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Tempo psicanalitico
versão impressa ISSN 0101-4838versão On-line ISSN 2316-6576
Tempo psicanal. vol.50 no.1 Rio de Janeiro jan./jun. 2018
ARTIGOS
O trabalho do negativo e suas vinculações com as pulsões de vida e de morte
The work of the negative and its relationship to the life and death drives
Le travail du négatif et ses liens avec les pulsions de vie et de mort
Arthur KottlerI*; Silvia Abu-Jamra ZornigI, II**
IPontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro - PUC-Rio - Brasil
IISociedade de Psicanálise Iracy Doyle - SPID - Brasil
RESUMO
Pretendemos no presente trabalho investigar algumas contribuições originais de André Green trazidas pelo conceito de "trabalho do negativo", a partir de suas vinculações com as metas das pulsões de vida e de morte, resultando no que o autor designou de "função objetalizante" e "função desobjetalizante". Considerando o papel do objeto primário para a constituição psíquica do sujeito, tomamos o desligamento por ele operado no trabalho do negativo como eixo de compreensão, propondo uma leitura na qual a função desobjetalizante desse objeto estaria também associada à sua própria pulsão de vida.
Palavras-chave: André Green, trabalho do negativo, pulsões, função objetalizante, função desobjetalizante.
ABSTRACT
This paper analyzes some of Andre Green's original contributions regarding the concept of the "work of the negative", particularly its relationship to "the objectalizing and disobjectalizing function" of the life and death drives. It also stresses the fundamental role of the primary object's investment for the psychic constitution of the subject, indicating however that the object's disobjectalizing function is as primordial as the objectalizing one and can also be put to the service of life drives.
Keywords: André Green, work of the negative, drives, objectalizing function, disobjectalizing function.
RÉSUMÉ
Dans ce texte, les auteurs analysent les contributions uniques d'André Green sur le concept de "travail du négatif" à partir de son lien avec les objectifs des pulsions de vie et de mort dans le sens de ce que l'auteur a appelé "la fonction objectalisante" et "la fonction désobjectalisante". Considérant le rôle de l'objet primaire dans la constitution psychique du sujet, les auteurs font l'hypothèse de considérer le desinvestissement de l'object opéré par le travail du négatif, sa fonction désobjectalisante, comme manifestation de la pulsion de vie.
Mots-clés: André Green, travail du négatif, pulsions, fonction objectalisante, fonction désobjectalisante.
Introdução
André Green (1927-2012) buscou criar uma teoria para descrever operações psíquicas relativas à temática do negativo, designando-as pela expressão "trabalho do negativo". Sua rica concepção decorre de amplo estudo, o qual tem a obra freudiana não só como ponto de partida, mas também como ponto transversal, atravessando desse modo toda sua construção desse conceito, culminando na publicação em 1993 de seu livro Le travail du négatif.
Podemos encontrar na obra freudiana referências explícitas ao termo "negativo", as quais Green utilizou para a elaboração de sua teoria acerca do trabalho do negativo, são elas: a alucinação negativa, a transferência negativa, a reação terapêutica negativa, a neurose como negativo da perversão e o artigo "A negativa" - Verneinung - (Freud, 1925/1996). Quanto a este último, o autor confere relevante destaque afirmando: "Esse artigo por si só justificaria o conceito de trabalho do negativo" (Green, 2008, p. 261).
Contudo, como o próprio autor observa, há também na obra freudiana referências menos explícitas à temática do negativo - "traços", como ele próprio indica no livro de 1993 (vindo a constituir o título de um dos capítulos - "Traços do negativo na obra de Freud"), como os do luto associado à perda do objeto, o das representações e suas ligações com a pulsão. O próprio termo "inconsciente", como lembra o autor, já traria subjacente essa marca do negativo, in-consciente (Green, 1993, p. 77-116).
Para Green, o mecanismo de defesa é o elemento que reúne essas concepções freudianas, sendo a teoria do recalcamento ilustrativa desse trabalho do negativo (Green, 2008, p. 260). Nesse sentido, o autor propõe reagrupar a forclusão (Verwerfung), a clivagem ou o repúdio (Verleugnung), a denegação (Verneinung), bem como o recalque (Verdrängung) como formando, em conjunto, o trabalho do negativo (Green, 2000, p. 148). Assim, todos esses registros encontrados na obra freudiana, dos mais aos menos explícitos, articulados entre si, são reunidos pelo autor sob a indicação da temática do negativo, ganhando complexidade própria, vindo a compor parte de seu conceito.
Quanto a sua origem, a qual assumiu a expressão trabalho do negativo, Green (1993) anuncia tê-la "tomado de empréstimo" da filosofia hegeliana, enquadrando-a no referencial da psicanálise e em sua descrição metapsicológica dos fenômenos psíquicos. O autor, contudo, faz referência à origem desse movimento de transposição conceitual de um campo a outro, creditando a Lacan essa primeira apropriação psicanalítica da concepção hegeliana da problemática do negativo2. Mais do que apenas efetuar esse movimento de transposição conceitual, Lacan o inseriu e desenvolveu em sua original obra.
