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Tempo psicanalitico
versão impressa ISSN 0101-4838versão On-line ISSN 2316-6576
Tempo psicanal. vol.49 no.1 Rio de Janeiro jun. 2017
ARTIGOS
"Pergunte ao cavalo!": sobre o inconsciente freudiano
"Ask the horse!": on the freudian unconscious
Betty Bernardo FuksI*
IUniversidade Veiga de Almeida - Brasil
RESUMO
A partir de um chiste, registrado numa carta de Freud a Fliess datada em 7 de agosto de 1898, este artigo analisa dois momentos importantes da conceituação do inconsciente - o primeiro fundado no campo do sentido e um outro referido à força indomável da pulsão e em relação à qual Freud enunciou o imperativo de drenagem d'águas do rio, que é um "trabalho da cultura", resumido na fórmula Wo Es war, sol Ich werden. Nosso propósito se estende à demonstração de diferentes estratégias clínicas que contribuíram para esse percurso teórico. Seguindo essas coordenadas, introduziremos, ao final, uma discussão sobre o futuro da psicanálise através de um pequeno conto de Franz Kafka.
Palavras-chave: inconsciente, clínica psicanalítica, cultura.
ABSTRACT
A joke recorded in a letter from Freud to Fliess, dated august 7th 1898, inspired this article that analyses two important moments of the construction of the unconscious concept - the first is founded on meaning and the second on the indomitable force of the drive that led Freud to enunciate the imperative of drainage of the river water, which is a "work of culture", summarized in the formula Wo Es war, sol Ich werden. Our purpose extends to a demonstration of the different clinical strategies that contributed to the development of this theoretical path. Following these coordinates, we introduce at the end a discussion about the future of psychoanalysis through a short tale written by Franz Kafka.
Keywords: unconscious, psychoanalytical clinic, culture.
O princípio de Itzig
Barroca e flamejante, no dizer de Erik Porge (1988, p. 9), A correspondência completa de S. Freud para W. Fliess (1887-1904) (Masson, 1985/1986) constitui um testemunho da pré-história da psicanálise. Entre as cartas endereçadas pelo pai da psicanálise ao dileto amigo encontram-se algumas das reflexões mais importantes sobre a emergência do conceito de inconsciente. Na carta datada de 6/12/1896, pela primeira vez Freud se refere ao termo inconsciente no momento em que formula as instâncias constitutivas da primeira tópica. Em 10/9/1898, chega a situar uma data hipotética à constituição da "outra cena", no período de formação de uma psiconeurose. Entretanto, é na missiva de 7/7/1898 que o leitor encontrará a melhor apresentação do futuro conceito. De maneira absolutamente fora de qualquer padrão cientificista, se vale de um Witz, que é expressão da mais social de nossas atividades psíquicas, de acordo com o seu livro "O chiste e sua relação com o inconsciente" (1905/1976), para explicar do que se trata no inconsciente.
Discorrendo sobre o estado no qual se encontrava "A interpretação dos sonhos", a obra que lhe exigiu expor o mais íntimo e estranho de si mesmo, Freud (1900/1976, p. 320) escreve: "Meu trabalho foi inteiramente ditado pelo inconsciente, segundo o famoso princípio de Itzig, o cavaleiro dominical: Para onde estás indo, Itzig? - E eu sei? Não tenho a menor ideia. Pergunte ao meu cavalo!".
Ditado pelo Unbewusst, palavra para inconsciente em alemão e que significa literalmente insabível1, conforme enfatiza Jean-Jacques Moscovitz (1991, p. 12) lembrando que o consciente é um saber que se sabe e o inconsciente um saber que não sabe. Nota-se que o inconsciente é apresentado na carta a Fliess como um saber que o sujeito não sabe - "E eu sei?". Caso seja possível fazer um caminho inverso e retornar à carta à luz da elaboração de Lacan (1975/1982, p. 190) do termo Unbewusst, "testemunho de um saber no que em grande parte escapa ao ser falante", diria que a alusão de Freud ao princípio de Itzig - pergunte ao cavalo - introduz, avant la lettre, mas de modo categórico, o real lacaniano - o ponto do não saber sobre o sexo e a morte - em torno do qual o inconsciente orbita.
