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Tempo psicanalitico

versão impressa ISSN 0101-4838versão On-line ISSN 2316-6576

Tempo psicanal. vol.49 no.2 Rio de Janeiro dez. 2017

 

ARTIGOS

 

Da poesia dita que adormece e da escrita poética chinesa que desperta

 

Of oral poetry that falls asleep and of Chinese poetic writing that awakens

 

De la poésie dite que se endort et de l'écriture poétique chinoise que réveille

 

 

Cleyton Andrade*

Universidade Federal de Alagoas - UFAL - Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O texto procura traçar coordenadas iniciais para a compreensão da referência lacaniana a respeito da interpretação com relação à escrita poética chinesa. Para isso, aborda um percurso que passa por uma crítica lacaniana à fala como um dito que adormece, pelo modo de o analista responder a isso com um corte, até chegar a uma discussão que procura indicar uma diferença entre fala e escrita. Diferença fundamental para uma concepção de interpretação analítica pensada a partir da escrita - e, sobretudo, de uma escrita que não é para ser lida - para chegar a um ponto de tornar pensável uma relação entre interpretação analítica e escrita poética, na condição de que esta última compreenda os elementos mínimos de uma escrita poética chinesa.

Palavras-chave: psicanálise, fala, escrita, interpretação analítica, escrita poética chinesa.


ABSTRACT

The text seeks to trace initial co-ordinates for the understanding of the Lacanian reference to interpretation in relation to Chinese poetic writing. To do so, it approaches a path that passes through a Lacanian critique of speech as a saying that falls asleep, a way for the analyst to respond with a cut, until arriving at a discussion that seeks to indicate a difference between speech and writing. A fundamental difference to a conception of analytical interpretation thought from writing - and, above all, a writing that is not to be read - to arrive at a point of making possible a relation between analytical interpretation and poetic writing, provided that the latter understands the minimal elements of Chinese poetic writing.

Keywords: psychoanalysis, speaks, writing, analytical interpretation, Chinese poetic writing.


RÉSUMÉ

Le texte cherche à retracer les coordonnées initiales pour comprendre la référence lacanienne concernant l'interprétation par rapport à l'écriture poétique chinoise. Pour cela couvre une route qui passe par une critique lacanienne du discours comme dit que endort, de la façon analytique de répondre avec une coupe, pour arriver à une discussion qui indique une différence entre la parole et l'écriture. Différence fondamentale à une conception de l'interprétation analytique pensée a cause de l'écriture - et surtout, un script qui ne doit pas être lu - pour arriver à un point de faire pensables une relation entre l'interprétation analytique et l'écriture poétique, à condition que ces derniers comprennent les éléments minimums d'une écriture poétique chinoise.

Mots clés: psychanalyse, parole, écriture, interprétation analytique, écriture poétique chinoise.


 

 

O início do ensino de Lacan é marcado pelo esforço de restituir a fala e o simbólico aos seus devidos lugares. Tanto uma quanto o outro eram ou negligenciados ou ignorados pela prática analítica contemporânea a Lacan. Era preciso dar à fala, destituída de seu lugar e função numa análise, o posto que lhe é devido na descoberta freudiana. Para isso, reter o que a distinção entre real, simbólico e imaginário permite reter era, para a prática, uma questão central. No texto de 1953, "Função e campo da fala e da linguagem" (1966/1998), já se encontram os primeiros encaminhamentos feitos para uma aproximação com a linguística estruturalista e com o projeto de retorno a Freud. O apoio na linguística, tanto de Saussure quanto de Jakobson, se tornará mais refinada alguns anos depois em "A instância da letra e a razão desde Freud" (1966/1998). Porém os efeitos dessa causa já se fazem sentir em 1953: não abrir mão da importância do simbólico para a experiência analítica bem como da função da fala e do campo da linguagem haviam se tornado questões de sobrevivência da própria psicanálise. O modelo de ciência e das bases essenciais para a linguagem, pensadas a partir da linguística estruturalista, foi o passe de entrada para uma releitura mais rigorosa de Freud. A entrada de Lacan no cenário da psicanálise é caracterizada, portanto, pelo valor reintroduzido da fala e do simbólico. Essa era uma questão da qual não se podia abrir mão.

Dar o enfoque de primazia ao simbólico e à palavra é retomar e restituir os poderes da palavra, poderes estes sem os quais a experiência clínica seria reduzida a uma espécie de charlatanice. Afinal, como Freud demonstrara com clareza, as palavras têm o poder sobre nós e sobre a realidade. O problema da inadequação entre palavra e coisa, desde cedo levantado por Lacan, não foi e nem poderia ser um impeditivo para a primazia da palavra sobre a coisa, sobre o real e principalmente sobre o imaginário. A inadequação do simbólico ao real, considerado e reconhecido, não impediu um ensino fundado sobre a primazia do primeiro. Contudo, num momento final de seu ensino, a postura de Lacan com relação à fala difere da inicial: nenhuma tentativa de enlaçar o simbólico e o real conduz ao ato de palavra que possa fazer a coisa. Seria uma quimera crer que o simbólico seja adequado ao real. Da primazia chega-se, assim, a uma posição de precaução com a fala.

 

De um impasse e de uma crítica à fala

Estamos diante de um Lacan que havia se tornado um crítico da função da fala, sem abandoná-la. Essas críticas, que são acirradas no seminário O momento de concluir (1977-1978), não significam que uma análise transcorra sem a fala. Ao contrário, cabe a ela operar com o tipo de problema que produziu. É preciso que uma análise chegue a desfazer, pela fala, o que foi feito pela própria fala. Uma experiência analítica não se faz sem uma suposição, sem o sujeito e sem o saber. Um analista, em função disso, é suposto saber fazer alguma coisa com isso. A suposição que lhe cabe é de estar suficientemente preparado para acolher a insuficiência da fala na história do sujeito em análise, até mesmo porque ele, o analisante, não faz a menor ideia disso. Ele ignora a debilidade de seu discurso - o que vale inclusive para um discurso sem palavras, que nem por isso deixa de ser semblante.

