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Tempo psicanalitico

versão impressa ISSN 0101-4838versão On-line ISSN 2316-6576

Tempo psicanal. vol.49 no.2 Rio de Janeiro dez. 2017

 

ARTIGOS

 

Considerações sobre o papel do mediador escolar: a função do cuidado

 

Considerations about the role of the school mediator: the role of care

 

 

Paloma Sá Carvalho*

Sociedade de Psicanálise Iracy Doyle - SPID - Brasil
Instituto de Estudos das Complexidades - Brasil
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro - PUCRio - Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O projeto de inclusão escolar tem como princípio básico a incorporação dos alunos com necessidades individuais no ensino regular. A partir daí surge a figura do mediador escolar como um profissional que auxilia a criança no processo de adaptação afetiva e acadêmica. Entretanto, fazer valer o direito à educação para todos não se limita a simplesmente aplicar a lei indiscriminadamente às situações escolares. É preciso pensar nesse assunto com um entendimento mais profundo sobre a questão. O principal objetivo neste artigo é poder refletir, a partir da perspectiva psicanalítica, sobre ética do cuidado, questionando meios e estratégias que viabilizem a inclusão de crianças que necessitam de um acompanhamento mais específico, bem como pensar sobre as dificuldades e particularidades que ela implica.

Palavras-chave: alteridade, inclusão, ambiente, cuidado, mediação.


ABSTRACT

The school inclusion project has as basic principle the incorporation of students with individual needs in regular education. From this comes the figure of the school mediator as a professional who assists the child in the process of affective and academic adaptation. However, asserting the right to education for all is not limited to simply applying the law indiscriminately to school situations. We need to think about this with a deeper understanding of the issue. The main objective of this article is to reflect, from a psychoanalytic perspective, on ethics of care, questioning means and strategies that allow the inclusion of children who need a more specific follow-up, as well as thinking about the difficulties and peculiarities that it implies.

Keywords: inclusion, caution, environment, mediation, Otherness.


 

 

Introdução

O cenário social atual caracteriza-se pela ditadura da aparência, pela qual ser bonito e capaz de um bom desempenho cognitivo são critérios que validam a competência do sujeito. Aqueles que não conseguem atingir tais ideais frequentemente carregam um estigma, sendo fortemente marcados pela falência própria em não atingir os modelos veiculados pelo ideário contemporâneo. Nesse contexto, podemos afirmar que os indivíduos tendem a um comportamento de aversão em relação às pessoas que não seguem os padrões de beleza e competência dominantes. A situação da criança com necessidades específicas nos remete a questões que incluem a complexidade do mundo contemporâneo, onde valores de inclusão se chocam com os valores que vigoram na cultura.

Observa-se assim que simultaneamente a um novo enfoque sobre os sujeitos deficientes, que propõe ações que garantam o acesso e permanência destes no ensino regular, a questão da segregação bem como os estigmas e preconceitos atribuídos a essas pessoas ainda estão fortemente enraizados nas escolas e na sociedade de um modo geral (Goffman, 2013). Segundo Foucault (1996), os processos de exclusão são culturais, são acumulados, nunca vêm sozinhos; se desenvolvem e se reproduzem através do tempo e se entrelaçam no tecido social e se movimentam através das instituições, dos regulamentos, dos saberes, das técnicas e dos dispositivos que se instalam na cultura.

O princípio básico da inclusão escolar é a inserção dos alunos com necessidades individuais no ensino regular. Nesse sentido se faz necessário considerar a prática do cuidado não apenas como algo fundamental para o exercício da mediação escolar como também para a sua própria efetivação. Sendo assim, é necessário discutir e contextualizar a figura do mediador que atua como um profissional que auxilia a criança no processo de adaptação afetiva, social e acadêmica.

A mediação escolar passou a se tornar mais frequente a partir da Convenção de Salamanca (1994). Desde então as instituições de ensino tiveram que incluir todas as crianças que careciam de uma ajuda mais especializada em sala de aula. Entretanto, fazer valer o direito à educação para todos não se limita exclusivamente a cumprir com o que está na lei e aplicá-la indiscriminadamente às situações pedagógicas que envolvem o cotidiano dos alunos.

O cuidar no contexto da mediação escolar considera o reconhecimento da dimensão humana, o enfrentamento do abuso e dos processos traumáticos que muitas vezes levam a criança estigmatizada a perder o prazer pela vida devido a uma série de preconceitos e obstáculos que a impedem de participar ativamente da sociedade de um modo geral, prejudicando assim a passagem de valores e referências culturais. O olhar de cuidado amoroso e responsável da família e do mediador escolar recompõe os vínculos de humanidade solidária em contraponto à mercantilização do cuidado e do afeto em relação à infância.

Sendo assim, para que o processo de inclusão aconteça é preciso uma mudança de paradigmas, compreender e aceitar o outro em suas diferenças, abrir horizontes, desejar e realizar mudanças profundas nas práticas educacionais e de saúde, proporcionando assim um ambiente que favoreça o desenvolvimento físico e emocional da criança. Nesse sentido, o papel do mediador escolar pode ser pensado como de extrema relevância. Paradoxalmente encontra-se ainda pouca literatura sobre essa questão.

Portanto, o principal objetivo neste artigo é poder refletir teoricamente, sob a perspectiva da ética e do cuidado, a respeito de meios e estratégias que viabilizem a inclusão de crianças que necessitam de um acompanhamento mais específico bem como pensar sobre as dificuldades e particularidades que ela implica. A inclusão desses alunos envolve aspectos peculiares, pois são sujeitos que na maioria das vezes, possuem uma condição intelectual semelhante a uma construção incompleta, tendo a lentidão como marca principal no processo de amadurecimento intelectual. Entretanto, a inteligência de crianças com deficiência mental apresenta uma elasticidade ao reagir satisfatoriamente à solicitação adequada do meio, sendo fundamental uma ação educativa cuidadosa e adequada para que elas possam estruturar condutas que aparecem espontaneamente no desenvolvimento das outras crianças.