O Witz sobre o cavaleiro e o cavalo errante voltava seguidamente ao espírito de Freud, como se a obediência do cavaleiro à astúcia do cavalo continuasse a agir através do relato. No próprio livro sobre os sonhos o utiliza para dizer da passagem do desejo inconsciente de uma situação de incomunicabilidade a um tipo de revelação. O sonhador, o próprio Freud (1900/1976, p. 241-242) diz estar
montado em um cavalo cinzento, inicialmente com medo e desajeitado, como que apenas reclinado sobre ele. Então, encontro um de meus colegas, P., vestido à tirolesa e montado ereto sobre seu cavalo, que chama minha atenção para alguma coisa (provavelmente minha maneira incorreta de montar). Me acomodo sobre aquele inteligentíssimo corcel da melhor forma e me percebo estar sentido como em casa sobre ele [...]. Desta maneira, cavalgo apertado entre dois carros de transporte2.
Em seguida, Freud passa a revelar as aberturas para o infinito do desejo, sem o menor constrangimento: o cavalo altamente inteligente é interpretado como uma paciente que lhe fora roubada pelo Dr. P. "Mas na realidade como o cavalo da anedota do cavaleiro dominical [a paciente] ela me levou onde quis" (Freud, 1900/1976, p. 246). A sentença "me sentir bem à vontade lá em cima" é associada à posição que o próprio sonhador ocupara na casa da paciente antes de ser substituído por P., o amigo que gostava de se dar ares de importância desde que lhe tirara a paciente.
Nota-se que o desejo de voltar a analisar a paciente e, assim, recuperar o reconhecimento da família, é lido a partir da relação entre os elementos oníricos e sua tradução de relação simbólica. Freud se abstém de reduzir a interpretação do sonho às motivações típicas de símbolos universais. O que lhe interessa no trabalho de interpretação de um sonho é a motivação singular de quem sonhou (Freud, 1900/1976, p. 358). Sendo assim, pode-se dizer que a tradução cavalo/paciente reflete, de modo preciso, a especificidade da leitura psicanalítica do sonho, uma escrita de imagem. Um rébus, sistema ilimitado de letras combinatórias que sempre deixa lugar nas sombras, ali onde começa um "novelo de pensamentos oníricos que não se deixa deslindar, mas que também não forneceu outras contribuições ao conteúdo onírico. Este é o umbigo do sonho, o ponto em que ele se assenta no não conhecido" (Freud, 1900/1976, p. 519).
Para esclarecer um pouco melhor esse ponto é preciso que tomemos consciência de que o inconsciente encontra-se definido no livro dos sonhos como "o psíquico propriamente real, tão desconhecido para nós em sua natureza interna quanto o real do mundo externo; ele nos é dado pelos dados da consciência de maneira igualmente quanto o mundo exterior pelas informações de nossos órgãos sensoriais" (Freud, 1900/1976, p. 600). Portanto, não é difícil sustentar que o inconsciente não é apenas um saber não sabido, mas é também composto do que resiste à simbolização. Contudo, sua legibilidade ocupou um lugar privilegiado na Primeira Tópica freudiana, na qual o aparelho psíquico, conforme a leitura de Jacques Derrida, é figurado como uma escrita que se tece de diferenças, de trilhamentos e envia, delega representantes e mandatários compreendidos apenas a posteriori (Derrida, 1967/1971). A escrita psíquica demanda leitura, interpretação, e a arte de lê-la exige do leitor a tarefa infinita de reescrever a linguagem do Outro.
