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Tempo psicanalitico
versão impressa ISSN 0101-4838
Tempo psicanal. vol.43 no.2 Rio de Janeiro dez. 2011
RESENHAS
Agiste em conformidade com o teu desejo?
Have you acted in conformity with your desire?
Denise Maurano
Psicanalista, membro do Corpo Freudiano, professora associada da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). Editora do periódico eletrônico Psicanálise e Barroco em Revista
RESENHA DE:
Leite, S. (2011). Angústia. Coleção Psicanálise, Passo a Passo, v. 92. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 95 páginas.
Urgência é a palavra chave com a qual Sonia Leite, de maneira muito apropriada, abre o volume que tematiza nada menos do que a Angústia, na coleção Passo a Passo em psicanálise da editora Jorge Zahar. Aproveitando sua rica experiência clínica, que inclui também seu trabalho na Emergência do Centro Psiquiátrico do Rio de Janeiro, vale-se de uma fecunda pesquisa teórica, conseguindo de maneira interessante e acessível abordar esse tema tão espinhoso e produzir uma obra que se lê com fluência e curiosidade.
Apesar de a angústia urgir, apertar, sufocar e fazer o corpo gritar ao seu modo, o que resulta muitas vezes em uma crise que leva o sujeito ao hospital dada a intensidade das manifestações físicas, curiosamente, o caminho tomado pela autora para discutir a questão começa pela filosofia, na verdade pela Antiguidade, com Platão e Cícero. Depois, passa pela Idade Medieval, pela Idade Moderna, chegando à importante discussão sobre o lugar da angústia na corrente filosófica denominada de Existencialismo. O papel da contribuição de Kierkegaard nesse trajeto é fundamental, já que o filósofo sublinha o caráter humano da angústia e sua função de permitir ao homem uma travessia que o conduz a descobrir suas possibilidades. Com isso ele mostra que só tem angústia quem tem espírito, dado que a angústia revela o encontro com o insondável, ou seja, com aquilo que é parte do divino.
Esse caráter funcional da angústia comparece na perspectiva existencialista e se evidencia, sobretudo, com Heidegger e Sartre, que muito escreveram sobre o tema. De diferentes maneiras eles sublinham a angústia como presença do nada, abertura para o mundo que conduz à transcendência e à possibilidade da assunção de escolhas.
A autora sabe que esse olhar filosófico para a questão da angústia, embora diferindo da abordagem psicanalítica por sua ênfase nas funções da consciência, é um precioso aliado no diálogo com a psicanálise. Tanto que seu segundo movimento no livro é introduzir as críticas que o filósofo Michel Foucault, através de suas obras O nascimento da clinica e História da loucura, faz acerca da expansão do discurso médico científico que, com seu biopoder, passou a dominar as discussões sobre o tema, provocando um alastramento absolutamente nocivo do uso de psicotrópicos produzidos e pesquisados a toque de caixa, exatamente para engordar o caixa das empresas farmacêuticas com suas pílulas da felicidade. Como afirma Sonia Leite, parece que a visão cientificista do mundo se colocou como a última palavra para todas as problemáticas do ser humano, desvalorizando conhecimentos milenares acerca do homem.
E eis que o furor cientificista chega ao ponto de prometer a revelação da bioquímica do amor, como a autora comenta, lembrando uma matéria tratada no V Congresso Brasileiro de Cérebro, Comportamento e Emoções, sob o tema "Neurobiologia explica como os hormônios unem ou afastam os casais", quando se afirma que um simples exame de sangue seria capaz de indicar o parceiro ideal. Já pensaram? Ora, se fazem isso com os enigmas do amor, imaginem o que não fazem com as questões da angústia? Ou, pelo menos, o que dizem fazer com ela. Na crítica à pretensão de se fazer uma correlação direta entre estados mentais e estados cerebrais, o respeitado filósofo George Canguilhem é lembrado, alertando quanto ao risco de que explicações orgânicas ou genéticas, servindo ao controle social e de mercado, no caso, o mercado das drogas, obstaculizem o acesso do sujeito no encontro de respostas para as suas vivências, inclusive as de angústia, produzindo um silenciamento subjetivo temerário.
A autora, entretanto, não nega os ganhos obtidos com o uso de certas substâncias químicas no tratamento de sofrimentos psíquicos, o que possibilitou, inclusive, outras formas de acolhimento da loucura que não apenas os manicômios e as camisas de força. O problema é a expansão indiscriminada do uso de medicamentos. De 1950 para cá, a adoção de medicamentos como antipsicóticos abriu um veio de intervenções no psiquismo por meio de substâncias químicas que se alastrou abusivamente. Produziu-se na sequência uma leva de ansiolíticos, drogas de efeito sedativo, depois a onda dos antidepressivos e com tudo isso, como alerta a autora, a própria clínica psiquiátrica que tinha um compromisso com a investigação acerca da origem das doenças cedeu seu espaço ao dito dinamismo farmacêutico.
