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Tempo psicanalitico

versão impressa ISSN 0101-4838versão On-line ISSN 2316-6576

Tempo psicanal. vol.51 no.2 Rio de Janeiro jul./dez. 2019

 

ARTIGOS

 

A escuta-flânerie como efeito ético-metodológico do encontro entre Psicanálise e socioeducação1

 

The listening-flânerie as ethical-methodological effect of the encounter between psychoanalysis and socioeducation

 

L'écoute-flânerie en tant qu'effet éthique et méthodologique de la rencontre entre psychanalyse et socio-éducation

 

 

Rose Gurski*

Associação Psicanalítica de Porto Alegre - APPOA - Brasil
Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS - Brasil
Associação Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Psicologia - ANPEPP - Brasil
Universidade de São Paulo - USP - Brasil
Rede Internacional Coletivo Amarrações - Brasil
Rede Interamericana de Psicanálise, Infância e Instituições - INFEIES - Brasil
Rede Interamericana de Psicanálise e Política - REDIPPOL - Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo relata a trajetória de construção da escuta-flânerie, um dispositivo de pesquisa-intervenção de caráter metodológico, cujas origens remontam à metodologia iniciada por Gurski (2008) em sua tese de doutorado, na qual foi construído o dispositivo do ensaio-flânerie. No encontro da Psicanálise com a socioeducação, tornou-se possível seguir os estudos que já vínhamos fazendo a partir da articulação da escuta psicanalítica com o tema da experiência e do flâneur em Benjamin e Baudelaire (Gurski, 2008, 2014; Gurski, & Strzykalski, 2018a, 2018c; Gurski, 2019). Escolher Benjamin e Baudelaire, em articulação com a escuta psicanalítica, a fim de traçar o caminho deste diálogo com o mal-estar na socioeducação implica compreender a contemplação do flâneur e da flânerie como um dispositivo que empresta uma posição possível ao pesquisador-psicanalista na Instituição. Ao nos colocarmos na posição de flâneur e oferecermos a possibilidade de uma fala livre e mais implicada com o tempo de cada um, dentro da instituição, evocamos o surgimento de uma narrativa mais próxima das questões do sujeito. Sustentar essa condição temporal comum ao psicanalista e ao flâneur tem se colocado como um desafio crescente na pesquisa. É desse modo que a flânerie, em associação à escuta, colabora com a teorização acerca da metodologia usada, enriquecendo nossos meios de falar da experiência e da construção desse espaço de intervenção e de pesquisa desde a Psicanálise na socioeducação.

Palavras-chave: psicanálise, socioeducação, escuta-flânerie, socioeducadores.


ABSTRACT

This article reports on the construction of listening-flânerie, a research-intervention device of a methodological nature, whose origins go back to the methodology initiated by Gurski (2008) in his doctoral thesis, in which the device of the essay-flânerie was constructed. In the encounter between psychoanalysis and socio-education, it became possible to follow the studies that we had already done from the articulation of psychoanalytic listening with the theme of experience and flâneur in Benjamin and Baudelaire (Gurski, 2008, 2014; Gurski, & Strzykalski, 2018a, 2018c; Gurski, 2019). Choosing Benjamin and Baudelaire, in articulation with psychoanalytic listening, in order to trace the way of this dialogue with the malaise in the socioeducation implies understanding the contemplation of the flâneur and the flânerie as a device that lends a possible position to the researcher-psychoanalyst in the Institution. When we put ourselves in the position of flâneur and offer the possibility of a free speech and more implied with the time of each one, within the institution, we evoked the emergence of a narrative closer to the subject's questions. To sustain this temporal condition common to the psychoanalyst and the flâneur has been a growing challenge in research. It is in this way that the flânerie, in association with listening, collaborates with theorization about the methodology used, enriching our means of speaking of the experience and the construction of this space of intervention and research since Psychoanalysis in the socioeducation.

Keywords: psychoanalysis, socioeducation, listening-flânerie, social workers.


RÉSUMÉ

Cet article relate la construction de flânerie-écoute, un dispositif de recherche-intervention de nature méthodologique, dont les origines remontent à la méthodologie initiée par Gurski (2008) dans sa thèse de doctorat, dans laquelle le dispositif de l'essai-flânerie a été construit. Dans la rencontre entre psychanalyse et socio-éducation, il est devenu possible de suivre les études que nous avions déjà réalisées à partir de l'articulation de l'écoute psychanalytique avec le thème de l'expérience et du flâneur chez Benjamin et Baudelaire (Gurski, 2008, 2014; Gurski, & Strzykalski, 2018a, 2018c; Gurski, 2019). Choisir Benjamin et Baudelaire, en articulation avec l'écoute psychanalytique, afin de tracer la voie de ce dialogue avec le malaise dans la socio-éducation, implique de comprendre la contemplation du flâneur et de la flânerie en tant que dispositif permettant au chercheur-psychanalyste en institution de se positionner. Lorsque nous nous sommes mis en position de flâneur et avons offert la possibilité d'une parole libre et plus implicite au temps de chacun, au sein de l'institution, nous avons évoqué l'émergence d'un récit plus proche des questions du sujet. Soutenir cette condition temporelle commune au psychanalyste et au flâneur a constitué un défi croissant pour la recherche. C'est ainsi que la Flânerie, en association avec l'écoute, collabore à la théorisation de la méthodologie utilisée, enrichissant ainsi nos moyens de parler de l'expérience et de la construction de cet espace d'intervention et de recherche depuis la psychanalyse en socio-éducation.

Mots-clés: psychanalyse, socio-éducation, écoute-flânerie, travailleurs sociaux.


 

 

Foi para dar continuidade à pesquisa que deparei com a Psicanálise [...],
para encontrar auxílio na luta contra a delinquência; para compreender
o delinquente, para determinar o começo de um método que fizesse que
a sociedade e o Estado não o perseguissem mais, não o detivessem, não
o condenassem nem o prendessem [...].
Cifali, & Imbert, 1999, p. 65.

Esse fragmento faz parte da correspondência trocada entre August Aichhorn2 e Oskar Pfister, em meados da década de 1920, e, apesar de quase 100 anos separar-nos dessa reflexão, ela segue bastante atual. Uma das inquietações mais importantes e intuitivas de Aichhorn, educador e psicanalista austríaco das primeiras gerações de psicanalistas de Viena, referia-se, exatamente, a tomar a delinquência e os comportamentos antissociais dos jovens da época como um enigma. Aichhorn foi responsável pelos primórdios do trabalho educativo inspirado na Psicanálise com sujeitos que, hoje, nomeamos como adolescentes em conflito com a lei. Vale lembrar que, muito embora seu pioneirismo tenha sido expressivo no campo da Psicanálise com jovens infratores, a maior parte dos analistas o conhece apenas através dos comentários de Freud (1925/2012) em "Prefácio a Juventude Abandonada de August Aichhorn".