Nos anos cinquenta, em oposição aos analistas que deixaram de lado a importância da descoberta do inconsciente como marca estrutural da divisão do sujeito, fadada à tradução singular de cada analisando, Lacan (1966/1998) desenvolveu uma leitura singular sobre esse conceito fundamental, apoiado em elementos da linguística. Transforma o conceito de significante, vindo de Saussure, para torná-lo útil a seus propósitos de elevar à máxima potência a leitura da letra que Freud outorgara no livro sobre os sonhos. Embora tenha recorrido a outro campo do saber para reler o modelo freudiano de leitura do inconsciente e explicar seu funcionamento, Lacan (1976-1977, p. 25) soube relativizar o uso destas mesmas importações: "eu não faço linguística, mas linguesteria", dizia em alto e bom tom. Ou seja, devemos entender que a importação lacaniana do pensamento de Saussure à psicanálise teve a finalidade de reconduzi-la aos seus próprios fundamentos.
Assim, o conceito de significante na obra lacaniana aparece solidário a um de seus aforismas mais célebres e importantes: "o inconsciente é estruturado como uma linguagem". Segundo Machado (2000, p. 114-130), o uso da partícula "como" elimina qualquer identificação pura e simples da psicanálise com a linguagem considerada pela linguística, o discurso. A autora reconhece que a marca enigmática deixada por Lacan nesse "como" demanda decifração, uma vez que o autor não a explica, e, em alguns de seus seminários, ele aproxima essa mesma linguagem da escrita, por meio da noção de letra. As referências à escrita, a noção de letra, rastro, escrita, pontuação etc. indicam, para Machado (2000), que Lacan soube se manter fiel e levar adiante a ideia freudiana de que o inconsciente é uma escrita. Principalmente no que diz respeito à escuta analítica, que não é outra coisa senão uma espécie de leitura e, como tal, implica uma escrita de certos sinais, nomeados de significantes, que associados com outros produzem efeitos de significação, e de outros sinais, "que constituem inscrições no corpo do falante, carentes de significação, isoladas: letras, traços sem sentido que não poderão jamais ser significados" (Souza Leite, 2002).
Essa definição facilita apreender o paradoxo da lição que Lacan (1975-1976, p. 13) deu aos estudantes americanos, quando demonstrou a viabilidade de abordagem do inconsciente: "desde Freud, a psicanálise é uma questão de escrita por mais que pensemos tratar-se de uma fala". Depreende-se dessa assertiva que o caráter visível da escrita, bem como sua tendência a passar desapercebida, é o que permite abordar o insabível.
De todos os modos, ao se valer da figura de um cavaleiro que aposta no saber do cavalo - "Pergunta ao meu cavalo!" - para apresentar sua ideia ao colega, Freud coloca em destaque a importância da fala na experiência clínica, base da concepção de que o inconsciente está fundado na linguagem. Isso é o que testemunha, também, sua monografia sobre as afasias, escrita no início da década anterior à fundação oficial da psicanálise. Em Sobre a concepção das afasias: um estudo crítico, Freud (1891/2013) desconstrói a concepção dominante sobre a origem das afasias - lesões neurológicas e fisiológicas - e se opõe às tentativas de reduzir as diversas funções da fala a regiões do cérebro, argumentando que o "aparato linguístico" deveria de ser compreendido como essencialmente unitário. Como faz notar Heller-Roazen (2005/2010, p. 119), com uma explicação das funções e disfunções do "aparelho da língua" em termos explicitamente textuais, Sobre afasias antecipou muitas das investigações posteriores de Freud que "caracterizam os processos conscientes e inconscientes da psique como forma de inscrições".
O cavaleiro e a força do cavalo
Pouco tempo depois desse estudo sobre as afasias, Freud (1950 [1895]/1976) em Projeto de uma psicologia científica introduz, pela primeira vez, a questão energética que se encontra em jogo na constituição do psiquismo, designando como complexo do próximo (Nebenmensch ) a cena em que o recém-nascido estabelece o primeiro e rudimentar laço social com o Outro que atende ao seu grito de socorro frente aos estímulos internos e externos que o acossam. Por essa impossibilidade de levar a cabo uma ação específica às excitações, o autor identifica que "o desamparo inicial dos seres humanos é a fonte primordial de toso os motivos morais" (Freud, 1950 [1895]/1976), p. 363). O que se verifica é que na ausência de autonomia da criança frente a esse estado de coisas reside a potencialidade de mediação do Outro da linguagem.