 

O cuidado: aspectos gerais

Ao buscarmos os sinônimos para o verbo cuidar encontramos alguns sentidos bastante interessantes como: tomar conta de, curar, medicar, tutelar, olhar, velar, vigiar, atender, preocupar-se e interessar-se. Para desenvolvermos a temática do cuidado, selecionamos as duas últimas referências: preocupar-se e interessar-se, pois supomos que o cuidado funciona como uma atitude materna que possibilita o desenvolvimento da existência humana como algo inerente ao sujeito, configurando um sentimento de fazer sentido à sua própria vida.

Pode-se afirmar que a atividade de fazer sentido é, na verdade, um processo de "ir fazendo sentido" em que se configura um processo criativo que parte do mais passional e primitivo na experiência humana rumo à articulação e simbolização. "Quando o sentido se cristaliza ou é recebido ou tomado de forma cristalizada, o processo se interrompe e a criatividade se estiola" (Figueiredo, 2012, p. 116). Em virtude dessa experiência de "ir fazendo sentido" existe a ameaça constante de interrupção dessa atividade em que nos deparamos com o não sentido, o real não simbolizado, as forças passionais mais primitivas e até mesmo o traumático em sua dimensão desestruturante.

Para Figueiredo (2012), o processo de fazer sentido deve ser entendido como sempre implicando operações de desligamento, separação e recorte e, simultaneamente, as operações de articulação e reunião - Thânatos (pulsão de morte) e Eros (pulsão de vida). Sendo assim, o sofrimento comparece como um afeto inerente ao fazer sentido, já que tanto nas operações de desligamento como nas de ligação certa violência deve ser exercida.

No ligar e desligar criativos há forças que contrariam os sentidos já estabelecidos, os padrões dominantes, deixando o indivíduo entregue temporariamente ao não sentido (obra dos desligamentos) e ao inesperado (obra de ligações novas e inusitadas). A recusa a este sofrimento bloqueia a atividade, obstrui o trânsito, interrompe o processo de fazer sentido, embora tal interrupção lance e mantenha o sujeito em um estado ainda mais pavoroso, o da dor psíquica em estado bruto, que, eventualmente, nem chega a ser reconhecida como sofrimento mental (Figueiredo, 2012, p. 117).

Assim sendo, os processos e atividades criativas de fazer sentido suscitam sofrimento e só podem avançar em condições em que haja atenuação e modulação desse sofrimento e isso, segundo Figueiredo (2012) ocorre somente no plano da cultura. Caso contrário, o sofrimento produzirá estados de terror e de pavor nos quais poderosos mecanismos de defesa irão se instaurar. Com isso, podemos mencionar alguns exemplos de elementos da cultura que buscam amenizar e dar um contorno ao sofrimento excessivo provenientes das operações de desligar e ligar, separar e articular, como os objetos e fenômenos transicionais (Winnicott, 1975). A criação de fenômenos e objetos transicionais depende exclusivamente das relações com os objetos primários, tema que será desenvolvido mais adiante.

Nesse contexto, observamos que práticas de cuidado costumam fazer parte das obrigações e tarefas específicas de todos os profissionais da área da saúde e da educação, bem como, de um modo geral, estão ligadas a todos aqueles que estão na condição de seres humanos que vivem em sociedade. A introdução de um recém-nascido na vida é marcada por inúmeros acontecimentos e rituais que inauguram o vir-a-ser-humano. Cada cultura, cada sociedade e cada época possuem múltiplos procedimentos específicos relativos ao cuidado do bebê, porém, apesar de tanta diversidade no que se refere às práticas de cuidar, existem características que parecem universais (Figueiredo, 2012).

Segundo Figueiredo (2012), existem rituais de "salvação" que retiram o recém-nascido das trevas do não-ser para colocá-lo entre os vivos e humanos, como, por exemplo, batizado e circuncisão. Tais ritos de passagem integram e reintegram o indivíduo nos dois planos religiosos: o da horizontalidade (solidariedade com os semelhantes) e o da verticalidade (adoração e obediência ao sagrado ou aos mais elevados valores), que são: Primeira Comunhão, Bat Mitzvah, festas de formatura, aniversários, casamentos e etc. Em todos esses procedimentos observamos que há uma separação: separa-se o sujeito das trevas, da natureza, do profano, da loucura, ou da família de origem, para que se possa dar uma nova ligação. O autor ressalta também que existem outros procedimentos como os da pediatria que funcionam como dispositivos de cura e de (re)estabelecimento da saúde. Desse modo, observamos que a criança sempre foi alvo de prescrições e interdições voltadas para promover a sua integridade física e mental e seu ingresso e participação na comunidade humana: cuida-se da alma e cuida-se do corpo.

Independentemente das motivações religiosas ou terapêuticas, acreditamos que o sentido mais profundo de todos os costumes de recepção é o de proporcionar ao bebê uma possibilidade de fazer sentido de sua vida e das vicissitudes de sua existência ao longo do tempo, do nascimento à morte. "Este 'fazer sentido' se dá e é requerido em oposição aos excessos traumáticos da passionalidade primitiva e extrema que uma vida, mesmo a mais simples, comum e pacífica, comporta" (Figueiredo, 2012, p. 134). Logo, fazer sentido significa fazer ligações/erotizar os acontecimentos que ao longo de uma vida evocam e provocam o retorno às experiências da loucura e turbulência caótica emocional. Eros teria a função de reunir partículas fragmentadas da substância viva e criar unidades cada vez mais complexas, buscando preservar o organismo vivo e a espécie. Logo, fazer sentido assemelha-se a constituir para o sujeito uma experiência integrada, uma experiência de integração. Tais experiências não se concebem se não puderem ser primeiramente exercidas, ensinadas e facilitadas pelos cuidados de que somos alvo (Figueiredo, 2012).

