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Tempo psicanalitico

versão impressa ISSN 0101-4838versão On-line ISSN 2316-6576

Tempo psicanal. vol.50 no.1 Rio de Janeiro jan./jun. 2018

 

ARTIGOS

 

A emergência da inquietante estranheza: um ensaio de análise fílmica de O estudante de Praga

 

The uncanny's emergence: a film analysis essay of The student of Prague

 

La emergencia del inquietante siniestro: un ensayo de análisis fílmico de El estudiante de Praga

 

 

Ana Paula Bellochio ThonesI*; Amadeu WeinmannI**

IUniversidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS - Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este ensaio questiona as razões pelas quais o filme O estudante de Praga é frequentemente tomado como referência para abordar o conceito psicanalítico unheimlich. Propomos como pergunta: a experiência do estranho-familiar poderia ocorrer de acordo com o encadeamento fílmico? Com essa questão no horizonte, analisamos plano a plano uma cena, na qual o personagem Scapinelli visita o quarto do protagonista Balduin e lhe oferece uma quantia em dinheiro em troca de qualquer coisa do estudante que esteja no local. O jovem perde sua imagem especular, que se torna seu duplo, fenômeno apontado por Freud como um dos motivos para o surgimento do afeto unheimlich. Ao dispor-se a renunciar ao florete, que garante a Balduin o registro do Ideal do eu, constatamos que o estudante fica refém de um jogo de imagens que favorece o surgimento da experiência do unheimlich.

Palavras-chave: Estranho, duplo, eu ideal, ideal do eu, análise fílmica.


ABSTRACT

This essay questions the reasons why the movie The student of Prague is frequently taken as reference to approach the unheimlich psychoanalytic concept. We propose as a question: could an uncanny experience occur according to the filmic chain? With this question on the horizon, we analyze shot to shot a scene, in which Scapinelli character visits the Balduin's room, the main character, and offers him an amount of money in exchange for anything in the place that belongs to the student. Balduin loses its mirror image, which becomes a doppelganger, phenomenon pointed by Freud as one of the causes for the appearance of unheimlich. When willing to waive his rapier, which guarantees to Balduin the ego's ideal record, the student becomes hostage of an image game, which favors the unheimlich experience.

Keywords: Uncanny, doppelganger, ideal ego, ego ideal, film analysis.


RESUMEN

Este ensayo cuestiona las razones por las que la película El estudiante de Praga es a menudo tomada como referencia para abordar el concepto psicoanalítico unheimlich. Proponemos como pregunta: ¿la experiencia del siniestro-familiar podría ocurrir de acuerdo con el encadenamiento fílmico? Con esta cuestión en el horizonte, analizamos plan a plan una escena, en la que el personaje Scapinelli visita la habitación del protagonista Balduin y le ofrece una cantidad en dinero a cambio de cualquier cosa del estudiante que esté en el lugar. El joven pierde su imagen especular, que se convierte en su doble, fenómeno señalado por Freud como uno de los motivos para el surgimiento del afecto unheimlich. Al disponerse a renunciar al florete, que garantiza a Balduin el registro del Ideal del yo, constatamos que el estudiante queda rehén de un juego de imágenes que favorece el surgimiento de la experiencia del unheimlich.

Palabras clave: Siniestro, doble, yo ideal, ideal del yo, análisis fílmico.


 

 

Apresentação

O filme O estudante de Praga é uma produção cinematográfica dos primórdios do cinema, conhecido como um dos primeiros filmes de terror da história. No meio acadêmico e psicanalítico, destaca-se por permitir a abordagem dos temas do duplo - doppelganger - e do estranho: unheimlich. No colóquio A inquietante estranheza: psicanálise, literatura e cinema, promovido em 2015 pela Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA) e pelo PPG em Psicanálise: Clínica e Cultura / UFRGS, o longa-metragem do roteirista Hanns Heinz Ewers1 foi apresentado aos participantes, ao final do evento. A versão exibida, de 1926, dirigida por Henrik Galeen, despertou nosso interesse e nos levou a buscar os motivos pelos quais o filme em questão é frequentemente tomado como modelo para pensar o conceito unheimlich. Isso porque tal experiência deve ir além da mera aparição de um duplo, situação apresentada na película que ilustra uma forma geradora de estranheza. Nessa perspectiva, nos questionamos se, através de uma análise fílmica, é possível captar a emergência da inquietante estranheza.

Freud (1919/1986), quando analisa o significado e as vicissitudes do estranho2, em seu artigo Das Unheimliche, esclarece que nem todo duplo é necessariamente estranho. O duplo parece referir-se a um conteúdo superado da mente humana, mas, para ser experimentado como estranho, sua aparição deve ocorrer em circunstâncias especiais. Mas que arranjo é esse que torna unheimlich os componentes duplos de uma história? Freud aponta que, para ser estranho, um conteúdo deve representar o retorno, a revivência de algo já superado pelo desenvolvimento psíquico de um sujeito. Em outras palavras, o estranho se liga a uma face do duplo oriunda

[...] das épocas primordiais da alma, já superadas, que naquele tempo possuiu sem dúvida um sentido mais benigno. O duplo se tornou uma figura terrorífica do mesmo modo como os deuses, após a ruína de sua religião, se converteram em demônios (Freud, 1919/1986, p. 236).

Para falar do tema do duplo como causador do estranho, Freud recorre ao estudo de Otto Rank - O duplo, de 1914 -, o qual foi motivado pela primeira versão de O estudante de Praga. De acordo com Muller (2008), o trabalho de Rank é o primeiro estudo psicanalítico que se propõe abordar o cinema. Para o autor, o psicanalista aprofundou-se tanto na temática do duplo que parece ter descoberto o que inspirou Ewers a criar seu roteiro: "[...] um patchwork de narrativas [...]" (Muller, 2008, p. 22) literárias que se caracterizam por apresentar personagens duplos. É possível pensar que o roteirista mergulhou nas fontes a ele disponíveis e conheceu a riqueza cultural do tema, o que o convocou a deixar também sua contribuição a partir de uma modalidade artística diferente: o cinema.

