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Tempo psicanalitico

versão impressa ISSN 0101-4838

Tempo psicanal. vol.43 no.2 Rio de Janeiro dez. 2011

 

SEÇÃO LIVRE

 

Sujeito, alienação e desconhecimento. Sobre Lacan e o jovem Marx

 

Subject, alienation and not knowing. Lacan and young Marx

 

 

Joel Birman

Psicanalista, Professor Titular do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Professor Adjunto do Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Diretor de Estudos em Letras e Ciências Humanas (Universidade Paris VII), Pesquisador associado do Laboratório de Psicanálise e Medicina (Universidade Paris VII) e Pesquisador do CNPq

 

 


RESUMO

A intenção deste ensaio é a de esboçar a presença de marcas cruciais da filosofia de Marx no discurso teórico de Lacan. Para isso, o autor se voltou para a leitura do percurso inicial de Lacan, para colocar em evidência a incidência do discurso filosófico do jovem Marx no discurso de Lacan.

Palavras-chaves: transformação; eu; ideologia.


ABSTRACT

The aim of this paper is outlining the presence of crucial traces of Marx's philosophy in Lacan's theoretical discourse. For that the author turns himself towards the reading of Lacan's initial course, evidencing the incidence of the young Marx's philosophical discourse over Lacan's discourse.

Keywords: transformation; I; ideology.


 

 

AUSÊNCIA ELOQUENTE

No colóquio Lacan avec les philosophes que foi organizado pelo Collège International de Philosophie e que foi publicado posterior mente (Avtonomova et al., 1991), não existia qualquer parte dedicada a Marx. É preciso reconhecer que este não foi então considerado como um interlocutor importante no discurso de Lacan, não obstante os múltiplos comentários deste ao filósofo alemão. É o mínimo que se pode dizer sobre isso, nesta ausência de destaque a Marx neste colóquio.

Em contrapartida, neste colóquio os destaques a filósofos se fizeram a propósito de Kant, de Platão, de Hegel e de Heidegger. Além disso, certas problemáticas foram colocadas em relevo, como as da ética, do discurso e da ciência, ao lado de toda uma parte dedicada ao Real, ao Simbólico e ao Imaginário. Finalmente, a contemporaneidade foi também colocada em pauta: o efeito do discurso de Lacan sobre a filosofia, assim como a atualidade filosófica de Lacan foram postos em evidência.

É preciso evocar que Marx não foi o único filósofo a ser colocado no limbo. Certamente, outros o foram também, não obstante a importância destes no percurso de Lacan. Este foi o caso de Descartes e de Aristóteles, que também não foram objeto de seções separadas, mas que se inscreveram no campo temático de maneira secundária.

Porém é preciso dizer que a referência a Marx não esteve absolutamente ausente, apesar de não ter sido destacada. Assim, a referência a Marx aparece em alguns textos, como no de Macherey (1991), no qual este comenta a leitura de Hegel feita por Kojève, para a qual a filosofia de Marx teria sido uma mediação fundamental.

Podemos nos indagar sobre as razões desta ausência eloquente. Contudo, na "Apresentação" do livro Lacan avec les philosophes não existe qualquer menção a isso. Não existe também qualquer justificativa para a escolha dos filósofos e dos temas para o colóquio. Pode-se supor assim que, na hierarquia dos filósofos que incidiram sobre o percurso de Lacan, Marx não tinha sido então considerado fundamental, como os que foram escolhidos. Daí a sua ausência eloquente, não obstante a sua presença periférica.

Porém pode-se supor ainda que, como a presença mais densa de Marx na obra de Lacan se realizou no final do percurso deste, no momento do colóquio a reflexão sobre isso fosse escassa. Daí a justificativa para a ausência da filosofia de Marx no colóquio e as escolhas que foram realizadas.

No entanto, é possível imaginar ainda que a derrota do socialismo real e o fim da União Soviética, assim como a derrubada do Muro de Berlim, ocorridos então recentemente na época do colóquio, tenham contribuído para colocar no limbo a referência à filosofia de Marx no percurso de Lacan. Contudo, é preciso evocar que foi por isso que, neste contexto, Derrida publicou em 1993 um livro importante sobre isso, intitulado Spectres de Marx (Derrida, 1993).

É possível que não possamos responder a estas questões, pois as incertezas estarão sempre presentes e as dúvidas relançadas. De qualquer maneira, a realização do colóquio de Cerisy sobre Lacan e Marx visa preencher a lacuna do colóquio de 1991, conferindo à interlocução com Marx a devida importância no percurso de Lacan.

No que concerne a isso, é preciso sublinhar que este novo colóquio ocorre no contexto da séria crise do capitalismo neoliberal, iniciada em 2008 e que ainda continua a produzir os seus efeitos desastrosos. Ao lado disso, é preciso destacar que foi no contexto da expansão da mundialização neoliberal que a posição hegemônica da psicanálise no campo psi foi colocada em questão pela emergência dos paradigmas das neurociências e do cognitivismo. Enfim, foi ainda neste espaço social que a performance e o imperativo de gozar, custe o que custar, foi colocado no primeiro plano da cena psíquica das subjetividades no mundo contemporâneo.

Seria em decorrência disso tudo que a interlocução entre Lacan e Marx é pertinente na atualidade, de maneira a tornar legítima a indagação sobre as relações entre o ato psicanalítico e o ato revolucionário.

 

PRESENÇA FLAGRANTE

Faz-se preciso afirmar que Marx foi uma referência importante no percurso de Lacan, tendo sobre este uma incidência que não pode ser negligenciada. O que não quer dizer que esta incidência tenha sido fundamental como a de outros filósofos. Não implica em dizer tampouco que Lacan tenha sido marxista, bem entendido. Nem muito menos comunista, é claro. A obra de Roudinesco (1993) sobre Lacan, intitulada Jacques Lacan: esboço de uma vida, história de um sistema de pensamento, é conclusiva sobre isso.

Em contrapartida, é preciso reconhecer que Lacan trabalhou certas questões da filosofia de Marx ao longo de seu percurso, principalmente no final deste. Pode-se enumerar, sem a intenção de ser exaustivo: o valor do uso e o valor da troca nas relações com o gozo (Lacan, 1966/2001), o capitalismo (Lacan, 1967-1968), a alienação (Lacan, 1967-1968) e o fetiche (Lacan, 1967-1968). Foi em decorrência disso que aquele forjou o conceito de discurso do capitalista (Lacan, 1971-1972) e inscreveu ainda a filosofia de Marx no registro genealógico da invenção do sintoma (Lacan, 1974-1975), que foi posteriormente explorado por Freud, na constituição da psicanálise.

