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Tempo psicanalitico
versão impressa ISSN 0101-4838versão On-line ISSN 2316-6576
Tempo psicanal. vol.50 no.2 Rio de Janeiro jul./dez. 2018
ARTIGOS
Psicanálise e pesquisa científica: o pesquisador na posição de analisante
Psychoanalysis and Scientific Research: the researcher in the position of the analysant
Psicoanálisis y pesquisa científica: el pesquisador en la posición del analizante
Jacqueline de Oliveira MoreiraI*; Nathiéle Araujo OliveiraI**; Ethyene Andrade Costa***
IPontifícia Universidade Católica de Minas Gerais - PUC Minas - Brasil
RESUMO
A psicanálise tem avançado e se firmado como um importante campo de pesquisas no cenário acadêmico brasileiro, firmando-se, inclusive, nos programas de pós-graduação das universidades. Todavia, não podemos deixar de considerar as tensões entre o saber psicanalítico e os modelos positivistas de produção de conhecimento. Na tentativa de responder ao questionamento metodológico que se faz presente como uma dificuldade para os ingressantes dos referidos programas, este artigo tece considerações sobre a relação da teoria psicanalítica, com especial atenção para a psicanálise lacaniana, com a pesquisa científica. A revisão crítica da literatura traz à tona um novo modo de fazer pesquisa, que busca na clínica psicanalítica instrumentos para produção de objetivos e dados, bem como para sua análise. O manejo da transferência, instrumentalizada para a construção de um texto, equipara o pesquisador ao analisante. Ambos supõem no outro um saber para bordejar com palavras o real que os move. A aplicação do método da escuta do inconsciente, para além do setting analítico, possibilita a produção de um saber que é parcial e passível de transformação, já que se propõe a pesquisar a fonte de movimento e transformação constantes. Acreditamos que é necessário ao pesquisador que se posicione como um analisante, ou seja, alguém movido pelo não saber, mas que produz efeitos em si e no próprio ato de pesquisar, possibilitando assim o encontro com o novo.
Palavras-chave: psicanálise, metodologia, pesquisa em psicanálise, pós-graduação.
ABSTRACT
Psychoanalysis has advanced and has become an important field for academic studies in Brazil, receiving increasing attention from several graduate courses in the country. Nevertheless, one must not ignore the tensions between psychoanalytical knowledge and positivist models of science. In an effort to respond to the methodological impasse which presents itself as a difficulty for the participants of such graduate programs, this essay reflects on the relations between psychoanalytic theory - notably Lacanian contributions - and scientific research. From a critical review of the literature on this matter emerges a new type of research using psychoanalytical clinic as an instrument to produce goals and data, as well as to analyze them. The managing of transference, utilized for constructing a text, turns the researcher and their object of analysis into equals, since they both suppose that they can find in one another some knowledge which may help elaborate in words the reality which moves them. Listening to the unconscious, beyond the analytic setting, may produce a type of knowledge which is partial and transformable, as it intends to better comprehend the sources of constant movement and transformation. We believe that the researcher should put him/herself in the position of the analysant, i. e., someone moved by not knowing, but who produces effects on him/herself as well as on the act of researching, bringing thus the possibility of an encounter with the new.
Keywords: psychoanalysis, methodology, psychoanalytic research, graduate courses.
RESUMEN
El psicoanálisis viene avanzando como importante campo de pesquisas en el escenario académico brasileño, estableciéndose, incluso, en los programas de postgrado de las universidades. Sin embargo, no podemos dejar de considerar las tensiones entre el saber psicoanalítico y los modelos positivistas de producción de conocimiento. En el intento de responder al cuestionamiento metodológico que se hace presente como una dificultad para los ingresantes de los referidos programas, este artículo teje consideraciones sobre la relación de la teoría psicoanalítica, con especial atención al psicoanálisis lacaniano, con la pesquisa científica. La revisión crítica de la literatura evidencia un nuevo modo de hacer pesquisa, que busca en la clínica psicoanalítica instrumentos para producción de objetivos y datos, bien como para su análisis. El manejo de la transferencia, instrumentalizada para la construcción de un texto, equipara el pesquisidor al analizante. Ambos suponen en el otro un saber para bordear con palabras lo real que les mueve. La aplicación del método de la escucha del inconsciente, más allá del setting analítico, posibilita la producción de un saber que es parcial y pasible de transformación, ya que se propone a pesquisar la fuente de movimiento y transformación constantes. Creemos que es necesario al pesquisador que se posicione como un analizante, es decir, alguien movido por el no saber, pero que produce efectos en sí y en el propio acto de pesquisar, posibilitando, así, el encuentro con lo nuevo.
Palabras clave: psicoanálisis, metodología, pesquisa en psicoanálisis, postgrado.
No presente texto pretendemos apresentar algumas considerações sobre a relação da teoria psicanalítica com a pesquisa científica, sobretudo as pesquisas vinculadas ao sistema de pós-graduação em psicologia. Sabemos que no cenário brasileiro existe um programa de mestrado profissional e doutorado em psicanálise - "Psicanálise, Saúde e Sociedade", da Universidade Veiga de Almeida; e três programas de mestrado acadêmico e doutorado na área - "Psicanálise", da UERJ, "Psicanálise: Clínica e Cultura", da UFGRS, e "Teoria Psicanalítica", da UFRJ. Nota-se que esses programas sustentam, explicitamente, a palavra "psicanálise" no título oferecido ao discente, mas temos, ainda, vários programas que oferecem uma linha de pesquisa em psicanálise (UFMG, USP, UFC, UEM, por exemplo) e outros que contam com docentes que se orientam pela teoria psicanalítica. Considerando-se a relevância da produção científica no âmbito dos programas de pós-graduação que se fundamentam na teoria psicanalítica, pretendemos realizar algumas reflexões sobre metodologia de pesquisa vinculada à psicanálise a partir de uma revisão crítica da literatura que apresentará artigos dedicados à reflexão sobre pesquisa em psicanálise.
