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Tempo psicanalitico

versão impressa ISSN 0101-4838versão On-line ISSN 2316-6576

Tempo psicanal. vol.51 no.2 Rio de Janeiro jul./dez. 2019

 

ARTIGOS

 

Sobre a teoria da nominação em J. Lacan: do ato à invenção

 

About the theory of the nomination in J. Lacan: from the act to the invention

 

Sur la théorie de la nomination chez J. Lacan: de l'acte à l'invention

 

 

Andréa Máris Campos GuerraI, II, III*;Hudson Vieira de AndradeIV**

IUniversidade Federal de Minas Gerais - UFMG - Brasil
IIAssociação Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Psicologia - ANPEPP - Brasil
IIIRede Interamericana de Pesquisa em Psicanálise e Política - Brasil
IVUniversidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Desenvolvemos a tese de que há ao menos duas proposições do psicanalista J. Lacan quanto à teoria da nominação. Nós a localizamos a partir da análise de dois paradigmas extraídos dos mitos freudianos de "Totem e tabu" e de "Moisés e o monoteísmo". Uma primeira teoria calcada na premissa de que o ato funda a condição do nome, a partir do assassinato do pai como elemento de regulação e referência. E outra de que, diante do impossível de assimilar, é preciso a invenção de um nome, a partir do qual se orienta um sujeito ou um povo. As consequências extraídas dos dois paradigmas dizem respeito ao sujeito e ao laço social, conformando modos políticos e subjetivos diferenciados de racionalidade discursiva e de operacionalidade subjetiva.

Palavras-chave: psicanálise, nominação, mito, nome próprio, laço social.


ABSTRACT

We develop the thesis that there are two propositions of the psychoanalyst J. Lacan on the theory of nomination. We have located it from the analysis of two paradigms extracted from the Freudian myths of "Totem and Taboo" and of "Moses and Monotheism". One first theory based on the premise that the act founds the condition of the name, from the murder of the primeval father as an element of regulation and reference. And another theory that, in the face of the impossibility of assimilating, it is necessary to invent a name, from which a subject or a people is oriented. The consequences derived from the two paradigms relate to the subject and to the social bond, conforming different political and subjective modes of discursive rationality and subjective operability.

Keywords: psychoanalysis, nomination, myth, proper name, social bond.


RÉSUMÉ

Nous avons développé la thèse qu'il y a au moins deux propositions du psychanalyste J. Lacan sur la théorie de la nomination. Nous l'avons localisé à partir de l'analyse de deux paradigmes extraits des mythes freudiens de "Totem et Tabou" et de "Moïse et Monothéisme". Une première théorie basée sur la prémisse que l'acte fonde la condition du nom, du meurtre du père comme élément de régulation et de référence. Et une autre est que, face à l'impossibilité de l'assimilation, l'invention d'un nom est nécessaire pour orienter soit un sujet soit un peuple. Les conséquences dérivées des deux paradigmes concernent le sujet et le lien social, conforment différents modes politiques et subjectifs de rationalité discursive et d'opérabilité subjective.

Mots-clés: psychanalyse, nomination, mythe, nom propre, lien social.


 

 

Introdução

A referência a uma possível teoria da nominação em Psicanálise nasce com o francês Jacques Lacan, mas encontra ecos freudianos que nos permitem supor suas condições de possibilidade. Se podemos dizer que haja essa teoria em Lacan, veremos que ela sofre uma inflexão no interior da própria obra lacaniana. Propomos uma dupla pertinência da ideia de nominação em Lacan, ora tomada como efeito de um ato de inscrição ou como invenção. Interessante observar em Lacan esse desdobramento. Nós o faremos, aqui, a partir da releitura de dois paradigmas freudianos do nome.

Freud busca, através do nome, a origem, a filiação. Lacan, por seu turno, encontra dois aportes em sua pesquisa para responder ao que constitui um nome. Primeiro, o ato, especialmente com o seminário A identificação, e depois a invenção, nominação real, simbólica ou imaginária, com o Seminário RSI (1974-1975), insere o nome no interior de um enlaçamento, no ponto em que um desses três registros excede o outro, sem encontrar exatamente uma contenção. As combinações tornam-se múltiplas, como se tornam variados os referentes e as possibilidades de sua interpretação. O limite é o impossível de significar em um nome. Assim, neste artigo, defenderemos a proposição de que Lacan passa de uma teoria da fundação em ato do nome para uma teoria da invenção do nome, através da análise dos dois paradigmas freudianos acima referidos.