Plastino (2009) nos convida a pensar a relação do cuidado com a morte e com a alteridade. Segundo ele, o cuidado se funda em nossa mortalidade, o homem cuida porque sabe, mesmo que sob formas mais ou menos conscientes ou meramente intuitivas da sua própria finitude. Desse modo, o sujeito possui o conhecimento sobre a sua existência, a sua temporalidade e a sua morte e, por isso, cuida. Entretanto, devemos nos atentar à ideia de que, mesmo antes de ser uma ação, o cuidar caracteriza uma atitude e, na ausência dessa atitude que revela a consideração pelo outro e por suas necessidades, as ações de cuidar perdem sua motivação ética. Portanto, o cuidar está diretamente ligado ao reconhecimento da alteridade, à diminuição do narcisismo e da onipotência.

O ato de cuidar revela sua dimensão ética fundamentada no reconhecimento da alteridade que nos remete à própria etimologia da palavra grega éthos da qual deriva ética, que emana dois sentidos: "morada" e "pátria". A palavra ética expõe as condições necessárias ao acontecer humano, ou seja, é o que permite a cada sujeito "morar" no mundo inserido numa comunidade (Safra, 2004). Nessa mesma direção podemos concluir que é na relação primordial com o outro que se constitui a condição fundamental para o vir a ser do sujeito e para o desenvolvimento de sua singularidade. Por isso, tanto o reconhecimento mútuo quanto o sentimento de pertencimento a um coletivo são fatores essenciais para o desenvolvimento emocional do sujeito. Para o autor, o outro não é só alteridade, mas também um lugar que possibilita a inserção daquele que nasce na história dos ancestrais e no futuro que virá. Dessa forma, a dimensão histórica é necessária para o acontecer humano. Logo, não se pode abordar a condição humana esquivando-se de pensar o homem em sua historicidade (Safra, 2004, p. 75).

Em um texto intitulado "O sofrimento humano e as fraturas éticas", Safra (2004) discorre sobre a importância do cuidado materno e as possíveis fraturas éticas que a falta ou o excesso do cuidado da mãe/ambiente com o seu bebê podem acarretar, trazendo à tona consequências traumáticas e formação de comportamentos antissociais e distúrbios narcísicos. Segundo o autor, uma das necessidades fundamentais do sujeito na inauguração do seu éthos é a forma pela qual ele é recebido no mundo pelo outro. Nesse sentido, algumas especificidades nessa recepção podem promover alterações significativas na maneira de ser do bebê, influenciando na sua singularidade e autonomia. Outro importante ponto discutido pelo autor é que na atualidade a mídia nos fornece uma vasta gama de informações por meio de organizações estéticas nas quais a temporalidade se apresenta cada vez mais veloz e mais distante do tempo da corporeidade e da subjetividade humana, contribuindo para inibição do gesto criativo: "A criatividade celebrada pela mídia, na maior parte das vezes, seduz o ser humano com o já estabelecido, com uma imanência sem transcendência, o que leva ao esquecimento de seu gesto, ao esquecimento de si e de suas raízes. A arte e a cultura têm uma possibilidade bastante fecunda de curar o homem contemporâneo por meio de uma ação resistente que abra a memória do éthos humano e de sua ética" (Safra, 2004, p. 140).

Nesse aspecto devemos considerar a impossibilidade da realização de uma vida humana sem a presença de um outro, na medida em que a construção de sentido da vida só pode se dar na interação com a alteridade desde as origens da construção da subjetividade. O outro tem uma função estruturante nos momentos iniciais da experiência psíquica pelo fato de que é através da sua presença que o circuito pulsional se organiza em relação ao campo de objetalidade bem como o circuito do desejo se organiza diante do registro simbólico. Sendo assim, a exclusão da alteridade é sinônimo da exclusão do cuidado, pois não é possível cuidar sem se expor ao outro, como nos diz Plastino (2009):

A desvalorização da alteridade que a perspectiva contemporânea caracteriza tornou-se hegemônica na vida social, sendo necessário assinalar, todavia, a existência de múltiplas e renovadas experiências que resistem a essa dinâmica, contribuindo para aumentar a consciência sobre suas gravíssimas consequências (Plastino, 2009, p. 54).

O psicanalista evidencia que o descaso com as necessidades mais substanciais do outro não se limitou apenas às gerações atuais. A negligência em relação ao outro é algo que podemos encontrar também nas atitudes destrutivas conscientes e intencionais em relação à natureza que revelam os interesses capitalistas de caráter predatório e mortífero em obter lucro. Nesse contexto, analisamos que na atualidade existem diversas práticas que resultam na expansão do individualismo e que contribuem para as inúmeras formas de sofrimentos psíquicos narradas diariamente por nossos analisandos como: solidão, depressão, compulsões e falta de sentido da vida.

Seguindo essa linha de pensamento, consideramos que o surgimento da figura do mediador escolar esbarra com esse campo marcado pelo descuido. Esse profissional surgiu para acompanhar as crianças que necessitavam de auxílio, sendo orientado pelos profissionais que acompanhavam a criança nas terapias de apoio, aliando trocas com a família e a escola. Aos poucos, essa função foi se especializando e ampliando, sendo cada vez mais frequente sua presença em escolas públicas e, principalmente, particulares. O mediador é aquele que busca estabelecer uma relação de respeito e cuidado em relação à criança que pretende acompanhar, o cuidado é um dos princípios básicos do projeto de inclusão escolar, pois o respeito à individualidade e a adaptação do meio às necessidades de cada sujeito são fundamentais para o real caminho da inclusão.

 

A função estruturante do cuidado

A contemporaneidade reforça incessantemente a ideia de que o único tempo a ser valorizado é aquele que pode ser convertido em dinheiro. Bittencourt (2005) chama a atenção para um impasse extremamente relevante e comum que habita o psiquismo humano: como podemos encontrar os valores da construção da vida e conciliar a angústia frente à morte no atual contexto marcado pela cultura capitalista de consumo? Diante dessa questão a autora sugere a retomada do ato de pensar o tempo como Kairós, que é diferente do tempo objetivo sendo ele o tempo subjetivo da experiência, experimentada como energia vital espontânea, sendo também o tempo da experiência compartilhada com o outro, o tempo favorável, oportuno, que cria os significados da vida, como tão bem descreveu Mario Quintana no poema Seiscentos e sessenta e seis (Quintana, 2005, p. 479).