 

O duplo, seus desdobramentos e a análise fílmica

Na primeira parte de seu trabalho sobre o doppelganger, Rank (1914/1976) considera que esse tema havia ganhado novos contornos a partir do alcance das técnicas cinematográficas:

Qualquer suspeita quanto ao verdadeiro valor de um filme que visa, em tão grande medida, obter efeitos exteriores, pode ser adiada até que tenhamos visto em que sentido um tema baseado numa antiga tradição popular, e cujo conteúdo é tão destacadamente psicológico, se torna modificado pelas exigências das técnicas de expressão modernas. Talvez a cinematografia, que em muitos sentidos nos recorda o trabalho dos sonhos, possa também expressar alguns feitos e reações psicológicas - que o escritor é incapaz de descrever com clareza verbal -, com imagens tão claras e patentes, que facilitem nossa compreensão deles (Rank, 1914/1976, p. 31-32)3.

O tema em questão é o fenômeno do duplo, o qual instiga Rank à pesquisa a partir do filme O estudante de Praga, lançado um ano antes do livro desse psicanalista. O caminho escolhido pelo autor é uma extensa revisão da literatura que apresenta o duplo como temática principal, histórias fantásticas do século XIX, em sua maioria, como as de E. T. A. Hoffmann, Edgar Allan Poe, Oscar Wilde, dentre outros. Ao fim do livro, Rank (1914/1976) elabora algumas relações do duplo com o narcisismo primário:

[...] vemos o narcisismo primário como aquele no qual os interesses libidinais e os que servem à autoconservação se concentram no eu com a mesma intensidade, e que do mesmo modo protegem contra uma série de ameaças [...]. E assim o duplo, que encarna o amor narcisista por si mesmo, se converte num rival inequívoco no amor sexual; ou bem, criado em suas origens como um desejo de defesa contra uma temível destruição eterna, reaparece na superstição como um mensageiro da morte (Rank, 1914/1976, p. 132-133).

No narcisismo primário, há um investimento libidinal na imagem de si oferecida pelo Outro primordial (Lacan, 1949/1998). Em um momento posterior da experiência psíquica, em que o investimento é deslocado para outros objetos, o aprisionamento à imagem de si - duplo constitutivo do infans - é inquietante. De acordo com Rank (1914/1976), o duplo inicialmente tem uma função protetora e continente para o eu, mas, após a superação do narcisismo originário, as aparições do duplo indicam uma parcela narcísica que resiste ao desenvolvimento psíquico e, por esse motivo, se tornam estranhas. Tal ideia é reiterada por Freud (1919/1986, p. 235): "a representação do duplo não necessariamente é sepultada junto com esse narcisismo inicial; com efeito, pode cobrar um novo conteúdo a partir dos posteriores estádios de desenvolvimento do eu".

Além das relações estabelecidas entre duplo, narcisismo e estranho, outro tema a fazer parte dessa articulação de conceitos é o dos registros do Eu ideal e do Ideal do eu, presentes nesse contexto de forma velada. Em "À guisa de introdução ao narcisismo", Freud (1914/2004) propõe que a criação de um Ideal do eu se deve à impossibilidade de o sujeito renunciar a uma satisfação usufruída anteriormente com o narcisismo primário. Dito de outro modo, em um tempo posterior, em que o eu precisou subjugar a ideia de ser seu próprio ideal, surge o Ideal do eu como tentativa - e, ao mesmo tempo, como testemunho da impossibilidade - de recuperar um estado primordial de satisfação narcísica.

Lacan (1953-1954/1983), em O seminário, livro 1, realiza uma leitura do texto de Freud sobre o narcisismo e esclarece a diferenciação dos registros Eu ideal e Ideal do eu, caracterizando-os como simétricos e opostos: o primeiro estaria no plano imaginário e o segundo, no simbólico. Para o psicanalista, o Ideal do eu advém do Outro enquanto falante, o Outro parental na medida em que mantém com a criança uma relação simbólica, a qual é diferente da implicada nos investimentos libidinais constitutivos do narcisismo primordial, no qual floresce o Eu ideal. A troca simbólica permite que os seres humanos se relacionem entre si, conduzindo o sujeito para além da estruturação imaginária. O guia que aponta para fora do imaginário é o Ideal do eu.

No dicionário de psicanálise de Roudinesco e Plon (1998), o verbete Ideal do eu refere-se ao substituto do narcisismo primário e também ao produto da identificação com as imagos parentais. O Ideal do eu surge com uma importante renúncia da criança à sua identificação ao Eu ideal. Com o abandono da onipotência infantil, uma relação de sujeito (não mais de objeto) começa a se delinear, permitindo a formação de um ideal outro. A renúncia decorre das proibições impostas ao infante pelas figuras parentais, que se colocam como modelos de identificação. De acordo com os autores, o Ideal do eu caracteriza-se como um precipitado do que representaram os pais na infância e ocupa um lugar de objeto idealizado, com o qual o eu se compara e a partir do qual busca se aperfeiçoar. Portanto, existem dois tempos do ideal - Eu ideal (o do narcisismo infantil) e Ideal do eu - para a constituição do sujeito, o que nos remete aos dois momentos do duplo.

Freud (1919/1986) atribui à noção do duplo, em um momento posterior ao do narcisismo primário, a função de observar e criticar o eu, concebendo-o como consciência moral. O duplo torna-se ameaçador quando sinaliza os limites do eu. Parece existir aqui uma relação fundamental entre os dois aspectos do duplo, amistoso e ameaçador, e os registros do Eu ideal e do Ideal do eu. Na medida em que o desenvolvimento do eu permite uma aproximação de certas satisfações narcísicas sublimadas, Freud (1923/2010) observa que o supereu ameaçador assume um aspecto mais ameno, o do Ideal do eu. Aquilo que não pôde se tornar Ideal do eu, permitindo uma relação simbólica do sujeito com o Outro, pode permanecer como resto no eu, isto é, pode retornar causando estranhamento.

Não por acaso, a noção de Ideal do eu foi colocada ao lado da de doppelganger. Já adiantamos que, na análise fílmica a ser apresentada, algo dessa relação parece surgir em cena, na articulação com o estranho. Rank (1914/1976) reconhece a capacidade do cinema de representar em imagens domínios da subjetividade difíceis de serem descritos em palavras. Além disso, compara o trabalho do filme ao trabalho do sonho, como faz Kuntzel (1972), que propõe análises fílmicas a partir da psicanálise. Para Kuntzel, o filme pode ser lido como um sonho manifesto, da mesma forma que Freud fazia com os relatos de sonhos feitos por seus pacientes. É possível ler o sonho ou o filme como uma rede de significantes que figuram um termo ausente, o significado em fuga. É a ausência desse significado que coloca em movimento a cadeia de significantes.