Em seu livro Juventud desamparada (1925/2006), o austríaco soube bem demonstrar que, apesar das concepções vigentes em seu tempo social, ele não se rendia à perspectiva que explicava os episódios de violência e agressividade dos jovens de Oberllabrum3 pela via dos aspectos de caráter e/ou constitucionais. Talvez sua originalidade tenha sido, justamente, poder ver a trajetória delinquente desses sujeitos em sua face de desamparo. Para Aichhorn, os comportamentos desviantes tinham a estrutura de um sintoma, isto é, precisavam ser decifrados/escutados - e não extirpados como uma perversidade.

Para nós, que viemos depois de Freud e Lacan, cujas construções teóricas nos possibilitam escutar, no ato infracional, algo mais do que a dimensão pulsional do sujeito, não é difícil deduzir que a violência juvenil, tão exaltada em nossos dias, é também tecida nas entranhas da cultura em que vivemos. Sem fisiologismos sociais, baseamo-nos na cara noção de que o inconsciente é o Discurso do Outro (Lacan, 1954-1955/1985), modo pelo qual se revela a irredutibilidade entre sujeito e cultura. Lacan demonstrou tal assertiva pela via de uma das mais famosas figuras topológicas presentes em seu ensino, a fita de moebius, cuja continuidade entre as faces interna e externa revela aquilo que Freud (1921/2012) sinalizou: toda psicologia do sujeito é também do social.

Implicados com as questões que se problematizam no tempo em que vivemos e, portanto, sensíveis às inflamadas discussões sobre a redução da maioridade penal, nos perguntamos: de que modo abordar nossos jovens em conflito com a lei quando diariamente vemos a delinquência como sintoma nacional, disseminada pelos meandros da vida pública e impregnada nas atitudes de nossos principais dirigentes?

Imersos em um cenário contraditório e instável, os jovens forjam códigos de atitudes e modos de relações através da criação de "tribos" urbanas que incluem, muitas vezes, a estetização da violência. Pela via da identificação com o grupo e com os pares, os jovens confrontam-se com imagens ilusórias, comportamentos de risco e acirramento de divergências sociais. É nessa medida que os adolescentes associam-se facilmente ao "discurso capitalista" (Lacan, 1972-1973/1993) - que não promove propriamente o laço social, mas, ao contrário, estimula uma ilusão de completude, ofertando objetos de consumo curtos, rápidos e descartáveis (Pereira, & Gurski, 2014).

Lacan (1972-1973/1993; 1974/2003), quando retoma o tema do mal-estar na cultura em Freud, sugere que vivemos em tempos nos quais os bens tornaram-se nosso mestre, conduzindo nossos atos e nos induzindo ao consumo fugidio de objetos produzidos pela indústria do capital. De inspiração marxista, o discurso do capitalista foi um artifício usado pelo autor para demonstrar como o sujeito se acha fixado ao seu objeto e, ao mesmo tempo, sujeitado a nada, senhor das palavras e das coisas, sem dívida com a lei ou com os outros homens. Nesse sentido, os jovens - como qualquer um de nós - vivem e são educados para uma sociedade que os objetaliza (Pereira, & Gurski, 2014).

Toda complexidade no laço com o discurso atual do Outro é vivida, pelo adolescente, de forma pouco apaziguada. Episódios de violência, agressividade e outros aparecem, de maneira geral, na escola, na família, nos sítios virtuais, nos consultórios etc. Dentre inúmeros rótulos, alguns desses sujeitos também são denominados jovens em conflito com a lei e, ao lado de grupos religiosos, sociais e políticos, mostram a faceta de debilitamento do laço social atual.

Foi assim que, em meio às diferentes nuances da adolescência contemporânea, vimos o tema da juventude em conflito com a lei tornar-se um imperativo em nossos estudos. Importa destacar que, desde que começamos a trabalhar com a temática da adolescência - início dos anos 2000 até o momento -, o cenário social das condições dessa passagem agravou-se visivelmente. Ao longo da última década, vimos crescer o número de jovens em situação de vulnerabilidade social envolvidos em episódios de violência bizarra e de tráfico de drogas. Segundo dados recentes do Mapa da Violência de 2014 (Waiselfisz, 2014), as estatísticas de homicídios da população jovem no Rio Grande do Sul cresceram 19,6% no período de 2002 a 2012, o que indica um crescimento acima da média nacional - que é de 2,7%.

Nesse sentido, escutar as questões que se problematizam no campo da socioeducação, a partir da Psicanálise, é semelhante ao que vemos desde Freud: a Psicanálise deve estar lá onde o desamparo do sujeito se constitui (Koltai, 2014; Gurski, 2017a), isso porque são produzidos modos diversos de gozo e de formações sintomáticas a cada época histórica e social. Assistimos, inicialmente, Freud debruçar-se sobre a escuta das histéricas da era vitoriana, depois sobre os neuróticos de guerra, sendo que, mais atualmente, o desamparo parece se atualizar sobre o sujeito contemporâneo que apresenta, a partir de novos sintomas, as cores atuais da invariante do desamparo original (Gurski, 2017b).

Nessas condições, propor a escuta de adolescentes em conflito com a lei e daqueles que se dedicam a eles no dia-a-dia das instituições socioeducativas é, conforme propôs Freud, uma intervenção e, simultaneamente, uma pesquisa. Nesse sentido, importa sublinhar que o método da Psicanálise se desdobra em sua ética, uma ética que se dá no próprio fazer do psicanalista (Lacan, 1959-1960/2010). Esse desdobramento da clínica resulta de uma aposta pelo caminho que nos leva a escutar os sujeitos em outros sítios que não o espaço do consultório - também uma forma de estimular a construção de espaços de acolhimento para o mal-estar e o sofrimento psíquico de adolescentes em situação de vulnerabilidade e daqueles que trabalham com eles.

Tomamos como inspiração o conceito de Psicanálise implicada a partir das contribuições de Miriam Debieux Rosa (2016). A psicanalista nos lança a interessante noção de uma escuta que se dá em "face da dimensão sociopolítica do sofrimento" (Rosa, 2016, p. 185). Rosa (2016) lembra-nos que Psicanálise, sociedade e política são termos que relançam na articulação do sujeito com o desejo, com o gozo e com o laço social como laço discursivo, sendo aquilo que de fato possibilita pensar em uma prática clínico-política.