A partir desse ponto, Freud instaura a tradição de expor, simultaneamente, duas modalidades de apreensão do inconsciente que pareceriam, em princípio, absolutamente excludentes: a via da decifração da letra e a via da economia psíquica. Assim, o mestre de Viena ousou reunir o que para muitos pode parecer excludente: energia e sentido no mesmo espaço; primeira e segunda tópicas conectando-se em seus aportes próprios. Nesse sentido, deve-se procurar ler sua obra não mais dividida de modo rígido. Os melhores comentários que se têm escrito sobre ela ressaltam uma integração entre o Freud intérprete, o do recalque, e o Freud do campo energético (Fuks, 2000, p. 56-57).
Historicamente, ao assinar a ideia de que o recalcado é apenas uma parte do inconsciente, Freud se viu diante do impasse de construir um novo aparelho psíquico já que o inconsciente possui uma extensão bem maior do que aquele. No seu movimento de "vai e vem", nos mais diversos momentos de sua obra, Freud agrega à qualidade de substantivo do inconsciente a de qualificar as três instâncias psíquicas da Segunda Tópica - Isso, Eu e Supereu -. Nesse momento, o isso não-representado, sede das pulsões, "se sobrepõe ao inconsciente ordenado por representações, o que implica a existência de uma certa modalidade de força pulsional irredutível à representação" (Birman, 1993, p. 94).
Teria sido esse acréscimo na teoria a razão pela qual Freud não hesita em retomar ao velho chiste do cavaleiro e o cavalo errante para expor algumas recomendações clínicas e insistir em manter o inconsciente como eixo essencial de sua nova conceituação? Em O eu e o isso, Freud (1923/1976) estabelece uma analogia entre a complexa relação de duas das instâncias psíquicas e a situação do cavaleiro: o eu, em sua relação com o isso,
é como o cavaleiro que tem de frear a força superior do cavalo, com a diferença de que o cavaleiro tenta fazê-lo com a sua própria força, enquanto que o eu utiliza forças tomadas de empréstimo. Esta comparação se estende um pouco mais. Assim como o cavaleiro, se não deseja se separar do cavalo, é obrigado de tempos em tempos a conduzi-lo aonde este quer ir, também o eu tem o hábito de transformar em ação a vontade do isso, como se fosse sua própria (Freud, 1923/1976, p. 27).
Dentre as múltiplas virtudes do cavalo de Itzig, Freud extrai novas noções: força e ação. Observa-se também a modificação da posição do cavaleiro que agora necessita usar a própria força na condução do cavalo à deriva. A regra básica na condução do tratamento, no momento em que a pulsão de morte exibe suas forças e o paciente não tem nada a dizer, obriga o analista a suspender o dispositivo de interpretação do desejo inconsciente para tentar produzir um ato que impeça ao paciente fazer uma passagem ao ato (Rabinovich, 1989/2004, p. 79). Ou seja, a arte que permite ao cavaleiro se deixar conduzir pelo cavalo é saber refrear a força do animal quando ultrapassa o limite do suportável. Evidentemente que numa psicanálise não se trata de dominar o analisando em sua tentativa de obter satisfação pulsional irrestrita, o que representa um obstáculo à análise, mas de fazê-lo, de algum modo, passar ou voltar a ocupar o lugar, por excelência, do sujeito da associação livre. Nesse caso, a função da análise é inscrever a força pulsional à deriva para restabelecer o campo da linguagem.
No cenário do excesso pulsional, a intenção terapêutica da psicanálise, conforme Freud (1932/1976, p. 74) encerra a 31ª Conferência introdutória, se mostra similar a "uma obra da cultura, não diferente da drenagem do Zuider Zee". Assim, o sentido do aforisma enunciado na frase anterior - "Ali onde o isso era, o eu deve advir", segundo a versão para o português da tradução proposta por Lacan do alemão (Wo Es war, soll Ich werden) - reverbera a exigência de subjetivação do processo psicanalítico (Miller, 2011, p. 192).
