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Tempo psicanalitico
versão impressa ISSN 0101-4838versão On-line ISSN 2316-6576
Tempo psicanal. vol.47 no.2 Rio de Janeiro dez. 2015
ARTIGOS
A dimensão ética na produção do conhecimento e na psicanálise
The ethical dimension in knowledge production and in psychoanalysis
Andrea Fricke Duarte*; Edson Luiz André de Sousa**
Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS - Brasil
RESUMO
Este artigo discute algumas questões relacionadas à ética em processos de criação no âmbito da pesquisa científica. Ele faz três proposições para problematizar o campo de produção de conhecimento, principalmente a questão da linguagem como um não-lugar, evidenciando uma operação negativa que dialoga tanto com a psicanálise como com a arte e a crítica. Foi escrito pensando nas possibilidades de abertura e nos enfrentamentos éticos que perpassam toda construção do pensamento, principalmente sobre a especificidade do saber inconsciente.
Palavras-chave: pesquisa, ética, psicanálise, linguagem, negativo.
ABSTRACT
This article discusses some issues related to ethics in creation processes in scientific research. It makes three propositions to question the field of knowledge production, especially the question of language as a non-place, showing a negative operation that dialogues with psychoanalysis as much as with art and criticism. It was written thinking about the possibilities of opening and ethical clashes that permeate every construction of thought, mainly about the specificity of the unconscious knowledge.
Keywords: research, ethics, psychoanalysis, language, negative.
Este breve artigo discute algumas questões relacionadas à ética em processos de criação no âmbito da pesquisa científica (não discute o tema especificamente). Busca, assim, pensar a ética na dimensão do estudo e da produção do conhecimento, considerando que daí se engendram arranjos que envolvem modos de ser sujeito, problematizando as possibilidades de compartilhamento social e a construção dos saberes nos processos de subjetivação contemporâneos. Foi escrito pensando nas possibilidades de abertura e nos enfrentamentos éticos que perpassam toda construção do pensamento e se debruça, principalmente, sobre a especificidade do saber inconsciente. De que modo a psicanálise transita na academia enquanto produção de conhecimento? Quais são os desafios de se pesquisar e produzir um pensamento hoje? Enfatizamos a busca mesma de um pensamento que se interroga ao se colocar ao lado das práticas artísticas que de diferentes maneiras fazem questão à pesquisa psicanalítica.
Para iniciar, gostaria de trazer a reflexão proposta pelo pensador Michel Foucault (1985) já na abertura do seu livro As palavras e as coisas, quando o autor dá um destaque especial ao papel da linguagem. Será a partir de uma imagem retirada de um texto de Jorge Luis Borges, um texto que enumera animais sem qualquer familiaridade uns com os outros, e que por essa razão produz um estranhamento, que Foulcault desenvolverá seus argumentos: o texto de Borges cita "uma certa enciclopédia chinesa" na qual está escrito: "os animais se dividem em: a) pertencentes ao imperador, b) embalsamados, c) domesticados, d) leitões, e) sereias, f) fabulosos, g) cães em liberdade, h) incluídos na presente classificação, i) que se agitam como loucos, j) inumeráveis, k) desenhados com um pincel muito fino de pelo de camelo, l) et cetera, m) que acabam de quebrar a bilha, n) que de longe parecem moscas" (citado por Foucault, 1985, p. 5).