Em um primeiro momento, optamos por refletir sobre as relações da teoria psicanalítica com o campo da ciência, considerando que o oficio do psicanalisar se sustenta na vocação para pesquisa. Em seguida, dedicamo-nos a pensar sobre a posição do pesquisador orientado pela psicanálise no seu campo de pesquisa. Acreditamos que é necessário ao pesquisador que se posicione como um analisante, ou seja, como alguém movido pelo não saber, mas que produz efeitos em si e no próprio ato de pesquisar. Assim, os instrumentos coletados devem possibilitar esse encontro com o novo, e a análise pode seguir o modelo do trabalho clínico. Dessa forma, apresentamos algumas possibilidades de se pensar uma pesquisa científica orientada pela psicanálise como a pesquisa construída em torno do real que se faz questão para o pesquisador e considera a sua própria subjetividade.
Ciência, pesquisa e psicanálise: diálogo intrínseco
A vocação da psicanálise para a pesquisa é inerente a sua própria criação, que provém da teorização feita por Freud a partir de sua própria prática clínica. Conforme definição do próprio Freud (1922/1996, p. 253), psicanálise "é o nome de (1) um procedimento para a investigação de processos mentais que são quase inacessíveis por qualquer outro modo, (2) um método (baseado nessa investigação) para o tratamento de distúrbios neuróticos e (3) uma coleção de informações psicológicas obtidas ao longo dessas linhas, e que gradualmente se acumula numa nova disciplina científica".
Assim, a psicanálise se define não apenas por uma condição terapêutica, mas também como um procedimento de investigação dos processos inconscientes que inaugura um novo campo de conhecimento, afirmando-se também enquanto ciência. A psicanálise construída por Freud partiu da experiência clínica, sendo justamente essa fonte a base da sistematização dessa teoria em sua aplicação enquanto metodologia de pesquisa na Universidade.
Segundo Nobre (1999), a pesquisa em psicanálise parte da afetação do analista pelo real da clínica; é resultado do efeito da clínica sobre o analista, do seu atravessamento pela psicanálise, diferentemente da necessidade de responder aos requisitos acadêmicos que o saber científico comporta. Por outro lado, não podemos esquecer que a pesquisa em psicanálise no interior da universidade precisa atender às demandas dessa instituição e, ao mesmo tempo, da própria psicanálise. De tal modo, a psicanálise deve "circunscrever de forma mais precisa seu espaço acadêmico e definir, a partir da própria psicanálise, as especificidades do seu método de pesquisa, para assegurar o seu lugar na pesquisa acadêmica e possibilitar sua comunicação com outros campos do saber" (Monte, 2002, p. 35). Para Mezan (1994), é possível pensar a pesquisa psicanalítica em conformidade com a metodologia acadêmica. De acordo com o autor, a realização de uma pesquisa em psicanálise não prescinde de seus conceitos fundamentais, tais como o inconsciente e a transferência, mas, assim como a pesquisa científica, deve apresentar um método de coleta e de análise de dados que seja compatível com o objeto de pesquisa.
Parece-nos importante enfatizar que há uma tensão entre o método psicanalítico e os métodos clássicos de pesquisa no que se refere ao lugar do sujeito. Sauret (2003) lembra que o sujeito é excluído do método científico, pois sua presença é incompatível com os parâmetros de objetividade, generalização e universalidade exigidos pela ciência positivista. O método científico positivista condiciona sua veracidade à neutralidade do sujeito que produz o saber, buscando preservar a objetividade na análise do objeto da pesquisa. A psicanálise, ao contrário, não renuncia ao sujeito, pois tem no sujeito do inconsciente seu próprio fundamento. Nesse sentido, Pinto (2009) alerta que a psicanálise não se contrapõe à ciência, pois vem subverter o lugar do sujeito no discurso científico, na medida em que, ao ter como objeto o inconsciente, aponta para o que escapa ao discurso da ciência, tratando daquilo que não se dá a conhecer.
Seguindo a mesma trilha, Figueiredo, Nobre e Vieira (2001) apontam para a impossibilidade de a pesquisa em psicanálise apreender o fenômeno do mesmo modo que as ciências empíricas, pois o fenômeno pelo qual a psicanálise se interessa escapa ao controle e à possibilidade de refutação exigidos pela ciência positivista. Em perspectiva semelhante, Iribarry (2003) argumenta que é justamente por trabalhar com a impossibilidade de previsão do inconsciente que a pesquisa psicanalítica jamais poderia se submeter a uma exigência de sistematização conforme a ciência positivista. Assim, o saber em psicanálise não parte de um saber a priori, se constrói no a posteriori de sua prática clínica. Como nos afirma Guerra (2001), "o objeto, para a psicanálise, não surge no mundo sensível, mas é tomado como aquilo que orienta a existência do ser humano enquanto sujeito desejante" (Guerra, 2001, p. 99). Dessa forma, como argumenta Pinto (2009), a psicanálise se apoia no discurso da ciência, uma vez que mantém com a ciência uma relação intrínseca, mas se sustenta em pressupostos éticos distintos. A psicanálise, seja na sua vertente clínica ou na pesquisa científica, deve, então, manter-se fidedigna à sua ética.
De acordo com Miller (1996), a ética em psicanálise não diz de uma ética como a definem os filósofos. Contrariando Aristóteles em Ética a Nicômaco, uma ética universal fundamentada no sujeito racional que tem no bem a finalidade da ação, a ética da psicanálise é a ética relativa a um discurso, o discurso do analista - aquele que não cede ao discurso da ciência (avesso da psicanálise), ou ao discurso do capitalista - que visa tamponar a falta-a-ser através dos objetos mais-de-gozar, mas que sustenta "uma ética [que] se anuncia, convertida ao silêncio pelo advento não do pavor, mas do desejo" (Lacan, 1958a/1998, p. 691), e, ainda, por ser uma ética do desejo, é uma ética de sua interpretação.
