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Tempo psicanalitico
versão impressa ISSN 0101-4838versão On-line ISSN 2316-6576
Tempo psicanal. vol.50 no.2 Rio de Janeiro jul./dez. 2018
ARTIGOS
Efeitos da incidência da linguagem no corpo do sujeito autista
Effects of language incidence on the body of the autistic subject
Efectos de la incidencia del lenguaje en el cuerpo del sujeto autista
Maria Gláucia Pires CalzavaraI*; Ângela Maria Resende VorcaroII, III**
IUniversidade Federal de São João Del-Rei - UFSJ - Brasil
IIAssociation Lacanienne Internationale - ALI - França
IIIUniversidade Federal de Minas Gerais - UFMG - Brasil
RESUMO
Considerando que o encontro com a linguagem é determinante do modo de ser de cada um como sujeito, o objetivo deste artigo é refletir sobre os efeitos no corpo do sujeito autista no encontro com a linguagem. Primeiramente, trataremos da constituição do Eu amparados em Freud e Lacan, delineando a importância da presença do Outro em sua constituição. Em seguida, trataremos da constituição de um corpo, que se diferencia do organismo por sua inscrição na linguagem, e de como o corpo no sujeito autista, a despeito de estar na linguagem, demonstra que a dimensão simbólica do corpo não é um recurso de todo sujeito. Por fim, consideramos que um sujeito que não consegue contar com a proteção simbólica marcada pela linguagem pode, à sua maneira e de forma singular, inventar uma forma de se haver no mundo.
Palavras-chave: autismo, corpo, linguagem, tratamento.
ABSTRACT
Considering that the encounter with the language is determinant in the way of being of each one as subject, the objective of this article is to reflect on the effects in the body of the autistic subject in the encounter with the language. Firstly, we will deal with the constitution of the Self supported by Freud and Lacan, outlining the importance of the presence of the Other in its constitution. Next, we will deal with the constitution of a body, which differs from the organism by its inscription in the language and how the body in the autistic subject, despite being in the language, demonstrates that the symbolic dimension of the body is not a resource in every subject. Finally, we consider that a subject who can not rely on the symbolic protection marked by language can, in his/her own way and in a unique way, invent a way of being in the world.
Keywords: autism, body, language, treatment.
RESUMEN
Considerando que el encuentro con el lenguaje es determinante del modo de ser de cada uno como sujeto, el objetivo de este artículo es reflexionar acerca de los efectos en el cuerpo del sujeto autista en el encuentro con el lenguaje. Primeramente , trataremos de la constitución del Yo amparados en Freud y Lacan, delineando la importancia de la presencia del Otro en su constitución. Enseguida, trataremos de la constitución de un cuerpo, que se distingue del organismo por su inscripción en el lenguaje y de como el cuerpo en el sujeto autista, a despecho de estar en el lenguaje, demostra que la dimensión simbólica del cuerpo no es un recurso de todo sujeto. Por fin, consideramos que un sujeto que no logra contar con la protección simbólica marcada por el lenguaje puede, a su manera y de forma singular, inventar una forma de ser/estar en el mundo.
Palabras clave: autismo, cuerpo, lenguaje, tratamento.
O sujeito se sustenta a partir de seu encontro com a linguagem. Os efeitos desse encontro são revelados em um corpo que resulta próprio em detrimento de um organismo biológico. Assim, a relação com a linguagem é determinante do modo de ser de cada um como sujeito, que tem um corpo, na medida em que a operação na qual prepondera o recurso à norma fálica1 efetua-se a partir do campo simbólico.
Na clínica psicanalítica com crianças e adolescentes, alguns sintomas de disfunções corporais nos revelam a insistência de um excesso pulsional, o qual denuncia a prevalência de um gozo Outro2 no corpo, o qual submete o sujeito à deriva. Esse gozo Outro, não ordenado no corpo, responde à inoperância do recurso da normatização fálica, alijando o sujeito de seu funcionamento corporal. Somos, assim, constantemente interrogados por esses sintomas, que nos levam a indagar as modalidades pelas quais o sujeito pode construir a redução do gozo do Outro, bem como as possibilidades de o gozo no corpo ser tratado pelo discurso psicanalítico.
Enfim, são os efeitos no corpo desse encontro do sujeito com a linguagem que orientam nosso ponto de investigação. Iremos nos ater, neste artigo, à apreensão de modalidades pelas quais o corpo pode se representar ao se inscrever ou não na norma fálica. Somos guiados pelas questões: diante da inoperância ou falência do recurso fálico, como o corpo e a imagem se inscrevem? Como a direção e a condução do tratamento podem lidar com a inoperância ou falência do falo?
A constituição do Eu
A partir de Freud e considerando que, p ara habitar o mundo sendo nele inscrito, o ser é dividido pela linguagem, a qual também o corporifica na unificação de um corpo vivo, Lacan (1960/1998) avança diferenciando a identificação simbólica e a identificação imaginária na constituição do corpo, ambas incidentes no denominado estádio do espelho. Sendo primariamente posicionado no mundo a partir de seu reconhecimento pelo Outro, que nele imprime um traço (identificação simbólica), a fragmentação que caracteriza o funcionamento primário do organismo é unificada num corpo que se revela por especularidade.
