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Tempo psicanalitico

versão impressa ISSN 0101-4838versão On-line ISSN 2316-6576

Tempo psicanal. vol.49 no.2 Rio de Janeiro dez. 2017

 

ARTIGOS

 

A criança e sua família: o caso do menino e o seu avatar, o Sombra

 

The child and their family: the case of the boy and his avatar, The Shadow

 

Los niños y su familia: el caso del niño y su avatar, el Sombra

 

 

Ethyene Andrade CostaI*; Jacqueline de Oliveira MoreiraI**

IPontifícia Universidade Católica de Minas Gerais - PUC Minas - Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

As tramas familiares se constituem como elementos decisivos na construção dos sintomas do sujeito. A partir da concepção de que crianças trazidas à clínica são depositárias e porta-vozes das angústias familiares, faz-se mister pensar o sujeito considerando o contexto no qual está inserido e as relações que estabelece. Mantendo o rigor preconizado por Freud quanto à investigação do novo que se apresenta no discurso do sujeito, o presente trabalho teve por objetivo construir um estudo de caso que permitisse repensar as possibilidades de atuação do analista no atendimento a crianças que de maneira inconsciente atualizam a história de sofrimento de suas famílias. O conteúdo recalcado, "não dito", retorna dando forma aos sintomas das novas gerações. Na medida em que as repetições sintomáticas têm demonstrado ligação com os "mal-ditos" da história do sujeito, o atendimento em sessões conjuntas tem revelado sua importância para a condução do caso. A clínica de família mostra sua relevância: por meio da simbolização de heranças familiares traumáticas, torna-se possível organizar o que é próprio do sujeito e diferenciar o "pertencer" à família das identificações que o levaram a emaranhar-se e "ser" aquela família.

Palavras-chave: psicanálise com crianças, família, construção de caso clínico.


ABSTRACT

Family matters can be decisive elements in the development of symptoms in individuals. Considering the idea that children who are taken to psychoanalytical treatment are depositary of family anguishes and can enunciate these anguishes to the outside world, it is crucial to consider the subject as a part of a broader context in which they establish relations with other subjects. Maintaining Freud's rigor concerning the investigation of the novelties presented in the subject's speech, this article aimed to construct a case study which allows reconsiderations regarding the possible actions carried out by the analyst towards children who unconsciously relive their families' history of suffering. The unsaid, i. e., what has been repressed by the family, returns and results in symptoms which affect new generations. Since symptomatic repetitions have shown to have a connection with the "badly-said" of the subject's history, receiving different members of the families in group sessions has shown to be of great importance in dealing with cases. Family clinic shows its relevance: through symbolization of traumatic family inheritance, it becomes possible to organize the subject's particularities and to understand the difference between "belonging" to a family and the identifications which led them to fuse and "turn into", "become", the family.

Keywords: psychoanalysis with children, family, building of clinical case.


RESUMEN

Las tramas familiares se constituyen como elementos decisivos en la construcción de los síntomas del sujeto. Desde la concepción de que esos niños traídos a la clínica son depositarios y portavoces de las angustias familiares, se hace necesario pensar el sujeto considerando el contexto en el cual está inserido y las relaciones que establece. Manteniendo el rigor preconizado por Freud con relación a la investigación de lo nuevo que se presenta en el discurso del sujeto, el presente trabajo tuvo por objetivo construir un estudio de caso que permitiese repensar las posibilidades de actuación del analista en el atendimiento a niños que, de manera inconsciente, actualizan la historia de sufrimiento de sus familias. El contenido reprimido, "no dicho", vuelve dando forma a los síntomas de las nuevas generaciones. En la medida en que las repeticiones sintomáticas vienen demostrando ligación con los "mal dichos" de la historia del sujeto, el atendimiento en secciones conjuntas viene revelando su importancia para la conducción del caso. La clínica de familia muestra su relevancia: por medio de la simbolización de herencias familiares traumáticas se hace posible organizar qué es propio del sujeto y diferenciar lo "pertenecer" a la familia de las identificaciones que lo llevaron a enmarañarse y "ser" aquella familia.

Palabras clave: psicoanálisis con niños, familia, construcción de caso clínico.


 

 

Introdução

O cenário globalizado atual, alimentado por transformações contínuas, tem delineado novas formas de "ser e estar em família". Com a demanda capitalista que exige alta produtividade, as famílias têm dedicado maior parte do tempo à formação intelectual e à capacitação para as exigências do mercado de trabalho. O reflexo do referido contexto aparece nas clínicas e nos dispositivos de saúde mental, que recebem cada vez mais crianças com rotinas carregadas de atividades, mas esvaziadas de brincadeiras, de simbolização, da autoridade e atenção dos pais. Estes últimos, em total complacência em relação à inscrição da Lei simbólica na constituição subjetiva dos filhos, delegam sua função de transmissão e educação à escola, às babás, ou mesmo aos programas de televisão (Côgo, 2009). A convivência familiar, condição fundamental para a simbolização e para a organização psíquica da própria história, cede lugar às famílias sem sustentação psicológica (Birman, 2009).