A ética do desejo - visto que é isso que é preciso acrescentar à ética da psicanálise - não é, devido ao desejo, uma ética da liberação do desejo. O desejo, na psicanálise, é um problema de ética - não se trata de liberá-lo, mas de resolvê-lo. Essa solução do desejo permite apresentá-lo como uma equação [...], uma equação à espera de uma solução (Miller, 1996, p. 112).
Assim, a ética em psicanálise aponta para a impossibilidade do predicado e da universalidade. Fundamentada pelo desejo, aponta em direção ao singular do caso a caso, uma ética do a posteriori. Apresenta sua ética na tomada da palavra pela via da enunciação. Contudo, ainda que se norteie pela ética da causa do desejo e pela incidência do inconsciente, a pesquisa em psicanálise, bem como a pesquisa orientada pela psicanálise, apresenta suas particularidades em relação ao próprio exercício psicanalítico. Sobre isso, Lacan (1958b/1998) afirma:
A psicanálise só se aplica, em sentido próprio, como tratamento e, portanto, a um sujeito que fala e que ouve. Fora desse caso, só pode tratar-se de método psicanalítico, aquele que procede à decifração dos significantes, sem considerar nenhuma forma de existência pressuposta do significado (Lacan, 1958b/1998, p. 758).
Pinto (1999), ao discorrer sobre a pesquisa empírica orientada pela psicanálise, argumenta que, assim como na pesquisa científica, a psicanálise também se utiliza da escuta, contudo trata-se de uma escuta que visa a detectar a presença do inconsciente na fala do outro. Portanto, a fala do sujeito pode ser elevada tanto ao nível universal quanto pode apontar uma falha na tentativa de generalização buscada pelo método científico. Para Pinto (1999, s/p), o método psicanalítico se definiria como " o método clínico de pesquisa sem a intervenção analítica que visa retificar a posição do sujeito em relação ao seu inconsciente".
A pesquisa em psicanálise ou orientada por esta não visa à citada retificação, pois utiliza a fala como instrumento fundamental, através da associação livre, e a escuta como ferramenta que marca a posição do analista. Assim, entende-se que a escuta psicanalítica é possível também em outros contextos que não a clínica, pois "o inconsciente está presente, como determinante, nas mais variadas manifestações humanas, culturais e sociais. O sujeito do inconsciente está presente em todo enunciado, recortando qualquer discurso pela enunciação que o transcende" (Rosa, 2004, p. 341-342).
Rosa e Domingues (2010), ao tratarem da pesquisa psicanalítica fora do contexto da clínica, e relacionada aos fenômenos sociais e políticos, apontam a controvérsia inerente a tal campo. Freud denominava como "psicanálise aplicada" o uso da psicanálise fora do contexto da clínica, demarcando uma separação entre a teoria psicanalítica e sua aplicação clínica. No universo pós-freudiano, o termo1 é utilizado para nomear a aplicação da psicanálise aos fenômenos sociais, políticos e culturais, em contraposição a sua versão pura, destinada à teoria e sua aplicação na prática clínica.
Ainda acerca da aplicação da psicanálise aos fenômenos sociais, Enriquez (2005) assegura essa articulação ao afirmar que esta consiste em uma ciência dos "processos inconscientes que se desenrolam não apenas no indivíduo isolado, mas também nos grupos, nas instituições, nas produções do espírito" (Enriquez, 2005, p. 154). Isso foi sinalizado pelo próprio Freud, em seus textos ditos antropológicos ou sociológicos, nos quais se empenha em distinguir as origens e as transformações do laço social (Enriquez, 2005). Tal colocação reitera a disposição científica da psicanálise e sua aplicabilidade em contextos que ultrapassam a situação clínica, alçando reconhecimento enquanto método científico passível de uso dentro da Universidade.
Ainda que não encontremos um consenso entre os psicanalistas em relação aos procedimentos concretos de pesquisa científica em psicanálise, podemos considerar que esta pesquisa se define para além de uma metodologia una, pois se sustenta por sua dimensão ética de escuta do sujeito do inconsciente. Podemos afirmar com Mezan (1994) que o método psicanalítico deve apresentar uma proposta de coleta e de análise de dados que seja compatível com o objeto de pesquisa e, conforme qualquer pesquisa científica, também, deve seguir os critérios e rigores científicos que assegurem sua validação no meio acadêmico. Contudo, entendemos que mais que uma metodologia, isto é, um método de coleta e análise de dados específicos2, o que caracteriza a pesquisa em psicanálise é sua dimensão ética - a ética do desejo, a dimensão do inconsciente, estruturado como linguagem - e a relação transferencial. Como afirmam Rosa e Domingues (2010, p. 180): "A discussão sobre métodos de pesquisa deve ser referida à perspectiva epistemológica e teórica que lhe dá sustentação, uma vez que é a teoria, o objeto e o objetivo de pesquisa que devem definir qual o método mais adequado".
Se o método psicanalítico difere da ciência positivista em sua dimensão ética, visto que a segunda diz de uma busca pelo saber enquanto verdade e o primeiro toma o saber pelo a posteriori e a verdade como um impossível, a ciência positivista e a psicanálise também diferem, segundo Sauret (2003), em sua concepção de sujeito.
O sujeito da psicanálise é, em contraponto à noção de indivíduo, o sujeito do inconsciente. O que a categoria de sujeito estabelecida na teoria lacaniana ressalta é o próprio descentramento da consciência, apontado primordialmente por Freud, na origem de toda a subjetividade. O avanço de Lacan está na leitura inédita que faz acerca da estruturação do inconsciente, que define como " toda a estrutura da linguagem que a experiência psicanalítica descobre no inconsciente" (Lacan, 1957/1998, p. 498).