O cavalo provê a energia de locomoção, enquanto o cavaleiro tem o privilégio de decidir o objetivo e guiar o movimento do poderoso animal. Mas muito frequentemente surge entre o eu e o isso a situação, não propriamente ideal, de o cavaleiro só poder guiar o cavalo por onde este quer ir ( Freud, 1932/1976, p. 72).
Conclui-se, então, que o símile freudiano sobre a relação intensa entre o cavaleiro e o cavalo errante facilita reconhecer que as estratégias clínicas, às quais nos referimos no presente artigo, oscilam entre o registro do simbólico, o desfiladeiro dos significantes, e atenção máxima às forças pulsionais irrepresentáveis, o registro do real. Sendo assim, podemos afirmar que o conceito de inconsciente e a condição primordial de força constante da pulsão já se encontravam incipientes na carta de Freud a Fliess, citada no início deste artigo. Entretanto, seriam necessários muitos anos de prática clínica e reformulações teóricas para que Freud alcançasse formular a ideia de que na prática clínica o domínio da força pulsional é fundamental à simbolização, muito embora dessa força haverá sempre um resto que, paradoxalmente, resiste e demanda ser inscrita.
O cavaleiro do balde e a cultura
Se é verdade que o principal legado da psicanálise é a fundamentação de um método de cura no qual, falando para o outro, um homem encontra alívio à dor e a angústia, também é certo que ela inovou de forma radical e irreversível o modo de se refletir e pensar a cultura. Fonte inesgotável de sentidos diversos sobre a vida e a morte, as múltiplas vozes dessa figura - a cultura - serviram de matéria-prima à elaboração da teoria freudiana, durante um período em que quase todos os aspectos da vida social e das ideias sofriam grandes transformações no Ocidente. Na esteira dessas mudanças, Freud (1921/1976) abandona a clássica concepção de uma divisão entre psicologia individual e psicologia coletiva, colocando-as no mesmo espaço de esclarecimento. De acordo com sua experiência clínica, a experiência subjetiva, objeto privilegiado do trabalho analítico, implica, necessariamente, na referência do sujeito aos outros "com seus pais e irmãos, seu objeto amoroso, seu professor e seu médico" (Freud, 1921/1976, p. 67). No plano do coletivo, a vida social apenas apresenta unidades cada vez mais amplas, sempre obedientes às mesmas leis que marcam o indivíduo.
A abordagem dos fenômenos psíquicos assim formalizada descortinou uma outra oposição: o conflito entre vida social e os processos de não reconhecimento do outro, chamados narcísicos. Sob esse novo registro, Freud afirmou a prática psicanalítica como a especificidade de sua invenção, ao mesmo tempo que, levando as consequências da descoberta do inconsciente até o fim, estendia seu entendimento aos sintomas e ao mal-estar da coletividade humana cuidando de pensá-los única e exclusivamente à luz da metapsicologia. Dessa forma, rapidamente começou a ser construído um complexo instrumental teórico sobre cultura, totalmente articulado à ideia de que o fato da "Outra cena" (expressão utilizada por Freud para designar o inconsciente) se apresentar como individual ou coletiva não tem qualquer importância conceitual. Ao longo da história do movimento psicanalítico, embora esse princípio tenha sido inúmeras vezes abandonado - quando alguns analistas cuidaram de reduzir a psicanálise à uma simples psicologia individual, tendo como horizonte de trabalho o sonho de adaptar o eu à sociedade -, sabe-se que ele impõe ao psicanalista o destino de tornar-se um crítico do mal-estar na cultura, mal-estar que é o do homem e se efetua na civilização (Fuks, 2003).
Mas atenção: para desenvolver plenamente a capacidade de empreender questionamentos contundentes e avaliações críticas confiáveis sobre os fenômenos culturais e civilizatórios, sem correr o risco do uso obsceno de interpretações psicanalíticas estereotipadas, é preciso sempre navegar na direção do inefável da experiência clínica. Essa é a garantia e o suporte do perpétuo por vir do saber psicanalítico e de sua transmissão.