Durante a realização do estágio sob supervisão da Prof.ª Dra. Joyce Marly Gonçalves Freire (In memoriam) e de projetos de extensão na Clínica Psicológica da Universidade Federal de Uberlândia, observou-se que, na maioria dos casos atendidos, as crianças denunciam traumas, ou seja, afetos que não foram devidamente simbolizados. Tais afetos passam a ser base para formação de sintomas, os quais parecem não ter origem unicamente na experiência individual. As tramas familiares se constituem como elementos decisivos na construção dos sintomas do sujeito. Nesse sentido, o trabalho do analista consiste em identificar mecanismos de resistência e elucidar as lacunas do discurso: "Do sintoma que é linguagem, o analista se faz decifrador" (Vanier, 1988/2005, p. 28).

Considerando o contexto da forte inserção dos pais em um mercado de trabalho competitivo que exige destes um alto desempenho, acarretando, com isso, uma diminuição de tempo e energia dedicados à família, a clínica psicanalítica com crianças tem encontrado novas configurações relacionais que impactam o modo de ser sujeito do infans. Na medida em que as repetições sintomáticas têm demonstrado ligação com os "mal-ditos" da história do sujeito, a clínica de família mostra sua relevância: por meio da simbolização de heranças familiares traumáticas torna-se possível organizar o que é próprio do sujeito e diferenciar o que "pertence" à família das identificações que o levaram a emaranhar-se e "ser" aquela família (Rehbein, & Chatelard, 2013).

O atendimento às famílias parece não ter sido uma prática comum nos primórdios da Psicanálise. Não obstante, os escritos de origem desse método já diziam da influência das relações com o outro sobre o processo de subjetivação. Em "Narcisismo: uma introdução", Freud (1914/1996) argumenta que, na relação com os filhos, os pais revivem os afetos experimentados no próprio narcisismo e projetam sobre os filhos seus desejos não realizados. Mesmo antes de nascer, o sujeito é concebido no registro da palavra (Freud, 1914/1996). Os significantes que lhe são atribuídos pelo outro, como o nome próprio e os traços genealógicos, formam a base para um processo contínuo de subjetivação (Vanier, 1988/2005).

Para Lacan (1971), a formação do Eu depende do reconhecimento do sujeito no discurso familiar. A subjetivação depende de um Outro, no qual o sujeito busca uma sensação de completude, uma confirmação de suas identificações. No seu artigo "Os complexos familiares", escrito em 1938 para a Encyclopédie française, Lacan (1938/1985) anuncia e defende a primazia das estruturas sociais sobre a vida natural. Podemos questionar a densidade da palavra "natural" no que se refere à vida humana na medida em que se sabe que a cultura produz e introduz novas dimensões na realidade psíquica, e a família representa uma importante instituição social que forma, controla e transmite dimensões constitutivas para o sujeito.

Vorcaro (1999) retoma a teoria lacaniana para pensar a subjetivação. A princípio, não há sujeito, isto é, o bebê constitui-se como uma matriz simbólica na qual ocorre a alternância entre estados de tensão e apaziguamento frente à satisfação das necessidades. A mãe, por sua vez, supre a demanda que supõe existir no bebê, havendo, portanto, uma matriz simbólica na qual, na medida em que há uma falha na satisfação das necessidades, insurge o real. Há uma diferença entre o gozo esperado e aquele obtido, e o bebê, no registro imaginário, supõe que a mãe possui um saber sobre seu gozo. Em um terceiro movimento, o bebê busca o desejo da mãe e utiliza-se do registro simbólico para fazer-se objeto de preenchimento da falta. Nesse ponto, o real insurge novamente junto à percepção da impossibilidade do preenchimento pretendido. A lei paterna se faz obstáculo imaginário para o movimento pretendido, defendendo o bebê da "mãe jacaré". "O falo imaginário é posto fora de jogo e substituído por uma unidade de medida que regula as relações entre desejo e lei, e confere a eles uma lógica" (Vorcaro, 1999, p. 62). O sujeito supõe no pai um saber sobre o desejo da mãe, o qual passa a orientar a subjetivação em substituição à identificação ao Outro primordial. É a partir do outro que a criança articula simbólico, imaginário e real de maneira singular, inscrevendo-se no simbólico, que é anterior à própria existência.