Seguindo seu percurso, descrito de modo condensado pelo próprio Green (Green, 2011, p. 376-377), ante seus questionamentos acerca de uma série de problemáticas, dentre as quais as relações entre a linguagem e a lógica, bem como a própria linguística, Green passa a se distanciar de Lacan e suas concepções a propósito desses temas. O que marca sua saída do campo lacaniano, como menciona o próprio autor (Green, 2011), é o artigo "O analista, a simbolização e a ausência no contexto analítico"3, inserido numa coletânea junto a diversos outros textos de sua autoria, em um de seus livros mais relevantes, "La folie privée", publicado em português a partir da edição inglesa, com o título "Sobre a loucura pessoal" (Green, 1988/1993). Após essa ruptura com o campo lacaniano, Green chega às obras dos psicanalistas da Sociedade Britânica de Psicanálise, em particular àquelas de D. W. Winnicott e de Wilfred Bion, dois autores que em muitos aspectos, como ele próprio explicita (Green, 1993), constituem "referências essenciais", para seu próprio pensamento e suas elaborações teóricas, portanto inclusive para a própria concepção do trabalho do negativo.
O "trabalho do negativo" e sua articulação pulsional
Para compreensão do trabalho do negativo em sua articulação pulsional, primeiramente revisitaremos sucintamente em Freud as metas das pulsões de vida e as da pulsão de morte. Desse modo, vale lembrar que o conceito de pulsão de morte foi apresentado por Freud no contexto da virada em sua teoria pulsional - o tournant - de 1920, enquadrado numa dimensão especulativa, contrapondo-se à pulsão de vida, e configurando um novo dualismo pulsional (Freud, 1920/1996).
A formulação que especificamente nos interessa - acerca da ligação e desligamento como objetivos das pulsões - aparecerá, de forma mais explícita, em 1938, apresentada em "Esboço de psicanálise" (Freud, (1940 [1938]/1996). Nesse artigo, dezoito anos após a apresentação da segunda teoria pulsional, permanece o dualismo pulsional, tão caro a Freud, pois seria garantidor do conflito psíquico, por estar no centro dos fatores sobredeterminantes das neuroses de transferência.
Nessa concepção de 1938, a ênfase sobre o conceito de pulsão de morte recai mais sobre ações da ordem da disjunção, da fragmentação, da desunião, nas quais, portanto, se trata de "desfazer conexões" (Freud, (1940 [1938]/1996, p. 161), ou seja, desligar. Permanece nesse texto, contudo, apesar da referida ênfase, a busca pelo objetivo do retorno ao estado inorgânico, como já reivindicado em 1920 (Freud, 1920/1996). Nesse sentido, vale também relembrar que o objetivo da pulsão de vida não sofreu alterações no artigo de 1938, sendo definido por Freud como "estabelecer unidades cada vez maiores e assim preservá-las - em resumo, unir" (Freud, 1940 [1938]/ 1996, p. 161). Desse modo, a meta das pulsões de vida permanecerá a mesma, isto é: contrapor-se ao desligamento de tânatos, buscando assim ligar as excitações.
A exploração da fusão das pulsões de vida e de morte, com suas respectivas atividades de ligação e desligamento, é fundamental para Green elaborar sua teoria acerca do trabalho do negativo, bem como para outras concepções teórico-clínicas ao longo de sua obra. Nessa perspectiva, afirma ter adotado a proposta de Freud a respeito da ligação e do desligamento como mecanismos fundamentais das pulsões de vida e de morte, considerando-as respectivamente, como implicando investimento e desinvestimento (Green, 2002, p. 330). A partir dessa compreensão, o autor acrescenta ainda a hipótese de a pulsão de vida poder incluir em si mesma o desligamento, característica que originalmente era da pulsão de morte (Green, 1993, p. 121-122). Tal hipótese - à qual retornaremos adiante - é sustentada por meio dos mecanismos de intrincação e desintrincação das pulsões de vida e de morte, como podemos ver nas palavras do autor, em seu livro La pensée clinique:
Seria muito simples identificar Eros à ligação e postular que as pulsões de destruição são ilustradas pelo desligamento. Na realidade, penso que seria mais lógico considerar que Eros procede uma combinação que inclui ligações e desligamentos; dito de outro modo, que intrincação e desintrincação podem se suceder no seio do psiquismo animado por um ponto de vista dinâmico (Green, 2002, p. 330; tradução livre nossa).
Nessa perspectiva, a fim de levantarmos subsídios para melhor compreendermos essa formulação de Green - sendo a mesma fundamental para sua elaboração do trabalho do negativo -, revisitamos a seguir, sucintamente, a teoria freudiana a respeito da intrincação e desintrincação das pulsões de vida e de morte.
Fusão e desfusão das pulsões
Junto ao contexto teórico-clínico da segunda teoria pulsional, Freud concebe a associação entre as pulsões de vida e de morte. A esse respeito, explicita: "Se, portanto, não quisermos abandonar a hipótese dos instintos de morte, temos de supor que estão associados, desde o início, com os instintos de vida. Deve-se, porém, admitir que, nesse caso, estaremos trabalhando com uma equação das duas quantidades desconhecidas" (Freud, 1920/1996, p. 67; grifo nosso).