Isso está refletido tanto no DSM-IV (Manual diagnóstico e estatístico dos transtornos mentais), quanto no CID-10 (Classificação estatística internacional de doenças). As modificações, ao longo do tempo, desses códigos, que vêm a encontrar na categoria de transtornos mentais um achado, revelam uma expansão tão absurda das classificações diagnósticas que inclui tudo e mais um pouco, pois, como bem diz o poeta Caetano, "de perto, ninguém é normal". Assim, todos os problemas subjetivos passam a ser medicalizados e a especificação do transtorno fica na dependência da resposta ao medicamento. Quanto às causas, essas são tomadas como vinculadas a fatores prioritariamente genéticos ou biológicos, relegando a um plano praticamente irrisório os fatores psicossociais de caráter subjetivo.
Isso passou a valer para tudo, e a abordagem da angústia, também tratada como ansiedade, ficou em cheio aí. A medicalização psicotrópica da vida generalizou-se de tal modo que não poupou nem crianças e adolescentes na dinâmica de seus processos próprios de adaptação, crescimento e transição. A indicação de seu uso fugiu da mão dos psiquiatras, vindo a se tornar recurso de pediatras, clínicos gerais, ginecologistas e outros, numa larga convocação a que os sujeitos não se impliquem em seus sintomas, não respondam por eles, tornando o que poderia ser uma resposta possível frente a uma indicação precisa a resposta para todos os males.
Ao enfocar a questão da angústia, é bastante arguta a estratégia da autora de conduzir o leitor a olhar criticamente essa calamidade que veio a se constituir com o amplo, geral e irrestrito mercado das drogas, que reduz o sujeito a mero consumidor. Se ela a adota é porque, na contramão disso, situa-se a psicanálise que, como salientado por Freud, faz coincidir o processo de investigação dos sofrimentos psíquicos com o tratamento propriamente dito.
Assim, a obra chega ao seu ápice com a abordagem freudiana e lacaniana da angústia. Aliás, a discussão em torno desse tema é constitutiva da psicanálise. É por conta da angústia que, via de regra, nós buscamos a psicanálise. É por conta da estranheza disso que aparece como estreitamento, limitação, que justifica tanto o sentido etimológico do termo angústia quanto a sensação física a ela correspondente, que o eixo central da clínica se edifica. Primeiramente, na teoria de Freud, é concebida como neurose de angústia, sublinhando os impasses da sexualidade, resultante dos descaminhos da excitação libidinal não descarregada que escaparia sob a forma da angústia, quer como ataques, quer como estados crônicos, indicando a presença de quantidades de excitação não passíveis de serem processadas pelo psiquismo.
O desamparo inaugural do bebê humano, em sua dependência radical do Outro cuidante - em geral a mãe -, seria a matriz da experiência de precariedade, que destina nossa constituição subjetiva à relação com o Outro. Assim, a falta advinda desse campo é sinal de alarme, nos põe em perigo, e é aí que o exército da angústia é acionado, mobilizando todos os seus soldados - o medo, o pânico, o terror, a inquietação e mesmo, como contraponto, a depressão e outras manifestações, conforme a estratégia de defesa requerida.
Freud sublinha o quanto a angústia está atrelada à vivência da perda que é experienciada pelo nosso Eu como falta de algo que sustenta nossa imagem corporal, ou o que completaria essa imagem: o falo - a plena potência vital, o que o faz relacionar a experiência da angústia à angústia de castração.
De um modo bastante didático, mas nem um pouco simplista, Sonia Leite estabelece não uma contraposição, mas um diálogo entre essa perspectiva freudiana e a proposta de Lacan, que afirma que não é propriamente a falta do objeto o que desencadeia a angústia, mas o pavor da perda da capacidade de desejar. Ela explica que, como o desejo é o que nos justifica como sujeitos, dado que sem este caímos na condição de objetos, portanto aniquilados subjetivamente, a vivência da falta que alimenta a busca é o combustível precioso para o movimento psíquico. Assim, desejar é buscar o que falta e o psiquismo é feito disso. Mas, se essa falta falta, ou seja, se um objeto comparece como que cobrindo todo o campo da busca, ficamos sem ter pelo que viver. Ficamos entojados de objeto, o que vai repercutir no modo como o Eu, que se referenda fundamentalmente na imagem corporal, vê comprometida suas referências identificatórias, o que traz por consequência a despersonalização - o não-reconhecimento de si mesmo. Esse abuso do objeto que encampa todo o universo subjetivo e que na vivência imaginária do sujeito não dá margem à falta que permite o jogo da vida faz emergir a experiência real da angústia como clamor para que a função de desejá-lo seja restituída, restituindo assim o dinamismo psíquico que se areja pela capacidade de simbolização.