Essa consequência teórica não é sem relação com a interpretação que Lacan empreende de Freud, especialmente quanto ao Édipo. Lacan (1956-1957/1995, 1957-1958/1999) nunca tratou o Complexo de Édipo freudiano senão como metáfora paterna, articulada pela linguagem. E, quando ele se pergunta a que serve o Édipo, em meados de 1969, ele se depara com a dimensão da verdade, avizinhada do real e impossível de ser toda apreendida. Ali ele toma o pai como agente real, ou mais precisamente, como efeito de linguagem, que permite a criação de sentido como tratamento do real. Não é o pai que condiciona a linguagem, mas antes a linguagem que dá causa a que Um pai se constitua a partir do tratamento do real (Lacan, 1969-1970/1992).

Essa condição de possibilidade encontra-se ancorada na reinterpretação dos mitos de Freud. Nesse ponto, especialmente, Lacan denota a diferença e extrai as consequências dos mitos de "Totem..." e de "Moisés...". O assassinato do pai primevo, em "Totem e tabu" (Freud, 1913 [1912-1913]/1976), é constitutivo da adoção de um nome, de ideais e de leis por um povo. Ele é pré-condição para que Um referente se estabeleça no horizonte do processo identificatório como semblante de unidade ideal. Na horda primeva, a condição de possibilidade identificatória é fundada no gozo anterior do pai que, assassinado, torna-se totem (ideal) e também tabu (interdição). É, pois, na fantasia de recuperação desse ambivalente objeto perdido, amado e odiado, que se funda a condição de constituição do nome.

Enquanto, em "Moisés e o monoteísmo" (1939/2001), é o núcleo de estrangeiridade e diferença que o suposto egípcio porta como traço distintivo, o que se afigura no horizonte identificatório. Esse traço carece ser lido, interpretado, retraduzido. Com Moisés, Lacan se pergunta se não teria sido o próprio homem a fundar a condição de Deus, já que foi ele, Moisés, quem desceu do monte Horeb com as tábuas que desenham as possibilidades de nomeação e de legislação de seu povo. "Yahvé era já o Deus de Abraão, de Isaac e de Jacó? Trata-se de uma tradição da qual podemos estar seguros? Ou essa tradição pode ter sido retroativamente reconstituída pelo fundador da religião, que seria então Moisés?" (Lacan, 1969-1970/1992, p. 129). Essa condição fundacionista evidencia, na centralidade de nossa discussão, o ponto vazio de onde o sujeito pode advir como nome ou de onde o laço social pode se constituir como corpo político.

A condição de possibilidade do isolamento desses dois paradigmas é justamente a mutação da função do pai reduzido a significante mestre por Lacan, forjado para dar conta da castração, que é promovida pela própria incidência da linguagem sobre o corpo. Em outros termos, a castração como efeito de linguagem implica o pai como aquele que virá em auxílio do sujeito na qualidade de suplemento para tratar o real que resta dessa operação simbólica, recoberta imaginariamente. Proposição sedimentada no Seminário 17, que sofre avanço lógico no Seminário 19 com Frege, e culmina efetivamente, no Seminário 22, na teoria da nominação, que confere outro tratamento ao nome, que não pela via do ato.

A teoria do ato como fundação do nome encontra seus fundamentos especialmente no seminário sobre a Identificação, de 1961-1962, com a centralidade da passagem do elemento fonemático para sua inscrição como traço unário, tendo o pai como referente. Esses pressupostos se expandem na Conferência Introdução aos Nomes-do-Pai, de 1963, na qual Lacan (2005, p. 87) retoma o sacrífico de Abraão na consideração acerca daquilo que "não tem nome no campo do Outro". Ele remonta a teoria do nome próprio a algumas lições de seminários anteriores seus e destaca no nível do Pai o totem e a função do nome próprio. Ele a toma como "marca já aberta à leitura" (Lacan, 2005, p. 73), impressa sobre um sujeito que fala, a partir de um ato.

Bom, feita essa contextualização, vamos ao que nos interessa neste artigo, a saber, como Freud colabora com essa construção lacaniana.

 

O mito do pai primevo e a identificação vertical clássica em Freud

Em "Totem e tabu" (1913[1912-1913]/1976), Freud elabora uma teoria sobre a origem do laço social fundada no mito da horda primeva. Nesse mito encontramos um pai tirano que exerce o monopólio e interdita aos seus filhos o acesso ao gozo. Como gesto de retaliação, os filhos se voltam contra o pai, matando-o, e ingerem seu cadáver na tentativa de incorporação da potência do objeto assassinado. Contudo, ao contrário de esse gesto garantir acesso ao gozo, é estabelecido em seu lugar um sistema social regido por leis, cujos mandamentos capitais são instituídos após a morte do pai: (i) totemismo: através de um processo metafórico, um totem (geralmente um animal) é escolhido como representação para o pai morto, ele recordaria aos membros da tribo sua ascendência comum, sendo proibido que ele seja consumido ou morto e (ii) tabu: constituído pela interdição das relações sexuais com pessoas da mesma tribo (princípio da exogamia).