Nesse momento, parece-me importante lembrar que Lacan (1966/1998), soube transformar em injunção a insistência de Freud em perscrutar o mal-estar que afeta a cultura que o analista testemunha
Que antes renuncie a isso (exercer a psicanálise), portanto, quem não conseguir alcançar em seu horizonte a subjetividade de sua época. Que o (analista) conheça bem a espiral a que o arrasta sua época na obra contínua de Babel, e que conheça sua função de intérprete na discórdia das línguas (Lacan, 1966/1998, p. 322).
Observa-se que a alusão a Babel, a narrativa do décimo primeiro capítulo do Gênesis que conta em termos mais breves o castigo divino da destruição da Torre que atingiria os céus e o início de uma era na qual a humanidade tem vivido desde então, a confusão de línguas entre os homens é perfeitamente traduzível por aquilo que Freud identificou como a terceira fonte do desconforto humano: a facticidade das relações entre os homens. Já o sintagma "função de intérprete na discórdia das línguas" revela os efeitos subversivos da psicanálise desde a sua fundação até os tempos atuais, nos quais mudanças sócio-históricas exigem ressignificá-la.
O mundo de hoje sofre, por exemplo, enxurradas de informações que tornam a atualidade muito diferente do tempo de Freud. O que não quer dizer que a psicanálise tenha perdido sua potência revolucionária. Apenas ficou mais difícil para o analista, o que nos o obriga a perguntar: de que modo continuar sendo o "interprete da discórdia" ou o "intérprete do desconforto" numa civilização em que curas científicas milagrosas, seja através da mais moderna farmacologia ou das terapias cognitivas comportamentais, vêm sendo anunciadas e propagadas na mídia de forma bombástica, como promessa de gozo? Essa preocupação ganha uma importância maior quando assistimos ao retorno dos nacionalismos em países mais avançados do planeta, o recrudescimento do terrorismo, a recusa de acolhimento aos refugiados que fogem de regimes políticos fascistas e antidemocráticos. Nos termos do "O mal-estar na cultura" (1930 [1929]/1976), constata-se que o supereu, aliado civilizatório, paradoxalmente se mostra, cada vez mais, impregnado pelo imperativo da destruição deixando em evidência sua face mais pulsional e sua íntima relação com o fracasso social.
O fato é que todas essas questões bombardeiam o nosso tempo e, ao mesmo tempo, obrigam a comunidade analítica a retornar à letra de Freud com o mesmo rigor com que Lacan o fez e, ao igual, extrair da teoria lacaniana algumas respostas urgentes. Ou seja, novas configurações dos processos subjetivos incidem na prática psicanalítica e claro que na teoria também, impondo ao analista a tarefa de se dispor a reinventar o saber psicanalítico permanentemente, condição de assegurar seu futuro.
A partir desse ponto, para melhor refletir sobre essa tarefa, pretendo seguir a lição freudiana, resgatada e endossada por Lacan, de que há coisas que só a literatura com seus meios específicos pode dar. Sabe-se que Freud (1908 [1907]/1976, p. 8) se inspirou na intuição dos escritores e poetas aqueles que "conhecem entre o céu e a terra, muitas coisas que nossa sabedoria escolar ainda não pode imaginar". Foi esse saber do escritor criativo, saber avant la lettre psicanalítica, que atraiu sua atenção; uma sabedoria não necessariamente consciente sobre o desconhecido, ou melhor, sobre o real inexprimível que abre uma via de acesso ao inconsciente. Trago, então, um pequeno conto de Kafka (1931/1995) - O cavaleiro do balde - para encerrar este trabalho, na tentativa de me servir da escrita singular desse escritor-poeta e dela extrair algo que ilustre, com mais precisão, a urgência atual de retornar a metapsicologia em sua origem e pensar em nosso inevitável trabalho de "cavaleiro errante".