Mas pode ser que o sujeito fique enguiçado no sinal, no sinal de alarme. Trânsito impedido, engarrafamento! Asfixia! E aí um recurso possível é a psicanálise. Não é à-toa que, parodiando a ideia de que do que se trata no processo analítico é da travessia da fantasia, a autora, muito propriamente, o define como travessia da angústia, já que uma travessia não vai sem a outra. Ou seja, não atravessamos nossas referências identificatórias fundamentais sem angústia. E cada um tem seu modo próprio de operar com ela. A análise convoca o sujeito a não se acovardar diante do surgimento desse mal-estar, mas apropriar-se dele, ao invés de ser apropriado por ele. Ela convoca a fazê-lo falar. Destila a palavra cassada pela intensidade do afeto. E, para isso, não abdica do elemento processual, trabalha na ritualização de um processo que é o processo de luto, luto do objeto como absoluto. Afinal, na vida, nenhum objeto é absoluto e é isso que faz a dor e a delícia de nela estarmos.
Para finalizar, como bem lembra a autora evocando Lacan, o reconhecimento do desejo que nos move para além de todos os embustes que nos dispersam é o único remédio efetivo para angústia. É o que permite que possamos nos situar para além e aquém da demanda do Outro, respondendo com desejo e não com dominação. Eis a ética que move o trabalho analítico e eis que ficamos com a questão que o orienta: "Agiste em conformidade com o teu desejo?".
Revisitando Freud
Freud: a new visit
Sandra Edler
Membro psicanalista da Sociedade de Psicanálise Iracy Doyle (SPID), mestre e doutora em Teoria Psicanalítica pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)
RESENHA DE:
Saroldi, N. (2011). O mal-estar na civilização - As obrigações do desejo na era da globalização. Coleção Para ler Freud. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 156 páginas.
Editora da coleção Para ler Freud - através da qual procura di-vulgar, para um público amplo, obras chave do pensamento freudiano -, Nina Saroldi publicou, em junho de 2011, um volume de sua autoria: As obrigações do desejo na era da globalização. Dividido em três capítulos, o livro apresenta um extenso comentário abordando as principais teses de Freud referidas às relações entre sujeito e cultura. Para desenvolver o comentário, Saroldi recorre a uma série de referências, fazendo articulações com a filosofia clássica, moderna e contemporânea através das quais podemos situar a reflexão freudiana no contexto do pensamento moderno tendo como perspectiva o conjunto do pensamento ocidental. Esse percurso permite que o leitor não apenas penetre no âmago da exposição de Freud no panorama da cultura do final dos anos 20 do século passado como também, e principalmente, traga essas articulações aos dias de hoje. Nesse aspecto reside, a meu ver, a maior originalidade do trabalho de Nina Saroldi. Professora universitária, com formação em filosofia e em teoria psicanalítica, traz embasamento à leitura de Freud e traça pontes que nos permitem pensar a contemporaneidade à luz dos pressupostos do mestre de Viena.
No capítulo inicial - O mal-estar na civilização e seus arredores -, Saroldi lembra o texto de 1908, "Moral sexual civilizada e doença nervosa moderna", no qual Freud, à luz da Primeira tópica e da Primeira teoria pulsional, analisa em esboço as relações entre as restrições à vida sexual - vigentes com ênfase à época - e manifestações nervosas que apareciam sob uma forma quase epidêmica de histeria. Ainda sem os recursos teóricos importantes que foram construídos através da metapsicologia e, mais tarde, da Segunda teoria pulsional e da redefinição do supereu, Freud lança as sementes daquilo que, com algumas modificações, reaparecerá na grande e madura reflexão do texto de 1930: um eterno conflito que reúne interesses opostos, individuais e culturais, em permanente antagonismo. Ainda pesquisando os arredores do mal-estar, a autora se volta a três outros textos que se tornam alvo de seus comentários: "Psicologia das massas e análise do eu" (1921), "O futuro de uma ilusão" (1927) e "Por que a guerra?" (1932). Nesses trabalhos, a questão do antagonismo sujeito/cultura é recorrente e pode ser abordada de mais de uma maneira, enfatizando a força com que a pulsão açoita o sujeito em sua contínua exigência de satisfação, as possíveis consequências de uma maior ou menor submissão às exigências da cultura e a contingência da pulsão de morte no âmbito individual e suas repercussões na cultura. Em qualquer ângulo de análise e argumentação, Freud mantém a ideia de que o conflito é inconciliável e o mal-estar insolúvel: implica forças opostas em tensão permanente com as quais temos que conviver.