Vemos nessa citação Freud apresentar a formulação da "associação" das pulsões de morte e de vida. É importante notar que, embora intrincadas, elas permanecem como duas forças antagônicas em conflito, afastando assim a possibilidade de um monismo, principal motivo - a defesa deste último - que levou Freud a criticar e rejeitar a continuidade de Jung no campo psicanalítico (Freud, 1914/1996). Progressivamente essa formulação vai ganhando maior complexificação, como pretendemos acompanhar abaixo para, ao final, voltar à concepção do trabalho do negativo.
Essa "associação" das pulsões é também discutida por Freud no contexto da introdução da segunda tópica, em "O ego e o id" (Freud, 1923/1996). Nesse texto, quanto ao aspecto da fusão pulsional que estamos examinando, Freud acrescenta o elemento quantitativo da proporcionalidade. Assim, considerando esse elemento, as pulsões de morte e de vida estariam presentes em todo organismo vivo e em diferentes proporções, acarretando, como desdobramento dessa afirmação, a predominância de uma sobre a outra. O domínio de uma pulsão sobre a outra imprime, evidentemente, toda uma série de efeitos para o funcionamento do aparato psíquico, relativa, por um lado, à pulsão que predomina e, por outro, à menor participação da outra.
Prosseguindo no artigo de 1923, Freud acrescenta ao longo do texto termos sinônimos para o da "associação" das duas pulsões: "fusão", "mistura" e "ligação". Este último, em particular, não só já estava presente na obra freudiana, como ganha progressivamente contornos teóricos próprios na metapsicologia, vindo a compor, ele próprio, um conceito que, posteriormente, será, em parte utilizado por Green, como veremos adiante.
Ainda nesse mesmo artigo, Freud apresenta as possibilidades de, por um lado, haver desproporção nessa fusão, de modo que a ação de uma pulsão prevalece sobre a da outra; e por outro, mais radical, a de não haver a referida fusão. Acerca dessas duas possibilidades, escreve: "Uma vez que tenhamos admitido a ideia de uma fusão das duas classes de instintos um com o outro, a possibilidade de uma desfusão - mais ou menos completa - se impõe a nós" (Freud, 1923/1996, p. 54). Nesse sentido, em outro artigo dez anos mais tarde, Freud chama atenção para o risco psíquico da desfusão, abrindo a possibilidade de processos patológicos: "as fusões também podem desfazer-se, e podemos supor que o funcionamento será afetado de forma muito grave por desfusões dessa espécie" (Freud, 1933 [1932]/1996, p. 107).
Considerando em Freud essas possibilidades de fusão e de desfusão, podemos agora articulá-las ao contexto das ações de ligação e de desligamento das pulsões de vida e de morte. A deflagração da desfusão evocaria a predominância ou, mais radicalmente, a participação isolada e exclusiva de uma dessas duas ações, ligação ou desligamento, adentrando desse modo o campo das patologias. Inversamente, nos casos em que foi possível alcançar a fusão pulsional, haveria, na dinâmica do funcionamento psíquico, um equilíbrio plástico ligação-desligamento entre as duas ações. Nota-se, desse modo, que no contexto da desfusão, mesmo a ligação promovida pela pulsão de vida, se tomada isoladamente - desfusionada -, isto é, sem a ação do desligamento, também provoca efeitos no campo das patologias, o que aponta para nós a relevância do grau de proporcionalidade das duas pulsões e de suas respectivas ações.
A articulação das pulsões - funções objetalizante e desobjetalizante
Considerando todos esses elementos para a elaboração do trabalho do negativo, Green propõe associar as pulsões de vida e de morte e suas atividades de ligação e desligamento a diferentes funções quanto ao laço com os objetos. Assim, para a ação exclusiva de ligação das pulsões de vida a seus objetos, o autor atribui a expressão por ele forjada de função objetalizante, ao passo que atribui à função desobjetalizante a operação psíquica de desligamento dos objetos, imposta exclusivamente pela pulsão de morte (Green, 1990, p. 75-76; Green, 1993, p. 117-126).
Essa formulação, contudo, ganhará ainda novos elementos. Conforme antecipamos acima, Green introduz um acréscimo a respeito da ação da pulsão de vida, propondo assim uma leitura original. Vejamos em suas próprias palavras:
[...] é preciso guardar na memória a ideia de Freud que os grandes mecanismos descritos por ele como características da pulsão de vida e da pulsão de morte são a ligação e o desligamento. Esta ideia é correta, porém insuficiente. A pulsão de vida pode muito bem admitir nela a coexistência destes dois mecanismos de ligação e de desligamento, da mesma maneira que ela pode absorver nela uma parte da pulsão de morte e assim se transforma. As manifestações que disso resultam não são mais interpretáveis no registro próprio da pulsão de morte. Pelo contrário, a pulsão de morte comporta apenas o desligamento (Green, 1993, p. 121-122; grifos nossos).
Vemos nessa citação a originalidade da leitura de Green - no contexto da elaboração teórica do trabalho do negativo - partindo da concepção freudiana para as pulsões de vida e de morte, de suas respectivas atividades de ligação e desligamento (Freud, (1940 [1938]/1996), de incluir, na primeira, metas que, em Freud, seriam exclusivas da última. Nesse sentido, tal originalidade modifica a pulsão de vida, a qual se amplia ao aglutinar o mecanismo de desligamento, até então exclusivo da pulsão de morte. Vê-se, portanto, na citação acima, que a pulsão de vida se transforma, pois passa a acumular em si duas atividades opostas, a de ligar e a de desligar.