Nisso se encontra a particularidade da psicanálise, sua ética propriamente dita, pois o sentido não se afere de maneira intrínseca ao significante, que, como tal, não se refere a nada, não carrega por si só nenhum sentido; é puro non sense, podendo significar nada ou qualquer coisa. Seu efeito, entretanto, surge do cruzamento dessas cadeias, isto é, da intersecção entre a língua e a fala; entre discurso e cadeia significante; entre o social e o singular.
O que essa estrutura da cadeia significante revela é a possibilidade que eu tenho, justamente na medida em que sua língua me é comum com outros sujeitos, isto é, em que essa língua existe, de me servir dela para expressar algo completamentediferente do que ela diz. Função mais digna de ser enfatizada na fala que a de disfarçar o pensamento (quase sempre indefinível) do sujeito: a saber, a de indicar o lugar desse sujeito na busca da verdade (Lacan, 1957/1998, p. 508).
Como afirma Miller (1996), o sujeito como falta-a-ser surge do significante, ou seja, é a partir dos significantes que o sujeito se constitui, através da significação de suas experiências, corroborando a afirmação de Lacan (1964/2008) de que é no significante que o sujeito se reconhece enquanto tal. Lacan ainda afirma que é a linguística que fornece a estrutura que dá estatuto ao inconsciente, sendo ela o que nos garante que há sob o termo inconsciente algo de qualificável, de acessível, de objetivável. Assim, a escuta psicanalítica aposta no encadeamento dos significantes - uma vez que o sentido não preexiste ao significante, mas é efeito do seu encadeamento - como possibilidade de localizar o sujeito, suas formas de subjetivação e suas manifestações do inconsciente.
Partindo da inclusão do sujeito do inconsciente no campo científico, a psicanálise opera, por consequência, sustentada pela linguagem e pelo campo da fala em suas estratégias metodológicas. Verificamos a importância da inclusão do sujeito do inconsciente, da ética do desejo e da relação transferencial nas pesquisas orientadas pela psicanálise no campo da universidade.
Passemos agora a indagar sobre as formas possíveis de acessar elementos da vida dos sujeitos, através da instrumentalização desses conceitos, para além do setting analítico e sobre a posição do pesquisador em relação a seu objeto de pesquisa.
Metodologia de pesquisa em psicanálise: desejo do pesquisador e os significantes na pesquisa
Defendemos a hipótese de que o pesquisador em psicanálise precisa se colocar em uma posição de analisante e de que a pesquisa se caracteriza pela sustentação da ética psicanalítica propriamente dita, ratificada neste texto pela ética do desejo. Essa ética vê o sujeito como falta-a-ser e leva em conta a dimensão do inconsciente - estruturado como linguagem - e a transferência como mediador da relação estabelecida com o objeto e o saber. Dessa forma, discutem-se as formas possíveis de instrumentalizar desses conceitos, para além do setting analítico, na construção da pesquisa acadêmica.
A pesquisa em psicanálise parte de algo que resta em relação àquilo que fora simbolizado e elaborado até então. Os estudos na área tornam-se importantes devido ao "[...] potencial de oxigenação da comunidade analítica" (Pinto, 2009, p. 13) na medida em que se compromete a buscar sentidos que a renovem diante da necessidade teórica contingencial, colocando-se "[...] à prova, reescrevendo o que a contingência refuta" (Pinto, 2009, p. 13). A partir de um enigma que se lheapresenta, o pesquisador posiciona-se de maneira análoga ao analisante, buscando, assim, produzir novos sentidos:
É exatamente a angústia da desestabilização dos conceitos, das lacunas teóricas, o que coloca o sujeito em movimento, como acontece com um analisante. A partir dessa precariedade do funcionamento fálico é que o analisante/pesquisador pode deixar os significantes trabalharem e permitir o aumento das opções de escolha coerentes com as formas de aparecimento da verdade (Pinto, 2009, p. 18).
O pesquisador que se depara com uma lacuna no conhecimento a toma como motor de seus esforços investigativos, assim como o analisante é movido a partir daquilo que não pode significar, mas que não deixa de surtir efeitos (Pinto, 2009). Miller (1998) se referiu a esse obstáculo na fala do analisante como o osso de uma análise, uma dificuldade. Para explicá-lo, equiparou-o à expressão brasileira da "pedra no caminho" recorrendo ao conhecido poema de Carlos Drummond de Andrade " No meio do caminho", reproduzido a seguir:
No meio do caminho tinha uma pedra
Tinha uma pedra no meio do caminho
Tinha uma pedra
No meio do caminho tinha uma pedra.
Nunca me esquecerei desse acontecimento na vida de minhas retinas tão fatigadas
Nunca me esquecerei que no meio do caminho tinha uma pedra
Tinha uma pedra no meio do caminho
No meio do caminho tinha uma pedra (Andrade, 1930/2010, p. 22).
Como discutido, a psicanálise é constituída como procedimento de investigação, tratamento e produção científica. Sendo essas dimensões formadas de maneira estritamente articulada e indissociável, o aparecimento de uma lacuna, de uma "pedra", em qualquer uma delas, torna necessário revisitar em todos os níveis o que foi proposto até então (Sauret, 2003; Figueiredo, & Minerbo, 2006; Guerra, 2001). Segundo Guerra (2001):
[...] trata-se de levar o efeito do significante ao seu extremo, ao ponto no qual um obstáculo ao saber possa ser entrevisto, uma questão possa ser formulada, provocando deslocamentos de verdade que as afirmações teóricas produzem no exercício de sua maestria. (Guerra, 2001, p. 86).