Não há discurso que não seja semblante. Não há o sonho de se colocar como desperto em cada um deles ou mesmo em algum dos quatro discursos. O universal do delírio, pelo qual não há um que escape à loucura, é correlato da loucura onírica da qual não se pode acordar. "O delírio é universal porque os homens falam e porque há linguagem para eles" (Miller, 1996, p. 192), a mesma linguagem que, pela fala, pelo significante, mata a coisa enquanto embala o sono da eterna infância. O significante não se adéqua à coisa, não faz nem oferece as bases para uma correspondência. A parceria é com outra palavra, um diálogo entre palavras que procuram se entender, conferindo mutuamente seus lugares e funções. Na diferença entre elas próprias pareciam se entender, é o que tudo indicava, mas não é bem assim. Inexiste uma correspondê         [ Links ]         [ Links ]         [ Links ]         [ Links ]         [ Links ]         [ Links ]         [ Links ]         [ Links ]         [ Links ]         [ Links ]ncia biunívoca entre palavra e coisa, e essa parecia ser uma das condições iniciais para a psicanálise retomar a força de sua invenção.

Essa função de irrealização própria ao significante, que não se relaciona com a coisa e desfaz a realidade que cabe ao mundo, só é abalada quando essa paixão entre significantes é, de algum modo, estremecida. A fala interrompida é o anti-herói da comunicação, mas é, por isso mesmo, a possibilidade que sonha despertar. Somente com a cadeia interrompida é que o significante alcança o real. Talvez não se imaginasse que a psicanálise, que surge de um gesto poético de Freud - e não sou eu que o defino como poeta, é Lacan, na lição de 20 de dezembro de 1977 -, pudesse, partindo da experiência com a histeria, e com Lacan, extrair da psicose o modo de operar com a clínica. As frases interrompidas de Schreber comentadas por Lacan na década de 1950 demonstram como o significante pode se precipitar no real e como a esquizofrenia pode ensinar como "uma parte do simbólico se torna real" (Miller, 1996, p. 193).

Porém afirmar que o significante mata a coisa é o mesmo que dizer que se cria um vácuo com relação à referência. Não há uma referência externa à articulação significante que possa servir de juiz ou despertador, e qualquer relação do significante com a verdade deverá advir desse modo de se organizar numa cadeia, articulado apenas a outros significantes. Não podendo ser externa, a verdade é interna à articulação, à cadeia. Frequentemente, em análise, alguns experimentam uma decepção ou cansaço resultante de inúmeras tentativas de localizar o momento exato, histórico, em que teve início seu sofrimento. Imaginam que poderão despertar num golpe de iluminação, sorte ou esforço, quando, enfim, descobrem tal referência externa ao próprio discurso, isso antes de se darem conta, com uma boa cota de investimento, de que essa referência não se produziu independente do discurso que os atravessou. Aprende-se a falar e falar deixa marcas (Lacan, 1977), e às consequências dessas marcas Lacan chama de sintoma.

Em consonância com essas marcas é possível extrair da articulação significante uma referência que não se dá a ver claramente na realidade externa ao discurso, porque é o discurso que a dá à luz. Como a estrutura do discurso do mestre pode indicar, da articulação de dois significantes, S 1 e S 2, se tem como produto uma referência que só é introduzida em função dessa conexão no campo da linguagem. O objeto a, produto dessa vinculação da fala, é uma referência nova. Os significantes e a linguagem já estavam lá, o novo é o objeto que daí se pode extrair. Pensar um significante que seja novo é outro tipo de problema.

A psicanálise não poderia se manter viva se não reconhecesse o impacto da fala na experiência clínica, afinal o significante é o elemento mínimo do inconsciente estruturado como uma linguagem, enquanto o sujeito e também o objeto a são efeitos da conexão de mais de um desses elementos mínimos. A consistência dessa referência vazia, porém positivada, se apoia inteiramente na articulação significante, de modo que se mostra como uma consistência lógica, decorrendo da fala, pelo fato mesmo de haver a fala. "O objeto a como semblante tem seu lugar entre o simbólico e o real. É uma consistência lógica que faz semblante de ser, e é o que só é encontrado quando do simbólico se vai em direção ao real. O objeto a é uma elaboração simbólica do real" (Miller, 1996, p. 196). E é a fantasia que passa a ocupar o lugar do real, não se confundindo com ele, sendo, dele, apenas o semblante.

É com alguma desconfiança ou descrédito numa visão inflacionada do valor da fala que o analista deve se colocar diante da condução de uma análise. Isso não significa, entretanto, repetir o erro dos pós-freudianos, tornando-a inócua. Não se trata de buscar um além ou aquém da fala que facilmente recairia num misticismo estéril, trata-se de uma desconfiança advertida. A trajetória da fala no debate da psicanálise encontra aí seu momento mais crítico, sem que seu limite assuma o caráter de uma inoperância. O corte que deve advir daí não implica em uma eliminação da fala, mas em uma posição advertida de que a primazia cedeu espaço à constatação de que se tratava de um semblante, e de que, enfim, se via reduzida a uma tagarelice1. O uso do falatório, da tagarelice, exige uma posição do analista que esteja suficientemente preparada para isso, e o corte é a oposição que cabe ao analista frente a uma fala que se comporta desse modo.