Porém estas problematizações que Lacan realizou sobre Marx se inscreveram principalmente no final do percurso daquele. O que estava em pauta era O capital, de Marx (1867/1963), por um lado, e a teorização sobre o Real, o gozo e o objeto a, pelo outro. Esta incursão de Lacan acabou por incidir sobre a teoria dos discursos, com a formulação do discurso de capitalista como quinto discurso. Além disso, nesta incursão Lacan realizou uma incisiva crítica a Marx, pela qual este não teria se desprendido do discurso do mestre em decorrência da presença avassaladora do discurso universitário na governabilidade da União Soviética, marcada pela burocracia (Lacan, 1969-1970/1991).

Devemos nos indagar se as preocupações de Lacan centradas em O capital, no seu percurso final, não foram o efeito de sua interlocução com Althusser, que se estabeleceu na primeira metade dos anos 60 (Roudinesco, 1993). Assim, mesmo se concordarmos com Roudinesco que Lacan não se interessava nem pelo pensamento de Althusser, nem tampouco pelo seu projeto de refundar o marxismo e que o seu interesse era apenas o de ter acesso aos alunos da École Normale Supérieur, a quem Althusser tinha apresentado o discurso teórico de Lacan, não resta qualquer dúvida que o debate sobre O capital estava em pauta naquele contexto intelectual. Seria difícil acreditar que Lacan não se inscreveu no campo deste debate para posicionar o discurso psicanalítico que forjara em face disso.

Como se sabe, Althusser foi o teórico que procurou problematizar a oposição existente entre o jovem Marx e o Marx da maturidade, isto é, entre o discurso historicista de Marx marcado ainda pela tradição da filosofia hegeliana e que se contrapunha ao Marx posterior, que forjou o discurso científico centrado em O capital (Althusser, 1965). Era este discurso de Marx, centrado em O capital, que interessava a Lacan no final de seu percurso, justamente porque este estava voltado para a problematização do registro do Real e para a inscrição da psicanálise no campo do materialismo.

Além disso, não se pode esquecer que Althusser foi o teórico marxista que promoveu a aproximação entre Marx e a psicanálise pela conjunção de Freud com Lacan. Com efeito, quinze anos após a condenação da psicanálise pelo Partido Comunista francês como uma "ideologia reacionária", num artigo célebre publicado pela revista La Nouvelle Critique em 1949 (La psychanalyse, idéologie réactionnaire, 1949), Althusser (1964/1993) publicou na mesma revista o ensaio sobre Freud et Lacan, em 1964, realizando a recuperação da psicanálise para a tradição marxista.

Porém não nos enganemos sobre isso. Assim, não se pode supor ingenuamente que Lacan tenha subscrito as teses do último Marx, ficando então na sombra da leitura de Althusser sobre este. Ao contrário, Lacan criticou o marxismo de múltiplas maneiras, como já destaquei acima. Vale dizer, Lacan seguia o seu caminho teórico próprio e no campo de sua pesquisa cruzou com o pensamento do último Marx, com quem teve que se defrontar.

Vale a pena evocar, no que concerne a isso, a passagem célebre do ensaio La science et la verité na qual Lacan (1966b) criticava a formulação de Lênin sobre a "onipotência da verdade" presente no marxismo. Com efeito, se Lênin dizia que "a teoria de Marx seria onipotente porque verdadeira", Lacan contrapunha a isso que "uma ciência econômica inspirada do Capital não conduz necessariamente a usar isso com o poder de revolução e a história parece exigir outros socorros que uma dialética predicativa" (Lacan, 1966b: 869). Portanto, considerando que esta formulação é incisiva, a posição de Lacan face ao marxismo é evidente.

Da mesma forma, no artigo intitulado Réponse à des étudiants en philosophie sur l'objet de la psychanalyse, em 1966 (2001), Lacan colocou em dúvida uma tese central de Marx, qual seja, a possibilidade de "superação pelo sujeito do seu trabalho alienado" (Lacan, 1966/2001: 208). Isso porque, ao se formular esta tese, implicaria em supor que seria possível superar "a alienação do discurso" (Lacan, 1966/2001: 208).

Portanto, se estou supondo que o diálogo com Althusser foi fértil para o interesse tardio de Lacan na interlocução com o último Marx, Lacan empreendeu este caminho pelas linhas de força presentes no seu discurso, centrando-se no registro do Real e no tema do gozo, pelos quais incorporou questões e criticou o discurso de Marx.

Contudo, se as referências que citei são eloquentes para indicar a direção assumida por Lacan na sua leitura de Marx, elas o são mais ainda porque foram formuladas no contexto da École Normale Supérieur, que contava com a presença de Althusser e de seus discípulos como os seus auditores.

A indagação que se coloca agora é se o discurso teórico de Marx, condensado em O capital, foi a única referência deste no percurso de Lacan.

 

A PROBLEMÁTICA DA VERDADE

Assim, é preciso constatar que existem outras referências a Marx realizadas por Lacan ao longo de sua obra. Devemos ao trabalho de pesquisa de Pierre Bruno (2010) o recenseamento das referências a Marx no percurso de Lacan.

Em Lacan, Passeur de Marx: l'invention du symptôme, Bruno (2010) recenseou as passagens em que Lacan realizou isso. Assim, Marx foi mencionado sete vezes nos Écrits (Lacan, 1966), doze vezes nos Autres écrits (Lacan, 2001), dezesseis vezes nos Séminaires e cinco vezes na Radiophonie (Lacan, 1970/2001). Porém é preciso dizer que se as referências são pequenas, elas não seriam alusivas. Com efeito, em geral o nome de Marx estaria sempre relacionado a desenvolvimentos teóricos decisivos no discurso de Lacan.

O que fica evidente neste recenseamento é que as referências a Marx se adensam após a publicação dos Écrits, em 1966. Isto evidencia como a interlocução com Althusser foi decisiva para este diálogo com Marx.

Porém no início do seu percurso as referências à filosofia de Marx estariam já presentes no discurso de Lacan, de maneira significativa. Não obstante as poucas alusões presentes as referências seriam não apenas efetivas, mas também decisivas. No entanto, as preocupações de Lacan aqui presentes seriam de outra ordem, bastante diferentes das que se encontram na interlocução posterior deste com a filosofia de Marx. O que estaria em pauta seria a questão da verdade, por um lado, e a da filosofia da história, pelo outro.

