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Tempo psicanalitico
versão impressa ISSN 0101-4838
Tempo psicanal. vol.45 no.2 Rio de Janeiro dez. 2013
ARTIGOS
Para uma clínica psicanalítica do cuidado
For a psychoanalytic clinic of care
Zeferino Rocha
Professor do Programa de Pós-Graduação (Mestrado e Doutorado) em Psicologia Clínica da Universidade Católica de Pernambuco; Membro fundador e sócio honorário do Círculo Psicanalítico de Pernambuco. E-mail: zephyrinus@globo.com
RESUMO
O objetivo do artigo é analisar os elementos fundamentais e as condições necessárias para uma clínica psicanalítica do cuidado. Para tanto, na primeira parte, o autor resume o que Heidegger diz sobre o cuidado (Sorge) como a condição ontológica das manifestações do ser do Dasein; na segunda parte, tendo como referencial teórico a metapsicologia freudiana e a teoria winnicottiana do desenvolvimento afetivo, o autor mostra a função estruturante do cuidado na constituição da subjetividade e no desenvolvimento afetivo da criança; finalmente, na última parte e à guisa de uma conclusão, são apresentadas as condições que o autor considera indispensáveis para que a clínica psicanalítica possa ser considerada como uma clínica do cuidado.
Palavras-chave: Sorge heideggeriana; cuidado como ocupação e preocupação; desamparo; cuidados maternos; clínica psicanalítica.
ABSTRACT
The author proposes to analyze the fundamental elements and the necessary conditions for a psychoanalytic clinic of care. To do so, in the first part of the article, he summarizes what Heidegger said about care (Sorge) as the ontological status of the manifestations of Dasein's being; in the second part, with the theoretical reference to Freudian metapsychology and affective development in winnicottian theory, the author shows the structuring role of care in the constitution of subjectivity and affective development of the child; finally, in the last part and by way of a conclusion, the conditions that the author considers indispensable so that the psychoanalytical clinic can be considered as a clinic of care are presented.
Keywords: Heideggerian Sorge; care as occupation and worry; helplessness; maternal care; psychoanalytical clinic.
INTRODUÇÃO
Viver é realizar o que de eterno em nós palpita,
na livre criação de cada instante.
(Daniel Lima)
É meu propósito, no presente ensaio, refletir sobre os elementos fundamentais e as condições indispensáveis para uma clínica psicanalítica do cuidado. Para tanto vou resumir, na primeira parte, as reflexões desenvolvidas por Heidegger no capítulo sexto da primeira parte do livro Sein und Zeit (Heidegger, 2001a), nas quais o cuidado (Sorge) nos é apresentado como ser do Dasein (termo com que é designada a modalidade ontológica de ser constitutiva do ser humano). Na segunda parte, numa perspectiva psicanalítica, retomarei a função estruturante do cuidado, tendo como pano de fundo teórico a metapsicologia freudiana do desamparo e o que Winnicott (1962/1983) ensina sobre o papel do cuidado materno na constituição da subjetividade e nas diversas fases de seu desenvolvimento afetivo. Finalmente, na terceira parte, destacarei as principais ressonâncias que essa função estruturante do cuidado tem sobre a clínica psicanalítica e, na esteira do que diz Ferenczi (1932/1990) no seu Diário clínico e de alguns autores contemporâneos - entre os quais destaquei Luís Cláudio Figueiredo (2009) e Daniel Kupermann (2008), - apresentarei algumas condições que me parecem indispensáveis para que a clínica psicanalítica possa ser devidamente considerada como uma clínica do cuidado.
PRIMEIRA PARTE: A FUNÇÃO ESTRUTURANTE COMO CUIDADO À LUZ DA ONTOLOGIA HEIDEGGERIANA
Para Heidegger (2001b), a antropologia filosófica sempre se preocupou em definir o que é o homem; ele, no entanto, prefere perguntar não o que é o homem, mas quem é o homem e como o homem se compreende a si mesmo, pois, entre todos os entes, o ser humano é o único que pode colocar a questão do sentido do ser e, por isso mesmo, "sua essência mais profunda é sua referência à compreensão-do-ser" (Heidegger, 2001b: 176). Na analítica existencial, Heidegger (2001a) faz uma distinção fundamental entre o Ser (Sein) e o ente (Seinde). Para ele, "ente" é tudo o que nos circunda e sobre o que falamos, e "Ser" é a "abertura originária" de onde brotam os entes como revelações do Ser, que sempre velam o que revelam, na medida mesma em que o revelam. Quando se pergunta "o que é o 'Ser'?", Heidegger (2001a: 5) responde com a seguinte advertência: "nós não sabemos o que 'Ser' significa. Todavia, mesmo quando nos mantemos na compreensão do que ele 'é', não podemos fixar conceitualmente o que esse 'é' significa".