Dessa forma, o totem viria para simbolizar a lei por meio da formação simbólica da morte do pai e sua conservação como nome que organizaria classificações genealógicas. Por sua vez, o tabu substituiria o poder-força da autoridade do pai da horda primitiva pelo poder-lei impessoal e permanentemente reciclável.

Entre o lugar vazio de poder e fonte de identificação - que a figura totêmica passa a ocupar após a morte do pai primevo - e seu complemento fantasmático - restauração nostálgica do objeto perdido de amor e de identificação -, vemos formular-se em Freud uma teoria do nome fundado pelo ato parricida. O lugar ocupado então por essa figura de exceção, "lugar pleno de investimento libidinal" (Safatle, 2015, p. 89), alimenta um circuito de transmissão entre a culpa fantasmática pelo assassinato e o desejo de ocupar tal lugar. Daí a constituição de uma ordem de filiação que nomeia a tribo, de um lado, e, por outro, o afeto de solidariedade entre os iguais, cuja paralisia social é sustentada pela nostalgia do pai, da figura soberana. Trata-se de uma perspectiva de laço social, fundada na assimetria e na crença no Um, como fundamento identificatório1. Como a lógica totemista freudiana afeta a teoria da nominação em Lacan e nos permite elucidar a questão do nome próprio?

No mito de "Totem e tabu", o ato, que seria transgressor individualmente, torna-se, porque coletivo, fundamento de um novo pacto, fundado nos dois tabus que dão corpo ao modelo totemista, como herança do ato parricida.

Anularam o próprio ato proibindo a morte do totem, o substituto do pai; e renunciaram aos seus frutos, abrindo mão da reivindicação às mulheres que agora tinham sido libertadas. Criaram, assim, do sentimento de culpa filial, os dois tabus fundamentais do totemismo, que, por essa própria razão, corresponderam, inevitavelmente, aos dois desejos recalcados do complexo de Édipo (Freud,1913[1912-1913]/1976, p. 172).

O sistema totêmico é, no fundo, um pacto com o pai, que trata desejos infantis de proteção e amor ao preço de restrições coletivas. A dimensão sacrificial é central na constituição desse novo laço de restrição fraterno, baseado na crença na cumplicidade do crime comum. A passagem de uma "horda patriarcal para um clã fraterno" (Freud, 1913[1912-1913]/1976, p. 189) seria sua consequência, engendrada ao preço de se manter o pai idealizado. Resta uma lembrança indestrutível do primeiro grande ato sacrificial, que irá retornar como real, repetido e atualizado em rituais na religião e no direito, enfim nos dispositivos sociais simbólicos.

É curioso Freud inventar seu mito, jamais observado etnologicamente, na contramão da proposição de Darwin: "naturalmente, não há lugar para os primórdios do totemismo na horda primeva de Darwin" (Freud, 1913[1912-1913]/1976, p. 169). O tipo mais primitivo de organização a que se acedeu empiricamente implica em grupos de machos com direitos iguais e restrições semelhantes. Daí Lacan brincar que a horda primeva diria respeito a uma sociedade de orangotangos primatas.

Para Freud (1913[1912-1913]/1976, p. 169), "a psicanálise revelou que o animal totêmico é, na realidade, um substituto do pai", e o sentimento ambivalente para com essa figura decorre do fato de que ela é interditada. "O violento pai primevo fora sem dúvida o temido e invejável modelo de cada um do grupo de irmãos: e, pelo ato de devorá-lo, realizavam a identificação com ele, cada um deles adquirindo uma parte de sua força" (Freud, 1913[1912-1913]/1976, p. 170). Odiavam, mas também amavam e admiravam o pai. Assim, satisfeito o ódio e partilhada a identificação, surge o sentimento de culpa na forma de remorso. "O pai morto tornou-se mais forte do que o fora vivo" (Freud, 1976/1913[1912-1913], p. 171) é o aforismo clássico freudiano.

Nesse mito, o ato é, pois, condição fundante do nome. Porque houve o assassinato, há uma nova ordem e um novo clã, nomeado pelo pai assassinado. Há um apaziguamento e, ao mesmo tempo, uma contenção dos afetos. É assim constituído um nome que faz Um e pacifica.