Rank (1914/1976), por sua vez, explora o tema a partir do enredo do filme, conceituando o duplo pela via da significação. O psicanalista aponta que o trabalho do filme seria como o trabalho do sonho, mas sua interpretação não parece corresponder à análise de um sonho, isto é, a uma apreciação das relações entre cada um dos elementos que compõem as cenas. Ele escolhe outro caminho. É possível admitir que Rank utilizou o filme O estudante de Praga como deflagrador de uma reflexão acerca do tema do doppelganger, mas seu objetivo não é realizar uma análise fílmica.

Quando Roudinesco e Plon (1998) apresentam a noção de significante em seu dicionário de psicanálise, eles retomam a forma como Lacan aborda o trabalho do sonho em Freud. A transposição de um conteúdo latente em manifesto ocorre por meio de um deslizamento do significado sob o significante, sendo que o significante incide no significado de dois modos: através da metonímia (deslocamento), a qual se refere à ligação dos significantes em cadeias, e através da metáfora (condensação), a qual diz respeito à substituição de um significante por outro. Dito de outro modo, Lacan atribui uma função importante ao significante na elaboração secundária das cenas de um sonho e é justamente o arranjo dos significantes que está em jogo no momento da interpretação.

No entanto, é preciso considerar que há, para quem sonha, um registro regressivo e alucinatório das imagens, investidas na situação onírica, e um registro da vigília, elaboração secundária que as toma como algo possível de ser relatado ao analista. Sempre há algo que escapa e, em função disso, existem quase infinitas formas de interpretar um sonho, na medida em que outras cenas da vida do sujeito, em estado de vigília ou não, conferem novos sentidos. No paralelo com a análise fílmica, a análise formal das imagens não equivale perfeitamente à análise dos sonhos de um paciente, visto que, em um filme, não há o tempo em que as interpretações do psicanalista relançam as associações do analisante.

Otto Rank supõe uma ideia fundamental do filme, a de que o passado de uma pessoa está arraigado nela e se torna seu próprio destino, por mais que o sujeito tente fugir dele. No entanto, o autor pondera que tal interpretação não chega ao fundo do conteúdo do filme e não justifica a impressão do duplo. Para ele, é preciso explicar também o duplo como perturbador do amor, tornando o protagonista Balduin incapaz de amar. Rank (1914/1976, p. 35) sugere: "devemos chegar ao significado destes problemas fundamentais, necessários para entender o filme, para o qual é preciso estudar as formas conexas do motivo [...]". Entrevemos aqui uma intuição de Rank da análise pela via do significante, no momento em que parece considerar "as formas conexas do motivo" a chave da significação.

O caminho escolhido por Otto Rank, já o conhecemos: uma importante revisão de obras literárias, da antropologia e do folclore acerca do tema do duplo. Propomos outra forma, tomando como pressuposto a análise fílmica, na qual, como menciona Baudry (1970/2008), o efeito de sentido não depende de significados dados a priori, nem da continuidade ilusória das imagens, mas do arranjo significante dos elementos de uma cena, em sua descontinuidade, o que provoca um efeito no espectador, identificado com o olhar da câmera. A fim de realçar a especificidade de nossa abordagem, na seção seguinte comentamos alguns trabalhos psicanalíticos que também se debruçam sobre O estudante de Praga.

 

O estudante de Praga na literatura psicanalítica

O estudante de Praga , de 1913, é obra do escritor de contos de horror Hanns Heinz Ewers, do diretor Stelian Rye e do ator e produtor Paul Wegener (Cánepa, 2006). Em sintonia com outras películas do cinema alemão do pré-guerra, ela busca transpor para as telas a atmosfera inquietante da literatura fantástica do século XIX. Porém sua versão de 1926, dirigida por Heinrich Galeen, nasce em outro ambiente cultural: é marcada pela ruptura instaurada por O gabinete do Dr. Caligari (1920), de Robert Wiene. Roteiro sinistro, cenários claustrofóbicos, maquiagem pesada e intensa carga dramática de interpretação dos atores são alguns dos aspectos do cinema expressionista alemão. Além disso, essa tendência estética prioriza a composição do plano em relação à articulação entre os planos (nisso diferindo do cinema hollywoodiano da época), o que produz elipses narrativas. No que concerne à temática, ela também se enraíza na tradição do romantismo literário do século XIX. Por fim, sua estrutura narrativa opera por meio da criação de ambiguidade, frequentemente lançando mão do espaço fora de campo, isto é, o que o espectador não vê, na cena, mas tensiona a narrativa.

Em O duplo, de Otto Rank, o foco da análise é o fenômeno do doppelgänger. No entanto, em "O estranho" - que cita O estudante de Praga em nota de rodapé, como obra de H. H. Ewers, sem mencionar que se trata de um filme - Freud desloca a tônica para o problema do unheimlich. Na sequência de Rank e Freud, inúmeros trabalhos psicanalíticos mencionam O estudante de Praga, embora muitos sem propor análises novas. Nesse sentido, Breda (2007) apresenta o filme ao leitor, no contexto de suas reflexões sobre o duplo deflagradas pela leitura de Rank e Freud. Netto (2010) o inclui em sua relação de filmes alemães contemporâneos a Freud com o intuito de assinalar ressonâncias entre a psicanálise e aquele cinema. Em sua análise das relações de poder expressas nos filmes do cinema expressionista, Kohatsu (2013) articula os conceitos estranho, de Freud, estranhamento, de Marx, e efeito de estranhamento na arte, proposto por Brecht. Saban (2014, p. 37), por sua vez, sugere que Freud assistiu O estudante de Praga e que suas reflexões sobre a inquietante estranheza lhe foram suscitadas pela reação do público: "[...] no público, gerava-se certa situação de espanto, que se manifestava em gritos, em não se atrever a levantar a vista, no cobrir o rosto com as mãos".

Não é nosso objetivo esgotar a revisão dos trabalhos psicanalíticos que mencionam O estudante de Praga, ou que a partir dele propõem reflexões sobre o tema do doppelgänger, em conexão com o problema do unheimlich. Seria impossível e, provavelmente, tedioso. Conta-se a história da produção do filme, retomam-se os conceitos de Rank e Freud, prestam-se as devidas homenagens e, a partir daí, cada reflexão toma seu rumo - e nisso nosso artigo não difere dos demais. No entanto, até onde vai nosso conhecimento dessa literatura, essas análises não entram no registro fílmico, propriamente dito. É nesse sentido que nossa leitura de O estudante de Praga difere de outras.