Ao dirigir-se ao ser vivo, a fala em que o discurso se situa estrutura a presença do Outro, operando como mola superior determinante da subjetivação, como ponto que triangula a relação binária entre o ser e o agente de seus cuidados. Posicionando um sujeito-a-vir, o discurso provisiona-o de insígnias do Outro. Essa reserva de atributos assegurados pelo discurso delimitam o ser, franqueando, entre o ser e o outro, o estabelecimento de uma distância suficiente para impedir a formação de uma díade. "Esse ser se coloca [...] com a anterioridade de limite que o discurso lhe assegura, naquela reserva de atributos [...] em que o sujeito tem que forjar um lugar" (Lacan, 1960/1998, p. 685).
Assim, coordenadas inconscientes do Eu surgem, primeiramente, no lugar simbólico: "é a constelação dessas insígnias que constitui para o sujeito o Ideal do eu" (Lacan, 1960/1998, p. 686), franqueando a precipitação da identificação ao Eu ideal: "ao situar-se como I que ele fita o espelho A, para obter, entre outros efeitos, uma dada miragem do Eu Ideal" (Lacan, 1960/1998, p. 686). Para Freud, o Eu ideal, como formação ao longo do percurso do sujeito, se apresenta como um eu ainda inorganizado e concebido como um ideal narcísico onipotente. Compreende, do mesmo modo, uma identificação primária com outro ser, investido de onipotência, isto é, a mãe. Por outro lado, amparado em sua origem narcísica, o Ideal do eu designa "uma formação intrapsíquica que serve de referência ao eu para as suas realizações efetivas" (Laplanche & Pontalis, 1986, p. 289). O que é projetado pelo homem diante de si como seu Ideal é o narcisismo perdido da infância, momento em que ele próprio era o ideal.
Já posicionado no campo do Outro, o sujeito sai de uma origem fragmentada à identificação de um corpo próprio, apresentando-se como corpo ao atravessar o estádio do espelho. Importante compreender o estádio do espelho como uma identificação; ou seja, como uma transformação produzida no sujeito quando ele assume uma imagem. O estádio do espelho "é um drama, cujo impulso interno precipita-se da insuficiência para a antecipação", produzindo para o sujeito, apanhado nessa identificação espacial, as fantasias que se sucedem desde uma imagem de um corpo despedaçado até sua totalidade, a qual chamaremos de ortopédica (Lacan, 1949/1988, p. 97).
Nesse momento, haverá um reconhecimento, por parte da criança, de sua imagem, o que permite a reconquista do corpo despedaçado numa totalidade estruturante. Uma distinção entre organismo e corpo se esclarece: para que se tenha um corpo, é preciso que este seja atravessado pelo Outro. No estádio do espelho, não é só da imagem especular do corpo que se trata, mas do fato de que o corpo passa a ser corpo da imagem unificada pela intervenção do Outro (Vieira, 2016).
Assim, o Outro [A] é o espaço real onde se enquadram as imagens virtuais por trás do espelho [i'(a)]. Há, nesse momento, um ponto significativo na constituição de um corpo que concerne ao olhar da mãe como Outro primordial, expondo sua função no momento mais puro da relação especular: "no gesto pelo qual a criança, diante do espelho, voltando-se para aquele que a segura, apela com o olhar para o testemunho que decanta, por confirmá-lo, o reconhecimento da imagem, da assunção jubilatória em que por certo já estava" (Lacan, 1960/1988, p. 685).
A importância do olhar dos pais para o que será constituinte de um corpo é reiterada por Laznik (2013). É na articulação entre o corpo, como realidade orgânica, e o olhar dos pais, que não se confunde com a visão, por se tratar de "uma forma particular de investimento libidinal, que permite aos pais uma ilusão antecipadora onde eles percebem o real orgânico do bebê" (Laznik, 2013, p. 25). O que é representativo desse investimento libidinal do olhar dos pais é a possibilidade que ambos têm de escutar e antecipar o que ainda não está apresentado, mas que poderá advir por essa antecipação significante realizada pelos pais em relação ao seu bebê. Esse é o olhar fundante do corpo do sujeito. Esse olhar corporiza o sujeito do espelho, um olhar que seja capaz de uma "ilusão antecipadora; quer dizer, que ela veja o que não está lá" (Laznik, 2013, p. 45). Há, portanto, a necessidade de um encontro do corpo com a imagem, pela intervenção da linguagem, para que variadas significações possam ser realizadas.
Desde a distinção do organismo como um Eu, o prazer e o desprazer são diferenciados em dois modos de satisfação pulsional: o primeiro é relativo ao campo narcísico do prazer composto de bons objetos favoráveis à manutenção da homeostase; o segundo é relativo ao campo do desprazer (seja o prazer que ultrapassa a homeostase ou o que não é passível de processamento) enquanto gozo. Nesse caso, a pulsão refere-se a um outro tipo de objeto. Trata-se dos objetos a: os seios, as fezes, o olhar e a voz.