Assim, no ensaio intitulado Propos sur la causalité psychique, datado de 1946, Marx foi alinhado ao lado de Sócrates, Descartes e Freud, no que concerne à "paixão da verdade" (Lacan, 1946/1966: 193). Portanto, neste pequeno fragmento, Freud e Marx foram inscritos na história da filosofia, no momento da fundação desta na Grécia clássica com Sócrates, e na inflexão da modernidade filosófica com Descartes, na qual estaria em pauta o estatuto da verdade.

No entanto, na abertura da IV parte dos Écrits, num texto introdutório intitulado Du sujet enfin en question (Lacan, 1966a), a questão da verdade foi enunciada na tradição materialista. Com efeito, Lacan colocou em destaque a famosa ruptura teórica de Marx com Hegel, a sua célebre inversão materialista contra o idealismo filosófico, que teria sido realizada em nome da questão da verdade. Portanto, esta questão não se inscreveria mais na tradição da adequação do registro da representação com o registro das coisas, pois se inscreveria agora num "retorno" materialista da problemática da verdade.

Além disso, em Fonction et champ de la parole et du langage en psychanalyse, a filosofia de Marx foi alinhada ao lado das de Bossuet, Toynbee e Comte, por ter descoberto o "sentido da história" (Lacan, 1953/1966: 260). Desta maneira, a questão do sentido implicaria na da verdade e vice-versa, constituindo a filosofia da história.

Pode-se formular assim que Lacan estabeleceu um diálogo inicial com a filosofia de Marx voltado para a problemática da verdade e que apenas posteriormente esta interlocução se voltou para as questões do Real, do gozo e do capitalismo. Vale dizer, o que estava em pauta no percurso inicial de Lacan era a filosofia do jovem Marx, centrado na questão da verdade e do sentido da história, e que apenas posteriormente se interessou pelas questões colocadas pelo O capital.

No entanto, a filosofia do jovem Marx marcou a geração intelectual francesa à qual Lacan pertencia, desde os anos 30, pela in-cidência do discurso teórico de Kojève (1947) na leitura de Hegel (Kojève, 1947; Roudinesco, 1993). É para este tempo inicial do discurso de Lacan que pretendo me voltar, para colaborar para a leitura da incidência da filosofia de Marx no discurso de Lacan. Desta maneira, pode-se preencher o vazio deixado pelo colóquio Lacan avec les philosophes, por um lado, e delinear as proximidades entre os atos psicanalítico e revolucionário, pelo outro.

 

A TRADIÇÃO ALEMÃ

O projeto teórico que me orienta neste ensaio evoca uma formulação de Marx que enuncia que os filósofos apenas interpretaram o mundo de diversas maneiras, mas o que importa é transformá-lo, de forma a retomar uma passagem daquele que corresponde à XI das "Teses sobre Feuerbach" (Marx, 1845/1982). Nestas teses, Marx criticava Feuerbach por empreender uma leitura abstrata do homem e não se voltar para uma leitura concreta deste. Para empreender esta leitura concreta, Marx destacou não apenas a dimensão da prática, mas também colocou em evidência a divisão das relações sociais estabelecidas entre os homens numa perspectiva histórica. Seria por conta disso, portanto, que o registro do ato se articularia na leitura do homem concreto, pela mediação da práxis, inscrita na história. Enfim, Marx realizou então a crítica do naturalismo de Feuerbach de forma a se deslocar de uma leitura contemplativa do processo de conhecimento, pelo acento que foi colocado na práxis, no campo efetivo das relações sociais.

Entretanto, é preciso evocar que, ao forjar este texto, Marx estaria já realizando a crítica da filosofia de Hegel. No percurso de Marx, com efeito, as "Teses sobre Feuerbach" (Marx, 1845/1982) estão situadas entre dois grandes ensaios, a saber, "Crítica da filosofia política de Hegel", de 1843 (1971), e "A ideologia alemã" (Marx, 1845 1846). Em "A ideologia alemã", Marx retomou a crítica à filosofia de Feuerbach na introdução, antes de realizar a leitura da ideologia em geral e da ideologia alemã em particular.

Portanto, o que estaria em pauta para Marx seria não apenas a crítica da filosofia de Feuerbach, mas também a da tradição hegeliana da filosofia, que estaria condensada nos enunciados da ideologia alemã. Assim, Marx empreendeu a crítica da dialética hegeliana, colocando esta sobre os seus próprios pés, para retirar o pensamento do registro da contemplação, com vistas a constituir o materialismo histórico. Enfim, a constituição deste seria a resultante da crítica do naturalismo de Feuerbach e da dialética idealista de Hegel, visando a construção de uma dialética materialista.

Assim, estamos aqui lançados no campo da filosofia do jovem Marx que, como uma sombra eminente, estaria presente na nova recepção francesa da filosofia de Hegel, que teve em Kojève um de seus grandes mestres, ao lado de Jean Hyppolite e de Jean Wahl. Qual seria a marca distintiva desta nova recepção de Hegel na França?

Se considerarmos a formulação de Hyppolite, segundo a qual a filosofia de Hegel que estaria condensada em A ciência da lógica (Hegel, 1812-1816/1981) foi a representação dominante daquela desde a segunda metade do século XIX na Alemanha e na Europa, de forma que a filosofia de Hegel foi considerada como panlogista (Hyppolite, 1971), o que se perfilou nos anos 30 do século XX foi a emergência decisiva de uma filosofia hegeliana pantrágica (Hyppolite, 1971).

Vale dizer, o que ficou em pauta foi a leitura da filosofia de Hegel centrada no registro do trágico, pela qual os conceitos de negatividade, de contradição e de alienação, inscritos na dialética, marcariam o dilaceramento do sujeito. Dividido entre a certeza e a verdade, com efeito, o sujeito percorreria o caminho tortuoso em direção ao espírito absoluto, pelo qual se harmonizaria finalmente da sua divisão, pela emergência do conceito. Por conta disso, A fenomenologia do espírito (Hegel, 1807/1941) passou a ser considerada como a obra de referência de Hegel, em oposição a A ciência da lógica (Hegel, 18121816/1981), marcando então a leitura pantrágica face à panlógica da filosofia hegeliana.