 

O corte como uma resposta à crítica

Como dito acima, o corte, assim como outras noções, não é inédito na obra de Lacan. Em 1953, em "Função e campo da fala e da linguagem" (1966/1998), já havia a noção de corte, cujas bases eram ainda anteriores a essa data2. Neste texto, o corte de sessão pode operar exercendo a função de uma interpretação, entendida como pontuação. Esse corte, funcionando como um ponto de estofo permite que o analisante retome sua fala e recupere o sentido que se fazia ausente no momento inicial. Nessa direção, no mesmo ano, na abertura do Seminário livro 1, Os escritos técnicos de Freud, Lacan (1975/1983) intervém com uma referência do procedimento da técnica Zen.

O mestre interrompe o silêncio com qualquer coisa, um sarcasmo, um pontapé. É assim que procede, na procura do sentido, um mestre budista, segundo a técnica zen. Cabe aos alunos, eles mesmos, procurar a resposta às suas próprias questões. O mestre não ensina ex-cathedra uma ciência já pronta, dá a resposta quando os alunos estão a ponto de encontrá-la (Lacan, 1975/1983, p. 9).

Dentre as diferenças que podemos levantar, deve ser ressaltado que, naquele momento, o corte era decorrente dos princípios de uma primazia da fala e do simbólico. Se, tal como um mestre zen, se podia cortar a sessão, era para que a análise retomasse de fato seu estatuto simbólico e a palavra pudesse recuperar sua devida importância. Esse corte finalizando uma sessão demonstra que o que está em jogo é também a noção de ressonância da interpretação. O corte, apoiado na noção de tempo lógico e na estrutura de linguagem do inconsciente, encontra no zen, e no mestre zen, referências para uma técnica3. Ao final do ensino de Lacan, o corte passa a assumir uma feição mais radical, e, como afirma Miller (2009, p. 198): "disso decorre a oposição, nessa tagarelice, entre o analisante que fala, do qual Lacan diz - é surpreendente - que ele faz poesia". Esse autor também aponta, referindo-se ao Seminário 25, que "nesse Seminário isso quer dizer: não é a interpretação que é poesia, é um passo a frente... O analisante fala, ao passo que o analista corta" (Miller, 2009, p.198).

No início da lição de 20 de dezembro de 1977 do Seminário O momento de concluir, Lacan aproxima o corte, o dizer do analista e a escrita. O analista trabalha com o impossível de dizer, e no ponto preciso em que esse impossível se faz presente. A tagarelice do analisante obtém como resposta o corte, porque dizer é coisa bem diferente de falar. Mesmo que nesse ponto Lacan coloque a poesia do lado da fala do paciente, e não do lado da interpretação analítica, é importante notar que ele aproximou a fala da poesia. No Seminário do ano anterior, na lição do dia 19 de abril do mesmo ano, ele havia afirmado que a poesia dita adormece, mas, logo após lançar a pergunta se a verdade desperta ou adormece, ele mesmo reponde que depende do tom no qual ela é dita. É nessa sequência que Lacan afirma que a poesia dita adormece.

O dito poético não é o dizer poético. Sem debater se o dizer poético desperta ou não, já podemos pensar que, seguindo o raciocínio de Lacan, o primeiro, o dito poético, adormece. A fala que faz poesia numa análise talvez não passe de jogos de palavras, de significantes que remetam a significantes, por substituições metafóricas e deslocamentos metonímicos, ou com a retórica que for, mas não escapa do adormecimento. É o universal do delírio, no qual todo mundo é louco, mesmo que sejam loucos poetas. Retomando o contexto trazido na lição de dezembro: o analisante fala, faz poesia, faz poesia quando chega, ao que Lacan responde com um corte.

Lacan nesse momento é um crítico contundente da fala. Ao colocar a fala e a poesia juntas, acena para o fato de que o destino disso é o sono, o adormecimento. Isso não coloca em risco a relação da interpretação com a poesia; afinal, na sequência, o que ele aponta oferece um caminho ainda mais interessante: o analista corta, e o que o analista diz é corte e o seu dizer participa da escrita. O enunciado que faz poesia pode recair para uma tagarelice, porém a enunciação poética tem um destino diferente. O modelo do corte para a resposta do analista parece não apontar necessariamente para o silêncio de um enunciado, mas para o silêncio que corresponda à dimensão do desejo do analista que faz emergir uma enunciação. O corte se apresenta não como um dito poético - nesse caso, o silêncio da boca fechada seria melhor -, mas o corte pode ser entendido como um dizer, este, sim, poético. Contudo, antes de levar à frente a pergunta a respeito do que pode ser isso, a saber, uma enunciação poética da interpretação, vale observar a terceira noção que Lacan aproxima: além do dizer e do corte, afirma que o dizer participa da escrita. Afirma, também, que algo do equívoco passa pela ortografia e que, ao se escrever de um modo diferente, graças à ortografia, pode-se fazer sonhar com outra coisa diferente daquela que é dita. Pela escrita, que manifesta modos diferentes de ortografia para as homofonias, pode-se, por exemplo, fazer aparecer uma inadequação entre enunciado e enunciação, entre dito e dizer. O analisante pode se ver dizendo algo bem distinto daquilo que queria ou acreditava falar.

Nesse sentido, não há dizer do analista que não seja corte, se esse dizer levar em conta a escrita. Sou levado a crer que o dizer interpretativo deve ser pensado em termos de corte e de escrita, assim como não parece haver de fato, nem de direito, uma diferença da posição de Lacan a respeito da relação que já havia feito entre interpretação e poesia, já que ele coloca, na segunda lição do Seminário O momento de concluir (1977-1978), a poesia do lado da fala do paciente, e o analista fazendo o corte. Resumidamente, ele o faz porque a poesia falada adormece, permanecendo como um mero jogo de palavras, um enunciado que desconsidera a posição do sujeito e do gozo. Em segundo lugar, porque o corte do analista não é antinômico ao seu dizer, principalmente levando-se em conta que sua referência é a escrita. Em terceiro lugar, porque é preciso cortar o enunciado que se pretende poético para que esse encontro do significante com o real possa criar a oportunidade de o sujeito sonhar com outra coisa, ou seja, de se deparar com algo que não atenda ao formalismo da consciência, posto que ele não sabe o que diz quando fala. Ele não sabe sobre sua enunciação quando formula um enunciado, pois a fala é inadequada para a enunciação. Por isso, ela só pode produzir a coisa na fantasia, em um estado em que se confunde sonho com realidade, em que não se sabe se é o sonhador que sonha ser uma borboleta ou se é a borboleta a sonhar que é o sonhador que sonha ser uma borboleta.