(1) Do lado do campo narcísico do prazer na posição subjetiva mais original, como vimos, o Outro encarna-se em um personagem que responde à demanda do sujeito, sendo aquele que faz passá-la ao valor da demanda de amor, referindo-a à alternância presença-ausência. Entretanto, o sujeito procura se fazer reconhecer para além do que a demanda pode formular, encontrando uma resposta insuficiente, pois é modelada em sentido pela fala desenrolada no Outro, expressando o significado do Outro [s(A)]. No entrecruzamento pelo qual o significante unário vem funcionar no campo do prazer, campo da identificação primária narcísica, está a mola essencial da incidência do ideal do eu, na visada em espelho do ideal do eu, desse ser que ele viu primeiro aparecer na forma de um dos pais, o qual, diante do espelho, o segura. Ao se agarrar à referência daquele que olha num espelho, o sujeito vê aparecer não seu ideal do eu, mas seu eu ideal, esse ponto em que ele deseja comprazer-se em si mesmo. Essa é a mola eficaz que constitui o ideal do eu.
Nesse momento, o sujeito, como um X, se constitui pelo efeito do recalque primário em torno desse recalque operado pelo sentido do Outro. Ele aparece, então, como sentido, como representação produzida pelo significante unário, S1. Entretanto, o momento cai quando a significância inaugurando o inconsciente implica o efeito de retorno em que, em seguida, ele aparece suprimido no significante binário, S2, representante da representação. A causa de seu desaparecimento é S2, pois aí o sujeito toma um valor infinito, o qual abole todos os sentidos, porque o significante primordial é puro non-sens. Tal desaparecimento não implica ausência, pois o sujeito irá se alocar entre os significantes.
Assim, a diferença entre demanda do sujeito e resposta obtida do Outro engendra o processo de divisão do discurso, porque uma hiância mantém suspensa a distância entre elas. Se ele aparece de um lado como sentido produzido pelo significante, de outro ele aparece como afânise . Entre o ser ou o sentido do Outro, a escolha é saber qual parte será guardada, pois a outra desaparecerá, porque o ser do sujeito está ali sob o sentido do Outro. Escolhendo o ser, o sujeito desaparece, ele escapa, cai no não senso. Escolhendo sentido, o sentido só subsiste decepado dessa parte do não senso que constitui o inconsciente.
(2) Do lado do sujeito, o ser pode situar algo que insiste e avança como desprazer nessa relação ao Outro, estranhamente presente na experiência, apontando um aumento de tensão que ultrapassa a homeostase do prazer. Uma exterioridade é então situada, a despeito de não se deixar representar. O que até então era meramente indiferente por não ser aturável torna-se passível de ser incorporado como um núcleo real, indiscernível, mas insistente como presença experienciada como aumento de tensão. Isolá-lo implicará, desde então, enquistá-lo no próprio aparelho psíquico, sem poder livrar-se desse estranho, que entretanto é reconhecido como tal. O ser não deixará de remeter-se a tal marca enigmática, contornando-a com as pontes simbólicas. Sem poder apreender esse núcleo real via representação, mas localizando sua presença, essa exterioridade interna será o maior cúmplice da pulsão que a ela se dirige, mas mantendo-se nos giros em torno dela. Assim, a pulsão articula-se escapando à linguagem, o que exige sua representação mítica como órgão irreal que se encarna entalhando a função do sujeito de ser para o Outro. O movimento da pulsão implica que a flecha dirigida ao alvo só preencha sua função na medida em que emana do sujeito para retornar a ele numa reversão dialética distinta da ordem do amor ou do que é bom. Tal movimento funda a função do corte, função topológica da borda, relativa à hiância da relação entre sujeito e outro, efetivada na pulsação temporal de abertura e fechamento do inconsciente.
A relação entre o significante que representa o sujeito (insígnia) e o significante em posição de representante da representação (S2) é ainda insuficiente para que o ser advenha da sua enunciação, pois entre eles é necessário que o sujeito se situe em exterioridade a eles, separado deles. Produzido no campo do Outro, a significação do significante faz surgir um sujeito, que seria reduzido ao significante e, assim, permaneceria petrificado se não fosse a insuficiência de tal equivalência, sustentada pelo resíduo da operação de implantação do significante do Outro no sujeito. É nesse resto que outra função institui uma identificação singular, introduzida pelo processo de separação.
O desejo do Outro, de impossível apreensão, está escondido no Outro por estrutura. O sujeito está suspenso ao Outro, cuja segurança está justamente suposta no que ele esconde. Trata-se do real; ou seja, do que é impossível ao Outro, que se tornará o desejo do sujeito. O objeto do desejo existe como este nada oculto ao Outro, que toma consistência e se tornará o maior cúmplice da pulsão na medida em que ela o contorna. A condição real desse núcleo teria sido localizada por Freud como traumática por ser efeito de uma defasagem: a satisfação da necessidade não vem a tempo - cedo demais ou tarde demais -, causando excesso ou escassez de prazer - prazer demais ou prazer de menos ( Lacan, 1964/1998). Marca-se, então, a primeira ranhura que queima o ser atingido pela primeira vez com o desejo. Essa queda despercebida, orientada pela falta, faz bater a pulsação, a qual a reconhece a cada repetição, mantendo ignorante essa rachadura, sempre reencontrada nas camadas que tentam suturá-la, as quais fazem dela uma nadificação ativa.