Potencializando o enlace entre a construção de conhecimentos acadêmicos e as demandas comunitárias do laço social atual, bem como a necessária reflexão sobre modos de elaboração do sofrimento também em sua faceta sociopolítica, tomamos a escuta-flânerie como um dispositivo clínico e metodológico4. É preciso ainda sublinhar que a pesquisa (psicanalítica) que propomos não está referida ao campo das pesquisas participantes, da pesquisa-ação ou da pesquisa-intervenção de cunho sociológico. A escuta-flânerie como proposta de escuta e intervenção seria, portanto, o efeito da articulação entre a ética da Psicanálise, através da escuta de sujeitos em outros espaços que não a clínica padrão, com o tema da flânerie trabalhada por Benjamin (1935/2006; 1989).

 

Da demonização à implicação: modos da escuta psicanalítica operar na socioeducação

A interlocução com a socioeducação em nosso grupo de pesquisa5 teve seu início pela construção de um dispositivo de escuta com adolescentes da ICPAE6, em uma Instituição de Socioeducação de nosso estado responsável pela execução de medidas de privação de liberdade. Tal dispositivo, denominado inicialmente de Rodas de circulação da palavra, foi, em seguida, por demanda dos próprios meninos, desdobrado nas atuais Rodas de R.A.P7.

Com o cotidiano das Rodas, bem como das reflexões que fomos operando nos espaços de discussão e supervisão da pesquisa, observamos que, naquele momento, não bastava escutar somente os adolescentes. Precisávamos também abrir um espaço aos trabalhadores da socioeducação, os chamados agentes socioeducativos, que, no cotidiano da Instituição, poderíamos aproximar do lugar dos adultos de referência para os jovens.

A ideia de abrir um espaço de fala aos agentes também surgiu com a percepção de que se operava uma espécie de "demonização" desses trabalhadores, ou seja, muitas queixas e relatos de situações de crueldade e sadismo deles na direção dos meninos. O interessante é que, além da fala dos meninos, tal "demonização" aparecia também nas narrativas das bolsistas-pesquisadoras, para quem os agentes, por um tempo, representavam o "problema da socioeducação". Mas, p or que os agentes apareciam tão demonizados pelos guris e mesmo pelas bolsistas-pesquisadoras? O que do sofrimento psíquico desses trabalhadores só estava podendo aparecer na forma de crueldades e hostilidades?

Ora, se, por um lado, sabemos que há uma dose intensa de sadismo nessas relações e que o paradigma da socioeducação, mesmo passados muitos anos de seu estabelecimento como marco legal, ainda convive com práticas utilizadas na antiga FEBEM8, por outro, precisamos fazer falar o sofrimento desses trabalhadores com as condições de seu fazer. Como reagem ao fato de, muitas vezes, terem de intervir, conforme dizem, sem clareza dos objetivos da política socioeducativa? Que efeitos ocorrem na prática cotidiana dos agentes quando se demanda deles por um lado educar e, por outro, vigiar (Parré de Souza, 2017)?

Com o tempo, ampliamos essas interrogações e passamos a abrir outras: como adensar a prática da Psicanálise frente aos desassossegos produzidos em meio a realidades marcadas por injustiças sociais, preconceito e, não raro, silenciamentos históricos de parcelas da população9? Como a escuta pode ter potência quando se encontra face ao desarranjo do laço social?

Foi com a montagem inicial de um certo retrato das condições atuais da socioeducação que a proposta de pesquisa-intervenção foi sendo constituída; construímos dois caminhos de intervenção na Instituição: uma com os adolescentes, através das Rodas de R.A.P, e outra com os agentes socioeducativos pela via de uma metodologia que cunhamos, por ora, com o nome de escuta-flânerie10. Neste escrito, abordaremos especificamente a perspectiva metodológica da escuta-flânerie como um modo de pesquisa-intervenção da Psicanálise na instituição socioeducativa.

 

Psicanálise, Socioeducação e o tema da experiência em Benjamin: um encontro possível em meio a um cotidiano "impossível"11

A conflitiva cotidiana nos laços dentro da instituição socioeducativa produzem níveis alarmantes de adoecimento físico e psíquico. Tal situação fica bem evidente no volume de pedidos de licenças e atestados, assim como nas ausências psíquicas observadas mesmo com aqueles que estão de corpo presente no dia-a-dia do trabalho. Como nomear o mal-estar daqueles que trabalham com sujeitos que, segundo eles, a sociedade considera como restos? Quais efeitos - institucionais e para os adolescentes - poderiam surgir com a criação de um espaço de escuta dirigida aos socioeducadores?

A ideia inicial foi a configuração de uma escuta sem um espaço físico delimitado, uma espécie de um pronto-atendimento que pudesse dar ao pesquisador-psicanalista a chance de vivenciar, junto com os trabalhadores, as dificuldades de seu fazer diário, no calor dos conflitos e acontecimentos. Uma mestranda-pesquisadora do grupo passou a circular pela instituição, disponibilizando-se a escutar e conhecer o cotidiano dos trabalhadores da socioeducação na Instituição. Tal escuta foi proposta sem nenhuma formalidade a não ser a presença dela nos corredores da Instituição. Do lado da pesquisadora, tínhamos a inspiração na atenção flutuante, ela mostrava-se disponível para escutar as falas dos trabalhadores sem qualquer antecipação e, do lado dos agentes, tínhamos o incentivo à livre associação, isto é, eles eram convidados a falar livremente de si e de seu fazer.

Essas falas livres, que também passaram a "flanar" por lá mediante a presença das pesquisadoras, foram, na sucessão da experiência da pesquisa de uma delas12, nos levando, através da articulação da escuta, do tema da experiência e da flânerie à construção do que atualmente nominamos de escuta-flânerie, um dispositivo clínico-metodológico. Suas origens remontam à metodologia iniciada por Gurski (2008) em sua tese de doutorado, na qual forjou a metodologia do ensaio-flânerie a partir do enlace de três elementos: "da flânerie como um modo de olhar do pesquisador, do ensaio como a 'janela da escrita' e do tema da experiência como uma tentativa de produzir polissemia e criação ao invés de repetição e fechamento de sentidos" (Gurski, 2008, p. 25).

Na tese, tratava-se de uma pesquisa com o tema da violência juvenil cujo campo empírico foi as notícias de jornais e as produções culturais do cinema e da mídia em um determinado tempo social - de 1995-2006. Nessa época, a dimensão do ensaio e da posição do flâneur enriqueceu muito a escrita, pois permitiu incluir a surpresa e o inesperado no encontro com os acontecimentos e com a experiência do estudo. Na sequência da construção do ensaio-flânerie (Gurski, 2008), buscamos extrair, de modo mais incisivo, aquilo que se poderia decantar como efeito metodológico dos escritos de Walter Benjamin, especialmente o que se refere ao lugar do flâneur e que nos ajuda a refletir sobre uma certa posição do pesquisador, seja ele educador, analista ou pensador do laço social (Gurski, 2014).