A vida é uns deveres que nós trouxemos para fazer em casa.
Quando se vê, já são 6 horas: há tempo...
Quando se vê, já é 6ª-feira...
Quando se vê, passaram 60 anos...
Agora, é tarde demais para ser reprovado...
E se me dessem - um dia - uma outra oportunidade,
eu nem olhava o relógio
seguia sempre, sempre em frente...
E iria jogando pelo caminho a casca dourada e inútil das horas.

Ao resgatarmos a temática do cuidado podemos retomar as dimensões do preocupar-se e do interessar-se; ela, além de conferir uma ocupação, uma atitude, é, sobretudo, uma preocupação, e a palavra preocupação deve ser entendida no sentido de um empenho amoroso. Com os outros sujeitos, o sujeito não apenas se ocupa, mas se preocupa e para eles dirige sua atenção e deles cuida com dedicação e ternura. Logo, pode-se dizer que cuidar com preocupação e delicadeza supõe que aquele que cuida se empenhe para que o outro realize suas possibilidades existenciais e se torne, ele também, um si mesmo próprio. Cuidam verdadeiramente as pessoas que não apenas se ocupam, mas se preocupam, com solicitude e desvelo, de quem lhes pede acolhimento e ajuda.

No entanto, até mesmo essa maneira de cuidar com zelo e amor precisa ser bem compreendida e não deve ser feita sob a forma de uma manipulação ou de um controle sustentado e orientado por modelos preestabelecidos. Uma tal maneira manipuladora e sufocante de cuidar não disfarça a vontade de dominação que a sustenta. Por isso, excessos também podem acontecer no exercício do cuidado. Quando invasivo, ele impossibilita que o outro consiga ser ele mesmo e realize suas possibilidades a fim de se tornar um si mesmo próprio, isto é um sujeito integrado (Figueiredo, 2012).

Vejamos agora o que a psicanálise freudiana e winnicottiana tem a nos dizer sobre a função estruturante do cuidado na constituição da subjetividade e nas diversas fases de seu desenvolvimento afetivo na dinâmica atual da sociedade que, muitas vezes, confere um lugar ambíguo do cuidado como "serviço" terceirizado. Para nós, a psicanálise ainda pode configurar uma reserva ética na nossa contemporaneidade.

 

O lugar ambíguo do cuidado como "serviço" terceirizado

A psicanálise nos ensina que a experiência da precariedade advém não apenas do desamparo promovido pelas exigências impostas pelo campo pulsional que nos constitui, mas também, e sobretudo, pelo esgarçamento do laço social que, criando uma barreira entre o eu e o outro, nos remete à situação de abandono traumático (Kupermann, 2009, p. 185).

Vivemos em uma época efetivamente traumática, promotora de insensibilidade e de achatamento de subjetividades, Kupermann (2009) denomina brilhantemente de era da insensibilidade aquela em que nossa capacidade de prestar atenção uns nos outros parece drasticamente reduzida. E a negligência com a vida e sua fragilidade caracteriza a base de uma crise civilizatória de grande porte que aponta para diversas situações de descuido consigo próprio e com o outro. Portanto, recuperar essa capacidade nos parece uma tarefa urgente e preciosa, tanto para os agentes de cuidado, como o mediador escolar, no caso, quanto para todos os humanos.

Nessa perspectiva, podemos dizer que tanto as figuras do psicanalista como a do mediador escolar trazem à tona o exercício do testemunho como uma espécie de apelo ao outro na tentativa de representar o irrepresentável traumático, tarefa inevitável e até mesmo impossível, uma vez que o trauma é caracterizado justamente pelo caráter repetitivo, silencioso e indizível. Entretanto, oferecer ao sujeito uma experiência de integração é uma atitude primordial frente ao sofrimento vivido pelas crianças deficientes e estigmatizadas pela sociedade.

É sabido que a competição entre os indivíduos é algo que denota a supervalorização da eficiência e da performance do sujeito contemporâneo frente às demandas sociais: o cuidado passa a ser valorizado como uma técnica a ser consumida, favorecendo assim a desvalorização da alteridade. Dessa forma, a dimensão ética do cuidar vai de encontro à lógica operante na dinâmica econômica, social e política e revela, segundo Plastino (2009) uma profunda crise que afeta seriamente o futuro da espécie.

Concomitantemente, podemos observar no cenário contemporâneo inúmeras situações de descuido, a falta de respeito a uma ética da vida e da sua preservação é fortemente evidenciada em situações do nosso cotidiano. A negligência e a ausência de solidariedade entre as pessoas e o descuido do Estado em relação aos seus próprios cidadãos são exemplos dos tempos atuais. Sendo assim, Costa (2009) faz uma importante contribuição para a discussão sobre a falta de cuidado na contemporaneidade, na qual articula o cuidado à preservação da vida. O autor traz à tona a questão da transitoriedade da existência humana e relaciona a tomada de consciência da própria morte com o ato de cuidar.

O cuidado condiz à humanidade do homem, é um ânimo de que todos participam, é a nossa arte contra a morte. Por isso, o homem é e ao mesmo tempo existe num mundo em que desfila os seus paradoxos, a sua ambiguidade igualmente inevitável, as suas insuperáveis contradições. O homem passeia pelo mundo, gozando a duração de sua vida sob a qualidade de artista: um artista cujas artes são todas um zelo pela vida. Com elas ele cuida da sua vitalidade e também da sua vivência, o desejo, talvez insano, de inventar uma felicidade possível, de emprestar, enfim, felicidade e bem-estar a uma vida mortal e que, sendo mortal, sempre já é uma frustração e sempre já nos revela o desagradável, a contradição (Costa, 2009, p. 44).