Se o enunciado é incapaz de abrir uma comunicação ou via de acesso com a enunciação, é pelo fato de ele ser incapaz de saber sobre a enunciação. A frase deve ser entendida literalmente: não se sabe o que se diz quando se fala, e não se sabe porque não há como saber do dizer pela fala, e isso porque a enunciação tem uma relação muito maior com a escrita do que com a própria fala. Nesse mesmo ponto da lição, Lacan diz que nem no que diz o analisante, nem do que diz o analista há outra coisa senão escrita. O dizer numa análise é, portanto, da ordem de uma escrita, mesmo que o dito seja uma fala.

 

É de uma escrita que se trata

Posto isso, podem ser preservadas sem contradições algumas referências feitas no Seminário que precedeu a este. Naquela ocasião, em 17 de maio de 1977, Lacan pôde dizer que somente a poesia permite a interpretação, e, aproximadamente um mês antes, ele havia afirmado o que trouxe acima: que a poesia dita adormece. Nessa direção temos um exemplo da precisão lacaniana nesse ponto da discussão: 1) a poesia dita adormece; 2) só a poesia permite a interpretação; 3) o dizer do analista se refere a uma escrita; com isso temos que 4) "com o auxílio do que chamamos escrita poética, vocês podem ter a dimensão daquilo que poderia ser a interpretação analítica" (Lacan, 1977/1978, s.p.). Para que possa permitir a interpretação analítica - que se refere a uma escrita -, a poesia, pelo menos aquela à qual Lacan se refere, não pode ser pensada em termos de uma poesia que se sustenta pela fala. Para os fins a que se visa numa análise, a poesia deve então ser pensada com um suporte que não seja a fala: ela deve encontrar o seu ponto de sustentação na escrita, tal como a própria interpretação e, por extensão, a fala. Uma das consequências disso é que deve existir uma clara diferença entre fala e escrita.

Em análise um paciente diz durante uma sessão: "Minha dificuldade é relacionar minha fala com minha realidade. Não consigo formalizar minha realidade no meu discurso". Porém, de fato, não há exatamente uma realidade. A realidade tal como se apresenta para nós é constituída pela fantasia, e essa fantasia é o que fornece a matéria para a poesia (Lacan, 1977). Embora possa se pensar que não há muito a se fazer com isso, em verdade, há. A fantasia pode guiar uma poesia que não saia do adormecimento de uma queixa ou de uma série de sintomas na vida de alguém, e pode fazer com isso uma história, o que não implica que crie ou invente algo. Para Lacan, Freud foi um poeta. Não porque tivesse tagarelado, e sim porque pôde se apropriar de uma matéria e se colocar em condições de dar uma resposta inventiva para isso. Um cientista pode se apropriar de qualquer matéria da ciência e com isso fazer ciência; pode encontrar os hormônios sexuais e daí constituir um saber sobre o sexo. Porém o que Freud fez foi se deparar com a matéria do sexo e fazer do sexual algo bem diferente de um sentido. Nas palavras de Rancière (2012), Freud procurou repor a poesia no âmago da racionalidade científica.

O que orienta a interpretação em Freud à luz de Lacan é o real do sexo, o sexual como real. A invenção freudiana mantém o pensamento face a face com o sexual sem fazer disso uma simples relação de saber (Badiou, 2005/2007). O que instaura a singularidade de Freud é que desse encontro com o sexual não se extrai um saber sobre o sexo, uma compreensão ou uma semântica; afinal, ele "procura dissociar os efeitos do sexual de toda apreensão puramente cognitiva, e por consequência de toda subordinação ao poder da norma" (Badiou, 2005/2007, p. 115). O que fazem tanto os pós-freudianos, quanto Ricoeur, Jung, ou uma boa parte do pensamento ocidental, é introduzir a descoberta freudiana naquilo com o qual ela rompe. Procuram inserir o sexual na virtude de um saber sobre o sexo, no controle dos corpos e da normatização de um sistema hermenêutico, decifrável. O sem sentido do sexual se torna apenas uma cifra, que, caso se recorra adequadamente a um sistema semântico, poderia ser decifrada, recompondo de modo puramente normativo a homeostase do pensamento.

Inteiramente de acordo com Badiou (2005/2007, p. 125), o cito: "Essa manobra consiste sempre em fazer emergir sentido em vez de verdade, em injetar o 'cultural' na libido. É a manobra hermenêutica, e Freud percebeu logo que havia aí insidiosa negação de sua descoberta, que era preciso, em suma, retornar ao sexo nu, à radical ausência de sentido".

E, ainda4 recorrendo a Badiou (2005/2007, p. 126): "O que os assusta é o fato de o sexo poder impor concepção de verdade desarticulada do sentido. O terrível é o sexo ser rebelde a qualquer oferta de sentido". O esforço da exegese hermenêutica assume a direção de dar sentido e significação ao sexual enquanto, de fato, a questão diz muito mais respeito a uma verdade insensata e, nesse caso, irreparável. Então, seriam questões éticas absolutamente distintas pensar uma interpretação que se oriente pelo sentido sexual, pelo simbolismo sexual de um sistema semântico, e uma interpretação que se oriente a partir dessa "verdade insensata pelo fato, como diz também Lacan, de não haver relação-sexual" (Badiou, 2005/2007, p. 126).