Somente por meio da analítica existencial do Dasein podemos encontrar um horizonte de compreensão para o sentido do Ser. Ela descreve o ser humano como um existente e afirma que a sua "essência", vale dizer, a sua fundamentação ontológica, está na sua "existência", que ele constrói com suas possibilidades de escolhas e realiza escrevendo sua história, na qual pode ser, ou não ser, si mesmo. Para dizê-lo com as palavras do próprio Heidegger (2001a: 181): "O Dasein [...] é o modo de ser de um ente, que, cada vez mais, é suas próprias possibilidades, e isso, de tal maneira, que ele se compreende nessas e a partir dessas possibilidades (e nelas se projeta)". Portanto, fundamentalmente, o Dasein é um Seinkönnen, ou seja, é um poder-ser, um conjunto de possibilidades, que precisam ser atualizadas a fim de que o existente humano seja capaz de conquistar-se como um si mesmo. Deste modo, ele se situa no mundo para fazer a experiência, seja de uma existência autêntica ou inautêntica, pois se o Dasein não atualizar suas possibilidades e não se tornar um si mesmo próprio, pode perder-se no mundo da inautenticidade e da impropriedade. Por isso, Heidegger (2001a: 191) afirma: "o Dasein é um ente que, no seu ser, põe em jogo o seu si mesmo".
Porque um poder-ser, o Dasein é também um Zusein, ou seja, um a ser, um ser que não é determinado de uma só vez, mas que não para de acontecer, pois está sempre acontecendo. Na sua estrutura ontológica fundamental, ele deve ser compreendido não como uma substância ontologicamente determinada naquilo que ela é, nem seu poder-ser deve ser entendido como se fosse a capacidade que tem o sujeito de atualizar suas possibilidades inatas. O Dasein, no seu ser e poder-ser, é algo que está sempre acontecendo e esse contínuo acontecer exige que ele assuma sua finitude e incompletude e, portanto, a sua historicidade (Geschichtlichkeit). É na confrontação de seu "ser jogado" no mundo com as situações históricas que ele encontra que suas escolhas decisivas são feitas no sentido de poder se tornar um si mesmo próprio ou impróprio.
O Dasein, porém, constrói a sua existência e a sua história privado de garantias e ciente de que entre as suas infindas possibilidades de ser, que o definem como poder-ser, encontra-se também a possibilidade da impossibilidade, vale dizer, a possibilidade de sua morte. E, quando esta acontece, as possibilidades que o definem deixam de ser possibilidades, pois o poder-ser, que fundamentalmente ele é, é constituído na e pela temporalidade; e isso o confronta com a angústia causada pelo próprio existir. Aceitando-a como um dos seus elementos constitutivos, o ser humano pode escolher viver a experiência de uma vida autêntica, assumindo suas possibilidades, limites, responsabilidades, conquistas e fracassos, como pode, também, querendo fugir desses limites e da angústia que eles causam, procurar abrigo numa forma de vida inautêntica, acomodada ao que os outros dizem a seu respeito. Todavia, mesmo quando submergido na e pela existência inautêntica, o Dasein não deixa de ser um existente e, como tal, um poder-ser e, portanto, sempre lhe resta a possibilidade de se recuperar da impropriedade e da decadência e de se tornar um si mesmo próprio.
O Dasein existe sendo-no-mundo, pois ele só "é" enquanto ser-no-Mundo (In-der-Welt-sein). Todavia, ontologicamente, o ser, que está em jogo no ser do Dasein é, para dizê-lo com as palavras de Heidegger, (2001a: 114) um ser "cada vez mais de mim" (je meines). Aqui temos uma das mais significativas caracterizações ontológicas do Dasein, pois ele é o ente que, sendo-no-mundo, faz cada vez mais seu o Ser que ele projeta ser.