Freud (1926/1996), em "Inibição, sintoma e angústia", ressalta que o estado de desamparo (Hilflosigkeit), que revela a situação de total incapacidade em que se encontra o recém-nascido de poder ajudar a si mesmo, caracteriza o ser humano desde o seu nascimento e definirá a sua experiência de vida todas as vezes que o psiquismo tiver que se haver com a ameaça de desintegração traumática provocada pelos excessos pulsionais. Para Freud, o outro tem uma função estruturante principalmente nos primórdios da experiência psíquica, pois é através da sua presença que o circuito pulsional se organiza em relação a um campo de objetalidade, assim como o circuito do desejo se organiza diante do registro simbólico.

Freud (1926/1996), ao se debruçar sobre o conceito de Hilflosigkeit , levou em consideração tanto a imaturidade biológica quanto a imaturidade psíquica do bebê, aliadas ao fato de o homem ser, quando nasce, o mais desamparado de todos os animais, escreveu: "por isso o valor do objeto único que pode proteger contra os perigos e substituir a vida intrauterina perdida é enormemente elevado [...] e cria a necessidade de ser amado que jamais abandonará o ser humano" (Freud, 1926/1996, p. 293). A partir desse momento, fica claro que o cuidado, enquanto empenho amoroso em resposta à necessidade primordial que toda criança tem de ser amada, deve acompanhar o ser humano por toda a sua vida. Portanto, o cuidado como expressão de solicitude e de dedicação não só permite a existência do recém-nascido, mas assegura ao ser humano sentimento de confiança e de segurança indispensável para enfrentar e superar as dificuldades que não faltarão durante toda a sua existência.

Entretanto, a ameaça de perda de amor do outro proveniente da herança privilegiada das primeiras experiências de satisfação proporcionadas ao sujeito pela presença do outro, se revela através da angústia do abandono que acaba sendo a maior motivação para a direção adotada pelos seus atos (Kupermann, 2009).

Em 1928a, Ferenczi, diante os impasses trazidos por seus analisandos severamente comprometidos em sua competência simbólica e criativa, opera uma reviravolta com seu artigo "A adaptação da família à criança" em que enfatiza o papel do ambiente na constituição da subjetividade da criança em oposição à leitura predominante na psicanálise, que enfatizava sua natureza pulsional e o consequente estado de desamparo a que o sujeito está condenado até o fim de seus dias. No ano posterior podemos encontrar em "A criança mal acolhida e sua pulsão de morte", 1929, a reafirmação da importância do ambiente para o processo de subjetivação da criança. As subjetividades traumatizadas com que o psicanalista se deparava em seu consultório advinham do fato de terem sido "hóspedes não bem-vindos na família [...] todos os indícios confirmam que essas crianças registraram bem os sinais conscientes e inconscientes de aversão ou de impaciência da mãe, e que sua vontade de viver viu-se desde então quebrada" (Ferenczi, 1929/2011, p. 193). Portanto, o acolhimento necessário à experiência lúdica e criativa não havia sido experimentado pelos sujeitos em questão:

o nascimento é um verdadeiro triunfo, exemplar para toda a vida. Consideremos os fatos em detalhe: a sufocação ameaçadora tem imediatamente fim, pois os pulmões estão a postos e começam a funcionar desde o instante em que cessa a circulação umbilical; o ventrículo esquerdo, inativo até então, entra em função de forma enérgica. A essa ajuda fisiológica cumpre adicionar o instinto dos pais, que os impele a tornar a situação do recém-nascido tão agradável quanto possível; o bebê é deitado no quente, protegido ao máximo das excitações ópticas e acústicas incomodas; eles fazem a criança esquecer efetivamente o que se passou, como se nada tivesse acontecido (Ferenczi, 1928a/2011, p. 5).

Desse modo, Ferenczi, ao descrever o nascimento como um verdadeiro triunfo indica não somente a influência dos fatores biológicos de maturação do bebê (tecidos pulmonares, aparelho digestivo, respiratório e etc.) no processo de nascimento, mas assinala também a importância da preparação do ambiente pela família, mais especificamente pelo casal parental, para a chegada e cuidados dedicados ao recém-nascido. Tais medidas de cuidado aliadas à experiência de onipotência proporcionadas pelo ambiente acolhedor configuram o eixo fundamental para que a subjetividade, em seu movimento de expansão, passe a se constituir.

Assim, a hospitalidade apresenta-se como princípio salvaguardado tanto pela psicanálise quanto pela mediação escolar, que pretendem propiciar a emergência de processos de singularização dos sujeitos em questão. Caso a criança ou analisando não encontre essa atitude amável, cordial e atenta no adulto, uma série de atitudes defensivas e resistentes se instalam e o trabalho analítico se vê atravancado. Segundo Ferenczi (1933/2011, p. 114): "Se mantemos uma atitude fria e pedagógica, mesmo na presença de um paciente em opistótonos, quebramos o ultimo vínculo que nos liga a ele". Através da hospitalidade "permite-se tais pacientes desfrutar pela primeira vez a irresponsabilidade da infância, o que equivale a introduzir impulsos de vitalidade positivos e razões para se continuar existindo" (Ferenczi, 1933/2011, p. 120).

Nesse sentido, podemos constatar que, tanto na clínica orientada pela ética do cuidado quanto no trabalho de mediação escolar, não é uma dissimetria radical de posições entre aquele que cuida e aquele que é alvo de cuidado. O ponto mais delicado segundo Kupermann (2009, p. 194) "é o encontro de linguagens de interlocução que se dá entre analista e analisando [...] ao conceber que o analista se debruça sobre a criança presente em cada analisando - não apenas através do instrumento interpretativo mas, sobretudo, investindo na qualidade no plano de afetação". Sendo assim, pensamos que não se trata de falar da criança e sim de falar com a criança, o que implica na possibilidade de poder construir uma relação que proporciona experimentar, tanto no campo físico quanto no plano psíquico, inúmeros afetos e percepções advindas desse processo.