 

Um segundo paradigma freudiano da identificação (ou o avesso do laço identitário)

Em sua obra, Freud parece nos apontar um modelo alternativo de laço social que não estaria fundado pelo pacto do reconhecimento na produção de identidades sociais, tributárias da inscrição de uma lei anterior que determinaria os modos de identificação (como parece sugerir a lógica totêmica). Outra forma de enlaçamento social é apresentada no ensaio "Moisés e o monoteísmo: três ensaios" (1939/2001), cujas teses centrais consistem na defesa de uma identidade egípcia de Moisés e dos créditos pela invenção do monoteísmo atribuídos a um faraó egípcio. Ou seja, a comunidade judaica teria como fundador um estrangeiro e o monoteísmo se iniciaria sob o domínio não-judeu e não-europeu.

O faraó Akhenaten teria fundado a primeira religião monoteísta no Egito, centrada no deus solar Aton. Porém, com sua morte, a religião terminou sendo sucumbida e rejeitada pelo povo egípcio. Ficando a cargo da figura energética e obstinada de Moisés, adepto convicto da religião de Aton, transmitir essa doutrina para um povo outro, no qual, posteriormente, passaria a ser chamado de seu povo e teria na circuncisão um atributo comum de identidade. O Moisés egípcio dera a uma parte do povo uma noção mais altamente espiritualizada de deus, a ideia de uma divindade única a abranger o mundo inteiro, que era não menos amantíssimo do que todo-poderoso, com aversão a todo cerimonial e magia, e que apresentava aos homens, como seu objetivo mais elevado, uma vida na verdade e na justiça (Freud, 1939/2001, p. 46).

Contudo, essa mesma religião instalada pelo Moisés egípcio termina sendo destituída e ele morto pelo povo que acabara de unificar. Esse povo, então, assume uma nova religião e passa a adorar o deus vulcânico Yahvé. Os seguidores de Moisés "obstinados e indisciplinados para com seu legislador e líder, levantaram-se contra ele um dia, mataram-no e livraram-se da religião de Aton que lhes fora imposta, tal como os egípcios se tinham livrado dela anteriormente" (Freud, 1939/2001, p. 54). Passou-se a adorar outros deuses novamente. E isso terminou suprimindo a ideia de monoteísmo, a indiferença com o cerimonial e o destaque dado à ética.

Freud conclui seu raciocínio nessa obra justificando que, no desenvolvimento da religião judaica, ao longo do tempo, o deus Yahvé se tornou gradativamente semelhante ao deus mosaico que pôde finalmente ser reconhecido como o único. Assim, Moisés também ressurgiu sob a forma do grande homem, o precursor da religião. Portanto, é apenas através de um movimento a posteriori que, tanto a religião judaica, quanto seu profeta Moisés, puderam receber uma significação. Em outros termos, foi a permanente interpretação desse traço deixado por um estrangeiro sobre um fundo religioso igualmente exótico que teria permitido a releitura da própria história constitutiva do povo judaico. O que está em jogo na construção do nome desse povo é uma verdade histórica a ser recuperada, antes que um complemento de sentido, uma nova tradução.

Dessa forma, o Moisés egípcio freudiano como uma figura estrangeira se mostraria irredutível a uma identificação imaginária, visto que sua língua materna, seus traços físicos e biográficos não permitiriam qualquer tipo de especularidade em relação ao povo ao qual ele se endereça e que, posteriormente, se tornariam seupovo. O que se ressalta é uma identificação real no confronto a um "núcleo inassimilável e irrepresentável do Outro", numa "lógica de incorporação que, de certa forma, nega-se a si mesma" (Safatle, 2015, p. 128). O que se transmite aqui senão traços que se descompletam, produzindo distorções que tornam impossível uma coesão identitária em torno de uma unidade narcísica? É antes um "acontecimento transformador" ou um "elemento livre-flutuante" que, por um momento, cessa de não se escrever, ainda que mantenha o vazio na centralidade do processo identificatório (Safatle, 2015).

Diante disso, temos um tipo de laço social fundado por um líder estrangeiro, como um corpo estranho e inassimilável no lugar do poder (Safatle, 2015). O Deus que ele procura instituir parece desorientar qualquer coordenada simbólica rígida, visto que, quando perguntado sobre quem é, apenas responde através de uma tautologia vazia, do tipo: "Eu sou o que sou". Sua religião também se mostra contrária a qualquer ritual de sacrifício, magia ou representação pictórica do seu Deus.