O homem, porém, não está no mundo como uma coisa entre as coisas, pois Ser-no-mundo é constitutivo do Dasein e, da mesma forma que não há Dasein sem Mundo, não há também Mundo sem Dasein. Ser-no-Mundo, o homem se relaciona com as coisas que o cercam, e quando essas coisas estão ao alcance das suas mãos numa situação de Zuhandenheit (que se poderia traduzir como uma situação de "prestatividade"), elas podem ser inseridas no projeto existencial do Dasein. Nesse caso, o cuidado reveste a forma de um ocupar-se com esses entes que estão ao alcance das mãos e essa forma de cuidado é chamada, por Heidegger (2001a), de Besorgen, que pode ser traduzido por ocupação. Desses entes que estão ao alcance das mãos o ser humano cuida na medida em que deles se ocupa.
Todavia, quando se trata da relação do homem com os outros homens, os quais, como ele próprio, são também "lançados no mundo" para se tornarem propriamente si mesmos, o cuidado toma uma nova dimensão e, além de uma ocupação, ele é sobretudo um Fürsorgen, isto é, uma preocupação, e a palavra preocupação deve ser entendida no sentido de uma solicitude amorosa. Com os outros homens, o homem não apenas se ocupa, mas se preocupa e, para eles, dirige sua atenção e deles cuida com dedicação e ternura. Por isso, poder-se-ia dizer que, para Heidegger, cuidar é também uma forma de amar. Há, portanto, uma distinção fundamental entre essas duas manifestações da Sorge heideggeriana: a Sorge como Besorgen (ocupação) e a Sorge como Fürsorgen (preocupação, solicitude). Com isso, pode-se dizer que cuidar com preocupação e solicitude supõe que aquele que cuida se empenhe para que o outro realize suas possibilidades existenciais e se torne, ele também, um si mesmo próprio. Cuidam verdadeiramente as pessoas que não apenas se ocupam, mas se preocupam, com solicitude e desvelo, de quem lhes pede acolhimento e ajuda. Todavia, até mesmo essa maneira de cuidar com solicitude precisa ser bem compreendida e não deve ser feita sob a forma de uma manipulação ou de um "controle" sustentado e orientado por modelos preestabelecidos. Uma tal maneira manipuladora e sufocante de cuidar não disfarça a vontade de dominação que a sustenta. Por isso, excessos também podem acontecer no exercício do cuidado. Quando invasivo, ele impossibilita que o outro consiga ser ele mesmo e realize suas possibilidades a fim de se tornar um si mesmo próprio. Eis, em resumo, o que Heidegger, no contexto da analítica existencial, diz sobre o cuidado como ser do Dasein. Vejamos, agora, o que nos ensina a psicanálise freudiana e winnicottiana sobre a função estruturante do cuidado na constituição da subjetividade e nas diversas fases de seu desenvolvimento afetivo.
SEGUNDA PARTE: A FUNÇÃO ESTRUTURANTE DO CUIDADO À LUZ DA PSICANÁLISE
Também para a psicanálise, o cuidado tem uma função estruturante na constituição de nossa subjetividade, pois o trabalho de constituição e de desenvolvimento do sujeito humano se desenrola do momento da sua concepção até ao momento de sua morte e se manifesta sob diversas formas e modalidades de cuidado. Aqui, também, restringindo-me ao essencial, mostrarei a função estruturante do cuidado na constituição e desenvolvimento da subjetividade, lembrando, brevemente, o que Freud diz sobre a condição fundamental de desamparo do recém-nascido e, mais detalhadamente, o que Winnicott ensina sobre a importância do ambiente e dos cuidados maternos, indispensáveis para que a criança possa desenvolver suas tendências naturais e se tornar um self verdadeiro.
Quando a criança nasce encontra-se em um completo estado de desamparo, que Freud (1926/1982) designou com o nome de Hilflosigkeit, cuja significação revela a situação de total incapacidade em que se encontra o recém-nascido de poder ajudar a si mesmo. No verdadeiro sentido da palavra, o recém-nascido é um hilflos, ou seja, um desamparado. Ora, o estado de desamparo, na medida em que ratifica a incapacidade de autoajuda, torna-se, ao mesmo tempo, uma abertura para a alteridade, pois, nele, um grito é lançado na direção de um outro e, se esse grito ficar sem resposta, o desamparo tornar-se-á desespero e o recém-nascido não subsistirá. Essa abertura em direção ao outro é um apelo que o desamparado faz para ser cuidado e o cuidado aqui deve ser entendido (para usar a distinção heideggeriana) não como uma ocupação, mas como uma preocupação ou, melhor ainda, uma solicitude amorosa.