A constituição de um corpo
Para a psicanálise, o corpo não é um dado a priori. Para chegar a ser um corpo e identificar-se com ele, é preciso que o sujeito construa uma solução particular no campo do Outro da linguagem. O corpo se faz ao ser inscrito e atravessado pela linguagem.
Em Freud, a noção de corpo emerge intimamente ligada ao conceito de pulsão. É nos "Três ensaios sobre a teoria da sexualidade" (Freud, 1905/1980) que ele irá definir o conceito de autoerotismo, estabelecendo que a pulsão toma o corpo como objeto de satisfação. As pulsões autoeróticas se satisfazem parcialmente nas zonas erógenas do corpo. Em um primeiro momento, a pulsão sexual se apoia na necessidade, buscando a preservação deste, e só em um segundo momento se separa da necessidade e se orienta para uma satisfação sexual. Sugar o seio materno é paradigmático desse momento. O alimento buscado pela criança como uma necessidade do organismo em um primeiro momento transforma-se ao não se apresentar no momento imediato de sua necessidade, marcando um vazio, que busca, no ato de sugar, uma satisfação que se descolou da necessidade para se tornar uma satisfação pulsional (Freud, 1915/1980). Em Freud, o que ocorre é uma passagem do corpo organismo para o corpo pulsional.
Em Lacan, a relação do sujeito com o Outro irá nos orientar como um modo particular de constituição psíquica do sujeito. A superfície corporal que se inscreve como efeito do estádio do espelho se tornará um corpo a partir da relação do sujeito com o Outro. Assim, segundo Patrício Alvarez (2013), tem-se em Lacan três teorias sobre o corpo. A primeira, deduzida da clínica estrutural, se refere ao corpo especular, em que a norma fálica seria reguladora do corpo. Nesse momento, a criança, ao constatar a castração materna e além disso certificar que é o falo que a mãe deseja, procura colocar-se na posição imaginária de falo materno, de se fazer objeto do desejo da mãe - ou seja, de se fazer objeto do que falta à mãe. Simbólico e imaginário são os registros priorizados nesse momento estrutural. Na segunda teoria, continua Alvarez (2013), "o real entra em cena, agitando a harmonia das normas simbólico-imaginárias, e o grande edifício é habitado pelo objeto a". Esse segundo modo de ver o corpo não é tão simples e apresenta-se como consistência topológica,
no qual há um furo central provido por uma borda, a zona erógena freudiana, e ao redor dessa borda constrói-se a superfície do corpo, na qual acontecerá a identificação especular. A isto se acrescenta outra operação simbólica, a castração, que simboliza o furo como falta e dá unidade ao corpo (Alvarez, 2013).
E, como terceira teoria do corpo, tem-se a abordagem sobre o acontecimento de corpo. É a clínica do falasser (parlêtre), da lalíngua e da ressonância da pulsão como eco no corpo. Nessa terceira teoria, podemos identificar a passagem do sujeito que fala ao corpo falante. O corpo falante, diz-nos Miller (2016), é o mistério da união da fala com o corpo. O corpo falante é um ser afetado pela intrusão da linguagem, pela intrusão da lalíngua3 no corpo vivo. "O impacto de lalíngua sobre o corpo vivo deixa uma marca permanente, traumática de gozo, que introduz um excesso que não se deixa reabsorver plenamente pelo simbólico" (Chamizo, 2016, p. 266). Disso decorre o conceito de corpo falante, que Lacan associa ao falasser. O falasser "é o sujeito mais o corpo, é o sujeito mais a substância gozante" (Miller, 2015, p. 87). Desse modo, o falasser é a noção que irá unificar o sujeito do significante com a substância gozante. É isso que autoriza Lacan, no Seminário 23, a dizer que "as pulsões são, no corpo, o fato de que há um dizer" (Lacan, 1975-1976/2007, p. 18). Frente a isso, afirma Miller (2016, p. 20): "o corpo falante fala em termos de pulsões". Nessa data, a noção do conceito de pulsão avançou do percurso pulsional, como em Freud, para o eco. Nesse ponto, Chamizo (2016, p. 268) nos esclarece que "não há cadeia significante; por outro lado, há ressonâncias sonoras prévias à linguagem articulada. O impacto das vozes escutadas produz o mistério do choque entre o corpo e a voz". Isso porque, continua Lacan (1975-1976/2017, p. 19), "o corpo tem alguns orifícios, dos quais o mais importante é o ouvido, porque ele não pode se tapar, se cerrar, se fechar. É por esse viés que, no corpo, responde o que chamei de voz". Essa noção modifica o modo de pensar o inconsciente, o qual não se apresenta mais nesse momento do ensino de Lacan como estruturado como uma linguagem, o que desloca, também, a despeito dessa noção, a conceituação de sintoma como metáfora para o sinthoma como um acontecimento do corpo.