Além disso, é preciso evocar que foi ainda esta outra interpretação da filosofia de Hegel que se contrapôs também à que foi instituída pela tradição espiritualista e eclética francesa, formalizada por Victor Cousin, nos anos 30, do século XIX. Nesta leitura, não existia mais lugar para o dilaceramento do sujeito, de forma que as categorias de negatividade, de contradição e de alienação desapareceram da filosofia hegeliana, caracterizado que foi o sujeito pela harmonia e a unidade (Roudinesco, 1993).

Portanto, na nova recepção filosófica de Hegel dois alvos foram diretamente atingidos. Com efeito, o Hegel panlogista e o Hegel eclético foram desmantelados ao mesmo tempo, num outro relançamento da filosofia de Hegel. Com isso, o dilaceramento e a divisão do sujeito foram articulados à dialética e à emergência da problemática da história, num contexto social, político e econômico complexo, no qual os acordes prometeicos da Revolução russa se contrapunham à assunção do nacional-socialismo, numa ordem internacional dilacerada pela crise econômica de 1929. A segunda Grande Guerra anunciava já a sua chegada, enfim, num campo político marcado por intensos embates ideológicos.

A organização institucional do Collège de Sociologie assumiu então a vanguarda neste embate ideológico, no combate ostensivo ao fascismo e ao nazismo em franca ascensão (Hollier, 1979). Como se sabe, Lacan fez parte das suas atividades.

Entretanto, a sombra da filosofia do jovem Marx estava presente na nova figuração da filosofia de Hegel, na leitura de Kojève (1947). Daí por que a dialética do senhor e do servo, a famosa tese do reconhecimento do sujeito que se apresenta no capítulo IV de A fenomenologia do espírito (Hegel, 1807/1941), ocupou uma posição estratégica na leitura que Kojève realizou de Hegel. Porém, na leitura de Hyppolite (1946), de A fenomenologia do espírito, a dialética do senhor e do servo ocupou igualmente uma posição estratégica. Com efeito, no campo delineado por esta leitura, o conflito do sujeito entre a possibilidade imediata da morte e o desmantelamento mediato da figura do senhor pelo trabalho do servo ocupou uma posição estratégica, de forma que a problemática colocada por Hegel foi articulada com a da filosofia do jovem Marx e com a filosofia de Heidegger.

Assim, se a dialética do senhor e do servo prefigurou o trabalho teórico posterior de Marx, centrado no conceito de luta de classes e a emergência do materialismo histórico, desde O manifesto comunista (Marx, 1848), no qual a problemática do trabalho ocupava uma posição fundamental, o filosofema do ser para a morte enunciado por Heidegger, em O ser e o tempo (Heidegger, 1927/1964), marcava igualmente a leitura que Kojève realizava da filosofia de Hegel. Enfim, foi esta conjunção teórica que foi colocada em cena, de maneira inesperada.

Num ensaio Lacan avec Kojève, philosophie et psychanalyse, apresentado no colóquio Lacan avec les philosophes, Pierre Macherey (1991) estabeleceu esta articulação teórica no seu comentário à intervenção de Borch-Jacobsen (1991) intitulada Les álibis du sujet. Assim, de maneira provocante, Macherey afirmou:

o que faz a originalidade, pode-se mesmo dizer a estranheza, do empreendimento de Kojève é esta improvável síntese que ela tentou efetuar entre Heidegger e um certo Marx, na margem de um comentário de Hegel cujo procedimento era essencialmente lúdico. Estava aí toda a astúcia do procedimento de Kojève: ele teve êxito em vender, sob o nome de Hegel, a criança que Marx poderia ter feito à Heidegger (Macherey, 1991: 319).

Assim, a leitura de Hegel realizada por Kojève foi marcada pela articulação entre as filosofias do jovem Marx e de Heidegger. Foi esta articulação que incidiu sobre Lacan nos primórdios do seu percurso na psicanálise, marcando a sua primeira leitura de Freud, nos anos 30 e 40. É esta proposição que gostaria de enfatizar aqui, que não teve, no entanto, qualquer efeito de inscrever Lacan na tradição freudo-marxista (Roudinesco, 1986). Com efeito, o que estava em questão para este, na incidência que a filosofia do jovem Marx teve nos seus primórdios teóricos, era a problemática da verdade na sua relação com a da materialidade.

Foi ainda neste contexto histórico que a fenomenologia de Husserl e a filosofia de Heidegger começaram a se disseminar na tradição filosófica francesa, incidindo igualmente no percurso inicial de Lacan (Roudinesco, 1993). Podem-se depreender os efeitos destes autores nos textos iniciais de Lacan, mesmo que eles não sejam diretamente citados, mas que estão presentes nas entrelinhas da nova leitura da psicanálise.

No que concerne a isso, a relação estabelecida entre os registros do sujeito e do sentido, assim como a inserção da intencionalidade no registro do inconsciente, empreendidos por Lacan desde o Au-delà du principe de realité (1936/1966), devem ser evocados. Além disso, as referências de Lacan à fenomenologia devem ser colocadas em destaque, pois se referem às filosofias de Husserl e de Heidegger.

Nesta perspectiva, pode-se dizer que Lacan se inscreveu na tradição alemã da filosofia, assim como fizera anteriormente com a da psiquiatria ao incorporar as contribuições decisivas de Kretschmer sobre reações psicopatológicas e as da Psicopatologia geral de Jaspers na sua tese de Doutorado (Lacan, 1932/1975). Vale dizer, face a alguns de seus contemporâneos, no campo da psiquiatria e da psicanálise, que sustentavam a latinidade francesa contra a tradição alemã, Lacan optou por tomar a direção teórica da germanidade (Roudinesco, 1993).

Porém quais os efeitos da filosofia do jovem Marx no percurso de Lacan?

 

ADAPTAÇÃO EM QUESTÃO

A inscrição de Lacan na psicanálise se realizou pelos registros da segunda tópica e da segunda teoria das pulsões, formulados por Freud em "O eu e o isso" (Freud, 1923/1981) e em "Além do princípio do prazer" (Freud, 1920/1981), respectivamente. Ao lado disso, a leitura de Freud sobre o narcisismo, realizada em 1914, em "Para introduzir o narcisismo" (Freud, 1914/1973), que realizou a leitura do registro psíquico do eu, marcou a interpretação inicial de Lacan sobre Freud e incidiu na sua interpretação da segunda tópica. Desde a elaboração de sua tese de Doutorado em psiquiatria (Lacan, 1932/1975), eram estas as referências teóricas maiores do discurso de Lacan, de maneira que a problematização dos registros do eu e do narcisismo estavam no centro do seu interesse teórico de então.