Ver reunidos seres tão distintos numa mesma série provocará riso, escreve Foucault, mas, em seguida, o mesmo riso alerta para uma perturbação do pensamento. Foucault observa que essa enumeração absurda põe em cena uma impossibilidade do pensamento, uma vez que não conseguimos alcançar um sentido lógico na reunião desses seres sugerida por Borges. Então, ele pergunta: de que impossibilidade se trata? E em seguida responde que "O que transgride toda imaginação, todo pensamento possível, é simplesmente a série alfabética (a, b, c, d) que liga a todas as outras cada uma dessas categorias". Mas não é a "extravagância de encontros insólitos" o que desperta certo mal-estar, mas a ordem, a ordenação desses seres que impede o pensamento. Uma sistematização de coisas que não estariam unidas a não ser pela própria vontade de sistemátizá-las. Para Foucault, "a monstruosidade que Borges faz circular na sua enumeração consiste, ao contrário, em que o próprio espaço comum dos encontros se acha arruinado". O impossível, vai dizer Foucault,
não é a vizinhança das coisas, é o lugar mesmo onde elas poderiam avizinhar-se: Os animais "i) que se agitam como loucos, j) inumeráveis, k) desenhados com um pincel muito fino de pelo de camelo", onde poderiam eles se encontrar a não ser na voz imaterial que pronuncia sua enumeração, a não ser a página que a transcreve? Onde eles poderiam se justapor, senão no não-lugar da linguagem?" (Foucault, 1985, p. 6).
Com essa primeira indicação de que a linguagem é o lugar privilegiado de habitar o lugar do não-lugar, ampliamos a nossa capacidade de entendimento quando materializamos no espaço um lugar para o negativo, ou seja, através da linguagem se opera uma presença negativa, a qual, segundo Safatle (2006, p. 25), é a própria experiência do saber inconsciente, o que funda radicalmente seu discurso, em oposição ao saber positivo da consciência. Safatle encontra uma indicação de Lacan muito próxima da questão que animou Foucault:
Para que o reconhecimento do inconsciente seja possível, faz-se necessário um modo de negação que seja estrutura de "aparição do ser sob forma do não ser (de n'être pas)" (Lacan, p. 886). Ou seja, a palavra que porta o inconsciente não é uma nomeação positiva, mas organiza-se como uma negação capaz de objetivar o ser do sujeito (Safatle, 2006, p. 49).
Amparados ou desamparados, agora, pela materialidade da palavra, enquanto suporte da negatividade constitutiva do pensamento analítico e inconsciente, encontramo-nos no solo que funda nosso mal-estar, mas que também porta em si uma potência. Quando Foucault localiza a linguagem como o lugar do não-lugar, ele situa uma posição já moderna em relação à linguagem, na qual não há mais representação, o que Barthes (2004, p. 41) nomeia no livro O grau zero da escrita como a perda da instrumentalidade quando, ao contrário da instrumentalidade da escrita clássica, a poesia moderna destruía as relações da linguagem e reduzia o discurso a uma relação de palavras (Barthes, 2004, p. 44).
No capítulo IX - O homem e seus duplos, Foucault (1985, p. 321) vai reiterar essa mudança de posição, ou melhor, a passagem do pensamento clássico para o pensamento moderno, em relação ao qual ele vê em Nietzsche o primeiro a aproximar a "tarefa filosófica da reflexão radical sobre a linguagem". Tarefa pela qual o escritor literário Mallarmé1 se lança: "no seu balbucio, envolve todos os nossos esforços hoje para reconduzir à coação de uma unidade talvez impossível o ser fragmentado da linguagem" (Foucault, 1985, p. 321). Nietzsche formulará e manterá a pergunta "Quem fala?", segundo Foucault respondida por Mallarmé "dizendo que o que fala é, em sua solidão, em sua vibração frágil, em seu nada, a própria palavra - não o sentido da palavra, mas o seu ser enigmático e precário" (Foucaul, 1985, p. 322).
É fundamental compreender essa virada da linguagem a partir do século XIX, quando a ordem representacional do mundo desaparece, nos diz Foucault, e acontece essa passagem da linguagem clássica que representava os seres para a situação moderna, na qual não há mais que a palavra "em sua vibração frágil", rep etindo as palavras de Mallarmé. Esse nada da palavra instaura um lugar negativo. Habita então a linguagem essa espécie de vazio, o oco da letra, onde situamos essa presença negativa e perturbadora, capaz de suspender, de fazer faltar o pensamento.