 

A decomposição de uma estranha cena

A intenção deste texto é não apenas discutir conceitos psicanalíticos - como o duplo e a inquietante estranheza -, a partir do filme O estudante de Praga, mas especialmente promover uma reflexão por meio do método da análise fílmica. O estranho sentimento que surge do aparecimento do duplo e a relação entre o Eu ideal e o Ideal do eu são abordados mediante a decomposição de uma cena, na qual o estudante Balduin recebe em seu quarto uma visita: um velho senhor, que lhe oferece riqueza em troca de qualquer coisa presente no lugar. Sem saber que objeto será escolhido por Scapinelli, Balduin assina um contrato com o bruxo e perde seu reflexo especular, que se torna seu duplo.

Apesar de ser um excelente esgrimista, o estudante sabe que essa condição não é suficiente para conquistar a condessa, por quem se apaixona. É preciso ter dinheiro. Ler a descrição da cena não é o mesmo que assisti-la. Por esse motivo, remetemos o leitor ao filme. A cena escolhida pertence à versão de 1926 e é bem diferente da sua correspondente no filme de 1913, comentado por Rank. Ela ocorre no intervalo de pouco mais de cinco minutos e seu encadeamento significante nos permite propor uma interpretação. Não por acaso, esse momento específico do filme foi selecionado. Ele exibe o desprendimento do reflexo especular - o aparecimento do duplo de Balduin -, o qual fará parte do restante da trama, atrapalhando a vida do estudante. Averiguar o que provoca a primeira aparição do duplo e sua relação com o que é da ordem do estranho é o que se pretende com essa análise.

A forma escolhida para expor a cena toma por base a análise fílmica por meio da decomposição plano a plano (planos são fragmentos fílmicos situados entre cortes), inaugurada por Bellour (1969/2000), em seu comentário sobre Os pássaros, de Hitchcock. Mediante essa abordagem, é possível pôr em relevo as entranhas de um texto fílmico, isto é, a trama significante que constitui a Outra cena de uma película, fonte de múltiplos sentidos, que a alienação do espectador ao fluxo de imagens frequentemente oblitera. Ao realizar uma espécie de close up de cada plano, produzimos um relato análogo - ainda que não equivalente, como observamos acima - à elaboração secundária de um sonho. Nessa perspectiva, a análise das variações, repetições, alternâncias e deslocamentos (dentre outras operações formais) dos elementos fílmicos é o suporte da interpretação que propomos. Abaixo, apresentamos a descrição dos 74 planos encontrados na cena selecionada, seguida da duração de cada um.

Plano 1. Quarto do estudante Balduin; câmera parada em um ponto fixo, enquadrando-o; ele está sentado ao lado direito de uma mesa com as mãos no bolso. No lado esquerdo, há outra cadeira. Em cima da mesa está seu florete. No fundo da imagem, no lado oposto da câmera, está a porta do quarto. 3s

Plano 2. A câmera foca a porta de perto. Scapinelli entra em cena. É perceptível um corte (talvez decorrente de um problema técnico), sem mudança de posição da câmera, entre o momento em que ele entra parcialmente e o em que ele já está dentro do quarto, fechando a porta. Seus olhos se voltam para um lugar fora de cena, onde supostamente está Balduin. 6s

Plano 3. A câmera retoma a posição inicial, porém um pouco mais próxima da mesa. Scapinelli tem um objeto debaixo do braço, olha para Balduin e se aproxima. 9s

Plano 4. Câmera foca o rosto de Balduin de cima (plongée), como se estivesse filmando do ponto de vista de Scapinelli (plano subjetivo). Balduin subitamente percebe a presença de Scapinelli e o olha. 3s

Plano 5. Câmera foca Scapinelli de um ponto mais baixo (contraplongée), como se estivesse filmando do ponto de vista de Balduin (plano subjetivo). Scapinelli olha fixamente para o rosto de Balduin, fora de campo, e esboça um sorriso. 4s

Plano 6. A câmera retorna à posição do plano 1 e mostra os dois olhando um para o outro. Balduin recolhe as pernas, ajeita-se na cadeira, inquieta-se. Parece explicar algo ocorrido em um momento anterior, ou seja, o fracasso no encontro com a condessa. 4s

Plano 7. A câmera retoma a posição do plano 5 e mostra Scapinelli balançando a cabeça, afirmativamente. 1s

Plano 8. A câmera retoma a posição do plano 1. Scapinelli segue balançando a cabeça. Balduin mexe no chapéu, dispersa seu olhar e o bruxo abaixa a cabeça. Aqui parece acontecer alguma coisa entre eles, como se os dois soubessem que o momento de fazer um acordo chegou. Balduin tenta disfarçar e Scapinelli parece insistir, olhando fixamente para ele. Balduin abre os braços, apoia-os sobre os joelhos, fecha suas mãos e olha para o chão. 7s

Plano 9. A câmera foca Balduin de uma diagonal superior frontal e o mostra olhando para o chão. 3s

Plano 10. A câmera mostra Scapinelli da posição do plano 5. Ele sorri fitando Balduin, que está fora de campo. 3s

Plano 11. A câmera retorna para a posição do plano 1. Balduin segue sentado, evitando olhar para Scapinelli. Este coloca sua mão na ponta superior do canudo que traz embaixo do braço e desvia seus olhos de Balduin. 2s

Plano 12. A câmera filma Scapinelli em contraplongée, da perspectiva de um ponto situado ao lado e atrás de Balduin (diferentemente do plano 5, este não é um plano subjetivo). O bruxo abre o canudo, tira sua tampa e puxa cuidadosamente um papel enrolado. 7s

Plano 13. A câmera filma os dois da posição do plano 1. Balduin está com o rosto virado para Scapinelli. Este desenrola o papel e encosta seu rosto sobre ele para ler o conteúdo. Balduin encosta-se na cadeira e parece demonstrar interesse. 6s

Plano 14. A câmera filma Scapinelli da posição do plano 5. Ele lê o que está escrito no papel e, depois disso, olha para Balduin, escondendo seu rosto, deixando apenas os olhos descobertos, em tom de mistério. 8s

Plano 15. A câmera retoma a posição do plano 1. Balduin está impaciente e bate duas vezes na mesa, parecendo exigir ler o conteúdo do papel. Scapinelli vira-se para ele. 1s

Plano 16. A câmera filma os dois de um ponto ao lado e atrás de Scapinelli, um pouco mais alto do que ele. Scapinelli alcança o papel a Balduin, que o lê. 5s

Plano 17. A câmera retoma a posição do plano 1. Balduin segue lendo e Scapinelli vira-se de costas para ele, olhando para um ponto acima. 2s

Plano 18. A câmera (posição do plano 9) foca Balduin, que lê o conteúdo da folha. 1s

Plano 19. A câmera mostra o conteúdo da folha: "Eu, Balduin, recebi 600,000 florins. Em retorno, o Sr. Scapinelli pode pegar qualquer coisa que ele deseja deste quarto". 11s

Plano 20. A câmera mostra rapidamente, em menos de um segundo, o arranjo da cena do plano 1.