As operações de constituição subjetiva, alienação e separação, no ano de 1964, corresponderão, nos anos de 1970, à entrada do sujeito e seu corpo na operação de incorporação pela linguagem. Nessa terceira teoria do corpo em contraposição com a primeira em que há um primado do significante, Lacan quer mostrar que a linguagem tem efeito não só de significação, mas também de gozo (Wolodarsky, 2008, p. 317). Dessa forma, nessa terceira teoria, "o gozo pulsional assume o centro da questão, ligado aos orifícios do corpo, ao redor dos quais a pulsão satisfaz a si mesma repetidamente" (Wolodarsky, 2008, p. 317). Entre a primeira e a terceira teoria do corpo, podemos dizer que se partiu de uma proposição amparada na significação fálica, em que a questão do objeto - do ser e do ter - estava implicada em uma dialética centralizada pela castração e preservava como ponto de ancoragem a clínica edipiana, para chegarmos, com o avanço sobre o objeto a, ao que Lacan isola como uma nova estrutura da falta, não significante, o que exige uma elaboração topológica. O objeto a será nosso ponto de entendimento de como os objetos cedíveis ao Outro entram no campo da troca necessária para que o corpo e sua imagem se enlacem permitindo que as zonas erógenas, agora, reguladas, possam fazer borda ao corpo.
Inscrever-se no Outro por meio da linguagem implica, nesse ato instaurador do desejo, que o sujeito entregue ao Outro a causa de seu desejo. Em nota de rodapé acrescentada ao texto do Escritos (1958/1998, p. 560), "De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose", Lacan indica que "o S barrado do desejo suporta aqui o campo da realidade, e este só se sustenta pela extração do objeto a, que, no entanto, lhe fornece seu enquadre". O objeto a não se caracteriza por uma imagem ou um símbolo: "é, fundamentalmente, um pedaço destacado do corpo, cuja consistência provém da linguagem" (Gault, 2008, p. 229). Como consistência lógica, o objeto a está apto a encarnar o que falta ao sujeito, está apto a dar lugar ao objeto perdido (Miller, 1996). Essa possibilidade de extração, fala-nos Gault (2008), é encontrada nas estruturas clínicas em que ocorre a castração tal como na neurose e na perversão. O neurótico busca incessantemente reencontrar esse objeto definitivamente perdido. O perverso se dedica a uma manobra, que busca "restituir o objeto ao Outro, a fim de que este goze" (Gault, 2008, p. 229). Por outro lado, continua Gault (2008, p. 228), na psicose, "é a essa subtração que o sujeito psicótico faz objeção" e é para onde Lacan nos conduz, pois ele reconheceu que, para o psicótico, esse objeto não está perdido, revelando que "o sujeito o tem à sua disposição" (Miller, 1996, p. 196). No psicótico, não haveria a incessante demanda ao objeto a, pois ele tem em seu bolso o que lhe causa. Em qualquer lugar que ele vá, ele o tem pronto para preenchê-lo (Gault, 2008).
Desse modo, o objeto a, como objeto do desejo, "não é apenas parte ou peça desvinculada do dispositivo que aqui imagina o corpo, mas elemento da estrutura desde a origem e, por assim dizer, da distribuição das cartas da partida que se joga" (Lacan, 1960/1998, p. 689).
Utilizando o esquema de Bouasse como segundo momento do estádio do espelho, Lacan (1960/1988) irá demonstrar, por meio da introdução de um espelho plano e desse modo na junção entre espelhos côncavos e planos, o mecanismo que utilizamos para imaginar que possuímos algo como uma identidade coerente.
Considerações acerca do objeto a são realizadas no esquema ótico no texto de 1960, "Observação sobre o relatório de Daniel Lagache: 'Psicanálise e estrutura da personalidade'". De forma distinta do primeiro esquema, em que a junção de espelhos planos e côncavos proporcionava a imagem de uma identidade coerente no espelho, no texto de 1960 a imagem do corpo (representada como um vaso no espelho plano da linguagem) viabiliza que os objetos referentes às zonas de gozo (e que nesse esquema são representados pelas flores) sejam situados dentro do vaso. Seria, então, uma adequação entre o corpo fragmentado e a imagem do corpo. Entretanto, conforme a inclinação do espelho, as flores já não ficam dentro do vaso, mas fora dele (Brousse, 2014).
Em um segundo momento desse esquema ótico, no Seminário sobre a angústia (Lacan, 2005), nos anos de 1962-1963, "no lugar das flores aparecerá um x e o vaso não se inscreverá como imagem, mas como um furo marcado pela escritura de -φ", como algo que não se projeta na imagem especular (Greco, 2011, p. 10). Os objetos a são, portanto, "o ponto de encontro entre a imagem e o organismo, mas ao mesmo tempo ponto de oposição entre o corpo como imagem e a experiência corporal" (Brousse, 2014, p. 9).
Quanto à linguagem, em contraste com a doutrina do significante, esta se coloca não como efeito de significação, mas também de gozo (Wolodarsky, 2008). A questão, diz-nos Brousse (2014), é esclarecer como esse laço entre a experiência orgânica e a imagem do corpo se produz. O laço entre o corpo fragmentado e a imagem do corpo se realiza pelas zonas erógenas. Nesse ponto, Brousse (2014, p. 6) retoma Lacan quando ele focaliza a ideia de Freud no que se refere às zonas erógenas do corpo, "que são localizadas nos pontos de abertura do organismo - ou seja, em todos os lugares do corpo que permitem uma comunicação entre o corpo como organismo e o mundo exterior". Esse laço é produzido pelas experiências de gozo: a boca, o ânus, o falo, os ouvidos e os olhos; acrescentados por Lacan, eles grampeiam, unem a imagem com o organismo, "chamando esse grampo de objeto a" (Brousse, 2014, p. 7). O laço entre a imagem e o organismo é realizado pelas experiências de gozo - ou seja, experiências que excedem a homeostase proporcionada pelo prazer - que são grampeadas, unem-se pelo objeto a. O ponto de encontro entre imagem e organismo é o objeto a.