Freud (1926/1982), quando trabalha o conceito de Hilflosigkeit no texto "Inibição, sintoma e angústia", levando em consideração a imaturidade biológica e psíquica do recém-nascido e o fato de ser o homem, quando nasce, o mais desamparado de todos os animais, escreve: "por isso o valor do objeto único que pode proteger contra os perigos e substituir a vida intrauterina perdida é enormemente elevado... e cria a necessidade de ser amado que jamais abandonará o ser humano" (Freud, 1926/1982: 293). Aqui, com toda clareza, é dito que o cuidado, enquanto solicitude amorosa, em resposta à necessidade essencial que tem toda criança de ser amada, deve acompanhar o ser humano por toda a sua vida. Portanto, o cuidado como expressão de solicitude e de dedicação não só permite a subsistência do recém-nascido, mas, sob modalidades diversas, garante ao ser humano aquele sentimento de confiança e de segurança indispensável para enfrentar e vencer as dificuldades que não faltarão durante toda a sua existência. É o que Freud (1917/1982) confirma no encerramento de "Uma recordação de infância de Dichtung und Wahrheit" de Goethe:
Quando se foi o predileto indiscutível de sua mãe, conserva-se, durante toda vida, aquele sentimento de conquista, aquela confiança no êxito, que verdadeiramente e de modo muito frequente traz consigo o sucesso. Goethe poderia, com razão, ter colocado, em sua autobiografia, um cabeçalho mais ou menos como este: "A minha força tem suas raízes no modo como me relacionei com minha mãe" (Freud, 1917/1982: 266).
Mas é no trabalho teórico e clínico de Winnicott que melhor aparece essa função estruturante do cuidado na constituição da subjetividade da criança e nas principais fases de seu desenvolvimento afetivo. Ele não só confirma o que disse Freud, mas abre novas dimensões de inteligibilidade para uma melhor compreensão da função estruturante do cuidado não só na sua perspectiva teórica, mas, sobretudo, na sua perspectiva clínica.
Winnicott (1962/1983) defende que toda criança, desde o momento em que entra no misterioso mundo da vida, tem uma tendência natural inata ao amadurecimento e à integração. Todavia, embora essa tendência seja natural, paradoxalmente ela não pode ser realizada naturalmente, pois para isso ela precisa contar com um ambiente favorável que forneça os meios indispensáveis para o recém-nascido poder assegurar a sua continuidade de ser e se desenvolver como um ser vivo e criativo. Somente quando vê assegurada essa continuidade de ser e, desse modo, pode dar um sentido ao seu existir no mundo, a criança consegue sentir-se como um ser vivo e defrontar-se com as dificuldades e as ameaças da existência, entre as quais as mais duras e difíceis serão, seguramente, aquelas do sem-sentido. Tem razão Giacoia Jr. (2008) quando afirma: "o insuportável não é só a dor, mas a falta de sentido da dor e mais ainda: a dor da falta de sentido".
Inicialmente, o bebê, que não existe sozinho, forma uma só coisa com a sua mãe, numa modalidade de ser "dois em um", na qual ainda não se diferenciam o eu do não-eu. Winnicott (1945/1978) denominou de "dependência absoluta" essa fase do desenvolvimento na qual o bebê encontra, na "mãe suficientemente boa", o ambiente indispensável para satisfazer as suas necessidades fundamentais, tanto fisiológicas quanto psíquicas, e, assim, garantir a sua continuidade de ser. A mãe, por sua vez, também se encontra em uma situação de total adaptação às necessidades do filho, situação que Winnicott (1956/1978) denominou de preocupação materna primária. Nela, a mãe manifesta seu cuidado materno sob a forma de um holding, um modo de sustentar que significa muito mais do que uma mera sustentação física, pois tem como finalidade garantir a continuidade de ser do bebê, proporcionando-lhe um sentimento de segurança e de confiabilidade no "ambiente", sem o quê essa continuidade de ser seria impossível. Aqui não se pode deixar de notar o papel decisivo que, para Winnicott (1956/1978), tem o cuidado na emergência do sujeito. Portanto, é a mãe, enquanto ambiente facilitador, que torna possível ao bebê fazer a sua experiência de vida sem sofrer grandes rupturas e interrupções, para, desse modo, atualizar suas possibilidades e construir gradativamente o seu si mesmo, o seu verdadeiro self.