Trata-se de uma das histórias kafkianas curtas, escrita na primeira pessoa do presente, cujo ponto de partida é uma situação bastante real: a falta de carvão no inverno austríaco de 1917, assolado pela guerra. O narrador está prestes a morrer congelado, "atravessado pelos sopros do gelo" que invadiam sua casa. Pega um balde ao pé da "estufa impiedosa" e, de frente ao "céu igualmente sem pena", sai cavalgando nesse objeto vazio. Sua intenção era a de obter do carvoeiro uma pá cheia de carvão. A escrita de Kafka, à medida em que avança o texto, vai descortinando uma situação de sofrimento muito maior do que a impingida pela própria natureza.
Como cavaleiro do balde, ao alto a mão na alça - a mais simples das rédeas -, volto-me com dificuldade e desço a escada; mas embaixo meu balde sobe, soberbo, soberbo: camelos agachados no solo não se levantam tão belos estremecendo sob o bastão do cameleiro. Pela rua dura de gelo avança-se em trote regular; muitas vezes sou alçado à altura dos primeiros andares, não mergulho nunca até o nível da porta do prédio. E diante da abóbada do depósito do carvoeiro pairo extremamente alto enquanto ele bem lá embaixo escreve acocorado junto à sua mesinha. Para deixar sair o calor excessivo ele abriu a porta.
Carvoeiro! - brado com a voz cava e crestada pelo gelo, envolto nas nuvens de fumaça da respiração. - Por favor, carvoeiro, me dê um pouco de carvão. Meu balde já está tão vazio que posso cavalgar nele. Seja bom. Assim que puder eu pago (Kafka, 1931/1995, s/p).
O cavaleiro do balde não consegue ser ouvido pelo carvoeiro que, em princípio, parecia estar disposto a atendê-lo. No banco da estufa da casa, a carvoeira a tricotar, chega a ouvir o apelo sem se sensibilizar, em nenhum momento, pelo sofrimento do outro. Convence o marido de que não há ninguém lá fora e sobe sozinha para o andar de onde vinha a voz suplicante:
Ela não vê nem ouve nada, no entanto desamarra o cinto do avental e tenta me enxotar com ele. Infelizmente consegue. Meu balde tem todas as vantagens de um bom animal de corrida, mas não resistência; ele é leve demais; um avental de mulher tira-lhe as pernas do chão (Kafka, 1931/1995, s/p).
Eis que a crueldade impiedosa do homem, encarnada pela carvoeira, afugenta nosso herói que ascende às montanhas geladas até se perder para nunca mais. Não seria exagero afirmar que O cavaleiro do balde, por si só, garante a seu escritor um lugar privilegiado na fileira dos escritores que melhor disseram poeticamente o inexprimível da parcela indomável da constituição do psiquismo: o rosto destrutivo da pulsão de morte. Mas a escrita de Kafka se presta a múltiplas interpretações. Numa análise primorosa desse conto, Ítalo Calvino (1985/1990), em Seis propostas para o terceiro milênio, defendeu a ideia de que talvez o escritor de Praga, com essa pequena narrativa, quisesse apenas dizer que sair à procura de um pouco de carvão, numa fria noite em tempo de guerra, se transforma em busca de cavaleiro errante, travessia de cavaleiro no deserto. Entretanto, chama também atenção para o fato de que a ideia do balde vazio que eleva o sujeito acima do nível onde se encontra a ajuda alheia, o vazio como "signo de privação, de desejo e de busca, que nos eleva a ponto de nossa humilde oração já não poder ser atendida - este balde, escreve o escritor, abre caminho a reflexões infindas" (Calvino, 1985/1990, p. 41). Dessa figura polissêmica Calvino extrai uma proposta contundente para o enfrentamento da crise contemporânea da linguagem: sendo o balde vazio signo de uma virtude, a leveza, propõe, ao final da conferência, que a entrada no novo milênio que estava por vir pudesse ser feita a cavalo no balde vazio, "sem esperar encontrar nesse século nada além daquilo que seremos capazes de levar" (Calvino, 1985/1990, p. 41).