O flâneur, alegoria que Walter Benjamin toma da poesia de Baudelaire, foi uma figura destoante em relação ao ritmo efervescente da Paris do século XIX; como uma espécie de catador de restos conseguia perceber detalhes e cenas que só eram reveladas a partir de uma temporalidade desacelerada (Benjamin, 2015).

Autores como Baudelaire e Edgar Alan Poe trabalharam a figura do flâneur como uma alegoria da Modernidade. Nossa proposição ao tomarmos Benjamin e seu trabalho sobre o flâneur partiu da afinidade da proposta benjaminiana com a obra de Freud, especialmente porque ambos partem não de grandes totalizações teóricas, mas do resto, do traço, do detalhe insignificante nas suas proposições (Gurski, 2014; Gurski, 2019).

Tanto a inspiração na flânerie, como no ensaio, surgiu de um apaixonamento que nos arrebatou nos escritos de Benjamin como narrador e crítico das questões de seu tempo social. A interessante posição de Benjamin, ao narrar as problematizações de sua época, levou-nos a sublinhar a dimensão do método presente em seus escritos. Sua obsessão pelos pequenos fenômenos, pelas representações contidas nos detalhes lançava-lhe a possibilidade de fazer a experiência do encontro entre palavra e coisa, entre ideia e experiência.

Foi recolhendo as marcas do seu tempo que Benjamin compôs uma das mais instigadoras reflexões sobre as movimentações produzidas a partir das condições da Modernidade. Fazendo uso daquilo que Adorno chamava "apresentação aberta de atualidades" (Seligmann-Silva, 2009), Benjamin, muito influenciado pelo surrealismo, tentava capturar a pluralidade da história nas representações mais insignificantes, como ele mesmo dizia, em suas "raspas". Esse modo de pensar a singularidade, através sempre de uma totalidade que se revela por estilhaços, acabou levando alguns a verem nele um dos pioneiros da pós-modernidade (Gurski, 2014).

Em tais análises, sobretudo nos sempre lembrados escritos da década de 1930, quando amadureceu a teorização sobre o tema da experiência e das narrativas, deixava clara a função do historiador: "escovar a história a contrapelo" a fim de combater a "ilusão do progresso" e a forma positivista de pensar os fatos históricos. Parece que, a partir da preocupação em salvar os fenômenos, sem que a singularidade deles fosse esvaziada na abstração dos conceitos, acabou cunhando um outro modo de olhar para os acontecimentos.

Hannah Arendt (1955/1987) talvez tenha sido aquela que melhor definiu a posição de Benjamin. A filósofa costumava dizer que, além de pensar poeticamente, ele fora uma espécie de "flâneur do pensamento". Recolhemos essa expressão, pois nos parece que foi, exatamente, por ter se permitido tal liberdade poética em seu pensar que lhe foi possível desenvolver todo um modo investigativo próprio de refletir sobre certas nuances do laço social.

Os duros anos da década de 1930, em que flanou de modo errante por uma Europa endurecida pelos totalitarismos crescentes, fizeram Benjamin, de forma perspicaz, observar e apontar para um esvaziamento da dimensão da experiência e de sua transmissão. Em meio às condições sombrias daquele momento social, Benjamin percebeu a importância das narrativas e de suas transmissões.

Podemos dizer que tanto Benjamin como Freud estabeleceram novos procedimentos metodológicos no modo de olhar para o sujeito e para o laço social. Os dois, de alguma forma, incluíram o fragmento, o resto e o traço como elementos fundamentais das marcas do sujeito moderno (Gurski, 2019).

Além do desvio para o fragmento como método, aproximamos a Psicanálise da filosofia de Benjamin, pois entendemos que a fala compartilhada pode possibilitar a criação de um espaço de simbolização para os sujeitos. Através da fala, os sentidos podem deslizar, sendo possível criar outros destinos para o real e o pulsional. Ao narrar os acontecimentos e vivências de sua história, o sujeito amplia as condições de construção de uma outra versão de si, podendo fazer com que aspectos vividos ganhem novos e outros significados. É justamente nessa movimentação narrativa que as vivências ganham a possibilidade de se decantarem em experiências. No caso da Instituição socioeducativa, a abertura de espaços de fala, no dia-a-dia dos meninos e dos trabalhadores, tem possibilitado breves respiros para a aridez das vivências institucionais.

 

A escuta-flânerie na Instituição Socioeducativa

Ao adentrarmos a Instituição e nos familiarizarmos com as condições locais, nos perguntávamos: como fazer para transferencialmente produzir condições de fala livre em um lugar em que a palavra é tão aprisionada e apagada? A disposição do pesquisador-psicanalista em escutar as narrativas do sujeito, sem abandonar a noção de que, na escuta, não devemos nos antecipar à experiência, nos acompanhou como premissa fundamental desde o começo. Para Koltai (2014), é esse interesse que possibilita despertar a confiança do sujeito no outro e na palavra, questão que abre a possibilidade, pela via da transferência, de o sujeito fazer falar seu indizível.

Nesse sentido, escolher Benjamin e Baudelaire em articulação com a escuta psicanalítica para traçar o caminho desse diálogo com o mal-estar na socioeducação implica compreender a contemplação do flâneur e da flânerie como um dispositivo de transformação. Inspirando-nos na posição do flâneur como pesquisador do laço social, assim como na produção de Benjamin acerca do tema da experiência, tomamos emprestado a flânerie, entre outras ferramentas plantadas em sua transmissão, como um modo delicado de investigar que considera o desvio como modo de investigação. Para tal, buscamos consolidar a torção que liga a Psicanálise e a Educação/socioeducação, articulando a esse litoral outra margem, qual seja, o tema da experiência e a figura do flâneur13.

No processo de escuta dos agentes socioeducativos, foi ganhando força a conjugação de um paralelo entre a atenção flutuante, preconizada pela Psicanálise, e a postura do flâneur, revisitada por Walter Benjamin (1989). Relacionando a posição do flâneur com a do psicanalista, encontramos o catador de restos que, a partir do que seria descartado ou negado, oferece, em seu movimento "a contrapelo" do ritmo acelerado, um espaço para o tropeço, o impensável e o detalhe - de onde podem vir a se produzir novas formulações acerca das mesmas coisas (Gurski, & Strzykalski, 2018a).

Ao voltar-se para as radicais mudanças da estrutura da experiência na Modernidade, Benjamin recolheu, como um verdadeiro catador de minúcias, a poesia lírica de Baudelaire. Para ele, Baudelaire teria conseguido, através de sua produção (poética), amparar os choques e o esvaziamento da experiência produzidos pelas condições da Modernidade e, com isso, dar forma ao caráter errático dos acontecimentos que marcavam a Paris da primeira metade do século XIX (Benjamin, 1936/2012).