Quando encontra, no cuidado materno, esse ambiente facilitador, o bebê sente-se confiante e pode paulatinamente ir lançando mão de seu potencial criativo para começar a fazer a sua descoberta do mundo e dar sentido ao seu existir. Portanto, para Winnicott (1962/1983), é de importância decisiva não só a adaptação do bebê ao ambiente facilitador, mas também a adaptação do ambiente às necessidades e aos gestos criativos do bebê. Por causa do cuidado da mãe suficientemente boa, o bebê poderá vivenciar, no seu imaginário, uma ilusão de onipotência que lhe vem da união com a mãe, que para ele é onipotente, e começa, então, a se sentir capaz de criar seus objetos, primeiro no campo lúdico do brincar e, depois, no mundo da realidade externa.
Todavia, quando nesse estágio inicial do desenvolvimento acontecem falhas significativas nos cuidados maternos e o ambiente deixa de ser favorável, a continuidade de ser do bebê fica ameaçada pelo perigo daquilo que Winnicott (1962/1983) chamou de angústias impensáveis. Os ataques aos quais ele se expõe e submete por falta de um ambiente facilitador provocam traumas e reações excessivas que irão submergi-lo não apenas em um sentimento de frustração difícil de suportar, mas em uma verdadeira angústia de aniquilamento. Mesmo que ele não tenha consciência dessas falhas e dessas angústias, ele será marcado pela dor de seus resultados e pelo trauma de suas consequências (Santos, 2006).
Depois, na fase que Winnicott (1945/1978) denominou de "dependência relativa", a desadaptação gradual da mãe facilitará o processo de realização referente à aquisição do sentido de realidade. Essa fase também será marcada pela função estruturante do cuidado materno, indispensável para assegurar que a passagem da não-integração para a fase da integração aconteça também sem rupturas traumatizantes, de modo que o bebê possa continuar construindo um sentido de si mesmo em um mundo mais confiável. Se assim não for, no momento em que ele se confrontar com os objetos que lhe serão apresentados pelo objeto subjetivo, essa apresentação será vivida como uma invasão agressiva e, para se defender, ele se fechará numa atitude defensiva de natureza autista que poderá ter consequências desastrosas para o desenvolvimento de sua vida psíquica.
Todos esses estágios que compõem o processo do desenvolvimento afetivo não são assegurados nem garantidos ao bebê em virtude de uma estruturação inata e natural, são o resultado de várias conquistas que só os cuidados de uma mãe suficientemente boa podem assegurar.
Ainda na passagem da dependência absoluta para a dependência relativa, a experiência de ilusão que a criança vive alimentada pelas fantasias de onipotência confrontar-se-á com a experiência da desilusão, que a gradativa desadaptação da mãe-ambiente e o encontro com o mundo da realidade externa necessariamente provocam. Note-se porém que, nessa confrontação, é a fantasia ilusória de onipotência que é destruída e não a própria ilusão ou a capacidade imaginativa da criança, pois elas têm um grande poder criativo (Kupermann, 2008).
Assim sendo, a capacidade criativa da criança vai prosseguir se manifestando na criação dos objetos transicionais (Winnicott, 1975b), por meio dos quais ela começa a substituir seus objetos subjetivos da fase da dependência absoluta pelos objetos objetivamente percebidos da fase que se dirige rumo à independência. Além do mais, com a passagem do eu para a alteridade, surge, no processo de amadurecimento, uma área intermediária entre o mundo interno e o mundo externo, entre o objeto-subjetivo e o objeto objetivamente percebido, que Winnicott designou como um espaço potencial, onde a criatividade da criança vai ser exercida seja no seu brincar solitário, seja no brincar compartilhado, e, depois, no trabalho criativo do adulto por meio do qual serão enriquecidas as diversas formas simbólicas da nossa cultura: a ciência, a arte, a religião. Para dizê-lo com as palavras do próprio Winnicott : "É no brincar e somente no brincar que o indivíduo, criança ou adulto, pode ser criativo e utilizar sua personalidade integral: e é somente sendo criativo que o indivíduo descobre o [si mesmo], o self " (Winnicott, 1975a: 63).