Maud Mannoni (1967/1971), em seu livro A criança, sua doença e os outros, vai ao encontro das teorias lacanianas ao apresentar casos clínicos nos quais os sintomas da criança remontam às problemáticas dos pais. Também influenciada pelas teorias da escola francesa, Françoise Dolto (1980) assinalou que os sintomas das crianças refletem as dívidas herdadas de questões não resolvidas pelos pais. Por esse motivo, o setting analítico da clínica infantil, em Dolto, incluía entrevistas com os pais e comentários em relação ao discurso familiar, com vistas à dissolução de mal-entendidos, a partir da tradução, para a língua da criança, das compreensões do analista quanto aos efeitos produzidos na criança pela dinâmica da família (Soler, & Bernardino, 2012).

Por meio de mecanismos psíquicos como projeção, introjeção e identificação, as feridas narcísicas dos pais, bem como as demais representações, fantasias e afetos, participam da formação do Eu, exercem influência sobre a formação da estrutura psíquica do sujeito e ainda sobre seu posicionamento diante do próprio desejo. Frequentemente, o que se faz notar na clínica é a presença da herança psíquica marcada pelos traumas transgeracionais, definidos por Almeida (2008) como

o não dito, que remete aos segredos, à cripta, aos fantasmas, [...] à maldição praguejada por um antepassado, à palavra extraviada, mal dita, que não encontra seu estatuto na palavra, e no excessivamente dito, na genealogia, no ancestral muito presente, não deixando o recalcamento desempenhar sua função, atrapalhando a organização psíquica do sujeito e, por conseguinte, as ações deste na vida (Almeida, 2008, p. 223).

Rehbein e Chatelard (2013), reconstruindo o pensamento de Abraham e Torok, destacam que, quando não há elaboração psíquica, o recalcado é transmitido nas relações com a nova geração. Desprovido de representações, o mecanismo de introjeção dos filhos dá lugar ao mecanismo da incorporação, caracterizado pela impossibilidade de simbolização.

Na falta de registro na dimensão simbólica, o vivido é reservado à dimensão do Real, do inapreensível, e o conteúdo recalcado, "não dito", retorna dando forma aos sintomas das novas gerações. Isso faz com que as crianças tragam à clínica repetições capazes de dizer do que há de sintomático na estrutura familiar (Lacan, 1988).

Em "Recordar, repetir e elaborar", Freud (1914/1996) ressalta que o paciente não se lembra do que foi reprimido, ou sequer passou pela consciência, mas o expressa pela atuação, repetindo naturalmente o que está reprimido em cada relação que estabelece, sem perceber que o faz. A psicanálise torna-se importante na medida em que proporciona um método de investigação do Inconsciente e tenta estabelecer a possibilidade de construção de um contorno possível para esse conteúdo que escapa, mas que insiste em se inscrever através do sintoma.

Esse espaço transubjetivo oferece à clínica psicanalítica uma nova dimensão de trabalho. A partir do referido prisma, torna-se importante analisar essas "marcas que não se representam, e sim que se apresentam" (Gaspar, Lorenzutti, & Cardoso, 2002, p. 21). O domínio do Real, composto por pulsões inassimiláveis para o Eu, se faz presente na transferência de modo que o não representado pela linguagem é encoberto por significantes que evidenciam a evitação do traumático (Val, & Lima, 2014). O sujeito atualiza sua dor na relação com o analista e, por meio da repetição, oferece pistas dos vazios que precisam de contornos para as (re)construções de sentidos.

Como preconizado pelo pensamento freudiano, fazer psicanálise não é mantê-la intacta, mas manter o rigor de investigação do novo que se apresenta no discurso do sujeito. A partir da concepção de que essas crianças trazidas à clínica são depositárias e porta-vozes das angústias familiares, faz-se mister pensar o sujeito considerando o contexto no qual está inserido e as relações que estabelece. Nesse sentido, o presente trabalho teve por objetivo construir um estudo de caso que permitisse repensar as possibilidades de atuação do analista no atendimento a crianças que de maneira inconsciente "tomam as dores" de suas famílias.

 

Quem conta um conto aumenta um ponto

Antes de dar início ao caso clínico, convém propor breve discussão em torno da metodologia aqui adotada. A Psicanálise é constituída por três vertentes, sendo elas método, técnica e teoria. Freud (1923/1976) propôs a atenção flutuante e a livre associação como técnicas que possibilitariam o método de investigação do Inconsciente, abrindo caminhos para a construção de uma teoria científica.