Pensar a palavra não mais representando o mundo, mas olhando para o vazio que ela presentifica no estatuto da letra nos leva diretamente para duas maneiras diversas de conduzir pensamento (o que seria isso?). Segundo Safatle (2006), para adentrar no pensamento lacaniano é necessário fazer uma distinção entre o conceito e a letra, ou seja, entre a conceitualização e a formalização, uma vez que Lacan vai apostar na formalização dizendo que "trata -se de passar por uma outra forma que a apreensão conceitual" (Lacan, citado por Saflate, 2006, p. 36). Essa escolha de Lacan é importante porque tem uma abertura que pode produzir tanto matema como o poema, nos diz Safatle, dialogando dessa maneira com as experiências estéticas que nos interessam.
A investigação da materialidade das palavras foi experimentada no Brasil pelos concretistas, os irmãos Haroldo e Augusto de Campos e Décio Pignatári, que juntos escreveram um livro chamado a Teoria da poesia concreta (2006). Nesse livro publicado pela primeira vez em 1965, seguindo os passos de Mallarmé eles buscavam nas palavras "O contato direto com a experiência que originou o poema" (Campos, Pignatari & Campos, p. 56), se lançando nesse novo projeto para a linguagem. Alguns anos depois, ainda pensando as questões da poesia e da poética, nos detemos numa proposição de Haroldo de Campos que veremos no decorrer deste texto.
Diante da linguagem como o lugar do não-lugar e a instauração de uma nova relação com ela, foram os artistas e poetas os primeiros a se lançarem em experimentações diversas, as quais produziram e ainda têm produzido novas configurações no pensamento. Foucault vai dizer que essa dispersão da linguagem está ligada, de um modo fundamental, a esse acontecimento arqueológico que se pode designar pelo aparecimento do Discurso (Foucault, 1985, p. 323).
Seguindo as pegadas de Foucault, poderíamos transpor a discussão da passagem da linguagem clássica para a linguagem moderna para questionar nossas práticas de escrita e as consequências dessa passagem no modo de construção do conhecimento. Algumas implicações éticas e também estéticas necessariamente se colocam. Para inicar, então, uma reflexão sobre ética na pesquisa à luz de novos desafios, propomos três pontos que nos parecem fundamentais abordar. O primeiro deles diz respeito ao ponto de partida de toda pesquisa: é preciso reconhecer que partimos de e para uma interrogação para a qual desconhecemos a resposta. Aqui quem nos instiga a pensar é o crítico literário Maurice Blanchot (2001, p. 43) quando se interroga sobre o que é uma questão. Ele diz que uma questão seria "o local onde a palavra sempre se dá como inacabada", sendo a palavra inacaba aquela que porta um vazio. Por portar essa incompletude, Blachot diz que a questão "oferece-nos a coisa e oferece-nos o vazio que nos permite não tê-la ainda ou tê-la como desejo", afirmando que a questão é o desejo do pensamento. Esse seria o primeiro ato de coragem, o lançamento em algo que ainda não sabemos, mas apostamos no advir, pois esse desejo do pensamento vai lançar ao horizonte da pesquisa não a busca por confirmação de verdades pré-estabelecidas, mas justamente se colocar no que Foucault chamou de o impensado : aquilo que coloca o sujeito, até poderíamos dizer, em "maus lençóis". Foucault (1985) vai dizer que:
Na experiência moderna, a possibilidade de instaurar o homem num saber, ou o simples aparecimento desta figura nova no campo da épistemê implicam um imperativo que importuna interiormente o pensamento; [...] o essencial é que o pensamento seja, por si mesmo e na espessura do seu trabalho, ao mesmo tempo saber e modificação do que ele sabe, reflexão e transformação do modo de ser daquilo sobre o que ele reflete. Ele põe em movimento, desde logo, aquilo que toca: não pode descobrir o impensado, ou ao menos ir em sua direção, sem logo aproximá-lo de si - ou talvez ainda, sem afastá-lo sem que o ser do homem, em todo o caso, uma vez que ele se desenrola nessa distância, não se ache, por isso mesmo, alterado (Foucault, 1985, p. 343, grifos nossos).