Do que foi dito, pode-se afirmar que, na teoria winnicottiana, o cuidado e, especialmente, o cuidado materno são fatores estruturantes da subjetividade e têm um papel decisivo no desenvolvimento afetivo do ser humano.
TERCEIRA PARTE: RESSONÂNCIAS DA FUNÇÃO ESTRUTURANTE DO CUIDADO SOBRE A CLÍNICA PSICANALÍTICA
Levando em consideração o que a abordagem filosófica de Heidegger e as reflexões teóricas de Freud e Winnicott nos ensinaram sobre a função estruturante do cuidado, tanto na constituição da subjetividade do ser humano quanto no seu desenvolvimento afetivo, vamos refletir, agora, sobre as condições que nos permitem fazer da clínica psicanalítica uma verdadeira clínica do cuidado.
Em uma clínica do cuidado, o ato de clinicar não se reduz a uma mera ocupação profissional, pois clinicar é dedicar-se aos clientes com preocupação, solicitude e desvelo. Desse modo, o desdobramento heideggeriano da Sorge (cuidado) em Besorgen (ocupação) e Fürsorgen (preocupação e solicitude) abre perspectivas interessantes para uma melhor compreensão do cuidado clínico. Cada cliente, na sua singularidade e na singularidade de suas demandas, espera, de seu analista, um acolhimento afetuoso e uma dedicação solícita a fim de poder fazer cada vez mais seu o seu modo de ser e de existir, tornando-se, como queria Heidegger, um si mesmo próprio, ou, como diria Winncott, um self verdadeiro.
Para merecer o nome de uma clínica do cuidado, a clínica psicanalítica deveria, no mínimo, garantir três coisas: primeiro, assegurar que seus analistas se empenhem a fim de que aqueles que os procuram não só encontrem alívio para seus sofrimentos e conflitos, mas realizem suas possibilidades e capacidades criativas, dando, desse modo, um sentido ao seu existir e, quando necessário, nas patologias mais difíceis, dando "um sentido à própria dor do não-sentido" que tanto traumatiza o cliente contemporâneo. Em seguida, para ser uma verdadeira clínica do cuidado, a clínica psicanalítica deve incentivar a "presença sensível" (Kupermann, 2008) do analista, presença, ao mesmo tempo, "implicada e reservada" (Figueredo, 2009). E, finalmente, uma clínica psicanalítica deve, para merecer o nome de uma clínica do cuidado, transformar seu setting em um "ambiente facilitador e criador", no qual os analisandos sejam estimulados a buscar nele não só a cura de seus sintomas e conflitos, mas a construção de um estilo de vida que lhes seja próprio e autêntico.
Põe-se, então, a pergunta: a clínica psicanalítica - tal como foi elaborada por Freud e, ainda hoje, continua sendo adotada pela maioria de seus discípulos como uma "clínica padrão" - mereceu, e vem realmente merecendo, o nome de uma clínica do cuidado? Para essa questão, os estudiosos da clinica psicanalítica contemporânea certamente não têm uma resposta unânime, nem é preciso que a tenham, porquanto no século VI a.C., Heráclito de Éfeso já nos lembrava que "de coisas diferentes nasce a mais bela harmonia" (Diels, 1957: 24).
Para restringir-me ao essencial, vou focalizar apenas a questão da afetividade e a questão do setting como ambiente facilitador para a atividade criativa que nele se realiza. Comecemos pela questão da afetividade. Freud (1923 [1922]/1976), na definição mais completa que nos deixou da psicanálise, afirma que ela é um método de investigação do Inconsciente, uma teoria científica e um método terapêutico para o tratamento das neuroses. Ora, como, para ele, as psiconeuroses originavam-se de conflitos psíquicos que opunham o ego, como agente da defesa, às representações pulsionais recalcadas, é compreensível que o trabalho clínico elaborado para o tratamento das neuroses, durante todo o período do que se convencionou chamar de primeira tópica (1893-1920), tenha dado primazia ao trabalho interpretativo do analista, o qual, enquanto possuidor de um saber que lhe foi proporcionado pela teoria psicanalítica, estaria em condição de decifrar o sentido das representações recalcadas e livrar, assim, o cliente da dor e das consequências dos seus sintomas neuróticos.