Instaura-se então a transferência do pesquisador em relação à questão da pesquisa, colocando-o em movimento de suposição de saber na direção de textos, entrevistas e demais fontes que confrontem aquilo que sabe. Diferentemente dos ideais da ciência positivista, a psicanálise inclui o sujeito do inconsciente na pesquisa, tornando viável considerar suas expressões através de atos e afetos que se apresentam na e pela transferência. É o olhar do pesquisador que dará forma, por exemplo, ao objeto de pesquisa. Portanto, a transferência é colocada por Elia (1999) como uma das condições estruturantes (e estruturais) da pesquisa. Também pela transferência o trabalho do pesquisador aproxima-se do trabalho do analisante ao supor no Outro um saber que pode auxiliá-lo a bordejar o enigma que lhe afronta.
Podemos afirmar que, por a pesquisa em psicanálise ter produzido seu modelo metodológico a partir das movimentações que definem a experiência clínica, a transferência irá despontar como característica comum entre esses dois campos, e o que irá distingui-las será o destino dado à transferência em cada uma delas. Sobre a transferência, Rosa e Domingues (2010) apontam sua importância no que esta possibilita a emersão do sujeito do inconsciente enquanto sujeito da psicanálise.
Operar com o inconsciente implica, pois, a suposição de um saber que "não se sabe", mas que é suposto. As condições de produção de conhecimentos sobre este "insabido" são internas ao campo relacional que o constitui. A isso denominamos em psicanálise "transferência". Não é, pois, um saber prévio que já estava ali, no "entrevistado", como um dado a ser colhido pelo "entrevistador". É algo que se situa num espaço transferencial em que o "insabido" se expressa como formações do inconsciente. Logo, ele inclui o pesquisador na própria formação (Costa, & Poli, 2006, citados por Rosa, & Domingues, 2010, p. 186).
Para as autoras, a transferência, pressuposto fundamental da teoria e da clínica psicanalítica, não diz de um fenômeno exclusivo da clínica e da psicanálise, mas de um fenômeno que perpassa todas as relações interpessoais. A diferença se coloca pelo manejo da transferência: enquanto no tratamento a transferência deve ser diluída, na situação de pesquisa deve ser instrumentalizada para produção do texto metapsicológico.
Rosa e Domingues (2010) distinguem ainda o outro lugar que a transferência ocupa na pesquisa. Enquanto na clínica o analista ocupa para o sujeito o lugar do suposto-saber, a situação de pesquisa inverte esse lugar: é o sujeito da pesquisa que ocupa o lugar de suposto-saber em relação ao pesquisador. Assim, a demanda do pesquisador deve se colocar suficientemente ampla para que possa propiciar que o entrevistado formule sua própria questão e responda a ela de forma singular.
Desse modo, o objeto da pesquisa deve pensar em "[...] questões que não foram inventadas pela teoria; têm antes existência concreta, pois foram trazidas para a clínica por aqueles que buscam saídas para os impasses encontrados entre as suas expectativas e aquelas do discurso social" (Pinto, 2009, p. 5). O objeto da pesquisa psicanalítica não está, portanto, posto a priori, é produzido na e pela transferência a partir do que se apresenta (Rosa, 2004).
Sabemos que o sujeito se constitui imerso no discurso do Outro, tomando para si valores e demais aspectos da cultura:
O inconsciente freudiano é incompatível com a ilusão do individual, da autonomia e da independência no homem, uma vez que afirma a dependência simbólica do desejo do Outro, explicitada na forma como teoriza a constituição do sujeito através do processo edípico (Rosa, 2004, p. 340).
Da mesma maneira constitui-se a teoria que em cada momento simbólico busca produzir saídas cabíveis a determinados impasses de sua civilização. Segundo Pinto (2009), confere-se à psicanálise, como método clínico ou científico, uma posição política ligada aos efeitos de um dado movimento simbólico procurando ser "[...] uma clínica criativa inventada a partir de cada analisante" (Pinto, 2009, p. 6). Assim, a ética da psicanálise caracteriza-se por preservar a singularidade de cada sujeito. Mas como realizar na prática essa busca trabalhando sob os preceitos psicanalíticos?
É pela palavra que se faz possível a clínica psicanalítica, portanto na pesquisa não poderia ser diferente. Calazans e Serpa (2010) afirmam que o único meio de o psicanalista produzir saber é pela clínica. Para esses autores, não importa o caminho, seja ele uma pesquisa teórica, de campo ou um estudo de caso, o meio será sempre o mesmo: a clínica como uma experiência de fala.
O trabalho psíquico se dá em torno de "pontos significantizáveis". Busca-se nomear, colocar em palavras aquilo que o analisante repete para que assim se possa, talvez, encontrar um sentido. Sabe-se, porém, que o trabalho analítico sempre irá esbarrar no limite do Real, daquilo que não pode ser nomeado, o gozo que excede a possibilidade de representação. A análise acarreta, portanto, o deslize de significantes, as operações de redução subjetiva, tendo em vista enxugar a inflação gerada pela palavra em pontos de repetição, em significantes-mestres para os quais convergem os discursos no analisante, lidando ainda com os pontos impossíveis de serem traduzidos (Guerra, 2001, p. 89): "Assim, mais do que somente extrair ou produzir esse significante-mestre, uma análise deve pretender deslocar o sujeito do discurso no qual se encontra instalado, produzindo novas formas de lidar com o gozo, com o obstáculo que se coloca como evitação".
Iribarry (2003), ao comentar sobre as singularidades da pesquisa psicanalítica, aponta para dois pontos fundamentais: não visa e nem possibilita uma vertente generalizadora, pois diz da produção de novos sentidos em relação a um particular; e suas estratégias de análise de resultados não trabalham com o signo, mas com o significante.
