2010) no seu texto preliminar pergunta-se "o que nos acontece hoje", "a que nós estamos referidos, se a indivíduos, tomados cada um separadamente, se a sujeitos ou à própria coletividade?". E ainda, "como podemos interpretar as mudanças que ocorrem nestas sociedades ditas avançadas e quais suas consequências sobre nossa subjetividade?" (Lebrun, 2010: 13). Mantém, desta maneira, o escopo da abordagem feita em O mundo sem limite (Lebrun, 2004).

Lebrun propõe uma leitura, que diz apoiar-se sobre sua experiência psicanalítica, cujo objetivo é entender a incidência efetiva das mudanças maiores ocorridas em nossa sociedade na estrutura subjetiva. É importante destacar que a subjetividade é aqui definida a partir dos traços gerais detectados na cultura. Entretanto, do ponto de vista da psicanálise, estudar a subjetividade na sociedade é examinar seus efeitos em cada sujeito. A maneira pela qual o autor de A perversão comum define os domínios do que é subjetivo nos deixa a impressão de que fala de um sujeito único, coletivo. Não parece levar em consideração que cada sujeito vai assimilar os vários dados que emergem do social de uma maneira singular.

A obra focaliza inicialmente a "crise de legitimidade que caracteriza nossas sociedades" (Lebrun, 2010: 18) e apresenta, nos primeiros quatro capítulos, uma análise social de transformações que "conduziram a uma verdadeira mutação do laço social" (Lebrun, 2010: 18). Nos quatro últimos capítulos, descreve os efeitos destas mudanças na subjetividade e ressalta o papel estratégico da educação, "o lugar por excelência onde se enodam laço social e subjetividade" (Lebrun, 2010: 18).

É indiscutível que vivemos um período de intensas transformações, operadas de maneira vertiginosa pela revolução científica e tecnológica, influenciando desde a biologia à engenharia de comunicação. As obras do pensamento perdem gradativamente a admiração de que desfrutavam, sendo recepcionadas com certa indiferença. A ciência e a técnica parecem administrar uma ordem única que não varia, opacificando os processos de pensamento abstratos, a sagacidade, a perspicácia e a engenhosidade humana.

O sistema de valores da modernidade ocidental, que constituíram os ideais universais, dá a impressão de caminhar para uma situação falimentar com a mundialização das trocas. No mundo globalizado, valores universais tendem a ser reduzidos a valores das Bolsas, levando a flutuarem no mercado de maneira indiferenciada as commodities e o "subjetivo".

Diante deste quadro indubitável, o Sr. Lebrun nos diz que a análise das mudanças o levou a concluir que houve uma verdadeira mutação do laço social.

Examinemos a ideia de mutação. Como mudanças podem ser associadas a uma situação de crise, poderíamos antes pensar sobre esta noção. Assim, considerando-a como uma fissura de uma posição estável, a crise pode ser superada organizando-se um movimento que leve ao lacre da fenda, restabelecendo-se desta maneira a direção perdida. Se levarmos em conta a intensidade das modificações nos vários campos do saber, podemos afirmar que não é este o quadro contemporâneo.

Na mutação, o passado encontra-se esfarrapado de tal maneira que não fornece mais qualquer referência. Deste modo, novos operadores devem ser procurados a fim de dar conta de alternativas de prosseguimento e sentido. Mutação é como um salto, um desvio na sucessão histórica. É uma invenção do pensamento. Deu-se com o Heliocentrismo, a Origem das Espécies, a Psicanálise... Algo que, depois de ocorrido, faz com que nada seja como antes. Será que já houve tal ruptura com estas revoluções características da modernidade?

Ora, o nosso autor intitula o seu livro de Perversão comum, ordinária, ou seja, aquilo que não apresenta condição particular, que é conforme ao costume, que é regular, habitual... Em seus prolegômenos, afirma que dissertará a partir de sua prática psicanalítica e, ao mesmo tempo, diz não saber se falará do "indivíduo em separado, sujeito ou coletividade" (Lebrun, 2010: 13). Sendo ciência do sujeito, supõe-se que a psicanálise, ao examinar a subjetividade na sociedade, investigue seus efeitos em cada um. O pai da obra supracitada, ao mesmo tempo que se coloca completamente referido ao discurso freudiano, propõe ao leitor leituras bem menos ortodoxas à invenção psicanalítica.

Ao qualificar a "perversão comum", característica do "neossujeito", como efeito das mudanças na subjetividade, deixa transparecer uma leitura equivocada da teoria psicanalítica.

O termo "perversão", usado na linguagem comum, cujo primeiro registro é de 1444 na língua francesa, vem do latim clássico perversio, criado a partir de perversum, supino do verbo pervertere, que significa originalmente "inverter"; "revirar"; depois se transforma em "virada inoportuna" com uma significação pejorativa, de reviravolta ruim, transformação do bem em mal, também associado à perversão dos costumes, à anomalia do comportamento sexual - como se encontrava nos dicionários médicos do século XIX.