O objeto a, portanto, é um furo com uma borda que condensa o gozo. Tal como nos fala Miller (1996, p. 196): "O objeto a, como consistência lógica, está apto para encarnar o que falta ao sujeito. É o semblante de ser que a falta-a-ser subjetiva convoca. É por isso que o objeto a como consistência lógica é próprio para dar seu lugar ao gozo interdito, ao objeto perdido". O objeto, ao constituir um furo no Outro, tem bordas que funcionam como condensador de gozo. Assim, a pulsão faz seu circuito a partir desse furo por meio da junção da fala e do corpo.
Retornando ao esquema ótico, Brousse (2014) nos dá um exemplo, o qual ilustra como algo - no caso, nossos cabelos - que pertence à nossa imagem e nos identifica, pode tornar-se, quando encontrado no ralo do banheiro, separado da imagem, repulsivo: é isso o objeto a. Isso significa que os objetos a são objetos que, quando estão introduzidos no vaso, que no esquema ótico representa nossa imagem do corpo, florescem. Todavia, quando estão fora dessa imagem, objetivados, causam horror. O mesmo ocorre com as vozes, que, quando parecerem não sair de uma boca humana, causam horror. Essa passagem ilustra uma particularidade que nos permite diferenciar os objetos a de objetos comuns. Os objetos a, como já mencionado, têm relação com as experiências de gozo e pertencem à imagem do corpo como unificada, sem serem visíveis (não especularizáveis), tendo, desse modo, um sentido, chamado por Lacan de fálico por terem valor simbólico. No entanto, quando esses objetos estão fora dessa imagem, eles perdem seu valor de significante e têm seu valor de real. Dessa maneira, continua Brousse (2014, p. 10), a condição para que ocorra o laço entre a imagem do corpo e o corpo fragmentado é que "o objeto a tenha sua localização dentro do marco da imagem do corpo", compondo, mas sendo oculto por ela.
Ancorados na mesma escrita do objeto a, mas que, entretanto, representam funcionamento diferentes, o objeto caído e o objeto cedido marcam uma diferença relevante, a qual é destacada por Soler (2012, p. 147): o primeiro objeto caído "é singular, ele não tem imagem, nem nome e nem significante; e o segundo, o objeto cedido, manifesta-se no nível dos fenômenos", é objeto de trocas. Soler (2012, p. 159) continua fazendo a distinção ao dizer que "o primeiro objeto a é o objeto caído, cortado pela operação da linguagem". Ele é o objeto efeito da extração corporal, que ocorre de forma precoce e independente da metáfora paterna, pelo fato de entrarmos na linguagem. Isso porque "o pai não é a causa da separação dos objetos da pulsão parcial nem da castração no nível sexual. A subtração do objeto a funda o $ e o Ⱥ" (Soler, 2012, p. 149). Quando o objeto é subtraído, o que se tem como efeito é o sujeito barrado e o Outro da linguagem, barrado também. Por outro lado, "o objeto cedido vem depois, são objetos plurais. Ele é cedido e a cessão responde à angústia. Ele não é resultante da angústia, ele responde à angústia" (2012).
Ainda no esclarecimento dessa diferença, vale lembrar que o objeto é perdido desde a entrada no mundo simbólico no grito que se desprende e será interpretado pelo Outro como apelo. Por outro lado, o objeto cedido "é veículo de gozo e parte desejada pelo Outro na medida em que também lhe falta" (Lucero & Vorcaro, 2016, p. 65). O objeto cedido faz sua aparição no âmbito dos fenômenos como na alimentação e excreção. Desse modo, "o objeto que passa pelo Outro retorna como um objeto sexualizado, investido libidinalmente, pronto para desenhar os orifícios do corpo" (Lucero & Vorcaro, 2016, p. 65). Ou seja, o objeto, ao ser demandado pelo Outro, recebe deste um retorno, que libidiniza as zonas erógenas ao fazer seu contorno. Dessa maneira, essas zonas erógenas deixam de ser naturais para terem um valor de gozo. Como efeito, as zonas erógenas sofrerão uma delimitação e uma regulação necessárias, que fazem borda ao corpo.