Contudo, é preciso destacar que a ruptura teórica com a leitura adaptativa do psiquismo e da prática psicanalítica já estava também em pauta. Se esta leitura já marcava a tradição psicanalítica anglo-saxônica, ela se sustentava igualmente na tradição francesa. O embate teórico estabelecido entre Melanie Klein e Anna Freud, no campo da British Psychoanalytic Association, marcou a presença de uma crítica fecunda da leitura adaptativa na psicanálise (Roudinesco, 1993), que Lacan já sustentava desde os anos 30 do século XX. Enfim, foi face a esta posição teórica, estabelecida então na instituição psicanalítica, que o discurso de Lacan se constituiu, promovendo uma outra leitura para a segunda tópica freudiana.

No que concerne a isso, é preciso evocar que o título do ensaio Au-delà du principe de realité (Lacan, 1936/1966) já condensava a incursão crítica de Lacan face a este ideário teórico e aos pressupostos adaptativos da experiência psicanalítica. Vale dizer, a instância psíquica do eu não deveria ser considerada como um norteador infalível para as relações do sujeito com a realidade, na medida em que o re-gistro do eu seria marcado pelo narcisismo, retirando daquele então qualquer transparência cognitiva. Enfim, o título do dito ensaio era eloquente no que tange a isso.

Assim, em oposição a esta leitura então dominante, Lacan destacou não apenas a marca narcísica do eu como também a dimensão identificatória que seria deste constitutiva. Foi por este viés, portanto, que Lacan colocou em pauta a divisão psíquica que seria constitutiva do sujeito. Além disso, sublinhou a marca do desconhecimento que caracterizaria o eu.

No entanto, para a fundamentação desta empreitada, necessário seria supor os alicerces inconscientes do psiquismo, por um lado, e delinear o lugar do outro na constituição do eu, base que seria isso dos processos de identificação, pelo outro. Desta maneira, o registro do desejo poderia ser erigido à condição de norteador da experiência do sujeito no laço que este teceria com o outro.

 

CRÍTICA DA PSICOLOGIA

É preciso enfatizar que Lacan colocou os alicerces de seu projeto teórico pela crítica da psicologia clássica. Esta se centrava na descrição e hierarquia entre as faculdades psíquicas, por um lado, e na introspecção, pelo outro. Este foi o ponto de partida formulado por Lacan (1936/1966) em "Além do princípio de realidade".

Assim, Lacan criticou a tradição empirista da psicologia, esboçada na filosofia de Locke, que concebia o sujeito como a resultante de sensações, num contexto delineado pelo atomismo. Desta maneira, o registro da imagem foi transformado numa sombra do registro da sensação e como a fonte da experiência da ilusão. Foi assim que a teoria associacionista ocupou a cena da psicologia. Com isso, o espírito foi transformado num "pólipo de imagens" e a leitura da imagem foi empobrecida pelo viés intelectualista (Lacan, 1936/1966: 78). Enfim, o que estaria em pauta seria uma interpretação mecanicista e metafísica do espírito.

É interessante evocar que Lacan (1936/1966) criticava o materialismo da psicologia mecanicista em nome de outro materialismo. Para isso, necessário seria destacar a positividade do espírito. Portanto, o que pretendia era a construção da psicologia sobre os pressupostos de outro materialismo, no qual a intencionalidade do sujeito fosse reconhecida.

Foi por este viés que o registro da imagem foi positivado, na sua articulação com o da intencionalidade. Com isso, o espírito seria dotado de uma atividade que se contraporia à passividade em que ficava imerso na leitura associacionista. Porém esta intencionalidade se ordenaria pela mediação de formas, isto é, de conjuntos, o que distanciaria a construção do espírito do registro do atomismo. Neste contexto, Lacan (1936/1966) se apoiou na critica da psicologia da Gestalt à psicologia associacionista para empreender a sua articulação da imagem com o conceito de intencionalidade.

Portanto, foi pela leitura do psiquismo concebido pela atividade e pela intencionalidade, num campo delineado pela forma, que Lacan (1936/1966) inscreveu o laço primário estabelecido entre o sujeito e o outro. Não existiria assim a possibilidade de conceber o sujeito sem o outro, com efeito, pois nesta leitura a interpretação solipsista do sujeito foi criticada por uma leitura em que este seria marcado pela intersubjetividade.

Foi em decorrência disso que Lacan pôde enunciar, na sua crítica ao naturalismo cientificista então dominante, que "a 'natureza' do homem é a sua relação ao homem" (Lacan, 1936/1966: 88), de maneira a inscrever o sujeito nos registros da alteridade e da história. Enfim, estariam delineadas assim as linhas de força para outro materialismo no campo da psicologia, que não seria mecanicista nem cientificista, mas fundado na alteridade e no laço social, inscrevendo o sujeito no campo da história.

Portanto, seria neste campo que o discurso freudiano encontraria o seu solo.

 

IDENTIFICAÇÃO, INFORMAÇÃO E LINGUAGEM

Foi nestes pressupostos que Lacan inscreveu o conceito de identificação, que foi introduzido por Freud em "Para introduzir o narcisismo" (Freud, 1914/1973), remanejado em "Luto e melancolia" (Freud, 1917/1968) e sistematizado em "O eu e o isso" (Freud, 1923/1981). Assim, a identificação se caracterizaria por ser a forma constitutiva do sujeito na sua relação com o outro, na qual se precipitaria o registro da intencionalidade, que seria norteado pelo desejo.

Nesta perspectiva, o psiquismo foi concebido como fundado no registro da identificação. Foi pela posição estratégica conferida a esta que Lacan positivou o registro da imagem, na articulação do sujeito com o outro, que seria marcada pelo desejo. Assim, foi atribuída à imagem a função de informação no psiquismo, de maneira a registrar e ser a precipitação das relações estabelecidas entre o sujeito e o outro (Lacan, 1936/1966). Contudo, a cognição seria regulada pelo desejo, de maneira que a informação seria permeada pelos movimentos desejantes do sujeito.