Freud, em 1905 (1976), nos "Três ensaios sobre a teoria da sexualidade", aborda as "aberrações sexuais", inaugura a noção e o termo "pulsão", chegando às perversões no sentido mais antigo do termo: invertido, revirado. As perversões, de acordo com o inventor da psicanálise, determinam-se a partir de um desvio do objeto da pulsão sexual ou como um desvio relativo ao seu fim. Dizendo que no desenvolvimento sexual normal já se encontram os germens que levarão a tais desvios, o mestre vienense retira o processo perverso do campo do desvio da normatividade, inscrevendo-o na própria norma. Dez anos depois, em "Os instintos e suas vicissitudes" (Freud, [1915] 1976), especifica que o retorno da pulsão da atividade para a passividade e a transformação do seu conteúdo de amor em ódio, dois dos destinos pulsionais, constituem conexões fundamentais nas engrenagens do mecanismo perverso. Lebrun vai nos dizer em seu livro que a virada antropológica, caracterizadora dos tempos atuais, permite discutir em que a perversão nos diz respeito e que não se refere à patologia médico-legal até então conhecida. Declara, desta maneira, que "só agora" a perversão teria saído do campo da anormalidade, ignorando o que foi proposto pelo inventor da psicanálise em seu artigo de 1905.

Da metapsicologia freudiana apontamos três pontos indispensáveis para o entendimento do processo perverso: o desmentido (Verleugnung) da realidade, o desmentido da castração e a clivagem do eu. É em 1927 (1976) no "Fetichismo" que o mecanismo do desmentido restará como específico das perversões, na medida em que atua defensivamente em relação à castração, expressa numa realidade percebida que é a ausência de pênis na mulher.

Em A perversão comum, o autor afirma a existência de uma desconsideração da autoridade externa como consequência da pretensão democrática de universalizar o direito de igualdade entre os homens. Ora, esse outro que representa uma autoridade não existe de fato e sim como função simbólica. (Por exemplo, a declaração de um dos nossos Ministros ao assumir a sua função: "Não sou Ministro, estou Ministro"). Continuando, no texto, a respeito da desaparição da autoridade externa devida à "igualdade real e não formal entre os homens" (Lebrun, 2010: 41), lemos que, "por causa desta transformação radical, o simbólico não é mais o que permite apreender o real" (Lebrun, 2010: 41). E que: "só o registro do imaginário é compatível com tal regime" (Lebrun, 2010: 41). Desta forma, ao considerarmos a letra freudiana, os neossujeitos lebrunianos estariam regidos pela imprevisível gramática da psicose. A declaração de que o perverso comum é administrado por um operador diferente da proposta freudiana (no caso de Lebrun uma economia perversa generalizada em que o simbólico não mais apreende o Real [e atenção: não é no sentido lacaniano em que o simbólico não abarca completamente o Real]) deixa o leitor meio atordoado acerca do que é dito. Talvez por um excessivo esquematismo, fica-se com uma impressão de rarefação conceitual.

Essa impressão é reforçada pela descrição do que o autor chama mais adiante de "uma nova perversão" e como ela se organiza, dizendo ipsis litteris: "a busca do objeto positivado é o que constitui a economia coletiva perversa" (Lebrun, 2010: 46). Em outras palavras, fala de um sujeito e de um modo de subjetivar coletivo, uma impropriedade, como já foi dito acima, do ponto de vista psicanalítico. Abordar o coletivo partindo da clínica, de uma prática teorizada, de uma ciência do sujeito em sua singularidade, só se leva a cabo analogamente. Podemos aceitar que o neossujeito vai tentar escamotear a falta através do objeto de consumo fetiche, mas fica longe de lograr um sucesso, como diz Lebrun: "Este engodo (objeto de consumo), ao qual o sujeito vai, portanto, se ligar, vai ajudá-lo a perenizar a evitação do confronto com a perda" (Lebrun, 2010: 346).

Ao considerar o entendimento freudiano do mecanismo perverso, o desmentido, aprendemos que a lei é sabida e ao mesmo tempo negada. Sabida e negada significa que o sujeito não escapa todo o tempo de reconhecer a falta. Ele se encontra continuamente alternando entre o sim e o não. Para melhor esclarecer isto, é suficiente considerar o fetichista, que tenta congelar a imagem no minuto anterior ao desnudamento da mulher, numa tentativa vã de "não saber" da ausência do pênis. Com este Eu rachado, não existe a possibilidade de uma confortável residência na desmentira!

Lebrun diz que a linguagem e o simbólico preexistem ao sujeito, sendo que o acesso ao simbólico deve ser conquistado como uma construção organizada a partir de um "corpo a corpo, daquilo que habitualmente ocorre com a mãe, da mèreversão. Ao esquecermos esse trajeto necessário, condenamos o neossujeito a dever permanecer confinado a sua sorte inicial, mantemo-lo em seu lugar de desmentidor" (Lebrun, 2010: 347).

