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Tempo psicanalitico

versão impressa ISSN 0101-4838versão On-line ISSN 2316-6576

Tempo psicanal. vol.52 no.2 Rio de Janeiro jul./dez. 2020

 

ARTIGOS

 

As contribuições de Donald Woods Winnicott para a psicossomática

 

The Donald Woods Winnicott's contributions to psychosomatic

 

Las contribuciones de Donald Woods Winnicott a la psicossomática

 

 

Gabriela Garcia Ceron*

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Faz-se relevante recordar que psicossomática é maior e mais nobre do que a simples denotação de conflitos psicológicos prejudicando o organismo; psicossomática é, antes de tudo, saúde, crescimento, amadurecimento, ou seja, é o indivíduo completo. Fizemos uma pesquisa cujo objetivo foi apresentar as principais contribuições de Donald Woods Winnicott para o estudo da psicossomática através de um estudo qualitativo de uma revisão narrativa da literatura. Utilizaram-se livros de Donald Woods Winnicott e de outros autores da psicanálise e artigos sobre a teoria winnicottiana. Como descritores utilizaram-se Winnicott, psicossomática, hold, maternagem suficientemente boa, psicossoma e processo de maturação nas bases de dados Scielo e Medline. Como critério de inclusão: abordou-se artigos que tratam os fatores da integração psicossomática e da não integração psicossomática. Critério de exclusão: foram excluídas dissertações. Foi conduzida, inicialmente, a leitura dos títulos e resumos. Posteriormente, foi realizada a leitura completa dos textos. A partir daí, prosseguiu-se com a análise da fundamentação teórica dos estudos. Os dados foram sistematizados em seis categorias: O alicerce da integração psicossomática: Soma, psique e mente, A tendência à integração e o exercício da maternagem suficientemente boa, O efeito da primeira mamada para a elaboração psíquica da função psicossomática, As etapas rumo à independência e à conquista do eu-sou, O resultado da permanência da não-integração entre psique e soma: A consequência da ausência do holding e do ambiente facilitador para o processo de maturação e O significado do somatizar e do "psiquizar" como mensagem de unidade entre psique e soma. Resultados e discussão: Winnicott descreve personalização como a conquista de uma relação íntima entre a psique e o soma. Conclusão: As principais contribuições de Donald Woods Winnicott para a psicossomática estão fundamentadas no âmago das palavras empatia e confiança.

Palavras-chave: Winnicott, psicossomática, processo de integração.


ABSTRACT

It is relevant to remember that psychosomatic is bigger and nobler than the simple denotation of psychological conflicts harming the body. Psychosomatic is, above all, health, growth, maturing, that is, is the complete individual. Objective: To present Donald Woods Winnicott's main contributions to the psychosomatic study. Method: This is a qualitative study of a narrative review of the literature. Books by Donald Woods Winnicott as well as other authors of psychoanalysis and articles on Winnicottian theory were used. As descriptors, Winnicott, psychosomatics, hold, sufficiently good motherhood, psychosoma and maturation process were used in the Scielo and Medline databases. Inclusion criteria: articles dealing with the factors of psychosomatic integration and non-psychosomatic integration were addressed. Exclusion criteria: dissertations and theses were excluded. The titles and abstracts were initially read. Subsequently, the texts were read in full. From then on, the analysis of the theoretical basis of the studies was continued. The data were systematized into six categories: The foundation of psychosomatic integration: Soma, psyche and mind, The tendency to integration and the exercise of good enough motherhood, The effect of the first feeding for the psychic elaboration of the psychosomatic function, The steps towards independence and the conquest of the I-am, The result of the permanence of non-integration between psyche and soma: The consequence of the absence of the holding and the facilitating environment for the process of maturation and The meaning of somatizing and of "psychizing" as a message of unity between psyche and soma. Results and discussion: Winnicott describes personalization as the achievement of an intimate relationship between psyche and soma. Conclusion: Donald Woods Winnicott's main contributions to the psychosomatics are grounded in the heart of the words empathy and trust.

Keywords: Winnicott, psychosomatic, integration process.