Plano 21. A câmera retoma a posição do plano 9, mostrando Balduin lendo. 1s

Plano 22. A câmera reapresenta o conteúdo do papel, destacando a última frase: "Em retorno, [...]" e a existência de um espaço para a assinatura. 8s

Plano 23. Foco no rosto de Balduin (câmera na posição do plano 9). Sua expressão é de preocupação. Ele levanta sutilmente o rosto. 3s

Plano 24. A câmera retoma a posição do plano 1. Scapinelli, que estava de costas para a câmera, vira parcialmente o corpo para Balduin. Este direciona a cabeça para o bruxo e balança a folha, parecendo não compreender. 3s

Plano 25. Balduin olha em volta (câmera na posição do plano 9), parecendo buscar os objetos de seu quarto que poderiam suscitar o desejo de Scapinelli. 4s

Plano 26. A câmera retoma a posição do plano 1. Scapinelli está imóvel, com o corpo virado para Balduin. Este olha mais seu quarto em busca de algo, até se deparar com seu florete sobre a mesa. Balduin pega o florete.7s

Plano 27. A câmera (posição do plano 9) foca em Balduin, que está com o florete na mão. 1s

Plano 28. A câmera retoma a posição do plano 5 e mostra Scapinelli com o rosto virado para Balduin. O bruxo esboça um leve sorriso. 1s

Plano 29. A câmera (posição do plano 9) mostra novamente Balduin olhando para o florete em sua mão. Ele começa a rir. 2s

Plano 30. A câmera retoma a posição do plano 1. O riso de Balduin vai aumentando. Scapinelli também se põe a rir. 2s

Plano 31. A câmera retoma a posição do plano 5. Scapinelli ri. 5s

Plano 32. A câmera (posição do plano 9) foca Balduin, que segue rindo muito, de olhos fechados. 1s

Plano 33. A câmera foca os dois personagens de uma diagonal lateral. Scapinelli parece ligeiramente mais próximo de Balduin. Este olha para o bruxo rindo e recebe o riso de volta. Coloca o papel sobre a mesa e prontamente Scapinelli apresenta uma pena. Balduin a toma para assinar o documento. Até esse momento da cena, a trilha sonora era suave, um tanto melancólica e repetia a mesma melodia. Ao fim deste plano, ocorre uma mudança. 7s

Plano 34. Foco em Scapinelli (posição do plano 5), que arregala os olhos e cerra os dentes à espera da assinatura. O suspense da música é especialmente marcado. 1s

Plano 35. O mesmo Scapinelli aparece, na posição do plano 12. Ele está de lado para a câmera, mas vira a cabeça de modo a olhar para ela, isto é, para o espectador. Aqui parece haver uma descontinuidade na alternância campo / contracampo (foco ora em um, ora em outro personagem, frequentemente de um ponto de vista subjetivo, como nos planos 4 e 5), alternância esta normalmente mediada por um plano geral do quarto (como no plano 1). Além disso, Scapinelli esboça uma expressão sarcástica, ao mesmo tempo que exibe uma bolsa. O tom musical passa de suspense para um ritmo mais alegre. 7s

Plano 36. Mesma posição de câmera do plano 33, do qual o 36 parece ser uma continuidade. Mal Balduin assina o documento trazido por Scapinelli, este já coloca sal sobre a tinta. Os dois riem muito. O bruxo enrola o papel e o guarda no canudo. Balduin olha para ele e diminui o riso. 10s

Plano 37. Mesma posição do plano 9. Balduin olha para Scapinelli. 2s

Plano 38. A câmera mostra todo o quarto, da posição do plano 1. Scapinelli ajeita suas coisas e Balduin olha para ele. 1s

Plano 39. Intertítulo (texto escrito sobre um fundo preto): "Dê-me o dinheiro!" 2s

Plano 40. A câmera retoma a posição do plano 9. Balduin tem uma expressão séria. 2s

Plano 41. A câmera retoma a posição do plano 3. Os dois personagens olham-se, fixamente. Balduin movimenta-se na cadeira, parecendo um pouco inquieto, pega seu florete e bate na mesa. Scapinelli, que estava com a mão na tampa do canudo, reage à batida e pega novamente o saco com as moedas em seu bolso, mostrando-o a Balduin. A música muda novamente, parecendo mais suave. 16s

Plano 42. A câmera retoma a posição do plano 9. Balduin, parecendo desconfiado, olha em direção à bolsa, que está fora de campo. 3s

Plano 43. A câmera retorna à posição do plano 1. Scapinelli abre a bolsa e a mostra a Balduin. Aos poucos, a música retoma o ritmo alegre. 14s

Plano 44. A câmera retoma a posição do plano 5. Scapinelli olha para a bolsa, que está fora de campo. 2s

Plano 45. De uma diagonal superior frontal, a câmera foca a mesa de Balduin. Sobre ela, começam a cair moedas, oriundas da bolsa de Scapinelli. 3s

Plano 46. A câmera retoma a posição do plano 5. Scapinelli parece proferir algumas palavras, enquanto derruba as moedas sobre a mesa. Aqui ocorre nova mudança na música, que se torna mais tensa. 6s

Plano 47. A câmera retoma a posição do plano 45. As moedas vão caindo em grande quantidade. 3s

Plano 48. Sob um novo ângulo de câmera, focadas de cima, as moedas aparecem caindo sobre a mesa. 2s

Plano 49. Nova posição de câmera, na altura da mesa, apresenta as moedas caindo no chão. 2s

Plano 50. Nova posição de câmera foca as moedas caindo na mesa e, atrás dela, um Balduin apavorado com o que vê. 3s