O pai da psicanálise desenvolveu a teoria a partir da construção de monografias clínicas, as quais lhe permitiam dar lugar ao singular, à contingência que emergia na análise. No entanto, os direcionamentos técnicos são escassos em sua obra, visto que o autor preza pela não redução do método à técnica. Segundo Vorcaro (2010, p. 11), a aplicação da técnica "pressupõe a detenção de um conhecimento que universaliza o objeto e, consequentemente, apaga sua manifestação singular". Assim, o caso clínico deve prezar pelo rigor investigativo em relação ao Real, singular, em detrimento do universal.

Ao recusar-se a aplicação do saber adquirido previamente, a função da literalidade da escrita do caso preserva e dá significado ao histórico singular, articulando-se ao saber produzido pelo analisante, bem como ao trabalho do analista em torno do questionamento do Real emergente em análise. É necessário que o analista invente o próprio estilo diante da demanda que se impõe em cada caso, e assim reinvente a clínica sem perder de vista o pressuposto metodológico psicanalítico (Vorcaro, 2010). O que se propõe, portanto, não é a utilização do caso para exemplificar a teoria: o analista deve suportar o não saber, a tensão entre a teoria acumulada e o novo que se apresenta através do sujeito. Privilegia-se o sujeito e seu desejo em detrimento de sua submissão ao universal, ao Ideal do Outro (Lacan, 1977).

"O psicanalista-pesquisador tem aí sua participação nas linhas e entrelinhas do que escreve, assim como a teve nos atos e atitudes ligados à direção do tratamento" (Castro, 2010, p. 29). O que se encontra a seguir não é, portanto, a transcrição pura de um caso, mas o relato do encontro entre o analisante, suas produções em análise e a produção do analista, "um saber que se deposita em seu escrito" (Vorcaro, 2010, p. 15). Há que se ressaltar que este não é um saber imposto; não se trata aqui de uma intersubjetividade terapêutica, visto que o analista se destitui do lugar atribuído a si, de sujeito suposto-saber, para abrir espaço à emergência do desejo do analisante.

Castro (2010) retoma a etimologia da palavra "método", a qual, composta de metá - através e hodós - caminho, significa o caminho utilizado para atravessar, ou ainda um campo a ser atravessado. O método psicanalítico da investigação do Inconsciente foi adotado no presente estudo com vistas a retomar o atravessamento do Inconsciente na análise e, concomitantemente, atravessar para um campo de reelaboração do saber. Nas palavras de Freud (1918/1996):

é óbvio que um caso como o que está descrito nestas páginas pode transformar-se num pretexto para pôr em discussão todas as descobertas e problemas da psicanálise. Isso, contudo, seria um trabalho infindável. Deve-se reconhecer que nem tudo se pode aprender a partir de um único caso e que nem tudo pode ser resolvido através dele; devemo-nos contentar em explorar tudo aquilo que porventura se mostre de forma mais clara. Existem, em qualquer caso, limites estreitos para aquilo que a psicanálise foi chamada a explicar. Pois, ao passo que é da sua alçada explicar os sintomas revelando a sua origem, não o é explicar, mas simplesmente descrever, os mecanismos psíquicos e os processos instintuais aos quais a pessoa é desse modo conduzida. Para derivar novas generalizações do que foi, assim, estabelecido em relação aos mecanismos e aos instintos, seria essencial ter à disposição numerosos casos tão profunda e inteiramente analisados como este (Freud, 1918/1996, p. 139-140).

Eis aqui o que Ferrari (2010, p. 37) chama de demarcação da "transmissão da psicanálise pela via da singularidade" . Segundo as recomendações freudianas, esse caso foi escrito após o distanciamento da analista em relação à realização das sessões, com vistas a evitar que a pretensão de supor prognósticos impedisse a manifestação surpreendente do Inconsciente. Respeitou-se, assim, a marca do vazio que dá espaço à emergência do sujeito.

Segundo o que é defendido pela mesma autora, propõe-se aqui nomear - e não traduzir - as manifestações que se articulam em torno do Real, sem a pretensão de uma escrita neutra, pura, "nomear as construções feitas pelo sujeito na via da fantasia, e do sintoma" (Ferrari, 2010, p. 40). Cumprindo as funções do caso clínico, na literalidade da narrativa escrita do caso poderemos encontrar o singular e desse modo "expoenciar o saber adquirido com os ensinamentos do caso, tornando-o dispositivo problematizador da carga imaginária presente na generalização teórica da doutrina psicanalítica" (Vorcaro, 2014, p. 16).

 

Um caso de família

Apresenta-se, aqui, um caso em que a família busca atendimento psicológico para Matheus, um menino de oito anos que aos dois anos de idade apresentou um diagnóstico de somatização ao parar de andar quando da separação dos pais. Entendemos com Freud (1909/1996, p. 243) "que o desejo mais intenso e mais importante da criança nesses primeiros anos é igualar-se aos pais". Seria, então, a paralisação motora da criança uma metáfora do fim do casamento dos pais? O sintoma, que agora já dura seis anos, se refere a um estado de fortes dores de cabeça, crises nervosas e queixa familiar de uma falta de limite. A partir da dinâmica familiar apresentada na queixa, nos contatos telefônicos e no setting analítico, produziu-se a decisão de se realizarem sessões conjuntas com mãe e filho, e algumas vezes com a presença também da avó.