RESUMEN

Se hace pertinente recordar que la psicosomática es mayor y más noble que la simple denotación de conflictos psicológicos perjudicando el organismo. Psicosomática es, ante todo, salud, crecimiento, maduración, o sea, es el individuo completo. Objetivo: Presentar las principales contribuciones de Donald Woods Winnicott el estudio de psicosomática. Método: Se trata de un estudio cualitativo de una revisión narrativa de la literatura. Se utilizó libros de Donald Woods Winnicott y de otros autores del psicoanálisis y artículos sobre la teoría winnicottiana. Como descriptores se utilizó Winnicott, psicosomática, hold, maternación suficientemente buena, psicosoma y proceso de maduración en las bases de datos Scielo y Medline. Criterio de inclusión: se abordaron artículos que tratan los factores de la integración psicosomática y de la no integración psicosomática. Criterio de exclusión: se excluyeron las disertaciones y tesis. Fue llevado inicialmente a leer dos títulos y resúmenes. Posteriormente, se realizó la lectura completa de los textos. A partir de ahí, se prosiguió con el análisis de la fundamentación teórica de los estudios. Los datos fueron sistematizados en seis categorías: El fundamento de la integración psicosomática: Suma, psique y mente, La tendencia a la integración y el ejercicio de la maternidad suficientemente buena, el efecto de la primera mamada para la elaboración psíquica de la función psicosomática, Las etapas hacia la independencia y la conquista del yo, el resultado de la permanencia de la no integración entre psique y suma: La consecuencia de la ausencia del holding y del ambiente facilitador para el proceso de maduración y el significado del somatizar y del "psiquizar" como mensaje de unidad entre psique y suma. Resultados y discusión: Winnicott describe la personalización como la conquista de una relación íntima entre la psique y la suma. Conclusión: Las principales contribuciones de Donald Woods Winnicott a la psicosomática están fundamentadas en el corazón de las palabras empatía y confianza.

Palabras clave: Winnicott, psicosomática, proceso de integración.


 

 

Introdução

Winnicott (2011a) assegura que o bebê nasce com tendências herdadas que o impulsionam impetuosamente para um processo de crescimento. Isto engloba a propensão rumo à integração da personalidade, em direção à integração da personalidade em corpo e psique, e em direção ao relacionamento objetal, que paulatinamente se torna questão de relação interpessoal, conforme a criança for crescendo e notando a existência de outras pessoas.

Esses processos de crescimento não podem acontecer sem um ambiente facilitador, sobretudo no começo, quando há uma situação de dependência absoluta. A expressão holding the baby [segurar um bebê] denota a capacidade que as mães possuem de envolver o bebê em seus braços de modo especial, com responsabilidade. Os bebês são, de fato, muito sensíveis à forma como são segurados, o que os leva a chorar com algumas pessoas e a ficar calmos e satisfeitas com outras, mesmo quando são muito novinhos. O bebê sente a respiração de quem o acalenta e do hálito e da pele emana-se um calor que leva o bebê a sentir que é prazeroso estar em seu colo (Winnicott, 2013).

É de muito valor que mães empáticas munidas de amor reconheçam e satisfaçam as necessidades físicas e psíquicas do bebê para que este venha a se constituir numa unidade egoica. Destarte, Winnicott (2011b) assevera que a pauta do "segurar" e do "manusear" traz à tona a reflexão da confiabilidade humana que uma máquina pode estabelecer. Para Maia e Pinheiro (2009), o confiar humano desenvolve uma comunicação muito antes que o discurso signifique algo: o jeito como a mãe dirige-se à criança, o tom e som da sua voz, tudo isso é transmitido antes que se compreenda o discurso. Para Horn (2007), a mãe é crucial para a libidinização das funções somáticas e psíquicas.

Dias, Rubin, Dias e Gauer (2007) recordam Winnicott ao dizerem que a existência psicossomática ocorre com alojamento da psique no soma por meio das experiências percebidas e sentidas com o novo estado de integração. Os autores afirmam que para a psicanálise winnicottiana a empatia materna faz-se fundamental para que esse processo ocorra.

Como vemos, a palavra-chave para entender psicossomática é integração. Assim, Winnicott (2011a) nos lembra que o bebê nasce com condições para se fundir em uma unidade (paradoxalmente, múltipla), porém faz-se imprescindível o auxílio do ambiente. Dessa forma, engloba mais uma fundamental definição para o termo psicossomática: a interação necessária entre dois indivíduos, um deles já (parcialmente) inteiro, possuindo a capacidade de ajudar o outro a colocar sua tendência a amadurecer em funcionamento.