Cabe observar que, nessa proposição de Green, em que a pulsão de vida recebe um atributo - o do desligamento - proveniente da pulsão de morte, o mesmo não ocorre com a pulsão de morte, que permanece sem a possibilidade de efetuar ligações, operando apenas desligamentos. Nota-se, portanto, que o autor reserva a expressão "função desobjetalizante" exclusivamente para o desligamento imposto pela pulsão de morte, conforme vimos (Green,1990, p. 75-76) e que retorna mais tarde, no citado livro Le travail du négatif: "Inversamente, a visada da pulsão de morte é cumprir na medida do possível uma função desobjetalizante por meio do desligamento" (Green, 1993, p. 122; grifo do original).
A partir desse original acréscimo apresentado por Green, quanto ao desligamento poder ser também operado pela pulsão de vida, esta passaria então, em sua relação com os objetos, a apresentar dupla função, segundo a hipótese de leitura que estamos propondo. Nela, a pulsão de vida acumularia, além da função objetalizante - de ligar a pulsão ao objeto, tal como Green formula -, também a função desobjetalizante, de desligar essa ligação com os objetos. Nossa hipótese de leitura reside na possibilidade de que a função desobjetalizante estivesse presente tanto como meta da pulsão de morte (como em Green) quanto como meta da pulsão de vida. Cabe, contudo, a ressalva de que Green reserva a expressão "função desobjetalizante" exclusivamente para o desligamento imposto pela pulsão de morte.
Ainda com relação à pulsão de morte, vinculada à função desobjetalizante, Green acrescenta mais uma complexificação ao ser por ele articulada com o que designou de "narcisismo de morte" (Green, 1966-1967/1983), bem como "narcisismo primário negativo" (Green, 1980/1983), em contraposição ao "narcisismo de vida" (Green, 1966-1967/1983) ou ainda "narcisismo primário positivo" (Green, 1980/1983), vinculados à pulsão de vida. Essa hipótese, segundo o autor, parte da interpretação na qual o narcisismo de morte assumiria a propriedade da pulsão de morte, de aspiração ao nível zero de tensão psíquica (Green, 1966-1967/1983).
Desse modo, a busca pela eliminação da tensão do aparato psíquico seria manifestada pela função desobjetalizante, vinculada à pulsão de morte, compreendida por Green como narcisismo de morte. Essa concepção é, nas palavras do autor, sustentada pela "[...] hipótese de um narcisismo negativo como aspiração ao nível zero [de tensão], expressão de uma função desobjetalizante que não se contentaria em referir-se aos objetos ou seus substitutos, mas ao próprio processo objetalizante" (Green, 1993, p. 123; grifo do original). A função desobjetalizante, desse modo, acionada pela pulsão de morte, agiria destruindo os investimentos nos objetos, portanto desfazendo silenciosamente o trabalho de investimento e ligação efetuado pela função objetalizante.
Assim, ao destruir a ligação com o objeto, o aparato psíquico reduziria sua tensão interna, de modo a fazer prevalecer o efeito da função desobjetalizante mortífera sobre o efeito da função objetalizante, remetendo assim à radicalidade da desintrincação das pulsões. Ainda segundo Green (2008, p. 271), num contexto extremo, após a retirada do investimento nos objetos, o narcisismo negativo impõe ainda um desinvestimento no próprio eu, o qual, como efeito dessa dupla retirada de investimentos ficará, como veremos adiante, empobrecido.
Diante de outro contexto em que, ao contrário do examinado acima, as pulsões estejam intrincadas, voltamos à hipótese que estamos levantando - quanto à função desobjetalizante poder estar também a serviço da pulsão de vida. Essa compreensão nos parece admissível pela própria afirmação de Green, que citamos acima: "A pulsão de vida pode muito bem admitir nela a coexistência destes dois mecanismos de ligação e de desligamento"; essa possibilidade nos parece ficar ainda mais admissível na sequência da frase, "[...] ela [pulsão de vida] pode absorver nela uma parte da pulsão de morte e assim se transforma" (Green, 1993, p. 121-122).
Essa transformação da pulsão de vida, aglutinando em si a atividade do desligamento proveniente da pulsão de morte, se deve à possibilidade de essa pulsão não se restringir a efetuar laços com os objetos - como estabelece Freud - mas também podendo desfazê-los, isto é, desobjetalizar. Green acrescenta assim, ainda nessa mesma citação, que esse desligamento, quando efetuado pela pulsão de vida, não pode mais ser tomado e interpretado como sendo um desligamento mortífero, oriundo da pulsão de morte. Em nossa compreensão, esse outro desligamento, não mortífero, é justamente promovido pela função desobjetalizante proveniente da pulsão de vida.