Plano 51. A câmera retoma a posição do plano 49. Mais moedas caem. 1s

Plano 52. A câmera retoma a posição do plano 50. Balduin junta as mãos. Parece cada vez mais perturbado com a quantidade de moedas que sai da bolsa de Scapinelli. 2s

Plano 53. A câmera apresenta Scapinelli na posição do plano 5, ainda falando algo, em uma retomada do plano 46. 1s

Plano 54. Mais uma vez, a câmera retoma a posição do plano 50. Balduin mostra-se mais tenso. 4s

Plano 55. Posição do plano 1. Scapinelli termina de esvaziar o pequeno saco e olha para Balduin. Este olha das moedas para Scapinelli. O bruxo guarda sua bolsa. 7s

Plano 56. Nova posição de câmera mostra Balduin de lado, sentado na cadeira. Ele parece muito impressionado com a quantidade de moedas. 1s

Plano 57. Intertítulo: "Tudo isso é meu?". 2s

Plano 58. Posição do plano 1. Scapinelli e Balduin se olham. O bruxo abaixa-se para olhar bem nos olhos de Balduin. Este se afasta ligeiramente. A música do início da cena volta a tocar. 10s

Plano 59. A câmera apresenta a situação de uma diagonal superior, que recorta os personagens do peito para cima, mostrando o rosto sarcástico de Scapinelli. 1s

Plano 60. Intertítulo: "E agora, a minha parte". 3s

Plano 61. Retomada do plano 59. Scapinelli ainda olha fixamente para Balduin, que continua se afastando. 3s

Plano 62. Posição do plano 1. Balduin levanta-se da cadeira e coloca-se em pé. O bruxo também fica em pé e coloca a mão no queixo. 9s

Plano 63. A câmera (posição do plano 5) foca em Scapinelli, que tem uma expressão sarcástica apavorante. A mão no queixo indica que está pensando sobre o cumprimento de sua parte. Seu olhar passeia pelo quarto. 4s

Plano 64. A câmera retoma a posição do plano 1. Scapinelli parece encontrar algo à esquerda e ao fundo, tomando por referência a posição da câmera. O objeto está fora de campo. Ele olha para Balduin e o chama. Balduin se aproxima. 13s

Plano 65. Nova posição de câmera apresenta o objeto misterioso. Balduin, que está de costas para a câmera, vê seu reflexo no espelho. Scapinelli, ao lado do espelho, olha de Balduin para seu reflexo. 3s

Plano 66. Foco em Scapinelli e sua imagem especular. O bruxo olha para Balduin, fora de campo e aponta para o espelho. Ato contínuo, olha para o espelho. 1s

Plano 67. Intertítulo: "Sua imagem especular. Seu segundo eu". 3s

Plano 68. Retomada posição de câmera do plano 65. Scapinelli sorri para o reflexo de Balduin. 3s

Plano 69. Foco em Scapinelli (posição de câmera do plano 66). Ele chama o reflexo de Balduin para fora do espelho. 1s

Plano 70. Posição do plano 65. Balduin olha curioso para seu reflexo. Scapinelli segue sorrindo para o espelho. 6s

Plano 71. A câmera retoma a posição do plano 1. Balduin ainda diante do espelho. 1s

Plano 72. A partir da posição do plano 1, a câmera fecha em Balduin, mostrando-o de perfil, da cintura para cima, olhando para o espelho. 2s

Plano 73. Posição do plano 65. O reflexo de Balduin movimenta-se em direção ao primeiro plano do espelho. Quando chega à divisória entre o real e o reflexo do real, Scapinelli aponta para seus pés e pede para o reflexo de Balduin ultrapassar a divisória. O reflexo obedece e sai do espelho. Scapinelli olha para o Balduin real. 22s

Plano 74. Da posição do plano 66, câmera foca o rosto de Scapinelli e sua imagem especular. O bruxo olha para Balduin, situado fora do campo visual do espectador, e ri.1s

 

Articulando o ideal, o estranho e, por fim, o duplo

Em mais de cinco minutos de filme, identificamos 74 planos e 18 posições de câmera. Não há movimento de câmera e a existência de planos curtos e posições de câmera inusuais é contrabalançada pela repetição de alguns enquadres fundamentais, que conferem estabilidade à cena. Além disso, há a tendência de preencher o campo ausente por meio da técnica do campo / contracampo, que consiste em exibir o sujeito que olha e, ato contínuo, o objeto olhado - fora do campo visual do espectador no plano anterior. Dito de outro modo, o espectador, identificado ao olhar da câmera, é conduzido, ao longo da cadeia fílmica, a uma negação da falta, até que o plano 35 promove uma descontinuidade. Ele interrompe a alternância do foco ora em um, ora em outro protagonista, frequentemente realizada por meio de planos subjetivos (espectador vê do ponto de vista de um personagem), alternância esta mediada por um plano geral - normalmente, o oferecido pela posição de câmera do plano 1.

Tal descontinuidade é anunciada no plano 33, que assume uma posição de câmera inédita e no qual há uma mudança no fundo musical, acentuada no plano 34. Na transição do plano 34 ao 35, em vez de ser feito o contracampo em Balduin (fora de campo no plano 34), ou de ser retomado o plano geral, o foco permanece em Scapinelli, ainda que de outro ângulo. Se, no plano 33, o foco ainda é o riso compartilhado, no 34 é a expectativa de Scapinelli e, no 35, a expressão sarcástica do bruxo. Além disso, é nesse plano que aparece a bolsa com as moedas, que exerce um papel crucial na cena. E é no plano 35 que ocorre a transgressão a um interdito fundamental do cinema clássico: Scapinelli olha para a câmera, isto é, interpela o espectador. A retomada da continuidade fílmica é anunciada no fundo musical e realizada por meio do retorno à posição de câmera do plano 33, no plano 36.

Importante ressaltar também que, entre os planos 26 e 29, ainda que a estrutura da cena se sustente no preenchimento da ausência, Balduin parece ter uma ideia que não compartilha com Scapinelli. Ele passa a rir no momento em que se depara com seu florete. Para o estudante, o objeto desejado por Scapinelli, não esclarecido no contrato, é sua espada. Ele sorri de volta para o bruxo, mas não fica evidente ser este um gesto para confirmar que ele troca 600,000 florins, antiga moeda do império austro-húngaro, por seu florete, ou se seu riso significa algo compreendido apenas por ele, isto é, que o objeto mais valioso em seu quarto é seu florete, mas este não vale 600,000 florins.