Dessa forma, Freud, ao destacar o fundador da identidade judaica como sendo ele mesmo um não-judeu, termina evidenciando a impossibilidade da constituição de um povo como um todo harmônico e contínuo, livre de fraturas e quebras que não seriam suprimidas. Nesse ensaio freudiano, destaca-se a existência de uma forte crítica aos projetos de estruturação social por meio de identidades coletivas.

Mais ousada é a exemplificação profunda de Freud do insight de que até para as mais definíveis, as mais identificáveis, as mais obstinadas identidades comunais - para ele, esta era a identidade judaica - existem limites inerentes que as impedem de ser totalmente incorporadas em uma, e apenas uma, Identidade (Said, 2004, p. 81).

Assim, Freud parece descontruir o corpo político e o nome como unidade contínua, fundada através de uma identidade coletiva coerente. Talvez esse gesto represente uma aposta na irredutibilidade dos aspectos da negatividade do sujeito, diante de um plano político que tende para sua normatização segundo categorias de determinação identitária.

Há um desamparo originário, diante do qual nenhuma forma de representação é passível de pacificá-lo. Não há, nesse paradigma, "determinações estáveis e seguras" desenhadas no espaço vazio original, apenas o traço como distorção (Entstellung). "Traço que descompleta textos, apontando para 'outra cena', "[...] um desamparo intolerável que só pode produzir a violência do assassinato de Moisés pelo próprio povo que ele irá fundar. Assassinato que será, no fundo, o início de uma relação indestrutível" (Safatle, 2015, p. 128). O confronto com o traumático, a saber, com a inscrição da língua sobre o corpo, cujo vazio exige um tratamento pelo nome, engendra um impossível de assimilar que permanece como intensidade viva. Há uma herança não passível de transmissão, sem língua comum, distorção a ser (re)interpetada permanentemente. Trata-se de um anteparo variável, sem fixidez, "desejo que não se aquieta na conformação atual das normas" (Safatle, 2015, p. 130).

Ao interpretar Moisés, Lacan é radical. Não se trata de um assassinato que tenha engendrado o acesso ao gozo, como no primeiro paradigma, o de "Totem e tabu". Ele se pergunta por que, então, teria sido necessário matar Moisés. Na verdade, dois pressupostos centrais de Freud na tese da fundação do monoteísmo não são consensuais nos estudos da religião judaica, ao contrário. Lacan (1969-1970/1992) convida André Caquot para discuti-las. Ele era professor de hebreu e aramaico e diretor da seção de Ciências Religiosas da Escola de Altos Estudos, na ocasião, especialista em história e civilizações semíticas, e fora convidado por Lacan para discutir as proposições de Ernst Sellin. Esse eminente teólogo alemão, E. Sellin, fora também professor e um pioneiro em aplicar a arqueologia nas ciências bíblicas, tendo feito diversas descobertas que auxiliaram interpretações de contradições e enigmas da carta sagrada. Segundo Caquot (Lacan, 1969-1970/1992, p. 200), muitas de suas hipóteses eram calcadas numa imaginação desenfreada, inclusive aquela que havia orientado Freud.

Assim como em "Totem e tabu", Freud não encontra em Darwin subsídios para supor que houvera um pai primevo, também em Moisés não há evidências arqueológicas de seu assassinato. A interpretação da morte de um israelita em uma passagem bíblica de Números é fruto da interpretação de Sellin sobre Oséias, tendo ele proposto que "a morte violenta do guia de Israel teria tido, em sua origem, o valor de um sacrifício expiatório, fazendo cessar um flagelo" (Caquot, citando Lacan, 1969-1970/1992, p. 200). Nesse episódio, Moisés teria sido posteriormente apagado e substituído metaforicamente por uma figura insignificante, cujo nome em sua raiz advinha do verbo "mentir", tendo a figura de Moisés salvador permanecido como a de um herói, cuja lembrança autêntica teria permanecido guardada, em detrimento da cena real apagada.

Outras passagens são evocadas e retraduzidas por Sellin, como a do ordenamento a Moisés de deslocamento do povo judeu por Yahvé (YHVH) por conta do pecado de Baal Peor2. Entretanto, segundo Caquot, o próprio Sellin recua dessa hipótese, dada sua fragilidade. Goethe também teria desenvolvido a mesma suposição do assassinato de Moisés, nesse caso por Josué e Caleb, dada sua indecisão em atravessar o rio Jordão. Freud poderia ter se fiado nessa hipótese e se valido da autoridade de Sellin para justificar seu argumento.