A maternagem suficientemente boa faz-se indispensável para a conquista do desenvolvimento e da saúde psicossomática. Tendo em vista esse pensamento, Winnicott (1990) afirma que se tem estudado muito sobre a psicossomática, produzido uma gama vasta de trabalhos de extremo valor para conhecimento do adoecimento psicossomático. Sobre a importância do atendimento psicanalítico de tais enfermidades, médicos têm recebido em sua formação noções sobre a influência psíquica no desenvolvimento de patologias orgânicas; contudo, quando se pensa em psicossomática automaticamente é evocado o sentido de padecimento, que é uma pequena parcela do real significado da palavra psicossomática. Psicossomática envolve, sim, moléstias, mas, quando se abordam afecções psicossomáticas, geralmente o foco é apenas no processo de interferências psíquicas no somático e não no contrário.

Faz-se relevante recordar que psicossomática é maior e mais complexo do que a simples denotação de conflitos psicológicos prejudicando o organismo, psicossomática é, antes de tudo, saúde, crescimento, amadurecimento, ou seja, é o indivíduo completo. É conceito mais amplo é ainda um pouco desconhecido, tanto por psicanalistas quanto por médicos e educadores que, por mais que tenham compreensão da pessoa como um todo em função do conhecimento do inconsciente e das pulsões, ainda tendem a ver a psicossomática somente pelo ângulo negativo (Winnicott, 1990; McDougall, 2013).

 

Método

Trata-se de um estudo qualitativo de uma revisão narrativa da literatura.

Análise dos dados

A revisão da literatura é um processo de busca, análise e descrição de um corpo de conhecimento à procura de resposta a uma determinada pergunta. A revisão narrativa da literatura não usa mecanismos explícitos e sistemáticos para a busca e análise crítica da literatura. Não esgota as fontes de informação. Não utiliza meios de busca sofisticados e exaustivos. A seleção dos estudos e a interpretação das informações podem estar sujeitas à subjetividade dos autores (Nogueira-Martins, & Bógus, 2004).

Utilizaram-se livros de Donald Woods Winnicott e de outros autores da psicanálise e artigos sobre a teoria winnicottiana. Como descritores utilizaram-se Winnicott, psicossomática, hold, maternagem suficientemente boa, psicossoma e processo de maturação nas bases de dados Scielo e Medline. Critério de inclusão: abordou-se artigos que tratam os fatores da integração psicossomática e da não integração psicossomática (do ano de 2007 ao ano de 2010). Critério de exclusão: foram excluídas dissertações e teses por não passarem pelo crívo de publicação de artigo científico. Foi conduzida, inicialmente, a leitura dos títulos e resumos. Posteriormente, foi realizada a leitura completa dos textos. A partir daí, prosseguiu-se com a análise da fundamentação teórica dos estudos.

Os dados foram sistematizados em seis categorias: o alicerce da integração psicossomática: soma, psique e mente; a tendência à integração e o exercício da maternagem suficientemente boa; o efeito da primeira teórica mamada para a elaboração psíquica da função psicossomática; as etapas rumo à independência e à conquista do eu-sou; o resultado da permanência da não-integração entre psique e soma: a consequência da ausência do holding e do ambiente facilitador para o processo de maturação; e o significado do somatizar e do "psiquizar" como mensagem de unidade entre psique e soma.

 

Resultado e discussão

O alicerce da integração psicossomática: soma, psique e mente

Ofereço, através do referencial psicanalítico, a concepção de que no ser humano saudável é essencial, inexorável, inevitável e imprescindivelmente a personalização do psicossoma - soma e psique como uma unidade harmônica, intercomposta e interdependente. Em consonância com essa assertiva Winnicott (1983) descreve personalização como a conquista de uma relação íntima entre a psique e o soma.

Até quando os autores procuram descrever, isoladamente, um dos componentes desse todo, eles não conseguem não usar o outro elemento para definir essa composição singular do psicossoma. Assim, Winnicott (1990) aponta que o pilar da psicossomática é a anatomia do que é vivo, que conhecemos como fisiologia. Os tecidos estão vivos e fazem parte do animal humano como um todo e são afetados pelos estados variáveis da psique daquele animal.

Outrossim, Freud (1923/1996) indica que o próprio corpo de um indivíduo e, acima de tudo, a sua superfície, forma um local de onde podem provir sensações tanto externas quanto internas. Ele é visto como qualquer outro objeto, mas, ao tato, produz duas espécies de sensações, uma das quais pode ser equivalente a uma percepção interna.