Embora essa primazia do trabalho interpretativo tenha, de certo modo, tirado de foco a importância do papel da afetividade no ato clínico, papel este que foi fundamental no método catártico - pois os sintomas desapareciam quando a paciente conseguia verbalizar as lembranças ligadas ao trauma "com uma livre expressão de emoção" (Freud, 1925/1976: 33) -, a afetividade, desde os primórdios do trabalho clínico, marcou sua presença pelo viés da transferência. De fato, desde o método catártico, a transferência foi intuída por Freud (1925/1976) como algo "misterioso", cujo exercício ainda estava muito longe de ser uma conquista técnica do método terapêutico. Todavia, desde então, ele via nela algo de muito importante, pois todos os resultados do método catártico eram comprometidos quando o relacionamento do terapeuta com seu cliente era perturbado. Portanto, embora vista inicialmente como obstáculo e resistência, a transferência logo se tornou o instrumento mais importante do tratamento analítico; mas nem por isso a questão da afetividade vivida na transferência deixou de representar uma preocupação, e, por isso, Freud (1915/1969) sentiu necessidade de recomendar, em seus conselhos técnicos, que, durante o trabalho terapêutico, sempre fosse dada uma particular importância à frustração das gratificações, ao controle da afetividade, à neutralidade e à abstinência do analista. No texto "Recomendações sobre o amor de transferência" (Freud, 1915/1969: 224), ele resume essas preocupações do seguinte modo: "O tratamento deve ser levado a cabo na abstinência".
Essa ênfase dada ao controle das expressões afetivas e, mais do que ao controle, à abstinência e à indiferença, que também foi entendida como uma atitude de neutralidade do analista na sua relação com o cliente, provocou, ainda no tempo de Freud, uma reação crítica muito severa a esse modelo padrão da clínica psicanalítica. Quem liderou essa reação crítica foi Ferenczi, uma pessoa que teve um lugar de destaque nos primórdios do movimento psicanalítico, que foi analisado pelo próprio Freud e era um dos seus discípulos preferidos. No Diário clínico (Ferenczi, 1932/1990), que, no original alemão, intitula-se: Sem simpatia nenhum tratamento (Ohne Sympathie keine Heilung), Ferenczi afirma que a indiferença afetiva, ou, como algumas vezes também é chamada, a neutralidade do analista, facilmente pode transformar-se em insensibilidade, e o princípio de abstinência pode também facilmente camuflar uma atitude de hipocrisia no relacionamento do analista com seu cliente.
Daniel Kupermann (2008), fazendo uma incursão pelo Diário clínico (Ferenczi, 1932/1990) e, jogando com as palavras "álibi" e "libido", sugere que essa atitude de insensibilidade foi vista por Ferenczi como um "álibi" para inocentar a "libido do analista" no seu confronto com a libido do analisando durante o ato analítico. Claro que, para Ferenczi (1932/1990), a "implicação afetiva" do analista não dispensa a igualmente necessária "atitude de reserva", sem a qual o analista não poderia realizar seu ofício. Reconhecer que a afetividade tem um lugar importante no encontro analítico não significa dizer que, com ela, excessos não possam ser cometidos, e, como todo excesso, este também pode colocar em risco a possibilidade da análise. Por isso, Ferenczi, para salvaguardar a disponibilidade afetiva do analista, não esquece de enfatizar a importância da análise do próprio analista, pois, como já havia sido observado por Freud: "[...] cada psicanalista só vai até onde lhe permitem seus próprios complexos e resistências internas" (Freud, 1910/1982: 126). Por sua vez, Ferenczi (1932/1990: 154), no Diário clínico, afirma que a análise do analista deveria ser "a segunda regra fundamental da análise" e que "o melhor analista é um paciente curado". Sem falsos álibis, a sua figura deveria ser a de um adulto capaz de brincar, criar, entristecer-se e rir junto daquele a quem ele se dispôs tratar, tornando-se, assim, não só capaz de falar da criança que cada adulto foi, mas com a criança que em cada adulto se esconde.
Os conselhos técnicos de Freud (por muitos transformados em dogmas) foram, na sua maioria, conselhos negativos, pois tinham a finalidade de advertir o que se devia evitar no espaço da análise. Além disso, foi só depois que a introdução do narcisismo lhe forneceu a chave para melhor penetrar e compreender o mundo das psicoses e das doenças narcísicas, e, sobretudo, só depois da reformulação da teoria e do dualismo pulsionais, da introdução da pulsão de morte e da compulsão à repetição. Foi só depois dessas modificações teóricas que a atenção da clinica foi voltada para as patologias mais graves e para os chamados "casos difíceis".