Portanto, o primeiro desafio ético de uma pesquisa seria enfrentar o seu lançamento em direção ao desconhecido, reconhecendo que haverá necessariamente uma transformação em jogo. O saber com que se tem como ferramenta se põe em movimento e, de modo simultâneo, modifica pesquisador e pesquisado, sujeito e objeto - e neste processo de busca percebemos ao mesmo tempo a instauração de um novo conhecimento, pois, como diz Foucault, uma alteração acontece.
Em segundo lugar, a pesquisa que parte da produção de subjetividade sabe que nada está dado como natural e que as coisas não existem desde sempre, são frutos de uma construção histórica e social a qual, ao mesmo tempo que se produz, acaba por instaurar os elementos que a configuram. No campo da psicanálise, a revolução mesma provocada por Freud é justamente instaurar a noção de inconsciente como um saber que não se sabe. De um isso, do qual buscamos os traços, na linguagem dos sonhos, dos chistes e nos atos falhos, e com Lacan, na sua releitura de Freud, com a linguagem, nos discursos, vamos encontrando posições enunciativas, sempre na busca de um sujeito que fale. O estatuto do sujeito e do objeto, aqui, marca-passo ético da pesquisa e do trabalho analítico, é a constatação de que o pesquisador em psicanálise cria seu próprio objeto, instaura o sujeito analítico desde a invenção freudiana da psicanálise.
Portanto a categoria de verdades universais cai por terra, e a única possibilidade de afirmar uma verdade é compreendendo dela sua versão singular, portanto parcial e falha, desde uma lógica de um todo. Safatle (2006, p. 32) vai dizer da categoria de sujeito como uma resistência, e Lacan e também Adorno vão sustentar o princípio de subjetividade, embora desprovendo-o de um pensamento da identidade. Safatle propõe, para um melhor entendimento, o embate entre o sujeito e objeto visto sob a ótica de que "haveria uma experiência de descentramento, fundamental para a determinação da subjetividade, que só se daria mediante a identificação não narcísica entre sujeito e objeto, para além das projeções do eu sobre o mundo dos objetos" (Safatle, 2006, p. 33), indicando uma importante noção que nos interessa aqui: o sujeito deve ser levado a reconhecer no interior do si mesmo a opacidade do obs-tante (Gegenstante). Ou seja, reconhecer que todo sujeito traz em si um núcleo do objeto.
Safatle (2006) vai nos alertar para as consequências disso para um pensamento da ética e da estética, reforçando nossa preocupação com o tema aqui em debate. E mais, ele insiste na arte como espaço de reflexão sobre os modos de formalização que possa indicar o limite para a prosa comunicacional do conceito, e por isso ele nos convoca a assumir a arte como um setor privilegiado da história da racionalidade e dos modos de racionalização (Safatle, p. 37). Ou seja, é preciso assumir as práticas artísticas como um lugar legítimo de produção de conhecimento.
O sujeito para a psicanálise, como aquele que resiste à positividade da consciência, que reconhece em si "um núcleo do objeto" e que modifica a si mesmo quando se lança na busca de um desconhecido, necessariamente invoca uma dimensão do particular. Quando em busca no processo da verdade, emerge uma dimensão particular da verdade, aí há uma possibilidade de sujeito. Será partindo de uma concepção pós-cartesiana e pós-lacaniana que o pensamento des-liga a conexão heideggeriana do ser e a verdade e institui o sujeito não como suporte e origem, mas sim como fragmento de processo de uma verdade (Badiou, citado por Eidelsztein, 2006, p. 108).