Não podemos nos deter apenas no que essa cena apresenta, é preciso analisá-la dentro da estrutura do filme. Balduin supõe que o objeto exigido por Scapinelli é seu florete não apenas por considerá-lo o mais valioso do quarto, mas por identificar-se com a posição subjetiva de eminente esgrimista como uma forma de inscrição no laço social, que lhe confere prestígio. Sua espada é o que representa tal identificação e, precisamente por esse motivo, ela consiste no objeto mais valioso do quarto. Nessa perspectiva, o florete é uma insígnia fálica e a condição de esgrimista alude ao registro do Ideal do eu. Em uma cena anterior, Balduin simula uma luta de espada em frente ao espelho e, apostando no que este lhe devolve, vai confiante ao encontro com a condessa. Aqui parece operar algo do registro do Eu ideal. No momento em que o estudante admira-se no espelho, seu investimento libidinal parece concentrar-se em uma imagem idealizada de si. Se, no registro do Ideal do eu, o sujeito ocupa um lugar fálico, no do Eu ideal ele é fálico, isto é, sobre ele a castração não incide.

O encontro com a amada frustra Balduin. Existe outro pretendente que lhe dá um grande buquê de flores, enquanto o estudante leva para ela um pequeno ramalhete. O encadeamento das cenas permite supor uma equivalência simbólica entre o florete e o ramalhete. Tal troca não favorece o protagonista. Nesse quesito, seu rival é mais potente. É essa derrota que conduz à cena analisada, em uma espécie de deslizamento metonímico: florete, flores, florins4.

O plano 19 mostra o contrato trazido por Scapinelli. Ele propõe a troca de 600,000 florins por qualquer objeto presente no quarto. O estudante imagina uma substituição daquilo que reconhece em si, mas que é insuficiente para conquistar a condessa - seu florete, que alude a sua condição de eminente esgrimista -, por uma imagem idealizada: a de homem rico. É uma troca simples, aquilo que Balduin tem - o que lhe confere um lugar simbólico - por aquilo que ele não é: o que produz um dano em seu narcisismo. O modo como a sequência dos planos se encadeia sugere que o que está presente (florete) é substituído, no imaginário do protagonista, pelo que está ausente (florins), não abrindo espaço para a falta.

De acordo com Lacan (1962-1963/2005), em Oseminário, livro 10, a imagem devolvida e autenticada pelo Outro é apenas a refletida de nós mesmos. Mas ela se caracteriza por uma falta, porque o que se convoca não pode aparecer. Em outras palavras, o desejo está velado e marcado por uma ausência - a do objeto que lhe dá causa. No entanto, tal ausência não impede a aparição de algo que está em um lugar inapreensível pelo sujeito:

Nesse lugar da falta onde algo pode aparecer, coloquei pela última vez, e entre parênteses, o sinal (-phi). Ele lhes indica que aqui se perfila uma relação com a reserva libidinal, ou seja, com esse algo que não se projeta, não se investe no nível da imagem especular, que é irredutível a ela, em razão de permanecer profundamente investido no nível do próprio corpo, do narcisismo primário, daquilo a que chamamos de autoerotismo, de um gozo autista (Lacan, 1962-1963/2005, p. 55).

Quando algo efetivamente aparece no lugar da falta, irrompe a angústia. Ainda de acordo com Lacan, "a angústia surge quando um mecanismo faz aparecer alguma coisa no lugar que chamarei, para me fazer entender, de natural, ou seja, o lugar (-phi) que corresponde [...] ao lugar ocupado [...] pelo a do objeto do desejo. Eu disse alguma coisa - entendam uma coisa qualquer" (Lacan, 1962-1963/2005, p. 51; grifos do original).

Qualquer coisa, desde que surja no lugar do (-phi), como uma imagem do que falta ao sujeito, pode provocar angústia. E Lacan nomeia essa alguma coisa: "a Unheimlichkeit é aquilo que aparece no lugar em que deveria estar o menos-phi" (Lacan, 1962-1963/2005, p. 51; grifos do original). Qualquer coisa - o duplo, a repetição de um evento, dentre tantas outras descritas por Freud, no artigo sobre o estranho - que vem ocupar o lugar assinalado por (-phi), conferindo uma imagem à falta, é inquietante. Q uando a própria falta falta, o que resta a desejar? A falta da falta desencadeia a angústia. A aparição de algo no lugar de (-phi) é perturbadora.

Nesse sentido, o que Balduin deseja obter de Scapinelli? Ainda que o estudante pareça saber exatamente que objeto seu será trocado pelo dinheiro de Scapinelli - o florete -, ele não tem garantia nenhuma disso e, ainda assim, assina o contrato. Balduin está disposto a dar qualquer coisa por 600,000 florins. Quanto vale 600,000 florins? Para o estudante, parece ser o suficiente para que nada mais lhe falte, para que não mais experimente a frustração no encontro com a amada. Negar a falta em favor de uma completude, é isso que Balduin acredita poder conseguir com Scapinelli - o que implica obter as satisfações narcísicas do Eu ideal em troca dos êxitos do Ideal do eu.

Quem engana quem? No plano 36, Balduin assina o contrato. No plano 39, ele exige sua parte. No 41, bate seu florete na mesa. O que vem a seguir está para além de sua possibilidade de imaginação. O que acontece a Balduin, entre os planos 41 e 57, é uma drástica mudança em sua expressão, que passa de confiante, após uma longa gargalhada, para abismada, angustiada. O que irrompe nesses 17 planos é sinistro: a imagem do que ele deseja. Era exatamente o que ele esperava, os 600,000 florins acordados, mas a visão de cada moeda se tornando real, uma após a outra, mostradas de diversos ângulos, o seu movimento, a sua repetição, a sua quantidade, o seu excesso de presença, a sua infinidade, tudo isso vai trazendo a Balduin a certeza de que nada mais pode lhe faltar. Nos planos 45, 47, 48, 49 e 51, o espectador vê o fluxo abundante das moedas, sem que apareçam os personagens. No plano 46, Scapinelli recobre as moedas com palavras de bruxaria. No 50, Balduin está tomado por angústia. Entre os planos 47 e 49, o espectador, em sintonia com o protagonista, é engolfado pela torrente de moedas. O objeto a aparece no lugar indicado por (-phi).