Porém, se a psicologia clássica foi norteada pelo imperativo da verdade, a partir da ficção da sensação pura, seria preciso dizer que nenhuma ciência poderia pretender a constituição da verdade como a sua finalidade. Contudo, se este imperativo marcou a psicologia clássica isso se deveu à pretensão desta em fundamentar os discursos científicos, oriundos das revoluções científicas ocorridas no século XVII e XVIII (Lacan, 1936/1966). Canguilhem (1966/1968) retomou esta ideia fecunda num ensaio de 1966 intitulado Qu'est-ce que la psychologie?. Na contramão desta finalidade de fundamentar a verdade, no entanto, Lacan (1936/1966) formulou que caberia à psicologia e a qualquer outra ciência se submeter ao imperativo do Real, que marcaria as relações dos homens entre si e com as coisas pela experiência da incerteza.

Contudo, ao conferir à imagem uma posição estratégica no psiquismo, Lacan (1936/1966) empreendeu a crítica da metapsicologia freudiana, centrada que esta era no conceito de instinto. Isso porque este não apenas reduziria o psiquismo ao registro da natureza, destituindo-o de sua especificidade intencional, como também conduziria a sua leitura para o materialismo mecanicista, que estava em foco na sua critica. Portanto, para constituir uma psicologia que fosse concreta e materialista, seria necessário inscrever o registro do instinto no do desejo, que regularia as identificações.

Em decorrência disso, no ensaio de 1938 (1984), intitulado Les complexes familiaux dans la formation de l'individu, a proposição de Lacan foi a de inscrever o conceito de instinto numa totalidade denominada complexo, que foi forjado inicialmente por Freud como conceito e retomado por Jung. Isso porque no campo do complexo estariam presentes os registros do instinto, do outro, os do objeto e da identificação, delimitando uma estrutura intersubjetiva. Esta estrutura se inscreveria na temporalidade histórica, que constituiria o sujeito. Desta maneira, este seria forjado entre os complexos do desmame, da intrusão e do Édipo, em tempos diferentes de sua história infantil, que o modulariam na sua relação com o outro (Lacan, 1938/1984).

Porém, se Freud foi criticado pela posição estratégica conferida ao instinto na metapsicologia, Lacan sublinhou o que denominou de "revolução do método freudiano" (Lacan, 1936/1966: 81). Esta se centraria no campo da fala e da linguagem. Seria pela leitura deste campo, na inscrição do sujeito na experiência psicanalítica, que se realizaria a leitura do campo das identificações. Estaria condensada assim a subversão teórica que a psicanálise promoveu nos campos da psicopatologia e da psicologia.

 

RECONHECIMENTO E REAL

Lacan afirmou que a psicanálise teria que ser inventada nas tradições médica e psiquiátrica, não obstante as marcas da psicologia associacionista nesta última, e não no da psicologia. Isso porque naquelas o sujeito seria reconhecido pelas suas queixas, na sua condição intersubjetiva, não estando, assim, na condição artificial de um ser de laboratório (Lacan, 1936/1966: 80). Vale dizer, inserido que seria o indivíduo no campo dos cuidados, a realidade humana seria evidenciada de maneira concreta.

Em decorrência disso, evocando a autobiografia de Freud (1925/1984), Lacan articulou a demanda de assistência na psicanálise ao "cuidado de curar" (Lacan, 1936/1966: 80). Com isso, articulou a prática da cura à transformação do sujeito, introduzindo um significante primordial, que estava presente na filosofia do jovem Marx (1845/1982), enunciado na XI das "Teses sobre Feuerbach":

Freud fez este passo fecundo, sem dúvida, porque assim como testemunha a sua autobiografia, ele foi determinado por seu cuidado de curar, isto é, por uma atividade em que, contra aqueles que se agradam a relegá-la ao plano secundário de uma "arte", é necessário reconhecer a própria inteligência da realidade humana, enquanto ela se aplica à transformá-la (Lacan, 1936/1966: 80).

Assim, a prática da cura se fundaria na transformação do sujeito que sofre. A condição concreta da realidade humana se imporia como um imperativo. Porém, como esta realidade é a de um sujeito falante, seria pela fala que os impasses deste seriam enunciados, na relação estabelecida pelo analisante com o analista.

Porém para se conceber isso seria preciso dizer que a experiência analítica se regularia por duas leis, a saber, a da não-omissão e a da não-sistematização. Foi pela invenção destes conceitos que Lacan interpretou a lei da associação livre, formulada por Freud, para criticar no seu enunciado este conceito, que se inscreveria no campo da psicologia associacionista.

Neste contexto, o analisante deveria falar sem restrição e sem sistematização. Porém o analista foi transformado num interlocutor para o analisante, de forma que a prática do discurso permearia a experiência analítica.

Sobre isso, seria preciso evocar que "a linguagem, antes de significar alguma coisa, significa para alguém" (Lacan, 1936/1966: 82), segundo a lógica da interlocução que foi destacada. Com efeito, independente da questão teórica sobre a relação hierárquica existente entre os registros do pensamento e da linguagem, para estabelecer a prioridade ôntica entre estes Lacan sustentava a prioridade da interlocução: a fala significaria, antes de mais nada, alguma coisa para alguém.

Com isso, o analista poderia apreender, em estado nascente, qual seria a intenção que estaria subjacente na fala do analisante. Contudo, este não perceberia o que estaria dizendo, isto é, qual seria a intenção que o nortearia no seu discurso. Com efeito, se a intenção seria patente e expressiva, ela seria, no entanto, não compreendida pelo sujeito no que concerne à sua vivência. Isto seria o que Lacan denominou de forma do simbolismo no discurso. Porém, mesmo se o que estivesse em pauta na fala fosse concebido, ele seria, em contrapartida, negado pelo sujeito. Isto seria o que Lacan denominou de denegação no registro da fala. Enfim, Lacan pôde sintetizar esta dupla marca presente no discurso do analisante ao afirmar que "a intenção se verifica na experiência, inconsciente enquanto exprimida, consciente enquanto reprimida" (Lacan, 1936/1966: 83).

Porém colocar o analista como interlocutor tem um desdobramento fundamental, qual seja, a experiência da transferência entre o analisante e o analista. Existiria assim uma relação de reciprocidade entre os registros da transferência e da interlocução. Seria neste contexto que o registro do Imaginário do analisante poderia ser evidenciado, em decorrência da não-reação do analista à sua fala. Com isso, as identificações constituídas no analisante seriam colocadas em cena, na experiência analítica, evidenciando os impasses reais que foram produzidos na história do sujeito. Portanto, a transformação enunciada, que a experiência analítica promoveria, estaria ligada à mobilidade que seria possibilitada para as identificações, que, atualizadas na transferência, poderiam sofrer uma inflexão e ter outro destino (Lacan, 1936/1966).