As ligações feitas pela analista, com a finalidade de estabelecimento de horários, sempre envolviam longas conversas nas quais a mãe e a avó de Matheus falavam sobre o comportamento opositivo do menino e anunciavam a possibilidade de o levarem ao psiquiatra na perspectiva de receberem uma receita de uma medicação que funcionasse como um "calmante" para as "crises de nervoso" [sic]. De alguma maneira, a família toda parecia estar transbordando, clamando por continência, pela construção de bordas que, sob nossa visão psicanalítica, poderiam advir da colocação de palavras naquilo que se apresentava como angústia.

Nas conversas por telefone, muitas vezes os horários das sessões tinham que ser tratados com a avó de Matheus, cujo número de contato constava até mesmo no prontuário do menino que estava na fila de espera da clínica escola. Tendo em vista que Matheus passava a maior parte do dia na casa da avó e a participação angustiada desta ao demandar ajuda para o neto, o que ficou claro nas conversas por telefone, decidiu-se por convidar também a avó para algumas sessões conjuntas. A voz das narradoras, Rosa, mãe de Matheus, e sua mãe, D. Amélia, invadem o palco antes que o personagem principal pudesse apresentar-se. Rosa se refere aos sintomas como a "doença da somatização" [sic] de Matheus, ao dizer que o menino "exagera", "faz para chamar atenção, e passa". Já a avó desespera-se com as crises e oferece ao menino o que acredita que lhe falta: brinquedos e o tablet, que se configuram como moedas de troca no jogo de forças travado a cada vez que suas ordens contrariam a vontade de Matheus. Nos encontros, a psicanalista localiza uma dificuldade da criança em relação aos limites, comportamento que produz na mãe uma impaciência e na avó a ação de barganha por intermédio dos brinquedos.

Era preciso dar voz à criança. Matheus se apresenta tímido e quieto na presença da analista, sendo o jogo o passaporte principal para se estabelecer a relação transferencial. Em uma sessão conjunta, na qual a mãe também estava presente, ele traz para a sessão seu jogo preferido. Apesar de ter passado anteriormente pela brinquedoteca, onde ele escolhia o que queria levar para cada sessão, ele insistiu em mostrar o que havia trazido. Pedi que me contasse um pouco mais sobre aquele jogo ao que respondeu que o objetivo era usar cartas com o poder de "atacar para se defender".

Em outra sessão, ele chega com o tablet e apresenta um jogo de espadas e luta. Vai me informando sobre quem ele é no jogo virtual: "o Sombra", que não tem pele. Em diversas sessões, frequentemente escolhe levar para a sala o banco "imobilionário" [sic], no qual, segundo ele, pode ser rico e poderoso, e não ser punido indo para a cadeia. Mas seria esse apenas um jogo de forças em que Matheus precisava ter o poder? E por que escolher "o Sombra" como seu avatar no jogo virtual? Matheus seria a sombra de alguém? Estaria preso em um personagem sem luz que reflete outra vida?

Na construção desta história, alguns elementos começam a chamar a atenção da analista. As movimentações de Matheus nos jogos nos oferecem pouco material para pensar o caso, com exceção da escolha do avatar, o Sombra. Mas o silêncio, que parece permear as relações daquela família, e os segredos velados surgem ruidosos no momento em que Rosa é convidada para uma conversa. Esse momento se dá a partir da percepção de que, nas sessões conjuntas, Rosa se mostra sempre muito aflita e esgotada. Junto à supervisora, a estagiária percebe a necessidade de acolher a angústia de Rosa em sessões individuais, o que se confirma a partir de uma mensagem enviada por ela: "Preciso falar com você, me liga. Estou desesperada, não sei mais o que fazer...".

Na primeira sessão individual, Rosa conta sobre a tentativa de suicídio que precedeu a mensagem em que pedia ajuda. Chegou a encher um copo com veneno, mas diz ter desistido ao pensar no filho. Diante disso, a analista pontua para a mãe possibilidade dos seus conflitos estarem aguçados e transbordando na relação com o filho e com sua própria história. Questionando: "Já que estamos falando da infância de seus filhos, por que não me conta um pouco sobre a sua?".