O fato é que, nos dois mitos, Freud evoca o assassinato do fundador na construção de um mito de origem do nome, do povo e o do laço social. Em cada mito, porém, esse assassinato acontece de maneira diversa e forja consequências diferentes. Em "Totem e tabu", há uma equivalência entre o pai morto e o gozo como sinal do próprio impossível, "daquilo que, do simbólico, se enuncia como impossível" (Lacan, 1969-1970/1992, p. 116). Por isso, esse mito, para além do mito do Édipo, destaca a função estrutural do pai real e coloca em questão a fundação do nome e do pacto pela via do ato. "Será então que a função do pai real procede da natureza do ato, no que se refere à castração? É precisamente isso que o termo agente, que enunciei, nos permite deixar em suspenso" (Lacan, 1969-1970/1992, p. 118). Na passagem da teoria do ato para a da nominação, aqui radica sua condição de possibilidade.

O assassinato de Moisés, por seu turno, é o que dá ensejo à adoção de uma outra religião, com um novo Deus, Yahvé, tirânico, violento. Curiosamente "esse deus novo, estranho aos judeus, é anunciado por outro profeta, um midianita chamado também de Moisés" (Safatle, 2015, p. 130). Safatle destaca a dimensão do duplo, do estranho familiar que, tanto na integração do deus Aton pelo Deus Yahvé, quanto na fusão do Moisés egípcio com o Moisés midianita, desfiguram o passado no presente atualizado. "Contrariamente ao pai primevo de Totem e tabu, o que vem agora do passado recalcado não é uma regressão, mas a fidelidade a um acontecimento transformador que, por um momento, cessa de não se escrever" (Safatle, 2015, p. 130-131). Há a produção de uma nova escrita do nome desse povo, sua invenção mais exatamente.

Aquilo que determina essa função é o fato de o pai ser aquele que não sabe nada da verdade que veicula (Lacan, 1969-1970/1992, p. 122). Essa "feroz ignorância" atravessa o pai nos três mitos freudianos, incluindo aqui o edípico. Com isso, Lacan pode prescindir do homem encarnado e postular que o pai real é, no nível da estrutura, da ordem dos efeitos de linguagem (Lacan, 1969-1970/1992, p. 127). Por isso, os três assassinatos configuram um nó mítico, um curto-circuito (Lacan, 1969-1970/1992, p. 128) e, por isso, também os mitos são apenas enunciações manifestas de um conteúdo latente. A chave dessa leitura, Lacan nos oferece na lição sobre "A feroz ignorância de Yahvé" no Seminário 17 (1969-1970/1992). E, para isso, é preciso desintrincar o pai real do pai imaginário que o recobre. "O pai real [...] articula-se propriamente com o que só concerne ao pai imaginário, a saber, a interdição do gozo" (Lacan, 1969-1970/1992, p. 129). Ao pai real resta o lugar estrutural da disjunção entre saber e verdade, efeito inassimilável da incidência do simbólico da linguagem sobre o real de lalíngua. O pai real é seu efeito. "O que o torna essencial está ressaltado, é, a saber, essa castração que eu apontava há pouco dizendo que havia ali uma ordem de ignorância feroz, quero dizer, no lugar do pai real" (Lacan, 1969-1970/1992, p. 129).

Por isso, Freud precisou de Moisés. Situar se Yahvé comparece realmente ou não para designar seu povo a seguir Moisés é uma dimensão crucial dessa torção teórica lacaniana. O momento em que, subindo ao Monte Horeb, Moisés teria recebido das mãos de Yahvé a tábua com seus mandamentos é central para compreender e situar essa passagem teórica. A suspeita de Lacan é consequência direta dessa inversão sobre a fundação daquilo que se tona guia do povo judeu, e por conseguinte, o nomeia o povo escolhido. Ela implica que o traço sobre o qual o nome próprio pode se fundar o implica como invenção de sentido, como efeito de interpretação. O nome próprio não existiria, dessa maneira, previamente ao campo vazio que o acolheu. Ele seria fruto de uma interpretação, de uma correção, de uma distorção que produz substituições no lugar originário constituído pelo desamparo estrutural da linguagem.