Podemos perguntar, com Roland Gori (2010), se não é o caso de considerar o quanto estas patologias atuais guardam uma grande proximidade com os modelos psicopatológicos montados para estudá-las e oferecer alternativas terapêuticas. Pois, ainda dizendo com ele, é notável a insistência sobre as alterações comportamentais e a busca de suas determinações neurogenéticas. Os discursos sobre tais conhecimentos parecem, a todo o momento, reduzir o sujeito ao indivíduo e o Outro ao outro (a noção de Outro demarcando o lugar das estruturas sociais às quais o sujeito queda submetido). Síndrome do pânico, transtorno bipolar, transtorno obsessivo compulsivo, déficit de atenção com hiperatividade, delinquência, a adicção, as violências, todos esses quadros são abordados sem que o lugar do Outro - para o qual isto se endereça - seja estabelecido. Pacientes e terapeutas parecem compartilhar de uma mesma proposta. Negase a realidade interna dos sujeitos e de seus parceiros, bem como a representação mental e a história, para se valorizar as performances do agir e as exaltações emocionais. Não serão, portanto, os neossujeitos lebrunianos a tradução dos modelos que os coisificam? Vê-se que, por um lado, os pacientes se apresentam sugerindo que seus sintomas têm origem orgânica, demonstrando seu alinhamento com a biopolítica. Por outro, a psicofarmacologia, compondo uma ciência que tudo sabe, socorre, pretendendo silenciar o sofrimento, anunciando que tudo é passível de cura ou que tudo tem uma causa mensurável, palpável. A medicalização das queixas e dos distúrbios do comportamento, longe de pretender se direcionar para a cura, ao amordaçar ou vestir uma camisa de força química no sujeito, assume um forte colorido policialesco, não lidando com a escuta, a realidade psíquica e o desejo.

No capitulo nove, intitulado "O analista hoje", o autor cita Charles Melman em O homem sem gravidade dizendo que "estamos assistindo a uma liquidação coletiva da transferência, fonte de uma liberdade bem notável. Não há mais nem autoridade, nem referência, nem tampouco saber que se mantenha. Estamos agora só na gestão, não há mais práticas" (Lebrun, 2010: 321-322).

O autor pergunta, em seguida, como a transferência poderia surgir, seja em relação a um analista, a um professor, ou mesmo a um saber até então supostamente estabelecido, se todo mundo ocupou um lugar equivalente, se nada nem ninguém constituem exceção? E continua afirmando que os neossujeitos recusam a transferência, já que não foram forçados a subjetivarem, mas que aparecem para mostrar o que não vai bem, mesmo sem disso se queixar, sem nada perguntar, posto que nada sabem de suas histórias.

Ora, o criador de A perversão comum diz ao longo desta obra que está o tempo todo referido à sua prática psicanalítica. Ou seja, em princípio reportado aos conceitos fundamentais deste discurso: recalque, inconsciente e transferência, precondição para a instauração desta prática.

O psicanalista, deixando de se considerar um observador neutro, pondo-se sempre em questão e reconhecendo-se envolvido pelo trabalho analítico, vai definir a formação psicanalítica como permanente. E mais: o que se dá numa análise é algo que ocorre entre analista e analisando, tendo o processo analítico se instaurado a partir de um ato do psicanalista. Não sendo assim, os "neopsicanalistas" dormirão na espera que seus clientes transfiram e sonhem, pois, de Freud, sabemos que é pelo amor transferencial que a narrativa será investida de interesse, possibilitando a abertura do inconsciente. Portanto, não havendo analista em função, não ocorrerão formações do inconsciente.

 

REFERÊNCIAS

Freud, S. (1905/1976). Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. Obras completas, ESB, v. VII. Rio de Janeiro: Imago.         [ Links ]

Freud, S. (1915/1976). Os instintos e suas vicissitudes. Obras completas, ESB, v. XIV. Rio de Janeiro: Imago.         [ Links ]

Freud, S. (1927/1976). Fetichismo. Obras completas, ESB, v. XXI. Rio de Janeiro: Imago.         [ Links ]

Freud, S. (1932/1976). Porque a Guerra. Obras completas, ESB, v. XXII, Rio de Janeiro: Imago.         [ Links ]

Gori, R. (2010). As patologias do niilismo em nossa modernidade. Tempo Psicanalítico, 42(1), s/p.         [ Links ]

Lebrun, J.-P. (2003). Melman, Charles: O homem sem gravidade - Gozar a qualquer preço. Rio de Janeiro: Cia de Freud.         [ Links ]

Lebrun, J.-P. (2004). Um mundo sem limite. Rio de Janeiro: Cia de Freud.         [ Links ]

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