Rosa tenta se esquivar, pedindo para "pular essa parte" porque tivera uma infância "muito triste". Após hesitar, acaba dizendo a frase que perpassa as sessões seguintes: "Minha infância pode ser caracterizada por duas palavras: rejeição e solidão". Contou que seu pai violentava a mãe, e por isso decidiram sair de casa escondidas. "Minhas primas não gostavam de mim, e minha tia... acho que o que queria mesmo era ficar com as nossas coisas... aí falou pra minha mãe que devia ir embora...".

Na sua narrativa, D. Amélia, sua mãe, casou-se novamente e teve a outra filha, a quem o padrasto oferecera mais carinho, afeto e atenção. "Ele nunca gostou de mim" - diz ela sobre o padrasto. Rosa parece carregar o peso de sentir-se rejeitada, e suas relações são marcadas por sua submissão ao sofrimento em troca da presença do outro, sendo esse o motivo que a trouxe para a clínica queixando-se do filho "sem limites". Afinal, também submetida ao menino em troca de amor, Rosa não poderia contrariá-lo. D. Amélia diz que Rosa não é uma boa mãe e, para realizar a afirmação da mãe, Rosa se ausenta da relação com o filho, permitindo que o menino fique com a avó a maior parte do tempo. O atual marido de Rosa a agride verbal e psicologicamente, e o filho, quando contrariado, prefere a casa da avó, onde as regras são feitas por ele. As crises de Matheus, a angústia e o desânimo notáveis em Rosa, bem como os segredos familiares transbordam sobre um silêncio que a família tentava impor. Segundo Vorcaro (1999),

nas manifestações da criança (aí incluído o que dizem dela), o ciframento da relação da criança à alteridade poderá se distinguir, modulado ao registro imaginário que produz sentido, à articulação significante que apresenta a consistência da criança, e ao real que os causa (Vorcaro, 1999, p. 66).

O sintoma seria então o ciframento em torno do real, a ser decifrado pelo analista. Nesse sentido, não caberia à analista realizar uma retificação objetiva dos comportamentos que diziam da falta de limites impostos ao menino, ou orientar a mãe no sentido de educá-lo e medicá-lo quanto às dores de cabeça. Esses sintomas, assim como o desânimo e o peso no corpo e nas palavras de Rosa, se fizeram linguagem do real dessa família, portanto foram acolhidos no sentido de compreender suas raízes e buscar os significantes envolvidos em sua constituição.

Rosa nos revela que, por vezes, teve vontade de pegar o filho e ir para bem longe, para recomeçar sua vida. "Mas não dá!", diz ela ao sentir-se presa, "arrastar grilhões como os escravos". Ao invés de recomeçar, permite que a mãe interfira na educação do filho, tenha as chaves de sua casa, e seja "sua agenda". Rosa tornou-se escrava de suas repetições, que a fazem, inconscientemente, ocupar o lugar da incapacidade de buscar o próprio desejo.

Nesse sentindo, acreditamos que a história de Rosa, que se refere à sua relação com o seus pais, se reproduz na sua relação com Matheus.

 

A gota d'água: o copo que transborda de veneno

Acreditamos que Matheus é trazido à clínica denunciando, por meio de seus sintomas, a dinâmica psíquica e relacional familiar silenciada, mas que tem se repetido pelas gerações. Rosa não comenta com o filho a própria história, mas atua e atualiza essa história na relação com o filho, ao mesmo tempo que se queixa de não se sentir capaz de educar e impor limites ao filho e, assim como se sentiu desprezada em diversas relações durante a vida, castiga o filho, oferecendo-lhe o que mais parece tê-la machucado: o "desprezo". Dessa equação resta Matheus, um menino sem limites, sem continência, sem pele, sem luz própria, sombra de um outro. Todavia, o "Sombra", seu avatar no jogo virtual, ataca para se defender.

Mãe e filho parecem refletir no corpo conflitos inconscientes. O corpo, segundo a concepção psicanalítica, existe no real da carne, é articulado pela linguagem e tem sua forma na imagem, sendo assim uma constituição subjetiva. Quinet (2010) retoma os preceitos lacanianos para discorrer sobre o corpo determinado pela "lalíngua", ou seja, pelas marcas do discurso materno. O corpo é então compreendido como o eu imaginário, formado a partir de marcas dos ideais do Outro cuja linguagem faz eco movimentando a pulsão e, assim, o corpo do sujeito.

Colette Soler (2009) comenta o termo "Mistérios do corpo falante", utilizado por Lacan em "Mais ainda" para dizer do real em confronto com a linguagem. Sem conseguir escrever a relação sexual inexistente, o sujeito fala com o próprio corpo: do encontro das palavras com o gozo emerge o sintoma capaz de reportar a falta e o desejo do sujeito. O mistério não está, portanto, no verbo que se faz carne, da palavra, "mas o da carne que fala" (Soler, 2009, p. 1). Cada corpo torna-se, então, uma superfície singular misteriosa, que diz da forma como o sujeito lida com o real, com o desejo do Outro e com o próprio desejo. O que as dores e demais "somatizações" de Matheus vêm denunciar em torno do que sustém seus sintomas e sua subjetivação?