 

Freud e Lacan: premissas lógicas para pensar o nome próprio

A invenção freudiana do pai primevo e o ato de seu assassinato como condição necessária e prévia ao pacto social é exatamente a riqueza da interpretação lacaniana. No lugar vazio originário, fonte ou empuxo primário de identificação, nesse mito, Freud aloca o pai e, com isso, constitui um Um como fonte identificatória, elevada em "Psicologia das massas e análise do eu" (1921/2011) à condição de Ideal de Eu. Na fantasia de recuperação do objeto perdido, o totem-pai, Freud evidencia um modo de ocupação da falta estrutural da linguagem através de uma ilusão de sutura cujo efeito é um índice que unifica iguais, restritos e contidos, em oposição ao que faz diferença. Seu resultado é, evidentemente, a crença no nome, de um lado, e processos segregatórios, de outro. Trata-se do paradigma do ato, cuja nostalgia do pai, na fantasia onipotente de sua recuperação, é alimentada pela contenção pulsional dos semelhantes e pela cristalização dos processos de transformação social, numa posição conservadora de afetos, pulsões, regras e convivência.

Em termos de nominação, podemos retomar aqui o equívoco, sinalizado por Lacan no seminário 12 sobre a crença no nome próprio como dotado de algum sentido. O nome em geral tem duas funções: a de denotar e a de conotar. Conotar implica na definição e remete indefinidamente a um novo sentido, como as pesquisas em dicionários permitem constatar. Denotar, por seu turno, implica o objeto em sua radical singularidade, não compartilhada por outros.

A denotação é um processo pelo qual um significante do signo serve de expressão de um apropriado significado ou conceito, ao passo que conotação é o fenômeno que exige, de um plano de expressão ou significante, uma divisão que produza um novo significante para um outro significado, o qual não é estabelecido previamente na primeira expressão do signo. Conotar consiste em tomar um significante de um signo específico para veicular uma outra informação de um signo diferente do primeiro (Almeida, 2011, p. 141).

Daí Lacan recuperar de Gardner "o nome próprio como alguma coisa que intervém na nominação de um objeto, em razão das virtudes próprias de sua sonoridade; fora desse efeito de denotação, não há nenhuma espécie de alcance significativo" (Lacan, 1964-1965/2006, p. 65). Mesmo que haja sentido em alguns nomes próprios, eles funcionam como nominação, independentemente dessa significação. Por outro lado, enunciar um nome próprio já implica algumas referências por ele evocadas e também a exclusão de outras figurações que não cabem sob o nome em questão. Em síntese, o nome próprio não pode ser tratado a partir da definição e dos atributos de um significante qualquer, tais quais a arbitrariedade e a convencionalidade, nem como sentido unificado.

O nome próprio se diferencia de um significante exatamente por portar, em seu avesso, um campo vazio de significação que se encontra, topologicamente, com sua evidência linguística de referente de um objeto, ponto de sutura que permanece aberto, cuja imagem pode ser admirada na garrafa de Klein. Nesse ponto de aparente sutura "entre a pele externa do interior" e "a pele interna do exterior", nesse entredois, radica a perspectiva inapreensível que não se totaliza e que, ao mesmo tempo, contém e perde a significação que poderia estar fixada pelo nome próprio. Assim, podemos finalmente dizer que, como efeito-sujeito, o nome próprio ganha valor de signo e, nesse paradigma, funda uma equivalência entre nome próprio ≈imagem 2, como tradução que fixa uma interpretação do traço escrito sobre o campo vazio, criando uma relação de equivalência que faz a ilusão do Um.

Já no segundo paradigma, com Moisés, trata-se de "uma aposta no que só existe como traço" (Safatle, 2015, p. 133). O espaço vazio é ocupado elipticamente por imagens, representações que não o contêm e, por isso, precisam ser refeitas. Há uma instabilidade estrutural no nome próprio que Lacan irá tratar no Seminário RSI, com as três nominações, a saber nominação real - angústia, nominação imaginária - inibição, nominação simbólica -sintoma. Não à toa, esses campos, na topologia dos nós borromeus, que o mostram no real de sua escrita, configuram o avanço de um registro, não todo recoberto pelo outro.

Há, portanto, nesse segundo paradigma, a assunção de uma nova teoria do nome como invenção, suplemento de sentido, apoiada numa apresentação que é o nome próprio. Dessa maneira, o nome próprio inscreve-se como ponto aberto na sutura entre "entre a pele externa do interior" e "a pele interna do exterior", sustentando a impossibilidade de seu fechamento ou de sua significação última. Seu efeito, em termos societários, pode ser aparentemente uma instabilidade maior, dada a inconstância de sentido e de filiação que engendra. Por outro lado, abre a condição de uma nova lógica de exercício político que não se faz "em nome de" uma significação congelada, mas antes como contingência a cada encontro necessário de enfrentamento das pautas coletivas.