No ensaio "A agressividade em psicanálise", de 1948 (1966), Lacan trouxe precisão conceitual para tudo isso. Formulou que o que se atualizaria na transferência seria a resultante das marcas traumáticas ocorridas na história pretérita do sujeito. Com efeito, seria preciso enfatizar que seria da ordem do traumático tudo aquilo que não fora reconhecido pelo outro na história do sujeito. Portanto, o que a experiência analítica possibilitaria para este seria uma experiência de reconhecimento e com isso a superação das suas marcas traumáticas.

A experiência analítica seria a condição de possibilidade para a transformação do sujeito pelo reconhecimento que poderia realizar de tudo aquilo que não tinha sido reconhecido na história deste e que permanecera de ordem traumática. Além disso, é preciso destacar que o trauma seria aquilo que conformaria a ordem do Real, para Lacan, neste contexto teórico. Este deveria ser assim reconhecido para ser então simbolizado, numa circularidade conceitual estabelecida entre os registros do reconhecimento e da simbolização. Enfim, seria esta inflexão crucial que Lacan entenderia como a transformação promovida pela experiência psicanalítica.

Contudo, para esta transformação, possibilitada pela análise, o analista procederia por duas modalidades de intervenção. A primeira seria de ordem intelectual e se faria pela interpretação. Porém a segunda seria de ordem afetiva e se realizaria pela transferência (Lacan, 1948/1966). No entanto, o tempo necessário para a realização destas intervenções seria uma questão da técnica. Isso suporia as reações do analisante, que o analista deveria considerar. Para isso, o analista deveria se regular pelo tato nas suas intervenções. Portanto, Lacan retomou um conceito que fora enunciado por Ferenczi (1927-1928/1982), no ensaio "A elasticidade da técnica analítica".

Pode-se reconhecer como Lacan formulou a possibilidade de remanejamento das identificações e do Imaginário pela mediação do trauma. Porém este seria o que colocaria em evidência o registro do Real, indicando tudo aquilo que não fora reconhecido pelo outro na história do sujeito. Enfim, necessário seria reconhecer as marcas traumáticas do Real para que fosse possível a sua simbolização, para remanejar o Imaginário do sujeito e para tornar possível a transformação deste.

Portanto, seria este Real o que aproximaria Lacan da filosofia do jovem Marx. Não obstante ser este conceito uma categoria teórica de Hegel, como se sabe, ela remeteria também à filosofia do jovem Marx, pela dimensão da guerra que Lacan atribuiu logo em seguida ao Real, como veremos ainda posteriormente.

 

POLITZER, WALLON E LACAN

No entanto, é preciso dizer que, independente da referência ao registro do Real, a filosofia do jovem Marx estaria também presente no percurso de Lacan por vias indiretas. Assim, é preciso destacar que a leitura que Lacan empreendeu da psicanálise se inscreveu em pressupostos que foram delineados por Politzer, em 1927 (1978), numa obra intitulada de Critique des fondaments de la psychologie.

Como se sabe, este livro sobre a psicanálise pretendia ser o primeiro numa série de três, nos quais o autor tinha a intenção de constituir os fundamentos da psicologia concreta pela crítica da psicologia clássica. Entretanto, os demais livros, sobre o behaviorismo e o gestaltismo, não foram escritos.

Antes de mais nada, é preciso evocar que, como Lacan fez em seguida, Politzer criticou a metapsicologia freudiana, na medida em que esta seria um obstáculo no discurso freudiano para a constituição da psicologia concreta pela utilização naquela de esquemas explicativos oriundos da psicologia clássica (Politzer, 1927/1978). Em contrapartida, o que Politzer valorizava, em Freud, era o destaque que este conferiu às experiências em que o drama humano estaria colocado no centro da cena psíquica.

Por isso mesmo, a identificação era um conceito fundamental para constituir a psicologia concreta e para a superação dos impasses desta, pois seria naquela que o drama humano estaria condensado. Daí por que Politzer destacava a importância do complexo de Édipo, pois o drama humano estaria aí plasmado nas suas identificações.

Como se sabe, Politzer era um filósofo marxista e um militante comunista, sendo então marcado pela filosofia do jovem Marx. A incidência do pensamento de Politzer, na crítica que empreendeu da psicologia clássica, foi marcante no percurso de Lacan desde a sua tese de Doutoramento (1932/1975). Assim, mesmo que Lacan não tenha citado Politzer, o significante psicologia concreta se repete nos seus escritos.

Com efeito, em "Au-delà du 'principe de realité'" (Lacan, 1936/1966), o significante psicologia concreta se enuncia em diferentes momentos. Além disso, em Les complexes familiaux dans la formation de l'individu (Lacan, 1938/1984) este significante aparece, no qual o complexo seria o fundamento da psicologia concreta.

Portanto, o drama humano, que Politzer destacou como fundamento da psicologia concreta, seria equivalente ao que o Lacan denominava de realidade humana. O ponto crucial de convergência entre ambos foi o conceito de identificação.

Porém o significante psicologia concreta remete para outro autor da psicologia, que teve também uma incidência no percurso inicial de Lacan. Estou me referindo a Henri Wallon (1934), que, com a publicação de Les origines du caractère chez l'enfant, destacou a relação estabelecida pelo infante com a sua imagem no espelho como crucial para a constituição psíquica. Foi a partir desta descrição que Lacan (1949/1966) enunciou o conceito de estádio do espelho, desde 1936. Além disso, o significante psicologia concreta estava também presente nos escritos de Wallon.

O que é preciso destacar aqui é que Wallon era também marxista e comunista, de forma que a referência ao jovem Marx estava presente na sua crítica à psicologia clássica e no seu projeto de constituir outro discurso para a psicologia.

 

GUERRA E REAL

A versão originária do conceito do estádio do espelho foi apresentada no Congresso Internacional de Psicanálise, em 1936, realizado em Marienbad (Roudinesco, 1993) no mesmo ano em que Lacan (1936/1966) publicou "Além do 'princípio da realidade'". Porém a versão final advém da intervenção realizada XVIe Congresso Internacional de Psicanálise, realizado em 1949 em Zürich (Lacan, 1949/1966).