Freud situou as coisas de um modo que triunfou (Lacan, 1977) sem que nada garantisse isso. O impasse entre linguagem e pulsão, entre qualitativo e o quantitativo, assim como o próprio inconsciente, são exemplos daquilo que pode ser a poesia de Freud: ter conseguido triunfar com uma invenção e uma criação, em que não se tem garantia de que não se irá passar da tagarelice. Lacan (1977-1978, lição de 20/12/1977) diz que Freud foi um poeta, assim como Marx: este fora um poeta que teve a vantagem de ter conseguido fazer um movimento político. Portanto, o paciente que chega com a tagarelice, que Lacan chama de fazer poesia quando chega, obtendo um corte como resposta, não é da mesma ordem que um esforço de poesia ao final de uma análise.

Não aprendemos a linguagem, mas aprendemos a falar. Uma nos antecede, a outra nos deixa marcas. É preciso saber o que fazer com essas marcas e dar um rumo para as suas consequências. Essas consequências receberam o nome de sinthoma. Em função disso o olhar é deslocado para o tipo de saber que agora está em jogo. O saber, essa outra figura em nada inédita, nos convida agora a um reexame. O saber que estaria associado à psicanálise gravitaria em torno do legível: não é uma legitimidade que está em jogo, mas uma legibilidade.

Uma análise não consiste em um despertar que implique numa liberação do sintoma. Não equivale a uma experiência do satori, na qual se acede a uma iluminação que libertará o sujeito do seu sofrimento. Ela não consiste em liberar o sujeito do seu sinthoma, o que porta uma dimensão de incurabilidade própria ao discurso psicanalítico. Disso, mais uma vez, não se desperta. A análise consiste muito mais em saber em que consiste esse emaranhado do qual o sujeito não pode se livrar. Essa é a definição dada de uma análise na lição de 10 de janeiro de 1978: "a análise consiste em dar-se conta por que se tem esses 'sintomas' (sinthomas), de sorte que a análise está ligada ao saber" (Lacan, 1977-1978). Ainda segundo Lacan (1977-1978), "O inconsciente é isso: é que se aprendeu a falar e que devido a isso se deixou sugerir pela linguagem, toda uma sorte de coisas".

Partindo do recurso saussuriano do qual se serviu Lacan, só poderemos compreender Freud partindo do princípio de que não há relação entre significante e significado, o que nos leva à conclusão inicial de que só seria possível ler Freud com Saussure - o que não era tão óbvio, e para perceber isso basta nos depararmos com os exemplos extraídos dos pós-freudianos: estes ignoravam esse ponto em que a percepção de que algo do sujeito da enunciação escapa à tentativa de enunciado.

A matemática se torna um meio de remediar a perda de verdade imposta por um discurso que se reduz apenas ao jogo de linguagem (dos sofistas ou mesmo da tagarelice da fala) e que, por não ter relação com a realidade, está apto a uma abertura ao real. O que mais interessa não são os cálculos numéricos, mas a possibilidade de tornar algo pensável. É o movimento do pensamento que está realmente em jogo. A matemática serve enquanto um pensamento que rompe com a realidade e com o sensível, e é independente da experiência da linguagem, bem como do sentido.

Não há ideal de ciência em Lacan, mas há um ideal de formalização que passa pela lógica matemática, que pode assumir uma dupla face. Em relação ao simbólico e à transmissibilidade da psicanálise, a formalização lógico-matemática ocupa o lugar de ideal para Lacan (Badiou, 2003), de modo semelhante ao que cumpriu o ideal de ciência para Freud. E, em relação ao real, a posição que Badiou extrai das palavras de Lacan não é de ideal, mas de compatibilidade: há uma compatibilidade entre matemática e real. Nesse sentido, a matematização é ao mesmo tempo "ideal disponível à transmissão integral e real como impasse da formalização" (Badiou, 2003, p. 37).

Mas como é possível saber sobre a verdade se a verdade é algo que não há como saber? Para qualquer conversa que gire em torno disso, se deverá ter em mente que há um pensamento fora da consciência, fora das apreensões sensíveis da consciência, fora das qualidades. Nesse caso, a matemática, que é um pensamento, também não guarda nenhuma relação com a realidade, porque não depende da experiência sensível, seja para aquele que nunca aprendeu aritmética, seja para um doutor em física.

A matemática e, consequentemente, a matematização não dependem da experiência da consciência, não advêm da experiência sensível, não são determinadas pelas qualidades. Elas tornam pensável e apreensível o que a linguagem não consegue capturar adequadamente. Elas permitem localizar um ponto em que o ser pode ser tocado sem que seja necessariamente recoberto pelo saber e pelo sentido. E isso é fundamental para que compreendamos que o real não pode ser conhecido, porque não é dócil à linguagem e exclui o sentido, sem com isso ser incognoscível, inefável. A matemática e a matematização são essenciais para esse empreendimento que torna pensável e localizável algo que não é possível conhecer. É justamente por isso que a matematização pela via do matema pode ser uma abertura ao real.

Mas destaco que, acima de tudo, da matemática se apreende letras, que podem ser manejadas, manipuladas, trocadas de lugar. Sobretudo, as matemáticas fazem referência à escrita, e nela encontramos a escrita das fórmulas e dos cálculos, desprovidos da realidade e do sentido. São escritas de números e letras, que, enfim, não fazem outra coisa senão escrever o real. Há uma compatibilidade entre a matemática e o real (Badiou, 2003), assim como destes com a escrita. Entretanto, do real se diz que é aquilo que não cessa de não se escrever. Logo, somos levados a pensar, seguindo Lacan (1977-1978): de que modo o real apareceria se ele não se escreve? Cito o autor: "A escrita é um artifício. O real não aparece, pois, mais que por um artifício ligado ao fato de que há a fala e inclusive o dizer. E o dizer (le dirre) concerne ao que se chama a verdade" (Lacan, 1997-1978, lição 10/01/1978; tradução nossa). Ao se passar pela escrita pode-se estar um pouco mais próximo, portanto, do que se considera que seja o real.