O objeto "adquire um papel essencial nessa mudança de perspectiva em relação ao corpo por permitir uma articulação entre corpo e linguagem que nem sempre vem acompanhada de representação ou simbolização" (Lucero & Vorcaro, 2016, p. 67). Dessa forma, como inscrição de uma primeira operação de extração corporal do objeto a, temos o objeto perdido, que instaura uma primeira falta, a qual será recoberta pelo significante fálico. É o Outro da linguagem que irá promover a primeira extração e a inscrição da falta no psiquismo. Em um segundo momento, e isso pode ser situado após o Seminário 10, "a noção de pai se vincula a uma condição complementar à causa e à operação da linguagem [...] Para que o objeto entre no âmbito da partilha, é preciso uma segunda subtração de gozo, relacionada à inscrição do Nome do Pai" (Lucero, & Vorcaro, 2016, p. 66). O que destaca mais claramente essa diferença é que o objeto a, causa do desejo, anônimo, situa-se num tempo primeiro, o qual traduz claramente o que Lacan nomeia como da ordem do real, o que torna a significantização da ordem do impossível. Ele se refere às pulsões desordenadas, fora da imagem especular, tal como vimos no sistema ótico. Por outro lado, em um segundo tempo, o objeto a cedível, que participa das trocas, ele, sim, por meio do Nome do Pai, terá uma filiação e uma história (Lucero, & Vorcaro, 2016).
Corpo no autismo: direção do tratamento
Na neurose, o sujeito tem um corpo que, ao ser tocado pela linguagem, é afetado pela incorporação do simbólico nele. Há, desse modo, a separação do objeto, o que permitirá que a pulsão se estruture a partir dessa perda e busque, por meio da fantasia, sua realidade. A pulsão faz seu contorno e o gozo retorna ao corpo sob a forma do sintoma, que será um enigma a ser decifrado. Na psicose, o sujeito, ao ser acometido pela linguagem, não tem seu objeto extraído do corpo, tendo-o no bolso. Possui, dessa maneira, um corpo repleto de gozo. Como diz Laurent (2012, p. 23) a respeito de Schereber, ele "testemunha claramente o efeito da língua no corpo: a palavra de Deus atravessa seu corpo, produzindo efeitos incríveis".
No que concerne aos autistas, a despeito de estarem inseridos na linguagem e alienados a ela, eles não viveram a operação de separação, necessária para a queda do objeto e para a constituição de um vazio no corpo, para que o gozo possa nele se alojar. Os orifícios do corpo e suas bordas destacam o vivo do corpo. No entanto, no que diz respeito ao autismo, o que se destaca nesses sujeitos é que não há um furo real, o que dificulta a construção de uma borda e, com ela, de um corpo (Pimenta, 2013).
O trabalho na clínica com autistas deverá seguir um modo particular de tratar o Real que o invade, desse modo nos indagamos: como tornar possível e suportável o que se inscreve do Outro sem ter como recurso a significação fálica? Se não é possível o recurso da simbolização, será necessário outro tipo de tratamento para tornar suportável o gozo invasor, nos diz Barros (2012). Do mesmo modo, continua a autora, no que se refere ao tratamento e às variadas formas que o sujeito autista tem de provocar furo na língua, será preciso acolher "recursos inventados sem tentar traduzi-los pelo referencial fálico, o que é inoperante e pode ter como consequência um maior fechamento da defesa" (Barros, 2012, p. 93). É o que Miller, no seu texto "A matriz do tratamento da criança do lobo", ao comentar sobre o caso Robert, atendido por Rosine Lefort, propõe como "uma chave de leitura, um instrumento de trabalho importante que permite pensar os recursos fora do falo para lidar com o impossível de simbolizar" (Barros, 2012, p. 94). No caso Robert, em particular, havia um esforço em introduzir o menos no real marcado pela tentativa de cortar o próprio pênis. Modalidade esta de introduzir o menos terá efeitos sobre as fezes, por exemplo, que poderão a partir disso serem suportáveis de perder. É esse modo de leitura particular de cada caso que permite um saber fazer com o sujeito autista no tratamento.
O fato de ser sem furo, assevera Laurent (2014), principal característica do espaço autístico, é que nos leva a reconhecer o caso Robert como um paradigma dessa ausência de furo. A tentativa de mutilação do pênis por uma tesoura de plástico é, também, uma forma de fazer furo onde "não há furo exceto aquele que uma automutilação tenta criar" (Laurent, 2014, p. 80). Dizer que não há furo significa que não há uma borda delimitando esse furo. Dessa maneira, não há um lugar onde as trocas possam ocorrer. Assim, o corpo do sujeito autista se apresenta como uma neoborda, uma vez que forma um limite quase corporal, para o qual nenhum contato com o sujeito se apresenta possível (Laurent, 2014).
É preciso certo tempo, diz-nos Laurent (2014, p. 82), até que a "neoborda se relaxe, se desloque, constituindo um espaço - que não é nem do sujeito e nem do Outro - onde possa haver trocas de um tipo novo, articuladas com um Outro menos ameaçador". Instituir um limite para um sujeito que não tem borda é trabalhar para que, no tratamento, ocorra a constituição de uma cadeia singular que agrega significantes, objetos e jeitos de fazer, "de modo a constituir um circuito que faça a função de borda e de circuito pulsional (Laurent, 2014, p. 83). Tudo isso, continua Laurent (2014), sob uma nova forma de fazer com a clínica com crianças, a despeito do que Anna Freud e Melanie Klein dispunham como objetos em sua clínica, mas por meio da introdução de novos objetos, que se diferenciam da categoria de brinquedos e que se apresentam como objetos que possam ser acoplados ao corpo ou extraídos dele, a exemplo da mamadeira de Marie Françoise. Laurent (2014) ilustra uma passagem de um tratamento em que o circuito metonímico pode servir como construção de bordas pulsionais. Essa passagem consistiu em dar à criança um objeto dentro de um saquinho que ela leva ao banheiro e, depois, em tirá-lo de dentro dele. Desse modo, ao sair do banheiro, essa criança sai levando um papel no seu saquinho. Nesse momento, ela entra em "um novo circuito, que inclui um papel extraído no banheiro e começa a escrever nele" (Laurent, 2014, p. 84). Consequentemente, afirma Laurent (2014, p. 84), "para que esse deslocamento por contiguidade possa admitir novos objetos e não constitua uma pura e simples intrusão, uma invasão, a inclusão do novo tem de vir acompanhada da extração de outra coisa". Quando essa extração puder ocorrer, o sujeito pode ceder um pouco do gozo que excede em seu corpo sem que isso lhe seja insuportável.