Qual a lição que o analista pode retirar do Cavaleiro do balde e da interpretação de Calvino? Antes de mais nada, volto aqui ao chiste com o qual Freud apresenta o inconsciente a Fliess, para dizer que o carvoeiro do cavalo errante é venturosamente parecido com o cavaleiro do balde. Errante, à procura do carvão necessário à escrita do inconsciente, o analista encontra na atualidade as mesmas resistências à psicanálise que Freud encontrou em seu tempo, apesar do que a cultura já pôde dela assimilar e banalizar. Poderia ser diferente, se o Unvewusste continua sendo a nossa matéria? Poderia ser de outra forma, se depois de Freud não é mais possível pensar no homem como senhor de sua própria casa?
Seria o caso de chegando ao final nos perguntar mais claramente: o que significa a psicanálise? Por que isso existe? Entre as múltiplas respostas possíveis, encontro a que diz que isso existe para que exista a ideia do particular que dá conta do universal. Por isso nossa disciplina está condenada a viver no entre dois - estrangeira à cultura e, ao mesmo tempo, atravessada por ela. A experiência é o viveiro de nossas descobertas, o balde vazio de Kafka, signo do desejo, de busca pelo outro. E mesmo sendo verdade que, depois de Freud, a experiência psicanalítica só é viável em íntima consonância com os conceitos fundamentais da psicanálise, isso não invalida o fato de que apenas a cavalo num balde vazio é que poderemos continuar o nosso percurso como "doutos cavaleiros ignorantes"3 se estivermos dispostos a sustentar a transmissão da descoberta freudiana.
Referências
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Artigo recebido em: 11/02/2017
Aprovado para publicação em: 26/06/2017
Endereço para correspondência
Betty Bernardo Fuks
E-mail: betty.fuks@gmail.com
*Psicanalista. Professora do Programa de Pós-graduação em Psicanálise, Saúde e Sociedade da Universidade Veiga de Almeida (RJ). Bolsista de produtividade do CNPq. Autora de Freud a judeidade, a vocação do exílio (Zahar 2000); Freud e a Cultura (Zahar, 2003);O homem Moises e o monoteísmo, três ensaios: o desvelar de um assassinato (Civilização Brasileira, 2014).
1A tradução do sentido de Unbewuste para insabível não é a mais correta, pois falta à palavra alemã o sufixo bar ou lich como em unerkennbar, unmöglich ou sichtlich, respectivamente irreconhecível, impossível e invisível. Entretanto, a palavra insabível (aquilo que não pode ser sabido), que é diferente do não sabido, presta-se mais à definição do inconsciente. É preciso ainda acrescentar que na obra de Lacan encontramos a concepção teórica do inconsciente como o insabível em L'insu qui sait de l'une-bévue s'aile a mourre (1976-1977), seminário em que ele cria o termo l'une-bévue (francês), homofônico a Unbewusst. "De l'une-bevue, de um equívoco, soa como de l'Unbewusst , de um inconsciente ( em alemão)", faz notar Márcio Peter de Souza (www.acheronta.org/acheronta16/unebevue.htm), um dos autores que consideram que o termo "L'une-bévue pode ser entendido como o insabível", o que difere da expressão não sabido com a qual costuma-se caracterizar o Unbewusst freudiano.
Agradeço à colega Andréa H. Araújo do Colégio de Psicanálise da Bahia a pesquisa do termo alemão Unbewuste.
2A edição das Obras completas de Sigmund Freud utilizada neste artigo é a da Amorrortu editores (ISBN 950-518-575-8). A tradução das citações extraídas dos volumes que compõem a coleção é de minha autoria.
3O emprego da categoria "douta ignorância", no ensino de Lacan, diz respeito ao que interessa à prática analítica como rejeição dos falsos saberes e pela dedicação ao que é uma abertura, uma disposição para a apreensão do real do sintoma. Na intervenção de 1953 "Variantes do tratamento padrão", publicada nos Escritos, Lacan (1965/1988, p. 360) insiste em que "a ignorância não deve de ser entendida [pelos analistas] como uma ausência de saber, mas, tal como o amor e o ódio, como uma paixão do ser; porque ela pode ser, à semelhança deles, uma via em que o ser se forma". Ou seja, ignorar o que sabe é o que o analista deve saber.