Para esses, o modelo do tratamento não podia ser o mesmo usado no tratamento das neuroses, orientado basicamente para a resolução dos conflitos ligados à problemática edipiana. Precisamente porque Ferenczi, entre os analistas discípulos de Freud, foi aquele que mais se ocupou dos chamados "casos difíceis", compreende-se que ele tenha sentido necessidade de questionar o padrão clássico do método terapêutico elaborado por Freud. Na esteira de Ferenczi, Donald Winnicott, também familiarizado com pacientes mais profundamente regredidos, orientou sua clínica para oferecer aos seus clientes um "ambiente" mais favorável do que aquele por eles vividos na infância.
Isso nos leva a considerar a segunda condição que anunciamos como necessária para que a clínica psicanalítica possa ser considerada como uma clínica do cuidado: liberar do sofrimento a pessoa que padece e, ao mesmo tempo, transformar suas posições inibidas e atitudes restritivas em processos criativos. Para tanto, se faz necessário transformar o setting num ambiente favorável, onde o cliente possa, ao ressignificar seus traumas, readquirir sua capacidade criativa na qual e pela qual ele construirá um estilo de vida que lhe seja adequado. Mais do que um enquadramento do lugar onde se realiza o ato analítico, o setting-ambiente pode assumir diversas modalidades, em conformidade com as pessoas que nele procuram ajuda. Para os clientes muito regredidos, o analista deve, com sua presença, fazer as vezes da mãe suficientemente boa na fase da dependência absoluta. Luís Claudio Figueiredo (2009:135) vê nessa modalidade de presença uma "presença intersubjetiva transubjetiva", porque o outro que assim se apresenta é um outro-ambiente, que desempenha as funções de acolher e agasalhar quem precisa, "sustentando a barra" nas suas dificuldades. No início, esse outro, em condições especiais, é a mãe, mas pode depois ser igualmente a família, o grupo, o amigo, e - por que não também? - o analista no espaço da análise.
Para ressaltar essa dimensão criativa do espaço da análise, Winnicott (1975a), dando continuidade ao que Freud (1908/1982) escreveu num texto de rara beleza sobre "O poeta e o fantasiar" (Der Dichter und das Phantasieren), apela para o espaço potencial do brincar como origem da criatividade. O que leva Winnicott a valorizar o brincar na clínica, tanto aquele que é feito sozinho quanto aquele que é compartilhado, e a nele ver mais do que uma "brincadeira" cujo conteúdo pode ser interpretado pelo terapeuta, é que, em conformidade com a sua teoria sobre a constituição da subjetividade, o sentido do existir, que é uma expressão maior da autenticidade do self da criança, coincide com a possibilidade de um gesto criador.
A criatividade, por sua vez, depende da competência do ambiente em propiciar a passagem gradativa para a independência, a partir da qual a criança transitará em direção a uma contínua e gradual adaptação ao sentido de realidade por meio de um processo evolutivo que passa dos fenômenos transicionais para o brincar isolado, deste para o brincar compartilhado e, finalmente, para o trabalho criativo realizado nas experiências culturais, por meio das quais o homem contribuirá para enriquecer o patrimônio cultural e espiritual da Humanidade (Winnicott, 1975b).
Essa abertura para a criatividade pela mediação do lúdico que Winnicott destacou na clínica das crianças é também válida para a análise dos adultos, na medida em que se puder contar com a disponibilidade afetiva do analista. Ferenczi (1928/1992) resume essa disponibilidade com a palavra Einfühlung, que, etimologicamente, significa "sentir dentro do outro" e que, geralmente, se traduz por "empatia". O que o outro pensa, sente e deseja, antes de ser compreendido, precisa ser experimentado. No momento da empatia, o eu coincide momentaneamente com o outro e isso faz da empatia uma fonte de insight e dá ao afeto uma dimensão noética, na qual e por meio da qual se pode dizer: "só se conhece bem o que se ama". Quando se tem empatia, procede-se com mais tato e, mais facilmente, se tem simpatia; e, como disse Ferenczi (1932/1990): "sem simpatia, nenhum tratamento" (Ohne Sympathie, keine Heilung).
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Recebido em 28 de outubro de 2013
Aceito para publicação em 28 de novembro de 2013