Há uma escrita do inconsciente, e trata-se, então, de ler as formações do inconsciente. Se a noção de leitura é uma metáfora, ou uma analogia, é preciso saber sobre quais bases ela se ergue. Nesse sentido, não parece ser na mesma linha do que Freud e o próprio Lacan já haviam referido ao falarem de um texto do sonho e do inconsciente, por exemplo. É uma leitura outra, porque o texto deverá ser lido de outro modo, ou porque o que deve ser lido é de outra ordem.

O sujeito que é suposto ao saber é suposto saber ler o quê? É uma das perguntas, juntamente com a questão que interroga a legibilidade do que poderá ser lido. Portanto, não falamos mais do texto que Freud viu nos sonhos e nos sintomas, à espera de ser lido. Havendo um texto, ou melhor, uma escrita, esta pode estar lá não com o intuito de ser lida, de comunicar: uma escrita não é, necessariamente, para ser lida. Qualquer um já tomou notas de alguma coisa, apostando que elas poderiam ser úteis em algum momento, sem nunca terem, na verdade, voltado às suas anotações - estas devem estar em alguma gaveta, em alguma parte de algum arquivo, ou perdidas no tempo. A questão é, justamente, o que fazer com uma escrita que não é para ser lida. Por isso vale a pena apreender essa indicação de Lacan ao lugar ou fazer do aprendiz.

 

Aprender a ler uma escrita ilegível

A aposta de Confúcio no homem se sustenta em três pilares: o aprender, a qualidade humana e o espírito ritual. Este último, o espírito ritual, ou simplesmente, os ritos, é o que está na base da conduta social tanto do chinês quanto do japonês, o que geralmente é chamado de cerimonial. A qualidade do homem é tornar-se um homem de bem, e o que determina a condição de sabedoria para o chinês, a partir de Confúcio, é justamente a disposição para o aprendizado. O sábio chinês não é aquele que domina uma disciplina ou conteúdo, o sábio é acima de tudo aquele que sabe ouvir e aprender com isso. Confúcio (2012, p. 33 ) diz: " Aos 15 anos, empenhei-me no estudo. Aos 30, estabeleci-me. Aos 40, já não tinha dúvidas. Aos 50, compreendi o Mandato do Céu. Aos 60, meus ouvidos estavam afinados. Aos 70, [consegui] seguir o que desejava meu coração, sem infringir as regras".

É preciso aprender a ler, mesmo que a escrita não seja para ser lida. Diante não mais da primazia do simbólico e da fala, mas de uma reconfiguração de ambos, não há como se furtar a uma confusão: aquela que diz respeito à inadequação do simbólico ao real tem como resultado um efeito de confusão em que a inadequação da fala tampouco permite que o significante sirva para nos orientarmos. Com a fala, com o simbólico, e assim como com o amor, estamos sujeitos a nos embaraçarmos de modo especial. Mesmo que não se possa esperar muita coisa, e parecia que Lacan não esperava muito mais, resta uma posição de aprendiz. Também aí a interpretação se apresenta mais uma vez como um ponto de convergência das aporias deste final do ensino. Como diz Miller (2009, p. 194), "Tudo o que se pode dizer é que a interpretação como 'ler de outro modo' demanda o apoio da escrita, isto é, a referência feita para que os sons emitidos possam ser escritos de outro modo, distinto daquele que se pretendeu... Certamente há escrita no inconsciente".

Para uma interpretação que seja leitura, a escrita não é necessariamente algo que seja dado a ler. Mesmo que seja uma escrita que não foi feita para ser lida, o discurso analítico nasce com uma vocação confucionista: aprender a ler e a transmitir o modo dessa leitura. Em tempos de uma escrita borromeana e da escrita joycena para pensar o sinthoma, a escrita que Lacan sugere para pensar a interpretação não é, aparentemente, nenhuma das duas. É outra escrita não menos instigante, nem menos fascinante, é a escrita poética. Para pensar o sinthoma, uma escrita. Para a interpretação, outra, mas ainda assim uma escrita. E só há duas possibilidades: ou elas são homogêneas, pelo menos bem próximas, ou são heterogêneas, e, em qualquer das possibilidades, o trabalho não será menor.

De um lado, se forem homogêneas - as escritas borromeana, joyceana e a poética -, algo se justifica, e algo não se justifica. Justifica-se pelo fato de que tanto o sinthoma quanto a interpretação, são pensados a partir da escrita e de que se as escritas não forem homogêneas, seriam ao menos correlatas. A correlação entre a escrita dos nós borromeanos e a de Joyce foi desenvolvida no Seminário livro 23 O sinthoma, não sendo, entretanto, uma escrita da interpretação.

De outro lado, se forem heterogêneas, havendo apenas uma coincidência de se tratar, nos três casos, de uma escrita, então é preciso dizer por que uma interpretação seria pensada a partir de uma referência que seja heterogênea às referências que norteiam a noção de inconsciente. Isso implicaria dizer que seria a primeira vez que Lacan pensaria uma interpretação em dissonância com a noção que elabora acerca do inconsciente e da clínica.

Portanto, até mesmo por uma coerência interna ao pensamento lacaniano, é preciso supor e acreditar na primeira hipótese, a saber, que há uma correlação entre a escrita poética como referência para a interpretação e a escrita de Joyce e a dos nós borromeanos.