O flâneur e seus movimentos tornaram-se emblemáticos do gesto ético-político de suspender as certezas do progresso, valorizando a nuance e o detalhe. Assim, a flânerie para Baudelaire funcionou como um modo de resistência poética em relação às novas formas de viver, ser e pensar na Modernidade. O flâneur, ao catar as inúmeras possibilidades que podem advir dos restos e dos fragmentos em uma sociedade impregnada pelo valor da mercadoria, criava a possibilidade de forjar a experiência até mesmo naquilo que é tomado como sem valor.

Nesse sentido, assim como a atenção flutuante nos ajuda a pensar a metodologia da posição de escuta do psicanalista enquanto o próprio desdobramento de sua ética, a flânerie pode ser pensada como a contrapartida corporal dessa postura. Assim, a flânerie colabora com a teorização acerca da metodologia usada enriquecendo nossos meios de falar da experiência e da construção desse espaço de escuta na socioeducação (Pires & Gurski, no prelo).

É em proximidade com a escuta psicanalítica que entendemos a posição do flâneur: a atenção flutuante que caracteriza o trabalho do psicanalista - assim como a flânerie - abre a possibilidade de se achar "uma série de coisas valiosas que não se pretendia encontrar" (McGuigan, 1976, p. 56). Isso no mesmo sentido em que Lacan (1964/1985) toma a fala de Picasso: "eu não procuro, eu acho".

Em meio à supervisão da mestranda, que flanava pela instituição recolhendo narrativas, fomos observando que a escuta, em modo de flânerie, foi, aos poucos, propiciando novas palavras e outros espaços aos agentes socioeducativos. O fato de uma escuta despretensiosa que acolhia toda e qualquer fala do modo como vinha foi mostrando-nos o sentido da flânerie nessa circunstância específica. A flânerie do pesquisador parece que não só passou a marcar um ritmo na intervenção, como também emprestou uma materialidade necessária à escuta e, portanto, à presença da Psicanálise no local (Pires, & Gurski, no prelo). Em muitos momentos, a presença da pesquisadora-psicanalista provocava perguntas sobre a continuidade do trabalho: "tu ainda está aí?", "até quando tu ficas?", "não vai embora?" - essas falas vinham com um tom de curiosidade pelo trabalho, misturado a uma certa surpresa, efeito da desvalorização de seu próprio fazer: como alguém poderia seguir desejando estar ali naquele lugar? (Pires, 2018)

Alguns agentes duvidavam da sequência do trabalho, duvidavam explicitamente da possibilidade de sustentarmos a escuta e a pesquisa naquele local, pois diziam viver "em uma ditadura", em que as palavras não podiam circular e, muito menos, ser divulgadas. A contrapelo das certezas imaginárias, através da escuta/flânerie, as vivências foram sendo gradativamente compartilhadas. Tal movimento acabou cunhando um modo de a escuta psicanalítica inscrever-se na instituição socioeducativa, marcando um lugar de transferência dos agentes com a pesquisa e com a forma de intervenção (Pires, & Gurski, no prelo).

Percebemos, também, que só é possível estar na posição do flâneur e daquele que se propõe a operar a partir da atenção flutuante se estamos igualmente suspensos por um tempo mais livre e distendido (Gurski, & Strzykalski, 2018a). Nossa aposta é que esse ritmo mais desacelerado possa ser pensado, justamente, como aquilo que caracteriza o que está no âmago de nossa metodologia de trabalho com a socioeducação. Acolher a fala livre, em um tempo mais distendido, a partir da posição de flâneur, evocava a possibilidade do surgimento de uma narrativa mais próxima das questões do sujeito. Sustentar essa condição temporal comum ao catador de trapos, ao flâneur e à noção da atenção flutuante tem se colocado como um desafio crescente na pesquisa.

 

A escuta-flânerie e a pesquisa psicanalítica

Considerar a escuta do sujeito em outros sítios tem sido também um modo que encontramos para articular as premissas da ética da Psicanálise às situações de intensa vulnerabilidade dos sujeitos, levando às últimas consequências a noção evocada por Lacan (1958/1998) de que a política da Psicanálise é a falta-a-ser14 (Gurski, 2017a).

Ora, nesse sentido, importa sublinhar que a Psicanálise realiza sua investigação científica por um método que não é diverso do método pelo qual ela põe em curso um tratamento, pois ambos respondem ao critério da transferência (Elia, 1999). A pesquisa em Psicanálise tem norteadores que são os mesmos postulados para o exercício clínico, pois se trata da construção de um campo de experiência no qual os fundamentos epistêmicos e metodológicos não são diversos daqueles que sustentam a ética em questão, a ética da Psicanálise (Poli, 2005). Ou seja, quando se fala em método de pesquisa em Psicanálise, não se fala do uso de determinada técnica ou instrumento, pois tratar da teoria é simultaneamente referir-se a uma operação metodológica (Gurski, 2014). Dito de outro modo, a ética da Psicanálise é o seu método por excelência, pois, quando o psicanalista sustenta a dimensão do saber não-todo, ele sustenta a própria noção de inconsciente.

A presença de um outro que escuta, seja um psicanalista, seja um operador da Psicanálise, pode mobilizar os sujeitos também quando se adentra uma instituição. Podemos também pensar que o operador principal deste trabalho é a presença do desejo de analista em sua dimensão intransitiva, ou seja, a possibilidade de desejar que o outro deseje (Calligaris, 1991). Desejar que o outro deseje torna-se possível, na medida em que o psicanalista sustenta o impossível e o inapreensível, abrindo, pela via da escuta, a possibilidade de que a outra cena apareça.

Preocupado em retirar a Psicanálise do âmbito de uma "sugestão grosseira", buscando os fundamentos trazidos por Freud, Lacan (1958/1998, p. 597), no texto "A direção do tratamento e os princípios de seu poder", lembra que, ao escutar o particular do sujeito, o desejo de analista opera produzindo o avesso do discurso do mestre, criando condições para que o sujeito não faça Um do Outro. No texto, a partir da metáfora do bridge, Lacan diz que seria como dar condições enquanto morto para o analisante produzir seus lances, inovando suas jogadas. Isto é, produzindo suas verdades, sem depender de um Mestre que lhe empreste sentidos.