O nome, atravessado por essa totalidade infinita e impossível de apreender instalada no ponto de sua sutura, impede a consolidação e a ilusão de uma unidade identitária, seja no plano dos sujeitos, seja no plano dos coletivos. O interessante a ressaltar é seu efeito. Não se retorna a uma nostalgia do pai, mas antes se promove um movimento elíptico contínuo nesse ponto de sutura-abertura no qual o nome se instala. E, quanto à dimensão política, ela comparece como "aposta no que só existe como traço" (Safatle, 2015, p. 133).

 

Uma lição histórica

A título de conclusão desta análise, podemos dizer que há, a partir desses dois paradigmas freudianos, cuja análise é possibilitada pela interpretação conferida por Lacan ao mito freudiano do Édipo, a constatação ou a evidência de uma passagem teórica do ato à invenção quanto à teoria da nominação, quanto à teorização daquilo que ancora ou alça o impossível do sujeito.

Podemos, assim, deduzir as fórmulas que orientam a leitura desses dois paradigmas:

TOTEM

Pai primevo

I

Nostalgia do Pai

Um

Significante

MOISÉS

Desamparo

a

Inassimilável do Pai

Múltiplo

Traço

Em termos dos efeitos societários ou subjetivos, podemos avançar nesses dois planos e localizar, de maneira não binária, mas espectral, uma gama de consequências que vão:

Da estabilidade

Do conservadorismo

Da segregação

Como respostas possíveis ao Real

À distorção

À invenção

À Diferença

Trata-se de uma redução esquemática que não contém nem a variabilidade nem a complexidade do nome próprio ou da política, mas que colabora tanto com a definição do primeiro, quanto com a análise das lógicas da segunda, ao considerarmos a indeterminação intrínseca a ambos. Nesse ponto, os afetos evidenciam o gozo disjunto de qualquer sentido. Afinal, "a intrusão na política só pode ser feita reconhecendo-se que não há discurso - e não apenas o analítico - que não seja do gozo, pelo menos quando dele se espera o trabalho da verdade" (Lacan, 1969-1970/1992, p. 74). Não se escreve um nome nem um ato político sem a dimensão do gozo. Esse é um ensinamento transmitido pela psicanálise freudiana que aqui recuperamos, cujo avanço lacaniano impõe consequências, no plano teórico e no plano empírico, decisivas.

 

 

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Artigo recebido em: 17/02/2018
Aprovado para publicação em: 14/05/2019

Endereço para correspondência
Andréa Máris Campos Guerra
E-mail: andreamcguerra@gmail.com
Hudson Vieira de Andrade
E-mail: hudson.deandrade@hotmail.com

 

 

*Professora do Departamento e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Doutora em Teoria Psicanalítica com Estudos Aprofundados na França (UFRJ/RENNES II), Pesquisadora com Bolsa de Produtividade 2 (CNPq) e pesquisa aprovada no Edital Universal 01/2017 (FAPEMIG), Membro do GT ANPEPP Psicanálise, Clínica e Política, do Coletivo Amarrações e da Rede Interamericana de Pesquisa em Psicanálise e Política.
**Mestrando no Programa de Pós-Graduação em Psicanálise: clínica e cultura na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e graduado em Psicologia na Universidade Federal de Alagoas (UFAL).
1O totemismo representaria um sistema de classificação de parentesco como homólogo e isomórfico ao totem (Strauss, 2008). O totemismo transmitiria um modelo de identificação para o sujeito através de sua relação com o totem/lei e com isso ele reconheceria afirmando ou negando esses traços no outro. Assim, podemos dizer que os loucos, estrangeiros, bárbaros, marginais e índios, para citar alguns exemplos, seriam formas de vida que historicamente não partilharam dessa lei totêmica. Localizamos um tipo de laço social que é regido pelo modelo segregatório, fundado através de identidades e da exclusão da sua negação. Lacan assinala, em estudos etnográficos, a presença de sociedades primitivas que não partilham dessa lógica da clivagem do significante-mestre em relação ao saber. São sociedades que não estão dominadas pelo discurso do mestre. Donde "é bastante provável que o significante mestre seja demarcável a partir de uma economia mais complexa" (Lacan, 1992/1969-70, p. 86). O que nos enviará à lógica do nome, tal qual pode ser extraída de Moisés, o egípcio, e o povo judeu.
2Baal-Peor era o deus da fertilidade, deus supremo dos cananeus, responsável pela abundância da terra e pela fertilidade do ventre. O episódio bíblico acima referido diz respeito a varões hebreus que, seduzidos pelas mulheres moabitas, não somente prostituiram-se com estas, como também acabaram por adorar a divindade daquele povo tomado como pagão. O castigo divino responde a esse acontecimento.

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