O segundo ponto é confirmado por Lacan, que afirma: "[o significante] se caracteriza por representar um sujeito para outro significante" (Lacan, 1972-1973/1985, p. 68); "Um sujeito é aquilo que pode ser representado por um significante para outro significante" (Lacan, 1968-1969/2008, p. 21)"; "o Sujeito se constitui pelos efeitos do significante" (Lacan, 1964/2008, p. 122). E o que isso quer dizer? Que o sujeito da psicanálise é, primordialmente, o sujeito do inconsciente - que, conforme Lacan, é estruturado como linguagem -, portanto o sujeito do qual a psicanálise se ocupa só pode ser acessado enquanto efeito de sentido pela lógica significante. "O sujeito é, então, efeito do significante, pois está submetido à sua lei", a lei do desejo, da diferença sexual (Chaves, 2002, p. 69)3. Resultado do encandeamento significante, o sujeito encontra-se nos intervalos entre um significante e outro, emerge enquanto significação no tempo a posteriori.
Nos seminários transcritos em " O osso de uma análise", Miller (1998) comenta a maneira como Drummond consegue passar sua mensagem repetindo palavras, ou, melhor dizendo, articulando significantes por meio de "operações-redução". Assim como no poema " No meio do caminho", a pesquisa em psicanálise visa construir sentidos a partir dos significantes trazidos pelos sujeitos da pesquisa, ou seja, construir significações que emergem no tempo a posteriori por efeito de retroação na cadeia significante. Por isso, o método de acesso ao inconsciente não é a palavra, mas o significante, uma vez que, conforme Lacan (1960/1998), a fala mente se colocando como verdade e cria uma realidade a partir da construção de uma ficção.
Instrumentos e procedimentos para coleta de dados
É possível afirmar que as particularidades da metodologia psicanalítica de pesquisa não se encontram aplicadas aos instrumentos de coleta de dados, não havendo instrumento de coleta exclusivamente ou eficazmente psicanalítico. Entretanto, a pesquisa em psicanálise se afere pela aplicabilidade da própria ética psicanalítica ao instrumento metodológico escolhido. Nesse sentido, cabe citar Iribarry (2003), que argumenta:
o método da pesquisa psicanalítica não traz inovações quanto à escolha dos sujeitos ou participantes, nem mesmo apresenta alguma peculiaridade quanto aos procedimentos para coleta de dados ou mesmo aos instrumentos e materiais empregados. Tais etapas metodológicas ficam a critério da criatividade do pesquisador (Iribarry, 2003, p. 124).
Enfatizamos que, tendo a psicanálise como objeto fundamental o sujeito enquanto falasser, a dimensão da escuta psicanalítica, conforme postulado anteriormente, incide sobre a lógica significante, e esta rege a linguagem como um todo, seja ela escrita ou falada. Portanto, a escolha do instrumento de coleta de dados em pesquisa psicanalítica estende sua aplicabilidade não apenas aos instrumentos que têm como objeto de primazia a fala, mas a todas as formas que se estruturam pela linguagem.
Como lembra Rosa (2004), o inconsciente não se apresenta apenas no setting analítico clínico sob a regra da livre associação. A obra de Freud apresenta manifestações do inconsciente no cotidiano em chistes, atos falhos, esquecimentos, entre outros, demonstrando ser possível a realização da psicanálise extramuros, tornando-a presente não só no setting clínico, mas no mundo além das quatro paredes de um consultório. É o que Calazans e Serpa (2010) chamaram de "psicanálise em extensão". "Isto significa que se pode trabalhar a partir da escuta psicanalítica de depoimentos e entrevistas, colhidos em função do tema do pesquisador" (Rosa, 2004, p. 342).
A pesquisa acadêmica em psicanálise, segundo Lo Bianco (2003), é caracterizada por promover a releitura da teoria e introduzir o novo, aumentando as possibilidades de sentido retiradas da clínica psicanalítica. Quanto ao primeiro aspecto, a pesquisa em psicanálise diferencia-se das demais pelo atravessamento dos efeitos da clínica, ou da própria psicanálise, sobre o pesquisador ou mesmo sobre o objeto, ainda que não se trate de uma pesquisa partindo de material clínico. Trabalha-se com o inusitado, com o saber inconsciente (Lustosa, 2003): "A psicanálise tem como premissa a superação do discurso produzido pela consciência que é um campo de saber sustentado pela verdade do sujeito, o que não gera certezas ou generalização" (Rosa, 2004, p. 331).
No que concerne à releitura da teoria, ressalta-se que, como preconizado por Freud, fazer psicanálise não é mantê-la intacta, mas manter o rigor de investigação do novo que se apresenta no discurso do sujeito. Sob tal intuito, a própria teoria deve ser revisitada com o cuidado de não ser encarada como uma "massa de informações prontas e definitivas" (Lo Bianco, 2003, p. 121). Seguindo a proposta freudiana retomada por Lacan, adota-se o princípio de que "[...] o analista deve ser pesquisador de sua própria prática" (Marcos, 2010, p. 101) e, para tanto, colocam-se novas perguntas ao que fora produzido na tentativa de deslocar efeitos de verdade que as afirmações teóricas produzem no exercício de sua mestria. Não se trata de subverter os conceitos que enraizaram a psicanálise, mas da abertura para o novo, para o inusitado, seguindo-se os princípios psicanalíticos (Calazans, & Serpa, 2010; Marcos, 2010).
Instrumentos e procedimentos para análise de dados
Nesse estágio, o trabalho do pesquisador se assemelha ao trabalho clínico de análise do discurso, constituído por operações-redução subjetivas de repetição, convergência e evitação. A fala do analisante gira em torno do "osso" que rege sua subjetivação, e é através da fala que a análise auxilia a esculpir essa "pedra no meio do caminho" (Miller, 1998).
Na clínica psicanalítica é possível notar que o real insurgido no corpo do sujeito é repetido com vistas a encontrar sentido. Tais repetições são regidas por significantes-mestres para os quais converge o destino do sujeito. A análise tem seu lugar quando o sujeito, frente à pedra de Drummond ou ao osso apresentado por Miller (1998), impedido de seguir diante de um obstáculo, "repete" por uma significação. Como nos lembra Miller (1998, p. 30), "[...] inicialmente, é porque existe o obstáculo que existe a repetição. Mas é porque existe a repetição que se percebe e isola o obstáculo". Esse autor chama de "operação-redução" aquela que caminha no sentido contrário à amplificação do discurso através de memórias, detalhes e racionalizações, buscando identificar o "pequeno a", o âmago que se esconde sob o grande Outro incorporado ao discurso do sujeito. Segue afirmando, ainda, que "o bem dizer analítico [...] visa à redução" (Miller, 1998, p. 44).