O que importa destacar é como a constituição do registro do eu, marcado que seria pelo desconhecimento e pela alienação, teria uma relação íntima com a prematuridade biológica do organismo humano e com o seu desdobramento, qual seja, a deiscência constitutiva da realidade humana. Assim, a identificação originária com a imagem especular, que se conjugaria com o assentimento materno na confirmação desta, ao lado de promover a alienação do eu ao olhar do outro caracterizaria a dimensão espacial presente na realidade humana. Daí adviria a marca paranoica que caracterizaria o conhecimento humano (Lacan, 1949/1966).

No entanto, seria esta identificação originária que possibilitaria ao infante se contrapor à deiscência primordial que o marcaria. Daí o júbilo que tomaria conta do infante, pelo domínio imaginário e pela estruturação que isso lhe permitiria. Com efeito, o advento da visibilidade e do eu suporiam como prévia a condição de o infante ser visto. Portanto, esta identificação originária seria a matriz de todas as demais identificações ao longo da história do sujeito (Lacan, 1949/1966).

Porém esta unidade primordial, que articularia o corpo e o espírito, seria marcada pela fragilidade do eu. Na leitura da experiência infantil do transitivismo, formulado por Bühler, Lacan formulou a emergência da agressividade humana no contexto intersubjetivo. Isso porque, como a instância do eu não poderia se diferenciar da figura do outro, necessária seria a agressividade para que o sujeito se diferenciasse do outro (Lacan, 1949/1966).

Foi por este viés que Lacan (1949/1966) descreveu a emergência das imagens do corpo fragmentado, que seriam os efeitos terroríficos do outro sobre o eu. Ao lado disso, na descrição da experiência analítica, realizada em 1948, Lacan pôde indicar que seriam tais imagens do corpo fragmentado o que faria sua emergência na análise, como signos do trauma, isto é, de tudo aquilo que na experiência pretérita do sujeito não foi reconhecido pelo outro. Estaria aqui, portanto, a matéria-prima para o registro do Real, daquilo que não foi simbolizado pelo sujeito porque não foi reconhecido pelo outro.

Estaria delineada assim a dimensão originária de guerra, que caracterizaria a relação intersubjetiva e que seria a marca do Real (1948/1966). A dialética do senhor e do servo, que foi descrita por Hegel, aqui se inscreveria, evidenciando o horror do sujeito de ser relançado à sua deiscência originária, na qual se despedaçaria pela perda da sua unidade. Por isso mesmo, estabeleceria uma relação de agressividade permanente com o outro num cenário caracterizado pela guerra.

Por isso mesmo, Lacan (1948/1966) enunciou que a abertura da experiência psicanalítica seria marcada pela transferência negativa, como dissera Melanie Klein e em franca oposição a Freud, que supunha que a realização daquela seria pautada pela transferência positiva (Freud, 1912/1972). Porém se Lacan enunciou isso foi pela oposição existente entre os registros do eu e do outro, em que o retorno do eu à deiscência originária estaria em pauta, ao lado, é claro, de o sujeito demandar algo ao outro, numa posição humilhante, o que reiteraria o ponto anterior (Lacan, 1948/1966).

Assim, se Lacan teve que opor os registros do sujeito (Je) e do eu, foi para formular a condição de possibilidade para superar a guerra mortífera entre o eu e o outro. Ao lado disso, enunciava que a leitura freudiana do sujeito estaria em oposição à de Descartes. Contudo, se o sujeito (Je) remeteria ao registro da linguagem, essa seria a mediação possível para que a troca e o reconhecimento simbólico pudessem se constituir entre diferentes sujeitos.

Por isso mesmo, Lacan se deslocou para a problematização do registro do Simbólico em seguida, para sair dos impasses colocados pelo Imaginário, assim como desta guerra interminável (Lacan, 1953/1966). Portanto, seria por isso que a política, como poder, que seria o correlato do laço social inscrito no campo da linguagem, entreabrira outra possibilidade para os impasses colocados pela experiência da guerra, inscrita esta na vulnerabilidade ontológica presente na estrutura do ser.

 

EU E IDEOLOGIA

Estariam inscritas no Real as marcas do que não foi simbolizado porque não teria sido reconhecido pelo outro na história do sujeito, evidenciando a fragilidade ontológica da realidade humana. Seria por isso que se compreenderia que a relação intersubjetiva seria marcada pelo confronto entre o eu e o outro, num cenário dominado pela lógica da guerra. Portanto, mesmo que a política seja a condição de possibilidade para a mediação entre os sujeitos, delineada pelo discurso, a vulnerabilidade ontológica estaria presente como marca indelével da realidade humana.

É claro que Lacan não nomeou esta guerra como luta de classes, como Marx. Porém o eu, como instância psíquica marcada pelo desconhecimento, caracterizado pela denegação como signo de negatividade, na sua relação de inversão com o Real da vulnerabilidade do ser, poderia se aproximar do conceito de ideologia formulado pelo jovem Marx, em que o Real presente nas relações sociais seria encoberto pelas formações ideológicas. Com efeito, no registro psíquico do eu e no registro social da ideologia estaria presente a inversão do Real promovida pela imagem especular, que impediria o reconhecimento do real traumático e do real conflitivo presente nas relações sociais.

Seria esta a problemática da verdade que marcaria o sujeito no percurso inicial de Lacan. Porém a leitura desta passaria pela posição estratégica conferida ao Real, numa relação marcada pelo desconhecimento e pela denegação. Por isso, a marca do materialismo esteve sempre presente no percurso de Lacan, mesmo que posteriormente este tenha problematizado o registro do Real diferentemente do que fizera inicialmente. Enfim, o que se poderia enunciar, na conjunção entre o percurso inicial de Lacan e a filosofia do jovem Marx, é que o eu, como instância psíquica de desconhecimento, seria a condição de possibilidade para a construção das ideologias.

Portanto, a transformação promovida pela análise evidenciaria o desconhecimento presente no eu para que o Real pudesse fazer a sua emergência no campo psíquico e os traumas pudessem ser simbolizados e reconhecidos. Desta maneira, enfim, o sujeito (Je) poderia se afirmar face ao eu, enunciando-se na sua verdade e singularidade.

 

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Recebido em 23 de abril de 2011
Aceito para publicação em 12 de outubro de 2011

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