Portanto, uma das inovações trazidas por Ferenczi é que muitas vezes encontramos no campo psicanalítico duas crianças que, em seu desamparo, falam a mesma língua e constituem uma comunidade de destino e amizade. A partir disso, podemos utilizar essa concepção ferencziana para pensar sobre a relação entre mediador-mediando, na qual duas subjetividades estão em relação e tendo que lidar diariamente com o cotidiano escolar, ambiente que geralmente hostiliza e segrega aqueles que possuem algum tipo de deficiência. Diante de tais adversidades, tanto o mediador quanto o mediando inauguram uma relação não somente marcada pelo desamparo e preconceitos advindos do ambiente em questão, como também vislumbram a construção de um vínculo cuidadoso e amável.

Foi, justamente, o entendimento de que o encontro clínico é definido pelo estabelecimento de uma ressonância empática o que conduziu Ferenczi a buscar uma atuação clínica mais referida ao "coração" do que a "cabeça". Para o enfant terrible da psicanálise, a hipocrisia (recusa dos próprios afetos) do analista é causadora das principais resistências ao trabalho elaborativo (Kupermann, 2009, p. 195).

Para que possamos retomar a temática da função estruturante do cuidado na constituição da subjetividade da criança e nas principais fases do desenvolvimento afetivo não podemos deixar de discutir as ideias concebidas por Winnicott. Ele não só confirma o que disse Freud, mas inaugura novas dimensões de acessibilidade para uma melhor compreensão da função estruturante do cuidado não só na sua perspectiva teórica, mas, sobretudo, na sua perspectiva clínica.

Winnicott (1962/1983) defende que toda criança, desde o momento em que entra no mundo da vida, tem uma tendência natural inata ao amadurecimento e à integração: "A integração está intimamente ligada à função ambiental de segurança" (Winnicott, 1962/1983, p. 60). Todavia, embora essa tendência seja natural, paradoxalmente ela não pode ser realizada naturalmente, pois para isso ela precisa contar com um ambiente favorável que forneça os meios indispensáveis para o recém-nascido poder assegurar a sua continuidade de ser e se desenvolver como um ser vivo e criativo. Somente quando vê assegurada essa continuidade de ser e, desse modo, pode dar um sentido ao seu existir no mundo, a criança consegue sentir-se como um ser vivo e defrontar-se com as dificuldades e as ameaças da existência, entre as quais as mais duras e difíceis serão, seguramente, aquelas do sem-sentido. Portanto, para Winnicott o processo de integração está diretamente relacionado aos cuidados maternos voltados ao recém-nascido.

Inicialmente, o bebê, que não existe sozinho, forma uma só unidade com a sua mãe, na qual ainda não se diferenciam o eu do não-eu. Winnicott (1945/1978) denominou de "dependência absoluta" essa fase do desenvolvimento na qual o bebê encontra, na "mãe suficientemente boa", o ambiente indispensável para satisfazer as suas necessidades fundamentais, tanto fisiológicas quanto psíquicas, e, assim, garantir a sua continuidade de ser. A mãe, por sua vez, também se encontra em uma situação de total adaptação às necessidades do filho, situação que Winnicott (1956) denominou de" preocupação materna primária". Nela, a mãe manifesta seu cuidado materno sob a forma de um holding, um modo de sustentar que significa muito mais do que uma mera sustentação física, pois tem como finalidade garantir a continuidade de ser do bebê, proporcionando-lhe um sentimento de segurança e de confiabilidade no ambiente, sem o que essa continuidade de ser seria impossível. Aqui não se pode deixar de notar o papel decisivo que, para Winnicott, o cuidado tem na emergência do sujeito. Portanto, é a mãe, enquanto ambiente facilitador, que torna possível ao bebê fazer a sua experiência de vida sem sofrer grandes rupturas e interrupções, para, desse modo, atualizar suas possibilidades e construir gradativamente o seu si mesmo, o seu verdadeiro self.

Quando encontra no cuidado materno esse ambiente facilitador, o bebê sente-se confiante e pode gradativamente ir lançando mão de seu potencial criativo para começar a fazer a sua descoberta do mundo e dar sentido ao seu existir. Portanto, para Winnicott (1962/1983), é de importância decisiva não só a adaptação do bebê ao ambiente facilitador, mas também a adaptação do ambiente às necessidades e aos gestos criativos do bebê. Por causa do cuidado da mãe suficientemente boa, o bebê poderá vivenciar, no seu imaginário, uma ilusão de onipotência que lhe vem da união com a mãe, que para ele é onipotente, e começa, então, a se sentir capaz de criar seus objetos, primeiro no campo lúdico do brincar e, depois, no mundo da realidade externa.

Entretanto, quando nesse estágio inicial do desenvolvimento acontecem falhas significativas nos cuidados maternos e o ambiente deixa de ser favorável, a continuidade de ser do bebê fica ameaçada pelo perigo daquilo que Winnicott (1962/1983) chamou de angústias impensáveis. Os ataques aos quais ele se expõe e submete por falta de um ambiente facilitador provocam traumas e reações excessivas que irão submergi-lo não apenas em um sentimento de frustração difícil de suportar, mas em uma verdadeira angústia de aniquilamento. Posteriormente, na fase que Winnicott (1945/1978) denominou de dependência relativa, a desadaptação gradual da mãe facilitará o processo de realização referente à aquisição do sentido de realidade. Essa fase também será marcada pela função estruturante do cuidado materno, indispensável para assegurar que a passagem da não-integração para a fase da integração aconteça também sem rupturas traumatizantes, de modo que o bebê possa continuar construindo um sentido de si mesmo em um mundo mais confiável. Se assim não for, no momento em que ele se confrontar com os objetos que lhe serão apresentados pelo objeto subjetivo, essa apresentação será vivida como uma invasão agressiva e, para se defender, ele se fechará numa atitude defensiva de natureza autista que poderá ter consequências desastrosas para o desenvolvimento de sua vida psíquica. Sendo assim, é fundamental pensar que todos esses estágios que compõem o processo do desenvolvimento afetivo não são assegurados nem garantidos ao bebê em virtude de uma estruturação inata e natural, são o resultado de várias conquistas que só os cuidados de uma mãe suficientemente boa podem assegurar.