Em "Duas notas sobre a criança", Lacan (1969/2003) propõe a ideia de que o sintoma da criança traz pistas do que há de sintomático na estrutura familiar. Pela investigação desse sintoma, e do lugar da criança no desejo do Outro, abrem-se caminhos para compreender a verdade sobre parte do desejo da mãe. Os pais podem estabelecer uma relação amorosa com o filho no modelo narcísico, ou seja, o filho é amado porque representa o eu dos pais no passado, no presente ou no futuro, ou porque foi uma parte dos pais. Nesse caso, é vedada à criança a possibilidade de assumir o próprio desejo e ingressar no processo de subjetivação.

Levantamos, a partir disso, a hipótese de que Rosa estabelece esse tipo de relação com o filho. Como se o filho fosse um espelho da criança que ela foi. O eu de Matheus se constitui nessa relação especular com a mãe. Nesse sentido, Matheus não teria sua própria pele, sendo o eu aqui constituído na relação com outro, numa relação de alteridade que habita eternamente o cerne do eu.

Com o conceito de narcisismo, Freud (1914/1996) formula que o corpo e o sujeito se constituem a partir do outro, sendo a Identificação o conceito que torna efetiva a afirmação de que na origem do eu está o outro. O eu carrega no seu corpo e psiquismo as marcas indeléveis da relação com o outro e, no encontro antecipado do outro com o futuro eu, a primeira realidade a ser configurada é a realidade corporal: "O ego é, primeiro e acima de tudo, um ego corporal; não é simplesmente uma entidade de superfície, mas é, ele próprio, a projeção de uma superfície" (Freud, 1923/1996, p. 40).

O contato com a realidade através do sistema perceptivo (Pcpt) possibilita a formação do ego a partir de uma diferenciação no id. O próprio corpo é peça fundamental nesse processo, pois é a sua superfície que delimita e diferencia os estímulos internos e externos. Assim, podemos pensar em uma codependência entre o corpo e o sistema perceptivo, pois o último possibilita a delimitação do primeiro, mas sem o corpo o sistema perceptivo não teria espaço para atuação qualitativa. Esse corpo é construído na relação com o outro, que através do olhar enche de significado o corpo vazio.

Segundo Lacan (1969/2003), endereça-se ao sujeito um desejo que não é anônimo. No entanto, a criança não há que preencher essa falta, causa do desejo materno, e sim dividi-la entre o desejo materno e aquele endereçado a outro homem, o desejo de mulher. Caso não provoque essa divisão, "o objeto criança sucumbe como dejeto do par genitor, ou, então, entra com a mãe numa relação dual que o alicia" (Miller, 2014, p. 4).

Acreditamos que Matheus sucumbe como objeto de troca no interior da relação entre mãe e filha (Rosa e Amélia) e torna-se a criança rejeitada que ainda reside em Rosa. Esse movimento identificatório pode ser observado no significante utilizado pela mãe que, para castigar as crises opositivas do filho, diz que vai lhe "dar desprezo".

A possibilidade de se oferecer uma escuta psicanalítica orientada para a singularidade de Rosa deu margens para construções a partir do sentido que parecia implícito em uma rede de relacionamentos que foi sendo tecida a partir da linha da fantasia de Rosa, do abandono que sente. Apesar da vontade de ter o filho consigo, a mãe de Matheus dizia sentir-se culpada diante das ameaças de D. Amélia, que simulava passar mal e dizia que morreria caso a filha lhe tirasse o neto. A culpa parece dizer do compromisso criado por Rosa de entregar o filho à mãe, que "deu a vida" para criá-la, e que, sendo aquela que ainda a ajuda com as contas e com os cuidados de seu filho, não a desprezou. Ao mesmo tempo, parece afastar de si o filho que é sua repetição. Matheus, com seus sintomas somáticos, "alimenta na mãe neurótica o motivo da culpabilidade" (Miller, 2014, p. 5), preenchendo seu desejo e causando a angústia pela falta da falta.

A tentativa de suicídio que se materializou através do copo cheio de veneno parece metaforizar a ideia da última "gota d'água" que produz o transbordamento do copo. Essa metáfora nos conduziu à canção de Chico Buarque de Holanda, "Gota d'água", que, inspirada em Medeia, conta a história de uma mãe que assassinou os filhos como forma de vingança frente à traição do marido.