Considerando, como estamos propondo pensar, que a expressão "função desobjetalizante" pode ser proveniente tanto da pulsão de vida quanto da pulsão de morte, e que nos dois casos refere-se à operação psíquica do desligamento, o que marcaria a diferença entre um caso e outro? Entendemos que a resposta gira em torno do efeito, para o sujeito, do desligamento/desobjetalização operado pelo objeto primário. Nessa perspectiva, o desligamento operado por esse objeto primordial sob a égide da pulsão de vida se relacionaria a uma ausência sobre um fundo de presença potencial, tendo efeito estruturante para o sujeito. Inversamente, o desligamento operado pela pulsão de morte se relacionaria ao desinvestimento radical do objeto, com efeito mortífero para o sujeito.
Esse último caso indicaria possivelmente, como veremos adiante, uma certa condição psíquica do objeto materno, acometido por uma depressão - a retirada maciça e abrupta da ligação do objeto com o sujeito, no contexto de sua constituição psíquica (Green, 1980/1983). A ambivalência de presença física e, ao mesmo tempo, ausência afetiva desse objeto desvitalizado, no contexto da dependência absoluta (Winnicott) do sujeito, revelaria o predomínio da função desobjetalizante não como oriunda da pulsão de vida, e sim sob os auspícios da pulsão de morte.
Essa perda súbita e inesperada dos investimentos que o sujeito recebia do objeto, por meio de sua ligação a ele, resulta - como mencionamos - no empobrecimento do eu. O efeito dessa experiência de perda, segundo Green, pode se dar de tal modo que "[...] o próprio Ego se empobrece e se desagrega ao ponto de perder sua consistência, homogeneidade, identidade e organização" (Green, 2008, p. 271).
A gravidade desse eu empobrecido, desorganizado e desagregado lança-o a uma condição de intensa vulnerabilidade psíquica, abrindo as portas para a instalação de um quadro patológico que, ao longo de sua obra, Green designa de "caso-limite". Na origem desse quadro, o objeto não pôde efetuar uma retirada cuidadosa dos investimentos no sujeito, isto é, um desligamento de forma a que este pudesse assimilá-lo. Essa forma cuidadosa, não traumatogênica, de desligamento, seria, como vimos trazendo como hipótese ao longo destas linhas, operada pela função desobjetalizante acionada pelas pulsões de vida desse objeto primário.
O "objeto revelador das pulsões"
Junto a essas proposições, Green inclui um fundamental destaque ao papel do objeto como necessariamente vinculado à pulsão, formando com ela o par pulsão-objeto. Nessa perspectiva, tal par - cada um a partir de sua posição, que não é coberta por uma simetria - estabeleceria as operações psíquicas mencionadas acima, isto é, ligar-investir/desligar-desinvestir. Nesse sentido, considerando o crucial papel do objeto em tais operações, com as funções objetalizante e desobjetalizante, o autor comenta que, fazendo uma espécie de balanço em retrospectiva da teoria freudiana, é possível notar que houve uma falha justamente no que diz respeito à relevância do papel do objeto (Green, 2002, p. 317-319). Essa constatação leva Green a afirmar que foi insuficiente a exploração concedida por Freud no que tange às funções dessa figura (Green, 2002, p. 317-319).
A relevância que Green confere em sua obra ao papel do objeto faz com que este ocupe lugar de protagonismo, junto à pulsão, formando par com ela. Esse lugar, alçado de importância do objeto na teoria de Green, o coloca na cena da constituição psíquica como tendo a função de "ser o revelador da pulsão" ("l'objet est le révélateur des pulsions"), proposição que aparece em diversos momentos da obra do autor (Green, 1993, 2002, 2013). Destacamos aqui uma delas, em que o autor condensa, em poucas palavras, essa formulação: "[...] mesmo se postularmos a pulsão como um dado originário, como matriz do sujeito, este só se desenvolve em relação com o objeto. É nesse sentido que propus considerar o objeto como revelador da pulsão" (Green, 2013, p. 160; grifo nosso). Desse modo, no contexto da constituição psíquica do sujeito - primeira e fundante experiência relacional -, o objeto primário terá como uma de suas funções despertar e estimular uma nascente pulsão, "revelando-a". Estabelece-se assim, a partir desse objeto primordial, um primeiro vínculo, portanto uma primeira ligação, a qual passa por um investimento libidinal.
Nessa mesma direção, quanto à função do objeto de inaugurar essa ligação, estabelecendo uma relação inicial com o sujeito, Green propõe que o objeto materno, ao receber e responder aos movimentos da criança, terá também o papel de favorecer a intrincação entre a libido e a destrutividade (Green, 2002, p. 317). Nesse contexto da constituição psíquica, essa primeira intrincação, favorecida pelo objeto primordial, possibilitará ao aparato psíquico do sujeito uma primeira integração das forças pulsionais antagônicas. Essa intrincação permitirá a própria instauração, no referido aparato psíquico, das metas pulsionais de ligação e desligamento e, como vimos anteriormente, vinculadas a elas, as funções objetalizante e desobjetalizante.
O apagamento do objeto e a constituição da estrutura enquadrante
Refletindo acerca do papel do trabalho do negativo para a operação da constituição do psiquismo, Green retoma a problemática dos vínculos do objeto primário com o sujeito, bem como suas diferentes vicissitudes. Vale lembrar que tal temática foi alvo de numerosos estudos no campo psicanalítico, destacando-se as contribuições não só de D. W. Winnicott, como também as de René Spitz (1979) e John Bowlby (1969/1984; 1973/1984; 1973/1985).