Ainda na passagem da dependência absoluta para a dependência relativa, a experiência de ilusão que a criança vive, alimentada pelas fantasias de onipotência, irá se confrontar com a experiência da desilusão, que a gradativa desadaptação da mãe-ambiente e o encontro com o mundo da realidade externa necessariamente provocam. Note-se, porém, que, nessa confrontação, é a fantasia ilusória de onipotência que é destruída e não a própria ilusão ou a capacidade imaginativa da criança, pois elas têm um grande poder criativo (Kupermann, 2009.

Assim sendo, a capacidade criativa da criança vai prosseguir se manifestando na criação dos objetos transicionais(Winnicott, 1975), por meio dos quais ela começa a substituir seus objetos subjetivos da fase da dependência absoluta pelos objetos objetivamente percebidos da fase que se dirige rumo à independência. Além do mais, com a passagem do eu para a alteridade, surge, no processo de amadurecimento, uma área intermediária entre o mundo interno e o mundo externo, entre o objeto-subjetivo e o objeto objetivamente percebido, que Winnicott designou como um espaço potencial, onde a criatividade da criança vai ser exercida seja no seu brincar solitário, seja no brincar compartilhado, e, depois, no trabalho criativo do adulto, por meio do qual serão enriquecidas as diversas formas simbólicas da nossa cultura: a ciência, a arte, a religião. Para dizê-lo com as palavras do próprio Winnicott (1975, p. 63): "É no brincar e somente no brincar que o indivíduo, criança ou adulto, pode ser criativo e utilizar sua personalidade integral: e é somente sendo criativo que o indivíduo descobre o si mesmo, o self ".

A partir do que foi dito, pode-se afirmar que, na teoria winnicottiana, o cuidado e, especialmente, o cuidado materno são fatores estruturantes da subjetividade e têm um papel decisivo no desenvolvimento afetivo do ser humano.

Levando em consideração a abordagem trazida por Figueiredo, Plastino e Kupermann, e as reflexões teóricas de Freud, Ferenczi e Winnicott, constatamos diversos ensinamentos sobre a função estruturante do cuidado, tanto na constituição da subjetividade do ser humano quanto no seu desenvolvimento afetivo. A partir daqui pretendemos refletir sobre as condições que nos permitem fazer da mediação escolar uma verdadeira prática de cuidado. Podemos aqui aproximar a clínica psicanalítica e a prática da mediação escolar, uma vez que tanto o ato de clinicar quanto o de mediar não se reduz a uma mera ocupação profissional; clinicar/ mediar, para nós, é dedicar-se ao analisando/mediando com preocupação, solicitude e desvelo.

Cada sujeito, na sua singularidade e na particularidade de suas demandas, espera de seu mediador um acolhimento afetuoso e uma dedicação solícita a fim de poder fazer cada vez mais seu o seu modo de ser e de existir, tornando-se, como diria Winnicott, um self verdadeiro. A criatividade, por sua vez, depende da competência do ambiente em propiciar a passagem gradativa para a independência a partir da qual a criança transitará em direção a uma contínua e gradual adaptação ao sentido de realidade por meio de um processo evolutivo que passa dos fenômenos transicionais para o brincar isolado, deste para o brincar compartilhado e, finalmente, para o trabalho criativo realizado nas experiências culturais, por meio das quais o homem contribuirá para enriquecer o patrimônio cultural e espiritual da humanidade (Winnicott, 1975).

Essa abertura para a criatividade pela mediação do lúdico que Winnicott destacou na clínica das crianças é válida também para a análise dos adultos, na medida em que se puder contar com a disponibilidade afetiva do analista. Ferenczi (1928b/2011) resume essa disponibilidade com a palavra Einfühlung, que, etimologicamente, significa sentir dentro do outro e que, geralmente, se traduz por "empatia". O que o outro pensa, sente e deseja, antes de ser compreendido, precisa ser experimentado. No momento da empatia, o eu coincide momentaneamente com o outro e isso faz da empatia uma fonte de insight e dá ao afeto uma dimensão poética, na qual e por meio da qual se pode dizer: "só se conhece bem o que se ama". Quando se tem empatia, procede-se com mais tato e, mais facilmente, se tem simpatia; e, como disse Ferenczi (1931/2011): sem simpatia, nenhum tratamento.

Em contrapartida, a sociedade contemporânea articula-se de forma bem diferente, é recorrente ouvirmos que vivemos um momento de chegada, ou melhor, no limite do nosso processo civilizatório, no qual atravessamos profundas transformações, tanto em nível micro quanto macrossocial (Maia, 2009). Na experiência diária, podemos observar o esgarçamento de códigos morais e níveis de empobrecimento brutais que apontam para um descuido generalizado. Segundo Maia (2009, p. 358), "o descuido abrange desde as relações das instituições estatais com os cidadãos até as relações afetivas e familiares". Há um sentimento de exclusão, de pavor do futuro e a sensação de risco eminente que são facilmente identificados nas falas dos sujeitos, sob a sombra do descuido existe um sentimento subjetivo de exclusão que atinge até mesmo os "bem-sucedidos" em nossa cultura. Para Maia (2009), ao considerarmos o consumo como uma marca central e o único bem de valor (afetivo), somos capturados por uma perigosa armadilha e de difícil resolução:

A "felicidade" (euforia) do consumo é instantânea e passageira, e sua "ressaca" é o próprio sentimento de exclusão, já que somos instados a desejar consumir todo o tempo e sempre seremos excluídos das próximas "novidades da estação". Ao cair nessa armadilha o sujeito se sente irritadiço como um adicto, procurando na próxima dose o simulacro de felicidade já experimentado (Maia, 2009, p. 358).

A lógica do consumo atinge diretamente os laços sociais, trazendo o descuido para o centro das experiências afetivas, estamos num tempo em que todos reclamam de solidão, mas, contraditoriamente, há uma profunda impossibilidade para a experiência amorosa alteritária - quero estar com o outro, mas não consigo, quero estar com o outro, mas sem o outro, pois na lógica do consumo a relação entre duas pessoas se dá pelo uso.