Uma de nossas principais premissas na pesquisa tem sido evocar, do lado pesquisador-psicanalista, a noção de atenção flutuante, proposta por Freud (1912/2010) como método per si da escuta do inconsciente e, do lado de quem é escutado, provocar a fala em associação-livre, sempre perpassados pela ética psicanalítica do bem-dizer (Lacan, 1974/2003). Esse modo de operar com os fundamentos na pesquisa-intervenção que realizamos aproxima-se do que Betts (2014) coloca quando trata da função do psicanalista nas situações de desamparo e vulnerabilidade. Segundo o psicanalista, sempre que se pode reconhecer a emergência dos significantes do sujeito há uma movimentação no contexto institucional. Ele sugere que quando tais movimentos ocorrem se dá um certo efeito de "oxigenação" do laço dentro do contexto institucional.

Desde Lacan, sabemos que já não é mais possível aos psicanalistas se excluírem da experiência que conduzem. É nesse sentido que situar a transferência como um operador conceitual importante de nossa investigação/intervenção leva-nos a estabelecer que aquele que conduz o trabalho de pesquisa é parte integrante da experiência convertendo-se, ele mesmo, em sujeito/objeto de investigação (Rickes et al., 2006).

É pela importância da transferência do pesquisador com a pesquisa que o diário de experiência configura-se como um dispositivo de registro da pesquisa em Psicanálise. Os diários consistem em um compilado escrito pelo pesquisador-psicanalista acerca de suas vivências, experiências e reflexões em suas atividades da pesquisa. Metodologicamente, os diários apresentam uma escrita norteada, sobretudo, pelo movimento da associação livre, o que pode causar um certo estranhamento inicial para quem os lê. Isso porque, de maneira geral, esses registros se parecem com um texto fragmentado, aparentemente inacabado, por vezes sem uma articulação evidente entre parágrafos ou frases que se seguem (Gurski, 2017b; Gurski, & Strzykalski, 2018a).

Para a construção desse dispositivo de registro da investigação, inspiramo-nos em três fontes: nas anotações e comentários breves de Walter Benjamin feitos em seus conhecidos cadernos de notas, guiados por "seu olhar fragmentário, não por renunciar à totalidade, mas por procurá-la nos detalhes quase invisíveis" (Sarlo, 2013, p. 35); nos diários de campo, dispositivo advindo dos estudos antropológicos e da etnografia; e, por fim, nas notas breves que Freud (2004) dedicou-se a escrever em seus últimos anos de vida, sendo possível encontrar nelas o esboço de grandes conceitos da teoria psicanalítica ao lado de histórias e notícias aleatórias (Zachello, Paul, & Gurski, 2015).

Nesse sentido, o diário de experiência já é, ele próprio, um espaço de transição entre a vivência e o compartilhamento da pesquisa. É um modo de auxiliar o pesquisador a transitar pela aridez de algumas situações vividas na instituição durante a escuta-flânerie dos sujeitos. Também é um dispositivo que possibilita que as vivências do pesquisador possam se transformar em experiência na medida em que narra, no modo de associação livre, aquilo que viveu.

Ao tratar do diário metapsicológico, Iribarry (2003) sugere que esse trabalho só pode ser realizado se o psicanalista ocupa o lugar de estrangeiro, anotando as suas impressões no a posteriori, em um momento seguinte à vivência, permitindo que a experiência seja compartilhada no só depois. Esse movimento oferece à pesquisa "o caráter de uma criação, de uma deliberação do sujeito [pesquisador], sempre a partir de uma rede de significantes coletivos", em que "o Outro não se apresente como total" (Gurski, 2014, p. 176).

Com os diários, construímos uma possibilidade das premissas da Psicanálise não nos abandonarem nem mesmo na hora dos registros. A disposição do pesquisador-psicanalista em seguir os pressupostos da imprevisibilidade, como na clínica, e as recomendações freudianas de conduzir o tratamento (e a pesquisa) sem qualquer intuito em vista, deixando-se sempre assaltar pelos efeitos de surpresa na experiência da transferência (Freud, 1912/2010), foram mantidas na proposta dos diários de experiência. Na medida em que o pesquisador é convidado a registrar sua experiência em outra temporalidade, em um tempo mais distendido e partindo de suas associações-livres, preservamos a dimensão da escuta, da implicação, da transferência do pesquisador com o campo no qual está mergulhado.

 

A escuta-flânerie como efeito do encontro da Psicanálise com o flâneur e com a socioeducação

Começamos este escrito resgatando a importância das intuições de Aichhorn para o trabalho com jovens infratores e com os trabalhadores que se ocupavam deles nas instituições de sua época. Além do resgate da função psíquica da delinquência e da importância da transferência para o dia-a-dia com esses meninos, no próprio título de seu principal livro (Juventud desamparada, 1925/2006), Aichhorn deixava uma questão fundamental às gerações vindouras de psicanalistas; tal questão, justamente, aponta para a potência no encontro da Psicanálise com as questões do laço social.

O acirramento atual de algumas posições políticas em nosso cenário social, tais como a discussão da maioridade penal, somada às demandas crescentes das políticas públicas de saúde mental e de educação na direção da Psicanálise, leva-nos a refletir sobre o que estava germinal no trabalho de Aichhorn; no título em alemão de sua obra principal Verwahrloste Jugend. Die Psychoanalyse in der Fürsorgeerziehung, a tradução como Juventude abandonada. A Psicanálise na educação assistencial15, já apresenta o acento nas possibilidades de encontro com o que era denominado na época de educação assistencial.

A educação assistencial talvez possa ser pensada como algo equivalente a nossas políticas públicas e sua evocação parece apontar para uma certa torção na abordagem psicanalítica convencional da época. Talvez possamos nos inspirar nas letras de Aichhorn, buscando decantar delas os efeitos de sua posição de aprendiz16, ou como diríamos hoje, de mestre não-todo, aquele que suporta as impossibilidades próprias tanto à Educação como à Psicanálise, retirando potência justamente do que falha em suas funções.

Assim, o que estamos denominando de encontros justamente ocorrem pela possibilidade de reconhecimento da alteridade dos campos. Nesses espaços, ganham os sujeitos que podem sorver dos efeitos do trabalho em fronteiras, naquelas situações em que o laço social parece à beira de se desfazer (Pereira, 2016). É nesse sentido que nos perguntamos: o que é possível para a escuta psicanalítica e como ela pode se apresentar nestes sítios? Ou ainda, quais efeitos de afetação ocorrem, em ambas, na medida em que se introduz um dispositivo como o da escuta-flânerie em um cotidiano institucional como o da socioeducação?

Tal interrogação é necessária, pois não se trata de ir ao campo da socioeducação para "escutá-la" clinicamente, tampouco se trata de insistirmos em uma clínica psicanalítica na, ou, em socioeducação. Trata-se, sobretudo, de pensarmos a partir dos efeitos que podem advir do encontro entre ambas, buscando que, na pesquisa, a experiência possa gozar do protagonismo de nossas construções sempre cuidando para não descuidarmos dos fundamentos da Psicanálise, em um cenário que, tantas vezes, rechaça as produções do inconsciente.