O que o estudante imagina que entregará a Scapinelli é algo perceptível, presente no quarto, em cima da mesa: seu florete. No entanto, o que está escrito no contrato é que, em troca de 600,000 florins, o senhor Scapinelli pode pegar qualquer coisa do quarto do protagonista. No plano 64, o que o bruxo deseja obter de Balduin é algo inapreensível pelo estudante (e pelo espectador), por estar fora de campo: a imagem especular do protagonista. O plano 65 instaura uma posição de câmera fundamental, aquela que endereça ao espectador a duplicação especular tanto de Balduin, quanto de Scapinelli. No plano 66, a câmera fecha em Scapinelli e seu duplo, lançando Balduin e sua imagem especular para fora de campo. No 67, enuncia-se o que quer o bruxo: "sua imagem especular. Seu segundo eu". No plano 73 - o mais longo da sequência -, o reflexo de Balduin irrompe em cena. O protagonista torna-se refém de um jogo de imagens, que culmina em sua morte.

O paradoxal, no caso de Balduin, é uma conquista narcísica - identificação ao Eu ideal - implicar um dano igualmente imaginário: a dissociação da imagem de si e, ato contínuo, a perda do reflexo especular. A partir disso, é possível compreender por que o duplo, em O estudante de Praga, é interpretado por Rank como perturbador do amor. Por um lado, ele retira a possibilidade de sucesso amoroso, por portar o que Balduin tem de mais precioso, mais próprio e familiar: o resto da relação com o Outro primordial. Por outro, ele testemunha a renúncia do protagonista às insígnias fálicas que compõem o Ideal do eu, isto é, a renúncia de Balduin à inscrição simbólica, que poderia sustentá-lo como sujeito desejante.

Todavia, outro é o destino do espectador de O estudante de Praga. O último plano da sequência, o 74, mostra Scapinelli olhando para o suposto lugar de Balduin, após o reflexo deste ter se tornado um duplo. No entanto - e diferentemente do estilo apresentado ao longo da cena, de revelação do que está sendo olhado -, a sequência termina sem que vejamos Balduin. Não é feito o contracampo. Por um instante, o espectador tem a experiência de suspensão das significações, a qual põe a trabalhar sua imaginação, isto é, permite suturar os significantes que o constituem à cadeia fílmica de O estudante de Praga (Oudart, 1969/1977). Tal procedimento formal possibilita ao espectador assumir a posição de sujeito de discurso, nas tramas da linguagem cinematográfica.

 

Considerações finais

Desde seu lançamento, O estudante de Praga convoca psicanalistas a pensar. Em O duplo - obra que inaugura as reflexões psicanalíticas sobre o fenômeno do doppelganger -, Otto Rank (1914/1976) o toma como deflagrador de elaborações conceituais que serão retomadas por Freud (1919/1986) em "O estranho". A partir da interrogação freudiana acerca do que torna unheimlich o doppelganger, procedemos à decomposição plano a plano de uma cena que nos parece inquietante e fundamental: aquela em que a imagem especular do protagonista sai do espelho, configurando-se como seu duplo. Por meio dessa abordagem metodológica, realçamos um processo formal de composição da parte inicial da sequência: a tendência a preencher o campo visual, especialmente mediante a técnica do campo / contracampo, de modo que nada falte. Uma descontinuidade no processo de construção da cena, no plano 35, prenuncia a irrupção de angústia no protagonista.

Parece-nos que o processo formal de construção da sequência analisada duplica o que se passa com o protagonista. Este não tolera a falta, assinalada pela não correspondência de seu amor pela condessa, e literalmente vende a alma ao diabo. Por 600,000 florins, dispõe-se a abrir mão do que indica sua potência na ordem fálica: seu florete. Renuncia à filiação a um Ideal de eu em troca da identificação ao Eu ideal. Nesse momento, algo aparece no lugar assinalado por (-phi): as moedas que jorram, abundantemente, da bolsa de Scapinelli. Na medida em que a falta coloca-se em imagem, a posição subjetiva de Balduin desloca-se de confiante a abismado e de abismado a angustiado. Qual sua surpresa ao descobrir que o objeto desejado por Scapinelli está em outro lugar, fora do campo visual do protagonista e, inclusive, do espectador: seu reflexo no espelho, seu outro eu, o que restou de sua ligação ao Outro primordial! Para o protagonista, o preenchimento da falta é avassalador. Porém outro é o destino do espectador. Diferentemente da parte inicial da sequência analisada, a final termina com uma suspensão: a visão de Scapinelli olhando para Balduin não é complementada pela exibição do protagonista, mantendo desejante o espectador de O estudante de Praga.

 

 

Referências

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Artigo recebido em: 31/10/2017
Aprovado para publicação em: 05/12/2017

Endereço para correspondência
Ana Paula Bellochio Thones
E-mail: anabellochio@gmail.com
Amadeu Weinmann
E-mail: weinmann.amadeu@gmail.com

 

 

*Doutoranda no PPGEdu/UFRGS e integrante do Núcleo de Pesquisa Psicanálise, Educação e Cultura (NUPPEC).
**Psicanalista, professor do PPG em Psicanálise: Clínica e Cultura / UFRGS e coordenador do Núcleo de Pesquisa e Extensão em Psicanálise e Cinema (NUPPCINE).
1A versão original de O estudante de Praga, de 1913, foi dirigida por Stellan Rye. No entanto, o que se denomina filme de arte (kunstfilm), no período imperial alemão, são filmes de autor (autorenfilm), isto é, escritos por autores famosos, como H. H. Ewers (Müller, 2008). Além da versão de 1926, que utilizamos neste artigo, há uma versão de 1935, dirigida por Arthur Robison.
2A versão argentina traduzida diretamente do alemão, utilizada neste artigo, adota o termo ominoso para se referir ao unheimlich. Durante o texto, frequentemente optamos pelo uso da palavra estranho, difundida pela Imago (Freud, 1919/1996), mas eventualmente a substituímos por inquietante, perturbador ou sinistro.
3Todas as traduções de trechos de obras estrangeiras realizadas neste artigo são de nossa responsabilidade.
4Em alemão, florete é florett, flor é blüte ou blume e florins é florin ou gulden. Portanto, na língua original de O estudante de Praga esses três termos não têm o mesmo radical, como em português. Ainda assim, o modo como se encadeiam no filme nos autoriza a sugerir uma equivalência simbólica entre eles.

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