Esse caráter de fragmentário, parcial e, portanto, singular se opõe ao universal de um programa de racionalidade ao qual a psicanálise resiste. No caso do sujeito, diz Safatle (2006, p. 32), essa não identidade encontra seu espaço privilegiado de manifestação por meio da experiência do corpo, da pulsão e dos seus modos de subjetivação.
Esse seria o segundo desafio ético, a assunção de que toda produção de conhecimento enfrenta um caráter de parcialidade e incompletude. Essa descoberta vai auxiliar a psicanálise em sua defesa ética, ao ser esta que sabe do caráter forjado dos discursos e que dá a ver, portanto, a construção precária do seu saber e o constante mal-estar ao qual está submetida, quando, em defesa do inconsciente, precisa afimar um saber que não-sabe de si. Esse segundo desafio ético vai nos levar diretamente para um terceiro.
O embate no qual nos vemos tomados na questão ética na pesquisa e na produção do conhecimento é esse que se depara com a produção de singularidade versus o social e a possibilidade de compartilhamento do saber. Quando se quer estar em diálogo com a criação, seja a produção de um objeto de arte, seja a produção de um discurso, ou de um pensamento, faz-se necessária a abertura para a incompletude e assim criar um espaço de habitação para o outro, para o diferente, para o leitor, ou seja, para aquilo que vai desestabilizar o dito/escrito, o que está fora do meu alcance, o que está dado em processo e/ou inacabamento. Algo se instaura nesse ato de tomar qualquer produção como incabada e faltante, pois relança o saber naquilo que o funda, a interrogação que põe à prova todo dito.
Ao inserir no trabalho um espaço de desestabilização enfrento um novo desafio. Para Valéry (1938/2007, p. 183), tanto no trabalho do pensamento erudito quanto no do pensamento do artista, existe uma espécie de "pressentimento das reações externas que serão provocadas pela obra em formação: dificilmente o homem está sozinho" ele diz, colocando em cena a dimensão daquilo que está como que exterior ao trabalho. Diz ele ainda que: "o espírito vai e volta incessantemente do Mesmo para o Outro; e modifica o que é produzido por seu ser mais interior, através dessa sensação particular de julgamento de t erceiros" (Valéry, 1938/2007, p. 183), afirmação na qual se reconhece que há um efeito das obras naquele que vai ser o leitor, ou o ouvinte, ou ainda o expectador, reunidos por Valéry pelo nome de consumidor. Percepção muito próxima de Freud (1921/1989), no seu texto Psicologia de Grupo e análise do ego, de 1921, no qual Freud reconhece no trabalho intelectual, assim como Valéry, que embora
decisões do domínio do pensamento e as momentosas descobertas e soluções de problemas são só possíveis ao indivíduo que trabalha em solidão, permanece em aberta a questão, além disso, de saber quanto o pensador e o escritor, individualmente, devem ao estímulo do grupo em que vivem, e se eles não fazem mais do que aperfeiçoar um trabalho mental em que os outros tiveram parte simultânea (Freud, 1921/1989, p. 108).
Ou seja, no próprio desenvolvimento do trabalho do pensamento, seja ele intelectual ou do artista, como nos pontuam Valéry e também Freud, habita uma dimensão exterior que compõe o trabalho e que suspende momentaneamente a dicotomia singular/coletivo. Podemos nos perguntar quando o singular adquire essa qualidade de ser passível de compartilhamento. Para Haroldo de Campos (1977, p. 19), será no campo da criação, que envolve a pensar a arte como horizonte do provável, ou como obra de arte aberta. Diz ele que se instaura nesse projeto de obra de arte "a categoria do provisório a sua própria categoria da criação, pondo em questão constantemente a idéia mesma de obra conclusa, instalando o transitório onde, segundo uma perspectiva clássica, vigeria a imutabilidade perfeita e paradigmal dos objetos eternos". Ao acolher essa nova perspectiva, algo fundamental entra em questão: a leitura do trabalho. Para Haroldo de Campos, necessariamente, o leitor passa a ocupar um novo lugar na obra de arte aberta:
No caso da obra de arte provável ou aberta, a informação estética ficará, ademais, inseparável de seu consumo: entre a realização e consumo da informação estética, então se estabelece uma relação arbitrada no momento pelo intérprete-operador, co-produtor da informação, e esta já não será a mesma numa segunda ou numa terceira (e assim por diante) execuções (Campos, 1977, p. 23, grifos nossos).