Assim, a partir da retomada da referida problemática, Green afirma que para que o sujeito possa se constituir é necessário o que chamou de apagamento do objeto, o qual produz como efeito a instalação de uma "estrutura enquadrante". Trazemos aqui as palavras do autor:
Quando as condições são favoráveis à inevitável separação entre a mãe e a criança, ocorre no seio do Eu uma mutação decisiva. O objeto materno se apaga [...]. Mas este apagamento da mãe não a faz desaparecer verdadeiramente. O objeto primário torna-se estrutura enquadrante do Eu [...] (Green, 1980/1983, p. 246; grifos nossos).
Esse apagamento do objeto resulta de um trabalho psíquico: trabalho do negativo. Nesse sentido, o uso do termo "trabalho" deixa explícito que essa operação psíquica de apagamento do objeto não se dá de forma espontânea, como algo dado, ou, ainda que ocorra ao acaso, de modo aleatório. Pelo contrário, trata-se de uma tarefa psíquica, uma incumbência na qual a dupla de protagonistas, sujeito e objeto primário, precisa se envolver, ainda que necessariamente em posições diferenciadas, e mesmo assimétricas. Caberia, desse modo, ao sujeito e ao objeto colocarem-se em trabalho psíquico de ligação e de desligamento dessa relação nos primórdios da constituição psíquica.
Considerando tal assimetria, o papel do objeto primário no contexto da constituição psíquica do sujeito deve incluir um desligamento de seu investimento para que o sujeito possa então efetuar um outro trabalho, o trabalho de luto primordial, isto é, o de elaboração psíquica de sua primeira perda objetal. Desse modo, o objeto primordial, a partir de sua pulsão de vida, tem uma função desobjetalizante - como estamos sustentando ao longo deste artigo - a cumprir, a de colocar-se em trabalho psíquico de operar um desligamento do vínculo inicial, como podemos observar nas palavras de Green:
[...] do mesmo modo que um enquadre analítico que preenche sua função deve se fazer esquecer, o que Donnet chamou de enterro do enquadre, eu diria, da mesma maneira, que o objeto absolutamente necessário à elaboração da estrutura psíquica deve se apagar. Ele deve se fazer esquecer como constituinte da estrutura psíquica (Green, 1988, p. 389; grifos nossos).
Nota-se que Green reivindica para a instauração da estrutura psíquica um trabalho do objeto em realizar seu próprio apagamento, apagando, desse modo, o vínculo inicial, isto é, a própria ligação. Nesse caso, retomamos mais uma vez a proposta de Green, mencionada acima (Green, 1993, p. 121-122), de a pulsão de vida - tomada a partir do ângulo do objeto - poder absorver nela o componente do desligamento proveniente da pulsão de morte, vindo assim a se transformar. Nota-se, assim, que a função desobjetalizante do objeto cumpriria seu papel estruturante de desligar essa ligação inicial com o sujeito, no contexto de sua constituição psíquica, apagando-se.
Como efeito deste processo de "apagamento" do objeto, ocorre, no sujeito, a instauração da "estrutura enquadrante", alicerce de seu aparato psíquico, bem como de seu modo de funcionamento. O referido trabalho de apagamento proveniente do objeto, por meio da dinâmica de sua presença e ausência, inaugura e ao mesmo tempo é condição de possibilidade da instauração da capacidade do trabalho de representação psíquica no sujeito. Nesse sentido, sua primeira e fundante representação será a do objeto primário, vindo assim abrir espaço para as vindouras representações. Essa primeira representação do objeto será internalizada pelo sujeito, permitindo-lhe, desse modo, tolerar a ausência do objeto, o que evoca a conhecida descrição de Freud para a instalação da capacidade de representar, a partir do jogo do fort-da (Freud, 1920/1996). Trata-se, desse modo, de um trabalho de luto (Freud, 1917 [1915]/1996), luto singular, um primeiro luto, luto fundamental, dado que incide sobre uma primeira perda, possibilitando a inauguração do trabalho psíquico de representação.
Esse necessário trabalho do luto efetuado pelo sujeito conta, de modo indissociável, com o também trabalho psíquico do objeto em favorecer seu apagamento e assim possibilitar ao sujeito a constituição de sua estrutura enquadrante. Como condição de possibilidade para essa constituição, e ao mesmo tempo seu efeito, coloca-se a instauração da capacidade de representação. Pode-se notar, assim, uma correlação entre a constituição da estrutura enquadrante e a capacidade de representar, mediante a ausência do objeto.
O trabalho psíquico do objeto em apagar-se, movido por sua pulsão de vida, promovendo cuidadosa retirada de investimentos iniciais, nos leva, mais uma vez, a pensar a possibilidade de considerarmos a função desobjetalizante como estruturante para o sujeito. Nessa perspectiva, o que permite que esse desligamento possa se dar em condições não traumatogênicas para o sujeito é a qualidade do vínculo com o objeto, o qual se dá mediante a modulação de sua presença e ausência.
Por outro lado, o desinvestimento quando promovido pela pulsão de morte, por meio da função desobjetalizante, se opõe radicalmente ao trabalho de luto, uma vez que ataca não só o referido vínculo sujeito/objeto, mas principalmente o processo de investimento em si e consequentemente qualquer possibilidade de investimento em objetos representantes do objeto primário (Pirlot, & Cupa, 2012, p. 130).