Já lhe dei meu corpo, minha alegria
Já estanquei meu sangue quando fervia
Olha a voz que me resta
Olha a veia que salta
Olha a gota que falta
Pro desfecho da festa
Por favor
Deixe em paz meu coração
Que ele é um pote até aqui de mágoa
E qualquer desatenção, faça não
Pode ser a gota d'água
(Holanda, 1989)

A tentativa materna de represamento de afetos indesejáveis parece falhar. A dor silenciada transborda na ausência da imposição de limites ao filho que, curiosamente, escolhe jogar com o personagem do monstro sem pele, o monstro sombra. Isso pode ser percebido a partir dos relatos da avó e da mãe sobre as crises nervosas de Matheus, que aos berros convence os que estão à sua volta de que a sua ordem deve imperar, ou seja, ataca para se defender. Em casa, o menino faz apenas o que quer, nas sessões em que joga o banco imobiliário diz que quer ser rico para sentir-se poderoso. Além disso, p or um saber que não se sabe, no entanto não deixa de exercer seus efeitos sobre o sujeito, Matheus parece vivenciar o não limite entre si e a mãe, entre o passado desta e o próprio presente. Identificado ao monstro sem pele, ele parece denunciar a falta de continência de suas pulsões, que por vezes se mostram destrutivas, e quiçá por esse motivo tenha escolhido um monstro. Tanta exigência pulsional transborda em seu corpo, que grita por socorro. O sujeito clama por representações capazes de ressignificar sua angústia, delinear sua história e dar sentido ao seu devir.

 

Considerações finais

Desde o nascimento, o sujeito é estrangeiro de si, visto que se constitui a partir de significantes atribuídos pelo Outro cujo discurso atua sobre a subjetividade. Pela relação dual especular, a criança constitui seu eu imaginário a partir do desejo do outro, dos significantes atribuídos por este. O bebê (a') se faz reflexo do desejo materno (a). Caso não haja a intervenção do grande Outro (A) exercendo a função paterna de interdição, a criança não terá espaço para fazer-se emergir como sujeito (S barrado) e ocupará o lugar de objeto a, com vistas a completar a falta materna (Lacan, 1953-1954/1979).

Eis aqui um exemplo da importância da inclusão da família no setting analítico infantil: os sintomas de Matheus vêm denunciar os conflitos psíquicos travados na dinâmica de sua família, a começar por seu lugar no desejo dos pais, que é carregado de rejeição. A falta de limites, tanto daqueles impostos ao menino, quanto os do próprio corpo, dizem do fantasma da mãe, em sua condição de ser submissa para lidar com o real de seu desamparo. Indo além, no contato com a história de Rosa, é possível perceber que o filho representa uma reedição da criança rejeitada que foi e que atua até hoje nos relacionamentos que estabelece.

Nesse sentido, a clínica analítica questiona os significantes mestres que atuam sobre o sujeito, abrindo espaço para que se evidencie a falta-a-ser, causa do desejo, e impulsionando o analisante à criação de sua verdade singular e das próprias saídas para o impasse diante do discurso do Outro (Pinto, 2009). Seguindo os pressupostos de Freud (1914/1996), o que não pode ser deveras recordado deverá ser reconstruído, sendo o analista autor da criação de um saber que venha ressignificar o afeto outrora traumático, o qual circula entre gerações.

Como foi dito anteriormente, o enodamento dos registros do Real, Simbólico e Imaginário se dá a partir dos significantes atribuídos pelo outro. Há que haver uma separação da condição de objeto do desejo do outro, uma desalienação, para que possa se dar a subjetivação, ou seja, o sujeito precisa se (des)envolver, transpor a condição de objeto do fantasma do outro para buscar significantes do próprio desejo (Vorcaro, 1999).

Matheus ocupa um lugar na tragédia da mãe, vivenciada pela família como as tragédias clássicas, regidas pelo destino e pela necessidade (Versa, 2005). Tomado por objeto substituto da satisfação, tampona a falta e obtura o desejo. A prática analítica aqui preconizada considera a necessidade de dar palavra ao silêncio com vistas a criar possibilidades de saída ao que é experienciado como força imutável do destino. A tragédia, quando transformada em drama, pode tornar-se um recurso para que o sujeito se aproprie da história familiar e, portanto, da própria história, e assim esteja apto a reescrever seu desejo.

 

 

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Artigo recebido em: 12/09/2017
Aprovado para publicação em: 10/10/2017

Endereço para correspondência
Ethyene Andrade Costa
E-mail: ethyeneac@hotmail.com
Jacqueline de Oliveira Moreira
E-mail: jackdrawin@yahoo.com.br

 

 

*Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas) - Belo Horizonte, MG, Brasil.
**Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas), Programa de Pós-Graduação em Psicologia - Belo Horizonte, MG, Brasil.

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