 

Uma escrita poética, mas não qualquer uma

Se até o momento, com o que acabei de escrever, não houve um incômodo ao me referir à escrita poética sem dizer especificamente que se trata da escrita poética chinesa, digo agora: esse é um dos problemas. A indicação de Lacan para apontar o que há de essencial na escrita poética para orientar a interpretação não se dissocia do fato de essa escrita poética ter que ser chinesa. Não é indiferente que seja chinesa ou não, faz toda a diferença. Porém isso é frequentemente esquecido ou ignorado. Chinesa, que muitos entendem como um adereço da retórica lacaniana, é exatamente aquilo que confere toda a precisão a seu enunciado. Isso não quer dizer que tenhamos todos que aprender mandarim, ler poesias chinesas, ou nos tornarmos poetas chineses, muito menos que tenhamos que fazer análise e o passe em mandarim. Não se trata de uma mudança do campo linguístico. Não se trata de uma questão de idioma ou de uma superioridade da poesia chinesa em relação às demais. Trata-se tão somente de apreender o que Lacan (1977-1978, s.p.) procurou indicar através dela, pois isso é que orientaria a interpretação: "É necessário que tomemos da escrita chinesa a noção do que é a poesia. Não que toda poesia - a nossa especialmente - seja tal que possamos imaginá-la assim. Mas, talvez, justamente, vocês sintam nela qualquer outra coisa, como os poetas chineses que não podem fazer de outra forma senão escrever".

Não parece haver equívoco nessa passagem: para pensar a escrita poética como referência para a interpretação, não podemos pensar que seja qualquer poesia, principalmente a nossa, ocidental, por exemplo. Mas devemos apreender na escrita chinesa a noção de poesia referida por Lacan. É preciso verificar o que faz com que os poetas chineses tenham que escrever suas poesias.

Numa tradição apoiada numa poesia oral, a expressão escrita poética tende naturalmente a enfatizar a poesia, não a escrita. Esta ficaria voltada para uma discussão de estilo ou de uma tendência dentro de uma teoria ou crítica literária. Falaríamos da escrita de Duras, da escrita de Neruda, de Guimarães Rosa, etc. Já no caso de falarmos da escrita poética chinesa, além de podermos tomá-la na mesma perspectiva discutindo a escrita de Li Po, a escrita de Du Fu, de Wang Wei, teríamos que dar ênfase à noção de escrita. Pensar a escrita poética chinesa é estar diante de uma questão a respeito da relação com a escrita. Não é sem motivo que Lacan (1977-1978, s.p.) destaca: "os poetas chineses que não podem fazer de outra forma senão escrever; o recurso da materialidade da escrita lhes é essencial". Com isso, Lacan estabelece uma distância com relação à poesia oral: "A poesia dita, é um fato, adormece" (Lacan, 1977-1978, s.p.).

Não faria nenhum sentido ter havido todo um trabalho para diferenciar a escrita da fala, a letra do significante, para em seguida ignorar essa diferença ao abordar a interpretação. A teoria da escrita em Lacan não foi construída sem se apoiar na escrita chinesa, o mesmo acontecendo com a noção de letra e até a dos nós borromeanos. Por que a poesia que orienta a interpretação deveria ser uma poesia ocidental? Considerar "O seminário sobre a carta roubada" para pensar a escrita e a letra não é a mesma coisa que pensá-la a partir de Lituraterra. A referência à escrita ocidental, alfabética, não foi suficiente para uma elaboração satisfatória a respeito do assunto. Foi preciso mudar de eixo de investigação para que a metáfora deixasse de ser uma carta para ser uma planície que sofre efeitos de uma chuva erosiva.

Não haveria nenhum sentido desconsiderar toda a dimensão da escrita para pensar a interpretação. Por isso, me parece que a escrita poética a que Lacan se refere, não como alegoria, mas como fundamento, é a escrita poética chinesa. Obviamente essa chinesa pode ser dispensável, porém na condição de nos servirmos dela. Podemos vê-la em outras escritas poéticas, inclusive ocidentais, não tenho dúvidas, mas é preciso vê-las, é preciso saber do que se trata. Uma vez que saibamos o que ela é, quais suas características que servem como sendo a semente da interpretação, aí sim podemos abrir mão do semblante chinês para encontrar essa escrita em outras escritas. Na de Joyce por exemplo. Não sou o único que diz que podemos ver a escrita poética chinesa na escrita de Joyce, eu apenas acompanho o que já disseram Ezra Pound, Hugh Kenner e Haroldo de Campos...

 

Conclusão

Talvez seja necessário demarcar bem que um efeito cabe ao significante e outro à letra. Neste caso, justificaria a precisão de ser uma poesia escrita. A ressonância que pode ir além do sentido não pode ser acionada pelo significante, somente pela escrita e pela letra. Por isso se justifica que se refira a um auxílio destas. Lacan poderia situar aí a escrita matemática que isola a literalidade da letra. Poderia também convocar o matema naquilo que visa uma transmissão literal. E a lista pode se prolongar pela lógica até chegar à escrita dos nós borromeanos, por exemplo.

A eleição de Lacan para nos colocar a pensar uma forma de forçar uma ressonância que não seja a ressonância semântica se apoia numa articulação, num laço, ou melhor, no nó que ele torna evidente entre escrita e poesia. Antes de pensarmos uma escrita poética, pode ser prudente dividir essa expressão em duas partes, para só depois amarrá-las novamente. Além do mais, é curioso observar que Lacan reúne uma prática significante e uma prática da escrita numa expressão só. O uso habitual dessa expressão, escrita poética, nos adormeceu a ponto de não estranharmos a heterogeneidade que ela invoca, principalmente a partir da leitura de Lacan.