Ainda com relação a esse vínculo primordial, Winnicott afirma que a ausência prolongada do objeto, no contexto de dependência absoluta, por um tempo maior do que aquilo que o sujeito pode tolerar, acaba por provocar um sentimento de ruptura na continuidade da existência, conflagrando desse modo um trauma:
O sentimento de que a mãe existe dura x minutos. Se a mãe ficar distante mais do que x minutos, então a imago se esmaece e, juntamente com ela, cessa a capacidade do bebê utilizar o símbolo da união. O bebê fica aflito, mas essa aflição é logo corrigida, pois a mãe retorna em x+ y minutos. Em x + y minutos, o bebê não se alterou. Em x + y + z minutos, o bebê ficou traumatizado. Em x + y + z minutos, o retorno da mãe não corrige o estado alterado do bebê. O trauma implica que o bebê experimentou uma ruptura na continuidade da vida [...] (Winnicott, 1971/1975, p. 135; grifos nossos).
Green retoma esse sentimento de "ruptura na continuidade" para conceber o que designou de "complexo da mãe morta", em que tal ocorrência de descontinuidade se coloca. O autor descreve essa experiência em seu famoso ensaio "A mãe morta" (Green, 1980/1983). No referido complexo, o objeto materno súbita e inesperadamente retira seus investimentos no sujeito, deixando o bebê, ou a criança, sem possibilidade de "dar sentido" a essa brusca descatexia. A referida ausência de sentido é experimentada pelo eu como uma vivência de "catástrofe" (Green, 1980/1983, p. 230), provocando um desmoronamento no eu. Essa experiência inicial desfavorável durante a constituição dos processos de simbolização, provoca a instauração de um trauma precoce que Green articula com as problemáticas narcísicas que decorrem da privação afetiva do objeto.
Se retomarmos brevemente os trabalhos de Spitz (1979) e Bowlby (1985) relativos aos efeitos da separação ou perda dos objetos primordiais em bebês e crianças muito pequenas, podemos avançar no desenvolvimento dessa questão. Após a Segunda Guerra Mundial, ambos descreveram um tipo de depressão em bebês e crianças pequenas desencadeada após a perda ou separação prolongada de seus objetos primordiais. No entanto, esses sintomas não se relacionavam somente à falta de investimento quantitativo do adulto sobre o bebê, mas principalmente à falta de investimento afetivo nos cuidados dispensados à criança. Corroborando a noção de Green, a depressão anaclítica proposta por Spitz designa um desinvestimento do bebê na vida, decorrente da falta ou ruptura do investimento de seu ambiente afetivo em suas necessidades emocionais.
Nesse sentido, considerando a influência da obra winnicottiana no pensamento clínico de Green, retomamos a exploração teórica do psicanalista inglês a partir de uma vinheta clínica de um caso de uma paciente adulta, com sintomatologia "esquizoide", por ele atendida (Winnicott, 1971/1975, p. 38-43). Nessa análise, a problemática do negativo aparecia na transferência, sendo por ele caracterizada como uma manifestação em que "[...] a única coisa real é a falta, ou lacuna, isto é, a morte, a ausência ou a amnésia" (Winnicott, 1971/1975, p. 40). A origem do quadro clínico dessa paciente estava vinculada às experiências traumáticas relacionadas à sua precoce separação de seus pais, em função da guerra.
Tomando as contribuições teórico-clínicas de Winnicott relativas ao trauma precoce advindas a partir desse caso, Green busca articulá-las com a problemática do negativo, situando, nesse contexto, os efeitos para o sujeito relativos às falhas do objeto, quando a ausência deste ultrapassa o tempo "x + y minutos" (Winnicott, 1971/1975, p. 135), conforme vimos anteriormente:
Winnicott sugere que as experiências traumáticas que puseram à prova a capacidade da criança de esperar a resposta ardentemente desejada da mãe conduzem, na falta desta resposta, a um estado onde apenas o que é negativo é real. Além disso, a marca destas experiências seria tal que se estenderia a toda a estrutura psíquica e se tornaria independente, por assim dizer, das aparições e desaparições futuras do objeto; o que significa que a presença do objeto não poderia modificar o modelo negativo, tornado a característica das experiências vividas pelo sujeito. O negativo se impôs como uma relação objetal organizada, independente da presença ou da ausência do objeto (Green, 1993, p. 15-16).
Ainda refletindo acerca do papel do objeto na origem dessas experiências traumáticas, no contexto da constituição psíquica do sujeito, retomamos o ensaio de Green citado acima. Nele, o autor afirma que a mãe morta permanece viva, embora desvitalizada, acometida por uma depressão decorrente possivelmente de um luto (Green, 1980/1983). Nota-se que essa condição desvitalizada do objeto opõe-se àquela da mãe winnicottiana, suficientemente boa, capaz de exercer a preocupação materna primária, oferecendo adequada dinâmica de presença e ausência, favorecedora da instauração da primeira e fundante capacidade de representação desse objeto primordial, concomitante à constituição da estrutura enquadrante.