Outra forma de tratamento do gozo excessivo vem da presença do duplo no autista. Diferentemente do duplo na psicose, que pode vir acompanhado de uma presença persecutória, o duplo no autista tem uma função apaziguadora "da qual o sujeito se vale, de bom grado, para tratar o gozo pulsional" (Maleval, 2017, p. 129). O duplo tem a função de funcionar como uma borda do corpo do sujeito autista. Tem como objetivo "fazer suplência a essa ausência de borda" (Laurent, 2014, p. 100).
A relação com o terapeuta se sustenta nesse duplo em que o sujeito pode servir-se dele ou anulá-lo. No que concerne aos elementos: olhar, a voz, o corpo e os objetos no tratamento o que se pode considerar é que o analista deve saber ler o que o sujeito autista apresenta como "operador do tratamento". Essa expressão utilizada por Ferreira e Vorcaro (2017), designa os elementos sobre os quais o analista irá conduzir o tratamento e como o analista deve se deixar regular pelo sujeito, acompanhando-o nas dificuldades que este tem com as insígnias que vêm do Outro. Posição esta do analista que se particulariza nessa clínica, uma vez que, no tratamento com essas crianças ele precisa saber a medida de sua posição: não ser invasivo com sua voz, seu olhar e nem com seu corpo; entretanto, saber usar de uma voz que modula, um olhar que não invade e um corpo que ampara.
Considerações finais
As investigações atuais sobre o autismo ainda produzem indagações concernentes ao seu campo de apresentação. O que é patente, no que se refere ao campo psicanalítico, é a maneira diversa de apreender o autismo. Nesse campo, trata-se de verificar o modo de funcionamento subjetivo desse sujeito a despeito de um conjunto de sintomas que nos são revelados. Além do mais, a segunda clínica lacaniana, amparada na relação com o campo da linguagem e com o real do gozo que se apresenta como um resto, emerge como uma possibilidade de se pensar o tratamento do autismo. Como nos diz Laurent (2014), as ferramentas que Miller extrai do último ensino de Lacan são muito favoráveis para se pensar a clínica da cadeia e da extração.
Como vimos, enquanto o sujeito neurótico está imerso na dimensão simbólica da linguagem e com ela se enlaça produzindo trocas e sentido para a sua existência, o sujeito autista vive a experiência da alienação ao Outro da linguagem, mas não experencia a inscrição da castração, que permitiria a ele o acesso à ordem do símbolo.
As crianças autistas demonstram que a dimensão simbólica do corpo não é um recurso de todo sujeito, pois ele é efeito de uma incorporação da linguagem a que o autista não acedeu. No entanto, é importante enfatizar que, apesar de apresentarmos um sujeito que não consegue contar com a proteção simbólica marcada pela linguagem, ele pode, à sua maneira, de forma singular, inventar uma forma de se haver no mundo.
Referências
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Artigo recebido em: 16/02/2018
Aprovado para publicação em: 26/05/2018
Endereço para correspondência
Maria Gláucia Pires Calzavara
E-mail: glauciacalzavara@gmail.com
Ângela Maria Resende Vorcaro
E-mail: angelavorcaro@uol.com.br
*Profa. Adjunta da Universidade Federal de São João Del-Rei - UFSJ, membro do Núcleo de Pesquisa e Extensão em Psicanálise - NUPEP - Núcleo Práxis da Clínica Psicanalítica, Doutora em Educação pela Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG, profa colaboradora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia - PPGPSIC.
**Psicanalista membro da Association Lacanienne Internationale (ALI), professora senior do pós-graduação em Psicologia (UFMG); pesquisadora do CNPQ e da Fapesp.
1A norma fálica se refere a um ponto de ancoragem para o sujeito, já que o significante fálico vem ordenar toda a cadeia de significantes estabelecendo uma lógica em referência ao falo.
2Se não há o recurso à norma fálica, o Outro se apresenta como excessivo e o sujeito necessitará encontrar certa margem de manobra em relação ao Outro para não se tornar intrusivo.
3No Seminário 20, Lacan estabelece a diferença entre lalíngua e linguagem. A linguagem, como um sistema gramatical, é uma elucubração do saber sobre lalíngua, enquanto lalíngua nomeia o significante como produtor de gozo. A linguagem se instala sobre esse efeito primário (ruídos, sons e palavras, que geram consequências específicas no corpo), servindo à tentativa fracassada da "comunicação" entre os seres falantes (Chamizo, 2016, p. 266).