A poesia é uma prática significante, ela só existe por isso. O manejo que ela opera sobre o plano fonológico, as combinações de som e sentido que ela viabiliza são alguns dos elementos que lhe são mais característicos. Até em termos históricos a poesia expressa sua filiação ao canto e ao ritmo. A escrita, por sua vez, pode também se reduzir a uma prática significante, mas não é essa a perspectiva que mais interessa a Lacan. A escrita separada da fala, separada do significante, remete à materialidade e à letra tal como foram formuladas por Lacan a partir do início da década de 1970. Portanto, conforme o plano em que são tomadas, escrita e poesia pertencem a dois terrenos heterogêneos, a saber, o da letra e o do significante. Entretanto, mesmo assim, Lacan os reúne.

É fato que não há ineditismo algum na expressão escrita poética, nem precisaria ter. Para a psicanálise, contudo, essa expressão talvez tenha que ser tomada de uma maneira menos familiar. Esses dois campos distintos são amarrados por Lacan ao dizer que se visa a um forçamento que produza outro tipo de ressonância. Ele amarra escrita e poesia nessa coisa híbrida chamada escrita poética. O problema é que o hábito nos deixou extremamente familiarizados com essa expressão, deixando-nos sonolentos diante dela, e seria preciso acordar para se interrogar como Chuang-tse ilustrou - se trata de Zhou ou da borboleta afinal? No sonho, essa diferença não aparecia.

Lacan percebeu de forma brilhante a diferença de relações que se estabelece com uma escrita alfabética ou com uma escrita que não a alfabética, o que permite extrair consequências da percepção de que uma escrita fonética tem uma implicação no sujeito totalmente distinta de uma escrita não fonética. A relação do sujeito com uma escrita que faz a notação dos sons de sua fala é de uma ordem, já a relação com uma escrita que se autoriza uma liberdade e não uma subordinação à fala abre outro campo de manejos possíveis. Para um ou para outro, o destaque e a importância da escrita podem variar. Nem na escrita o chinês se assemelha ao grego, tampouco na mitologia, na qual um e outro localizam a origem da escrita, elas têm vizinhança.

A relação que um chinês tem com a escrita é inteiramente diferente daquela que um ocidental tem, e por vezes é ainda distinta daquela que um ocidental imagina. Creio que passa por essa via o ponto em que Lacan faz o nó entre a escrita e a poesia: ele parece fazer o nó com os chineses. Ou melhor, parece fazer o nó entre a escrita e a poesia, por um lado, com chinesa, por outro lado, que ele coloca na sequência. Podemos concluir com algo que pode ser formulado aproximadamente desse modo: é com a escrita poética chinesa que Lacan amarra - borromeanamente? - a heterogeneidade entre escrita e poesia. Os poetas chineses não podem fazer de outra forma a não ser escrevendo, ou seja, para eles a escrita não é acessória. Mais do que delimitar um meio de acessar o estilo de um autor, a escrita é a condição da poesia chinesa. Basta, assim, saber como e por quê. Porém, de um modo ou de outro, a escrita poética chinesa é o que dá a exata medida do que pode ser uma escrita poética que sirva para pensar a interpretação.

 

 

Referências

Badiou, A. (2003). Lacan e Platão: o matema é uma ideia? In Safatle, V. (Org.), Um limite tenso: Lacan entre a filosofia e a psicanálise (p. 13-41). São Paulo: UNESP.

Badiou, A. (2007). O século (C. F. da Silveira, Trad.). São Paulo: Ideias & Letras. (Original publicado em 2005)

Lacan, J. (1977-1978). El seminário, libro 25: el momento de concluir (inédito).

Lacan, J. (1976-1977). O seminário, livro 24: l'insu que sait de l'une-bénue s'aile à mourre Edição Heresia (inédito).

Lacan, J. (1983). O seminário livro 1: os escritos técnicos de Freud (3. ed.). Rio de Janeiro: Jorge Zahar. (Original publicado em 1975)

Lacan, J. (1998). Escritos (V. Ribeiro, Trad.). Rio de Janeiro: Jorge Zahar. (Original publicado em 1966)

Miller, J.-A. (1996). Matemas I (S. Laia, Trad.). Rio de Janeiro: Jorge Zahar.

Miller, J.-A. (2006). La experiência de lo real en la cura psicoanalítica. Buenos Aires: Paidós.

Miller, J.-A. (2009). Perspectivas do seminário 23 de Lacan: o sinthoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.

Rancière, J. (2012). O inconsciente estético (M. C. Netto, Trad.) (reimpressão). São Paulo: Editora 34.

 

Artigo recebido em: 01/08/2017
Aprovado para publicação em: 04/09/2017

Endereço para correspondência
Cleyton Andrade
E-mail: cleyton.andrade@ip.ufal.br

 

 

*Universidade Federal de Alagoas (UFAL), Instituto de Psicologia - Maceió, AL, Brasil.
1É certo que o lugar e a importância da fala para a psicanálise são bem maiores e cheios de variáveis do que o que pode ser expresso nesses três termos primazia, semblante e tagarelice. Faço uso desses termos como uma forma de balizar um trajeto sem sair de outro.
2Ver também da teorização sobre o tempo lógico e o manejo do tempo variável das sessões, em "O tempo lógico e a asserção da certeza antecipada - um novo sofisma" (1966/1998).
3Tanto na abertura do Seminário livro 1, Os escritos técnicos de Freud, quanto na parte a respeito das ressonâncias da interpretação, intitulada em "Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise", o zen e o mestre zen aparecem como exemplos de uma operação dessa ordem.
4Badiou se refere aqui ao que assusta a religião e os padres, porém considero que suas palavras se adéquam quase que perfeitamente à posição hermenêutica com relação ao sexual no contexto da descoberta freudiana.

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