Duas noções fundamentais são colocadas e vão dar sustentação a certa mobilidade ao pensamento: evidenciar o caráter processual e de inacabamento de uma ideia e necessariamente problematizar a relação entre a informação e o seu consumo, no caso a estética, colocada aqui por Campos, em que a multiplicidade entra em cena com a noção de que toda leitura é uma escritura, suspende por um instante a dicotomia particular/coletivo e nos instiga também a problematizar a questão da autoria, tema para outros debates.
Para retomar e finalizar, retomamos os três desafios éticos aqui propostos: o encontro com o impensado, o deparar-se com a parcialidade e inacabamento do pensamento e, em terceiro, a abertura do trabalho para a exterioridade, no caso o leitor. Acreditamos que esses desafios nos foram colocados também na própria escrita deste texto e que eles implicam numa abertura radical e necessária na experiência do conhecimento.
Referências
Barthes, R. (2004). O grau zero da escrita. São Paulo: Martins Fontes.
Blanchot, M. (2001). A conversa infinita - a palavra plural (palavra de escrita). Vol.1. São Paulo: Escuta.
Campos, H. (1977). A arte no horizonte do provável. São Paulo: Perspectiva.
Campos, H. (2004). Galaxias. São Paulo: Editora 34.
Campos, A. Pignatari, D. & Campos, H. (2006). Teoria da poesia concreta - textos críticos e manifestos 1950-1960. São Paulo: Ateliê Editorial.
Duarte, A. F. (2011). H H - Da dispersão à suspensão. Dissertação de Mestrado. Curso de Pós-graduação de Psicologia Social e Institucional, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS.
Eidelztein, A. (2006). La topología en la clínica psicoanalítica. Buenos Aires: Letra Viva.
Freud, S. (1921/1989). Psicologia de grupo e análise do ego. In Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, v. XXIII. Rio de Janeiro: Imago.
Foucault, M. (1985). As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas. São Paulo: Martins Fontes.
Foucault, M. (2006). Estruturalismo e pós-estruturalismo. In Da Motta, M. B. (Org.), Ditos e Escritos 2. Rio de Janeiro: Ed. Forense Universitária.
Safatle, V. (2006). A paixão do negativo - Lacan e a dialética. São Paulo: Editora UNESP.
Valéry, P. (1938/2007). Variedades. Iluminuras: São Paulo.
Artigo recebido em: 12/12/2014
Aprovado para publicação em: 02/03/2015
*Psicóloga. Artista. Mestre do Programa de Pós-Graduação de Psicologia Social e Institucional da UFRGS (2011). Doutora (2015) do Programa de Pós-Graduação de Psicologia Social e Institucional da UFRGS. Membro LAPPAP, Laboratório de Pesquisa em Psicanálise, Arte e Política UFRGS.
**Psicanalista. Analista Membro da Associação Psicanalitica de Porto Alegre (APPOA). Atualmente é professor titular do departamento de psicanálise e psicopatologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Doutor em Psicanálise e Psicopatologia pela Universidade de Paris VII. Professor do PPG Psicologia Social e PPG de Artes Visuais UFRGS. Pós-Graduação em Psicanálise Clínica e Cultura (UFRGS). Coordena junto com Maria Cristina Poli o LAPPAP Laboratorio de Pesquisa em Psicanálise, Arte e Politica/UFRGS.
1Marco histórico do poema Um jogo de dados (Un coup de dés) (1897), que é um longo poema de versos livres e tipografia revolucionária que constitui a declaração trágica da impossibilidade de atingir o estabelecido no livro.