Pinto (2009) nos lembra que Lacan se fez mestre na utilização da lógica de redução a elementos mínimos, tanto na estruturação de conceitos como na condução de análises:
Lacan adotou, então, a matematização da ciência moderna e efetuou um deslocamento da história do caso para sua lógica, para uma redução a elementos mínimos cuja ação evidencia a repetição e a consequente evitação do impossível, a partir da vivência de um sujeito. (Pinto, 2009, p. 10)
Seguindo a proposta psicanalítica, a análise dos dados utilizada pode caracterizar-se como uma análise psicanalítica do discurso, trabalhando no sentido das operações de redução utilizadas para a construção de categorias de dados em busca de identificar pontos de repetição e de analisar pontos de convergência no discurso dos entrevistados. Coloca-se em prática a atitude clínica que, como lembram Figueiredo e Minerbo (2006), pode se fazer presente mesmo na pesquisa realizada fora do setting analítico clínico. Na pesquisa em psicanálise dotada de tal atitude, a interpretação caracterizada "por um olhar para o fenômeno investigado, fora do seu campo habitual [...] desopacifica o objeto" (Figueiredo, & Minerbo, 2006, p. 260), gerando um efeito de transformação na qual o pesquisador deixa-se fazer pelo objeto, ao mesmo tempo que o primeiro constrói o segundo. Somado a isso, cabe lembrar que Freud já preconizava a decomposição do chiste em dados do contexto da biografia do analisante, "dos eventos de seu pensamento" (Miller, 1998, p. 45).
Ainda de acordo com o método freudiano e a redução lacaniana, faz-se necessário decompor também os dados levantados. Sobre tais feixes de significação formados a partir de aspectos superponíveis, há que se "mapear esses pontos nodais do discurso" (Guerra, 2001, p. 90). Nesse ponto, tem-se a operação-redução de convergência, que visa identificar o enunciado essencial para o qual apontam os demais enunciados do sujeito. Nesse sentido, a alegoria proposta por Dominique Fingermann no questionamento ao seminário de Miller (1998), que afirmava que "podemos dizer que a poesia é fazer o caminho a partir de uma pedra, e a análise é fazer uma pedra a partir de um caminho" (Miller, 1998, p. 52), é de grande valia para dizer do objetivo de construir sentidos em torno do obstáculo, ou seja, da falta que dá corpo ao objeto de pesquisa.
Há que se considerar ainda a leitura psicanalítica do inverso do discurso, ou seja, dos aspectos de evitação encobertos pelos significantes (Guerra, 2001), atentando-se para o fato de que esse mecanismo "vem em oposição à repetição e à convergência, e, ao mesmo tempo, são a repetição e a convergência que tornam possível esse mecanismo de evitação" (Miller, 1998, p. 60). São significantes que não aparecem de maneira evidente por serem contornados por outros que caracterizam a repetição de sua ausência, o que "não cessa de não se escrever" (Miller, 1998, p. 67). Esse "não dito" pode na pesquisa, assim como na clínica, tornar-se um obstáculo para a produção de sentidos. A análise dos discursos sob a lógica freudiana toma em consideração os pontos de evitação para identificar as partes do mesmo que são recalcadas ou privilegiadas. Desse modo, teve-se em vista compreender o Real em jogo, cujas respostas não dizem respeito a uma causalidade positivista, mas a múltiplas possibilidades de interpretação.
Segundo Guerra (2001), o material produzido em torno do real servirá de fundamento para construir novas teorias e novas perguntas. No entanto, para Lo Bianco (2003), a teoria não deverá ser considerada como um conjunto pronto de informações a serem aplicadas, mas sob a proposta de questionamento e (re)elaboração característicos do que requer o objeto específico da psicanálise: o inconsciente.
Não se tem aqui, entretanto, a intenção de esgotar a teoria e produzir um saber absoluto a esse respeito, posto que o real será sempre intraduzível, sendo possível apenas deslocá-lo a cada novo postulado (Guerra, 2001):
No ponto limite em que o saber se depara com o real, há a repetição na tentativa de dar conta deste. Essas repetições vão modulando ideias e discursos que adquirem estatutos de verdade, fundando teorias como campo simbólico que se fixa pela linguagem. Essa operação de convergência estabelece conceitos em torno de ideias básicas que funcionam como significantes-mestres de dada teoria (Guerra, 2001, p. 91).
Como ressalta Moreira (2010), não há uma verdade incondicional, e o próprio funcionamento do objeto de estudo da psicanálise, o inconsciente, não se revelando de maneira total, permite ao pesquisador construir apenas saberes parciais: "Trabalhar sobre esse real implica mudar o enquadre da realidade discursiva sobre o tema analisado" (Guerra, 2001, p. 92). Há que se questionar, portanto, as teorias impostas como verdades na tentativa de preservá-las de uma fixidez improdutiva, posto que um conceito, uma vez fixado, despotencializa-se diante das novas ideias que a prática suscita de maneira contínua (Rosa, 2004). É necessário, ainda, atentar para a transferência excessiva do pesquisador em relação aos mestres da psicanálise, evitando-se que a alienação nos ditos do Outro, com o qual se identifica com certo fascínio, não promova a mera reprodução do que já está posto. O próprio pai da psicanálise preconizava a recriação dessa teoria a partir de cada novo caso, desde que respeitando o que já fora estabelecido (Elia, 1999). Como lembra Mezêncio (2004), "Miller sugere que é necessário falar de boa-fé, ou seja, não se trata de repetir saberes estabelecidos, mas de reinventar a psicanálise baseando-se nos pontos de tropeço de cada um que se coloca em causa em relação ao saber". (Mezêncio, 2004, p. 111)
A autora diferencia o "bem-dizer" psicanalítico do "tudo-dizer", visto que colocar perguntas diante do que está posto não quer dizer poder responder a todas elas. Como exposto anteriormente, a investigação própria do objeto da psicanálise - o inconsciente - muitas vezes esbarra com a impossibilidade de tradução simbólica, tornando esse saber passível de ser criado, e não descoberto. Assim como no trabalho analítico clínico, o que se pretende é bordejar o obstáculo que se apresenta, dando-lhe forma, construindo um saber sobre ele (Mezêncio, 2004). A partir de então, está construído o "caminho das pedras", ou seja, o caminho para a formação de um panorama sobre o que tem sido realizado pelas pesquisas em psicanálise.