Se Freud (1930/2010, p. 120), em "Mal-estar na cultura", advertia os iniciados sobre os perigos de se transferir linearmente conceitos do sujeito para a análise do social: "[...] teríamos de ser muito prudentes, e não esquecer que se trata apenas de analogias, e que não apenas com seres humanos, também com conceitos é perigoso retirá-los da esfera em que surgiram e evoluíram", Lacan (1953/1998, p. 239-240), em seu famoso discurso de Roma, faz um alerta que nos parece fundamental para que os psicanalistas não caiam na armadilha de transformar o discurso da Psicanálise em uma docilizada ecolalia das construções dos pioneiros:

[...] as formas iniciáticas e poderosamente organizadas em que Freud viu a garantia da transmissão de sua doutrina justificam-se na posição de uma disciplina que só pode sobreviver ao se manter no nível de uma experiência integral. Mas não terão elas levado a um formalismo enganador que desencoraja a iniciativa ao penalizar o risco, e que faz do reino da opinião dos doutos o princípio de uma prudência dócil onde a autenticidade da pesquisa se embota antes de se esgotar?

Ora, não é demais lembrar que, se Lacan (1953/1998, p. 322) inicia o prefácio do escrito de Roma com esse alerta, ele finaliza de maneira contundente, ao dizer que os psicanalistas que "[...] não conseguirem alcançar em seu horizonte a subjetividade de sua época [...]" devem renunciar à prática da escuta. Ao vermos a discussão sobre a redução da maioridade penal somar-se à criminalização crescente dos atos juvenis, entendemos que nosso compromisso atual seria escutar o modo como o mal-estar na cultura tem se atualizado nas questões dirigidas aos jovens e aos que com eles trabalham com eles.

Além de tudo isso, não podemos deixar de registrar que muitas são as adversidades do ponto de vista transferencial que se atravessam nesse trabalho. A exposição do pesquisador-psicanalista em meio ao cotidiano institucional muitas vezes o confronta com situações bastante difíceis do ponto de vista transferencial. Como operar para que o pesquisador-psicanalista tenha condição de privilegiar a fala e recusar as diferentes nuances de espetáculo presentes nas manifestações sintomáticas, que se apresentam ao olhar o tempo todo, frente à ausência dos dispositivos clássicos que, como diz Quinet (2000, p. 39), dissolvem a pregnância do imaginário?

A dureza e a aridez da instituição, seja pelas mazelas reais do cotidiano empobrecido desses sujeitos, abandonados pelo estado e pela família, seja pelos efeitos dessubjetivadores que suas posições no laço social produzem, não raro levam a uma mirada excessiva na direção ao horror dessas vidas e seu correlato: a sensação de impotência de quem trabalha com eles. Em meio a essas condições, fica difícil ao pesquisador-psicanalista evitar que as questões transferenciais o tomem pela via imaginária de um modo talvez mais avassalador do que no consultório. Os pedidos de uma identificação maciça pela via do "tu só vais saber o que eu passo, se também estiver aqui vendo e vivendo nestas condições". Ou ainda: "ninguém quer saber do que se faz aqui, a gente finge que socioeduca e a sociedade finge que acredita" - essas são falas que recolhemos durante a pesquisa-intervenção.

A escuta-flânerie como efeito de quando "a Psicanálise encontra a socioeducação" não é a proposta de um casamento com final feliz. Não, muito antes pelo contrário. É somente pela problematização deste e de outros impasses que se estabelecem neste trabalho que poderemos construir novos sentidos para essa escuta. Afinal, não podemos esquecer que, por mais que se reconheça a precariedade das condições do ponto de vista material e psíquico, o acolhimento que mais importa é sempre o da escuta daquilo que escapa ao sujeito, ou seja, o que se refere à dimensão do gozo.

Quando demonizamos ou vitimizamos os agentes socioeducativos, ou mesmo os meninos, estamos ainda situados em uma posição de pouca escuta, surdos por imagens que nos interpelam acerca das condições de vida e de trabalho desses sujeitos anteriores à experiência de escutá-los. Importa lembrar que escutar o sofrimento desses sujeitos é diferente de submergir nos afetos que esse contexto pode produzir. É claro que sabemos que o horror da socioeducação17, tantas vezes narrado pelos próprios meninos e agentes, assusta e impele qualquer um, analista ou não, à vontade de reparação e/ou salvação dessas pessoas.

Porém, nesse diapasão, uma questão que importa ser melhor desdobrada refere-se à pergunta sobre aquilo que somente a Psicanálise poderia levar para esses cenários. Nesse sentido, nos perguntamos se acaso a identificação maciça com a dimensão do horror na socioeducação não estaria do lado do que Lacan denomina de resistência do analista, quando o psicanalista resiste na resistência do sujeito, sem conseguir escutar a dimensão do gozo, ficando preso à novela imaginária (Lacan, 1953-1954/1986).

Além destes, temos uma série de outros impasses que precisam ser nomeados e formulados acerca dessa prática. Por ora, nossa contribuição foi fazer falar os efeitos ético-metodológicos do encontro entre Psicanálise e socioeducação. Fomos para o campo com a ética psicanalítica e carregando uma certa inspiração na flânerie e acabamos por colher um modo próprio de escutar o que se problematiza na instituição socioeducativa. Sabemos que não se trata de extirpar o mal-estar na socioeducação, porém, como pesquisadores em Psicanálise, nos sentimos frente a uma tarefa que é ética e sócio-histórica.

Pela responsabilidade com o que veio antes e com o que virá depois, escolhemos escutar as formas de mal-estar de nosso tempo, sem abandonar a tradição dos pioneiros, ao preocuparem-se com os fundamentos, mas também sem silenciar a experiência enquanto testemunha maior das vivências desses sujeitos. Nesse movimento, sentimo-nos como um herdeiro, no sentido posto por Derrida e Roudinesco (2004): aquele que toma a herança não em sua literalidade, mas na perspectiva de que, no encontro com a transmissão, ali possa surgir alguma dimensão do novo (Gurski, 2012, p. 163).