Contudo, podemos observar o crescente processo de terceirização do cuidado: o número de creches, berçários, cursos de especializações para babás, manuais de como cuidar do seu bebê e etc revelam que, no contexto do neoliberalismo, as relações humanas se veem cada vez mais reduzidas aos aspectos econômico-financeiros e nesse âmbito as práticas de cuidado passaram a ser mais um bem a ser consumido, principalmente por parte dos pais extremamente e até desumanamente ocupados com suas profissões.

Podemos observar que, no que diz respeito aos agentes dos cuidados, as defesas patológicas contra as experiências do não sentido são incompatíveis com os cuidados exercidos de forma equilibrada e espontânea. Nesse conexo, na ausência de "cuidadores naturais" prolifera a demanda pelos especialistas, segundo Figueiredo (2012, p. 150): "tudo ficaria resolvido se tais especializações, com seus rituais e procedimentos codificados, habilitassem o sujeito efetivamente para as tarefas de cuidar. Não é o caso. As tarefas de cuidado vão muito além do que se ensina e prescreve".

Desse modo, Figueiredo (2012, p. 148) afirma que a capacidade de indivíduos, famílias, grupos e instituições como fornecedoras de cuidado parece estar em crise, pois elas mesmas passam por um período de descontinuidade e descrédito: "nem podem oferecer continuidade aos sujeitos, nem fazê-los sonhar". O psicanalista afirma também que algumas situações comprovaram as falhas nos dispositivos de recolhimento e reconhecimento possíveis, tais como: a proliferação de ideologias e partidos totalitários em meados do século passado e a luta feroz e competitiva por reconhecimento na sociedade neoliberal. Portanto, uma sociedade marcada pela competição e pelo culto à imagem revela, pelo avesso, as graves deficiências em mecanismos sociais de reconhecimento dos indivíduos e suas singularidades.

Os fenômenos do totalitarismo, por seu turno, trazem à tona a intensa demanda de inclusão em ambientes e objetos capazes de sustentação e continência. Na mesma direção, o ressurgimento e expansão do fanatismo nos fundamentalismos religiosos, parecem corresponder, no plano macrossocial, às irrupções da reparação maníaca: trata-se de incluir a todo custo, doa a quem doer - se preciso for, com o uso da força e da tortura. É justamente a massa de indivíduos avulsos e desamparados a que mais se sente atraída pelas promessas de englobamento absoluto proferidas pelos partidos totalitários e pelos líderes religiosos (Figueiredo, 2012, p. 149).

É preciso, por outro lado, estar atento ao exagero das funções de cuidado, isso é, os exageros das chamadas à vida, às falas e à ordem podem contribuir para a produção de subjetividades cronicamente traumatizadas e defendidas. Por outro lado, a nossa tão cara presença reservada pode facilmente se converter em distância afetiva e indiferença. Os fenômenos sociais e políticos do totalitarismo podem ter também uma função defensiva contra o trauma e contra a indiferença, bem como pode ter a mesma função subjetiva o narcisismo exacerbado que se encontra nessa mescla de competividade e representação, evidente no ambiente narcisista liberal.

 

Considerações finais

De tudo ficaram três coisas...
A certeza de que estamos começando...
A certeza de que é preciso continuar...
A certeza de que podemos ser interrompidos
antes de terminar...
Façamos da interrupção um caminho novo...
Da quedam um passo de dança...
Do medo, uma escada...
Do sonho, uma ponte...
Da procura, um encontro!
(Sabino, 1923/1981, p. 200)

Diante tudo que foi discutido observamos que a nossa capacidade de prestar atenção uns nos outros, parece drasticamente reduzida; assim, recuperar essa capacidade parece uma tarefa urgente e preciosa, tanto para os agentes de cuidado quanto para todos os seres humanos. Acreditamos que essa seja a única maneira de dar à vida que levamos e ao mundo em que vivemos sentido e valor.

Logo, falar de cuidado não significa falar de seu lugar institucionalizado, o cuidado precisa ser pensado como uma ação que se expressa na experiência de existir-com-o-outro mediante a existência de um campo de afetação que se abre sempre à possibilidade de uma reinauguração subjetiva, propiciando uma reapropriação dos modos fundamentais de subjetivação. Portanto, para criar sujeitos como pessoas integradas é preciso que haja uma delicada rede que implica o eu e os outros, sendo estes interligados pelo cuidado.

Apesar de vivermos imersos nas práticas e nos discursos que se referem à questão da inclusão escolar, observamos que ainda é preciso buscar não somente balizas teóricas como também arcabouços que possam legitimar e garantir a função do mediador escolar em todas as instituições educacionais, públicas e privadas. As características da instituição escolar em nossa sociedade se relacionam a um ideal meritocrático, privatizante, competitivo e segregatório que impede o acesso pleno ao segmento populacional das pessoas com deficiências. Apesar de ter acesso ao ensino regular garantido por lei, constatamos que o caminho para a inclusão dessas crianças ainda é longo e ardiloso. Portanto, é um desafio permanente, temos que continuar lançando questões a nós mesmos, para que uma educação de qualidade seja a meta da educação em geral.

Temos o dever de pensar a experiência de viver o coletivo e de ter nossas condutas dirigidas de forma mais coerente com a noção de direito, nesse caso, à educação para todos. Estar aberto ao outro não é uma tarefa fácil, pois quanto mais festejamos a diferença no Brasil, tomada como sinônimo de diversidade e de identidade, mais trilhamos o caminho inverso àquilo que seria estar disposto ao outro, a sua presença, à alteridade, estabelecendo assim, a ordem da segregação e da exclusão.

 

 

Referências

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Artigo recebido em: 10/10/2015
Aprovado para publicação em: 01/02/2016

Endereço para correspondência
Paloma Sá Carvalho
E-mail: palomapsicanalista@hotmail.com

 

 

*Psicóloga, membro da Sociedade de Psicanálise Iracy Doyle - Rio de Janeiro, RJ, Brasil; membro do Instituto de Estudos das Complexidades - Rio de Janeiro, RJ, Brasil; mestranda no Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica/ PUC - Rio de Janeiro, RJ, Brasil.

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