A incapacidade desse objeto de se "apagar", isto é, de promover um desligamento, por meio do que estamos propondo considerar sua função desobjetalizante com efeito estruturante para o sujeito - oriunda da pulsão de vida desse objeto -, dificultará o estabelecimento da estrutura enquadrante. Desse modo, no contexto da constituição psíquica, o aprisionamento do sujeito por esse objeto - dadas as condições psíquicas deste último, como mencionado acima, não permitindo seu apagamento - tem o potencial de prejudicar a própria instauração do trabalho do negativo.
Uma falha no processo que envolve esse referido trabalho trará, desse modo, repercussões para a constituição da estrutura enquadrante, fragilizando precocemente o eu no contexto de sua constituição, deixando marcas sob a forma do que Green designa como "buracos psíquicos" (Green, 1980/1983). Esses "buracos" guardam relação direta com a ausência de sentido diante da súbita e maciça retirada do investimento e da ligação proveniente de uma mãe que, da condição de "suficientemente boa" (Winnicott) passou súbita e inesperadamente à de "mãe morta" (Green, 1980/1983), como vimos acima, imprimindo um "vazio" sobre o eu.
Essa condição psíquica de um eu esvaziado, diante da referida ausência de sentido, possibilitou a Green forjar o que denominou "clínica do vazio" (Green, 1980/1983, 1988/1993) ou "clínica do negativo" (Green, 1980/1983). Essa clínica, cuja problemática narcísica é central - evocando o narcisismo negativo, bem como o narcisismo de morte (Green, 1966-1967/1983), mencionados anteriormente -, revelará, por meio do campo transferencial, as vicissitudes das falhas do trabalho do negativo. Tais falhas se dão nos planos tanto da ligação, quanto do desligamento - sendo ambos acionados pelas pulsões de vida do objeto primário, por meio de sua função desobjetalizante, como vimos propondo ao longo deste estudo -, provocando prejuízos à constituição, para o sujeito, de sua estrutura enquadrante.
Considerações finais
Esperamos com este artigo ter contribuído para a ampliação do estudo sobre a concepção original do que Green designou como trabalho do negativo. Vimos que o autor explora as metas de ligação e de desligamento, provenientes respectivamente da pulsão de vida e da pulsão de morte, apresentadas por Freud no contexto da segunda teoria pulsional (Freud, 1920/1996). Uma das formulações originais de Green a respeito desse conceito refere-se à associação dessas metas a duas diferentes funções, que chamará de objetalizante e desobjetalizante. Considerando as vinculações do trabalho do negativo com as pulsões de vida e de morte, Green propõe, quanto às citadas funções, uma nova visada para a meta da pulsão de vida, em que esta poderia também ser responsável pelo desligamento com os vínculos estabelecidos e mantidos com o objeto (Green, 1993, p. 121-122), à qual acrescentamos, como possibilidade de leitura, a capacidade desta pulsão de também acionar a função desobjetalizante.
Nessa perspectiva, tomando como eixo de compreensão o papel das pulsões do objeto primário para o trabalho do negativo, no contexto da constituição psíquica do sujeito, o êxito desse trabalho incluiria uma dupla atividade, qual seja, a da ligação e do desligamento, ambos promovidos pela pulsão de vida desse objeto. Nesse caso, portanto, como procuramos sustentar ao longo destas linhas, a função desobjetalizante do objeto passa a ser incluída como trabalho de desligamento da pulsão de vida.
Nota-se, por fim, que o desdobramento exitoso do trabalho do negativo, no contexto da constituição psíquica, culmina com a instauração, no sujeito, de uma estrutura enquadrante, que funciona como alicerce de seu modo de funcionamento psíquico. Por outro lado, no campo das psicopatologias, o insucesso do referido trabalho dificultará a instauração dessa estrutura.
Referências
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Artigo recebido em: 05/08/2017
Aprovado para publicação em: 27/02/2018
Endereço para correspondência
Arthur Kottler
E-mail: arthurkottler@yahoo.com.br
Silvia Abu-Jamra Zornig
E-mail: silvia.zornig@terra.com.br
*Psicanalista. Doutorando em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio); Mestre em Teoria Psicanalítica pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ); Especialista em Saúde Mental pelo Instituto de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Membro do LABPSI - Laboratório de Pesquisa: Constituição Psíquica e Clínica Psicanalítica.
**Membro psicanalista da SPID, professora associada do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), Coordenadora do curso de especialização em Psicologia Clínica com Crianças, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Coordenadora do LABPSI - Laboratório de Pesquisa: Constituição Psíquica e Clínica Psicanalítica.
1No Brasil, o livro foi traduzido e publicado em 2010, pela Editora Artmed, recebendo o título O trabalho do negativo. Utilizaremos, ao longo do presente artigo, a versão original, de 1993, com tradução livre, nossa.
2Uma detalhada exposição das origens das problemáticas acerca do negativo é apresentada por Green na introdução do livro, intitulada "Para introduzir o negativo em psicanálise" (Green, 1993, p. 9-27).
3Em nota de rodapé na edição em português, há uma informação de que o artigo citado foi publicado pela primeira vez em 1975, no The International Journal of Psycho-Analysis, 56, tendo sido escrito em homenagem à memória de Winnicott (falecido em 1971).