 

 

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Artigo recebido em: 17/12/2018
Aprovado para publicação em: 23/07/2019

Endereço para correspondência
Rose Gurski
E-mail: rosegurski@ufrgs.br

 

 

*Psicanalista, membro da APPOA. Professora e Coordenadora PPG de Psicanálise: clínica e cultura da UFRGS (2018-2020). Coord. GT Psicanálise e Educação da ANPEPP (2018-2020). Pesquisadora Colaboradora do Laboratório de Psicanálise, Sociedade e Política da USP. Coordenadora do NUPPEC/UFRGS - Eixo Psicanálise, Educação, Adolescência e Socioeducação. Membro da Rede Internacional Coletivo Amarrações. Membro da Rede Interamericana de Psicanálise, Infância e Instituições (INFEIES), Membro da Rede Interamericana de Psicanálise e Política (REDIPPOL). Autora do livro Três ensaios sobre juventude e violência (Escuta, 2012) e organizadora do livro Quando a psicanálise encontra a socioeducação (Fino Traço, 2019).
1Este artigo é um dos produtos da pesquisa "Os jovens em conflito com a lei, a violência e o laço social" (Edital Universal CNPq 447672/2014-2) que desenvolvemos entre 2014 e 2018.
2August Aichhorn (1878-1949), educador e psicanalista austríaco, que viveu e morreu entre o século XIX e XX. Segundo Chemama (1995, p. 15), Aichhorn foi "um dos poucos que fez da delinquência um campo de aplicação possível da Psicanálise".
3Instituição nos moldes de um internato, para jovens delinquentes e abandonados, localizada na periferia de Viena.
4O que chamamos de pesquisa-intervenção não se filia às propostas, por exemplo, de Kurt Lewin que, desde uma perspectiva experimental, tinha como meta alterar nas intervenções grupais o que se configurava inicialmente como problema (Melo, A. S. E; Maia Filho, O. N., & Chaves, V. H., 2006). Na pesquisa em psicanálise não há nada de experimental, pois o que a norteia não é o controle da experiência, mas uma ética que é a mesma posta na clínica: trabalha-se com a singularidade e com que é dito no caso a caso, mesmo que os sujeitos sejam escutados de modo coletivo. Conforme Pereira (2016, p. 73, grifo nosso), "a pesquisa psicanalítica apresenta-se como um modo alternativo de investigação, já que propõe pesquisas com os sujeitos e não sobre eles". Desse modo, podemos dizer que nos filiamos ao escopo da pesquisa-intervenção no sentido evocado por Castro (2008, p. 29): "[...] decorrente da visão de que não há uma extemporaneidade do pesquisador em relação ao ato de pesquisar, reconhece-se que todo dispositivo de pesquisa transforma o que se deseja pesquisar, ou seja, nenhuma pesquisa deixa de ser também uma intervenção". Desse modo, pode-se pensar que todo comprometimento e implicação do pesquisador com seu estudo configura-se como um modo de intervenção (Garcez, & Cohen, 2011).
5Referimo-nos ao eixo Psicanálise, Educação, Adolescência e Socioeducação do Núcleo de Pesquisa em Psicanálise, Educação e Cultura (NUPPEC/UFRGS). O Núcleo é uma ação conjunta de docentes do Programa de Pós-Graduação em Psicanálise: Clínica e Cultura e do Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Educação da UFRGS. Participam do Núcleo professores, pesquisadores e bolsistas. Para mais informações: www.ufrgs.br/nuppec e www.facebook.com/nuppec.
6A medida de ICPAE (Internação com Possibilidade de Atividade Externa) tem por objetivo elaborar, junto da família, da rede pública e da equipe de profissionais da Unidade, a preparação do adolescente para o seu reingresso na sociedade "de forma parcial, gradual, planejada e monitorada" (Brasil, 2014, p. 21).
7Este Projeto de Pesquisa-extensão, iniciado em 2015 e ainda em desenvolvimento, é denominado de Rodas de R.A.P. Os próprios adolescentes passaram a solicitar as músicas de rap para os momentos de conversas em Rodas que vinham sendo propostos. Com a demanda deles, cunhamos este acrônimo que significa em nossa pesquisa: ritmos, adolescência e poesia. Para outros detalhes acerca deste trabalho ver Gurski (2017b) e Gurski e Strzykalski (2018a, 2018b, 2018c).
8A FEBEM (Fundação Estadual para o Bem Estar do Menor), criada em 1969, sustentada pela antiga Doutrina da Situação Irregular, realizava a internação generalizada de crianças e adolescentes em situação de maus-tratos oriundos de famílias pobres e, também, "menores" infratores. O Sistema de Garantia de Direitos (SGD) de 1990 foi construído em meio aos marcos inaugurados pela Constituição Federal, de 1988 e pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, de 1990 (Holanda, 2012).
9Expressão enunciada pela Prof. Cláudia Perrone (UFSM) em reunião de pesquisa realizada no Instituto de Psicologia da UFRGS, em maio de 2018.
10Essa nuance foi adensada em meio à orientação de um trabalho de mestrado no PPG Psicanálise: clínica e cultura da UFRGS (Pires, 2018). A mestranda aceitou desdobrar como questão maior de seu Projeto a parte da pesquisa-intervenção com os agentes socioeducativos - uma das nuances metodológicas de um arcabouço de estudos que temos denominado "quando a psicanálise encontra a socioeducação". Através desta pesquisa, e de outras do grupo, foi possível seguirmos desdobrando aspectos metodológicos com os quais vínhamos trabalhando há algum tempo, dentre eles destacamos o aprofundamento da posição da flânerie como método de pesquisa em associação à escuta psicanalítica - uma formulação que temos construído desde 2008 (Gurski, 2008) e que decanta do encontro da ética psicanalítica, com o tema da experiência em Benjamin e com a figura do flâneur.
11Usamos a expressão impossível no mesmo sentido que Freud (1925/2012) fez no Prefácio ao livro de Aichhorn; ele se refere às três profissões de caráter impossível: educar, governar e analisar. Ou seja, não se trata do impossível no sentido de não ter jeito, mas de cuja problemática sempre vai restar um fragmento de real, de não simbolizável.
12Pires (2018).
13Benjamin associou o fragmento com o tema do resto, com os cacos da história e com a figura do flâneur de Baudelaire.
14Essa questão é trabalhada a partir da noção de que a dimensão da falta, ou o saber não-todo, sustenta a posição ética do psicanalista, sendo tomado como um operador clínico também no trabalho institucional. Para outros detalhes ver Lacan (1958/1998), Mendes (2015) e Vorcaro et al. (2015).
15Conforme nota do tradutor das Obras completas de Freud pela Cia das Letras que se encontra em Freud (1925/2011, p. 347).
16Kurt Eissler (2006), que foi seu analisando, fala sobre como Aichhorn costumava assumir uma postura de "ignorância", acreditando sempre ser possível começar de novo no sentido de colocar-se em uma posição de aprendiz.
17Expressão usada coloquialmente pelos socioeducadores em momentos de escuta-flânerie. Foi retirada dos diários de experiência dos pesquisadores envolvidos na pesquisa-intervenção.

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