No segundo capítulo a autora propõe-se resumir os principais temas do livro. Escrito no verão de 1929, após um intervalo de dois anos depois de concluir "O futuro de uma ilusão", Freud se volta, de maneira detalhada, à questão da relação entre o sujeito e a cultura enunciando a tese de que há, entre eles, um antagonismo irremediável. Antes, no entanto, em resposta a Romain Rolland, reexamina a questão do sentimento oceânico - nas palavras de Freud, "um sentimento de algo ilimitado, sem fronteiras, oceânico, por assim dizer" (Freud, 1930/1969: 81), acrescentando adiante, "um vínculo indissolúvel de ser uno com o mundo externo como um todo" (Freud, 1930/1969: 82). Para pensar tal sentimento Freud retoma os primórdios da constituição do eu: "originalmente o ego inclui tudo; posteriormente, separa, de si mesmo, um mundo externo" (Freud, 1930/1969: 85). Assim ventila a hipótese de o sentimento oceânico estar associado a vestígios de um eu primitivo. Mas, ao fim da análise, reafirma sua opinião de que a origem das religiões estaria vinculada à condição de desamparo e ao apelo ao pai, a um pai que possa proteger.
Observa Freud (1930/1969: 95) que "a vida, tal como a encontramos, é árdua demais: proporciona-nos muitos sofrimentos, decepções e tarefas impossíveis". O sofrimento nos ameaça a partir de três fontes principais: o corpo, sujeito à decadência e à finitude, a força esmagadora da natureza e o relacionamento com outros seres humanos: "o sofrimento que provém desta última fonte talvez nos seja mais penoso do que qualquer outro" (Freud, 1930/1969: 95). Seguindo de perto o texto freudiano, Saroldi se debruça na direção da terceira fonte, a fonte social do sofrimento, aquele que provém do convívio entre o sujeito e o outro e os conflitos inevitáveis que se estabelecem a despeito de leis e regulamentos que tentam norteá-los. Kultur, lembra a autora, refere-se ao conjunto de realizações e regras que distinguem a vida do homem de seus ancestrais, conjunto queo auxilia a se proteger da natureza frente à qual é impotente e que se oferece para regular o laço social, permitindo, com isso, uma vida em comum. No entanto, nas palavras de Freud (1930/1969: 102), "o que chamamos de nossa cultura é em grande parte responsável por nossa desgraça e seríamos mais felizes se a abandonássemos e retornássemos às condições primitivas".
Isso porque, em troca da promessa de proteção contra o desamparo e a solidão do homem, a cultura cobra um pesado tributo em termos de renúncia pulsional. A promessa acaba por não se consumar e o próprio remédio se converte em novas fontes de sofrimento. O sujeito, constituído pela via da renúncia, é insatisfeito, hostil e permanentemente angustiado. Tanto assim que recupera, através do sintoma neurótico, a parcela de gozo perdida. A neurose seria, assim, uma das formas de inserção do sujeito na cultura (Edler, 1997). A cultura impõe restrições ao sujeito, perdas significativas de liberdade, limitações no erotismo e na agressividade. No entanto, observa Saroldi, civilizar é lutar pela vida, apesar e a despeito da pulsão de morte. Em seu texto, "Por que a guerra?" (1932), muito valorizado pela autora, Freud, respondendo a Einstein, reafirma as teses expressas no "Mal-estar", insistindo na luta permanente a ser desenvolvida pela cultura contra as forças que a ameaçam, uma vez que não será possível eliminar as inclinações humanas agressivas.