Quando a posição do pesquisador se aproxima da posição do analisante e supõe na figura do Outro (objeto de pesquisa) a detenção de algum saber, essa relação com o saber deve manter-se também sustentada pela primazia do significante em relação ao significado e pela impossibilidade de redução do Real ao campo da linguagem. A ética da psicanálise se traduz por uma ética do desejo, e este se define pelo campo irredutível da falta. O princípio da pesquisa em psicanálise diz da sustentação desse ponto de impossibilidade em sua relação com o saber, um saber "não todo" e produzido no a posteriori, que se cria no caso a caso.
Considerações finais
Aqueles que se propõem trabalhar com psicanálise encontram-se envoltos pelas prerrogativas para a realização desse ofício, a saber: a realização da própria análise, a supervisão de casos e os estudos continuados na área da psicanálise. Os programas de pós-graduação que colocam a psicanálise como centro de suas pesquisas têm-se mostrado um caminho fértil para colocar em prática essa última dimensão do psicanalisar. No entanto, a revisão crítica da literatura mostra que há um confronto entre a pesquisa em psicanálise e os modelos positivistas de pesquisa, com ampla tradição no campo acadêmico. Enquanto estes propõem a neutralidade do objeto de pesquisa, com cuidados para que os resultados não sejam "contaminados" pelo pesquisador, a pesquisa em psicanálise coloca o sujeito no centro da investigação. O pesquisador, em face do real, daquilo que falta, constrói o objeto de pesquisa, que sempre estará localizado na escuta das manifestações do inconsciente, sendo esse movimento compreendido a partir da transferência do pesquisador diante do objeto e dos instrumentos de pesquisa. Assim como o analisante, o pesquisador supõe existir saber em participantes, produções literárias e demais fontes que possam ajudá-lo a circunscrever o real com palavras, tecendo uma aproximação entre o lugar do pesquisador em psicanálise e a posição do analisante.
Pautado na investigação clínica dos processos inconscientes, o método ressaltado na obra de Miller (1998) tornou-se uma resposta pertinente à questão deste artigo. Congruentes com a decifração de significantes, nomeada por Lacan como "método psicanalítico", as operações de redução se apresentaram como meios férteis para a análise das palavras não só na clínica, mas também na pesquisa em psicanálise.
O ponto final de uma pesquisa em psicanálise não significa o fechamento de um saber total, já que, "finalmente", não propõe uma generalização dos resultados, mas o olhar contínuo para aquilo que é singular e que se transforma permanentemente: o inconsciente. O pesquisador se posiciona, portanto, como um analisante em relação aos enigmas do seu inconsciente.
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Artigo recebido em: 21/12/2017
Aprovado para publicação em: 20/07/2018
Endereço para correspondência
Jacqueline de Oliveira Moreira
E-mail: jackdrawin@yahoo.com.br
Nathiéle Araujo Oliveira
E-mail: nathiele@task.com.br
Ethyene Andrade Costa
E-mail: ethyeneac@hotmail.com
*Doutora em Psicologia Clínica PUC-SP, Mestre em Filosofia-UFMG, Professora do Programa de Pós-Graduação me Psicologia PUC Minas, Bolsista Produtividade PQ2.
**Doutoranda em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais - PUC Minas (Conceito CAPES 5), Mestre em Psicologia pela PUC Minas, Graduada em Psicologia pela UFMG, Bolsista CAPES.
***Mestre em Processos Psicossociais de Subjetivação - PUC-MG, Pós-Graduada em Psicanálise Clínica da Criança e do Adolescente - PUC-MG, Psicóloga - UFU (Universidade Federal de Uberlândia).
1Para nomear essa aplicação da psicanálise fora do contexto da clínica, Lacan, citado por Rosa e Domingues (2010), utiliza o termo "psicanálise em extensão", distinguindo-a da psicanálise em intensão. A psicanálise em intensão será localizada no campo da doutrina, e dirá respeito ao processo e produto da análise. Já a psicanálise em extensão irá se referir a "tudo o que resume a função de nossa Escola como presentificadora da psicanálise no mundo e a psicanálise em intensão, ou seja, a didática, como não fazendo mais do que preparar operadores para ela" (Lacan, 1967, citado por Rosa, & Domingues, 2010, p. 181).
2Não negamos aqui a importância da metodologia, fator imprescindível em qualquer pesquisa acadêmica, mas a necessidade de uma metodologia única, definida a priori enquanto metodologia específica para se realizar pesquisa em psicanálise.
3A impossibilidade da união simétrica entre significante e significado aponta para a impossibilidade de uma totalidade entre o um e o outro, trata-se da impossibilidade do rapport sexual. "É a Lei da castração - da diferença sexual - que organiza o encadeamento significante como tal. Como efeito desse encadeamento, temos o comparecimento do sujeito que se constitui como uma significação. O sujeito comparece como efeito de uma metáfora, que Lacan denomina de metáfora paterna" (Antunes, 2002, [s. p.]).