No terceiro capítulo, O mal-estar melhorou? A pertinência do livro hoje, Saroldi, após um percurso atento ao desenrolar do pensamento freudiano, procura contextualizá-lo, trazê-lo aos dias de hoje para valorizar as principais premissas e analisar as novas condições da cultura, 80 anos depois desta publicação. Nesse momento a reflexão traz à tona o pensamento pessoal da autora, suas grandes referências como Zizek e Bauman, com as quais examina o processo acelerado de mudança em que vivemos e denuncia uma diferença fundamental. Em suas palavras, "aquilo que a cultura de hoje não quer saber: a suspensão da dimensão da renúncia na vida atual" (Saroldi, 2011: 23). Na modernidade, ainda sobre o pano de fundo do capitalismo de acumulação, havia, tanto moral quanto economicamente, uma demanda social à renúncia. Hoje, num segundo momento do capitalismo, ocorre o inverso. Há um fator socioeconômico que impele o sujeito a ser um consumidor ávido. Uma mudança como essa acaba por repercutir na subjetividade. A renúncia à qual Freud se refere como eixo de uma vida civilizada perde a importância nos dias de hoje frente a uma injunção que estimula o sujeito - da infância precoce até o fim da vida - a consumir incessantemente. Essas mudanças significativas nos costumes que, num mundo globalizado, atinge a todos, constitui-se numa interrogação que inquieta Saroldi e em relação à qual estamos hoje todos debruçados. Tal questão, da maior relevância, convoca um grupo de profissionais a pensar em quais as consequências da atrofia da dimensão da renúncia frente à outra postura que interessa mais ao mercado consumidor: a insaciabilidade, a avidez e o excesso. Vivemos hoje um grande mercado, como sinalizou Lacan (1969-1970/1992), e não podemos fechar os olhos aos seus desdobramentos. A própria feição do sintoma clínico reflete isso. Em lugar da histeria que, como mencionamos, era epidêmica na época de Freud, hoje lidamos com, por exemplo, compulsões de todos os tipos. No lugar da renúncia ao gozo presenciamos a exibição do gozo nas formas mais variadas. Nesse capítulo, com a contribuição de La-can e Zizek, Saroldi examina a questão do supereu, cujo conceito, desenvolvido por Freud ao longo de extenso percurso, mostra-se em novas configurações sob os ditames da sociedade de consumo, como uma instância que convoca ao gozo sem limites.
Saroldi aborda, em seguida, o impacto da mudança acelerada desses valores nas relações afetivas e de trabalho - em suas palavras, submetidas ao insustentável imperativo da leveza. Citando Hesíodo, relembra valores ligados à lida com a terra e à colheita de seus frutos: o trabalho duro, o esforço, a persistência, a incerteza e a resignação quanto aos resultados. Hoje, esse conjunto de valores estaria em declínio frente à ascensão dos valores empresariais de rapidez, impermanência e lucratividade, que transpõem os muros das empresas e ganham expressão na cultura. Inspirando-se em Bauman (1998), em particular em seu Mal-estar na pós-modernidade, Saroldi chega à conclusão de que, na passagem para o século XXI, a ideia do sacrifício pulsional feito em nome da segurança e da possibilidade da vida em comum praticamente inverteu-se. Nesse sentido cita as palavras de Bauman (1998: 10), "os homens e as mulheres pós-modernos trocaram um quinhão de suas possibilidades de segurança por um quinhão de felicidade". Sacrifica-se a segurança em nome da liberdade, entendida como liberdade para buscar o prazer. Toda a ética da renúncia de inspiração luterana ruiu frente ao imperativo "aproveite agora e pague depois" proposto pela lógica do mercado. A capacidade de arriscar toma o lugar da busca obstinada de objetivos. Hoje estamos inseridos no "capitalismo cassino", expressão usada pelo sociólogo alemão Robert Kurz, citado por Saroldi (2011: 135).
Escrito em estilo jornalístico em que os conceitos psicanalíticos são revistos e exemplificados através de expressões comuns do cotidiano, a autora aproxima o pensamento freudiano às pessoas comuns de todos os ambientes. Oferece ao leitor interessado uma leitura de Freud pela perspectiva social e traz, sobretudo no capítulo final, uma discussão corajosa sobre as peculiaridades do nosso tempo. Nesse capítulo, fazendo interlocuções com Lacan, Zizek e Bauman, entre outros, nossa autora, uma analista da cultura, delineia uma interrogação preocupante: se a cultura se edifica sobre a renúncia pulsional, o que nos espera, num futuro próximo, diante da atrofia da dimensão da renúncia?
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Bauman, Z. (1998). O mal-estar na pós-modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
Edler, S. (1997). Além do mal-estar: uma discussão sobre a violência na cultura brasileira. Dissertação de Mestrado, Programa de Pós-graduação em Teoria Psicanalítica, Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Freud, S. (1930/1969). Mal-estar na cultura. Obras completas, ESB, v. XXI. Rio de Janeiro: Imago.
Lacan, J. (1969-1970/1992). O seminário, livro 17: o avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.