Ávila (2002) assevera que, teoricamente, a questão que a psicossomática põe é do corpo, sua peculiaridade, suas limitações e suas expressões. A proposta do autor é a de que o ser humano é um ser total, corpo e mente indissolúveis. Basta observarmos um cadáver para vermos, com completa nitidez, que diferença faz a presença ou a ausência da vida daquele "sopro imaterial" que os gregos chamavam de psichê. Por vida é obvio que aludimos à manutenção das funções vitais: respirar, alimentar-se, digerir, excretar, dormir, reproduzir-se etc - e também manter em exercício as funções mentais: pensar, lembrar, raciocinar, sentir etc. Um indivíduo em coma é a expressão mais patente do que simboliza a vida quando apenas as funções vegetativas se mantêm. O homem integral é a vida mental plenamente em exercício.

Freud (1923/1996) afirma que a organização coerente de processos mentais denominado ego é a princípio e, acima de tudo, um ego corporal e não simplesmente uma entidade de superfície, mas é, ele próprio, a projeção de uma superfície. Winnicott (1983) acrescenta que o ego é a parte da personalidade que tende, sob circunstâncias favoráveis, a se integrar em uma unidade.

Embora a maioria dos autores seja unânime em utilizar psique e mente como sinônimos, Winnicott é enfático ao dizer que mente e psique são distintas. Dessa forma, segundo Winnicott (1990), a pessoa é uma amostra no tempo da natureza humana. O ser humano total é físico, se visto de certo ângulo, ou psicológico, se visto de outro. Existem o soma e a psique. Existe também um inter-relacionamento de complexidade crescente entre um e outra e uma organização desse relacionamento proveniente daquilo que entendemos por mente.

O funcionamento intelectual, assim como a psique, tem seu fundamento somático em determinadas partes do cérebro. Ressalto a afirmação de Winnicott (1990) de que não cairemos na armadilha que nos é preparada pelo uso popular de "mental" e "físico". O autor supõe que esses conceitos não caracterizam fenômenos opostos. O soma e a psique é que são opostos. A natureza humana não é uma questão de corpo e mente - e sim uma questão de psique e soma interconectados, que em seu ponto culminante apresentam como ornamento a mente. A mente institui uma ordem à parte e deve ser considerada um caso especial do funcionamento do psicossoma.

Para Winnicott (1990), a saúde física necessita uma hereditariedade nature e uma criação nurture suficientemente boas. Na saúde o corpo funciona condizente com a faixa etária apropriada. Acidentes e falhas ambientais são enfrentados de maneira a fazer com que suas consequências negativas despareçam com o tempo. O desenvolvimento prossegue com o passar do tempo e, paulatinamente, a criança transforma-se no homem ou na mulher, nem cedo demais, nem tarde demais. A meia-idade chega na época certa, como outras igualmente adequadas e, finalmente, a velhice vem desacelerar os vários funcionamentos até que a morte natural surge com a derradeira marca da saúde.

De maneira semelhante, a saúde da psique deve ser examinada em termos de crescimento emocional, consistindo numa questão de maturidade. A pessoa saudável é emocionalmente madura tendo em vista sua idade no momento. A maturidade abrange gradualmente o sujeito numa relação de responsabilidade para com o ambiente.

Por seu turno, o intelecto, então, não é exatamente como o corpo e a psique. Ele é constituído de outro material e não se pode asseverar que no intelecto saúde seja maturidade e maturidade seja saúde. Não existe, realmente, nenhum elo entre os termos saúde e intelecto. Na saúde, a mente funciona nos limites do tecido cerebral porque o desenvolvimento emocional do ser humano é satisfatório (Winnicott, 1990). Seguiremos com a forma de progresso e os fatores que contribuem para que o desenvolvimento emocional e o estabelecimento da saúde aconteçam.

 

A tendência à integração e o exercício da maternagem suficientemente boa

É unânime entre todas as áreas que se preocupam e atuam com a saúde integral do ser humano que todas as fases da vida são de igual importância no êxito do processo maturacional do indivíduo; em congruência com esse fato Winnicott (2011a) afirma que o desenvolvimento emocional se inicia antes do nascimento e persiste por toda a vida, até "por sorte" a morte natural.

Mas não podemos olvidar e negar que, entre essas etapas da vida, uma delas ocupa uma posição privilegiada na evolução do desenvolvimento psíquico, pois a infância possui a capacidade especial, sob condições adequadas, de fundamentar parcialmente a saúde das demais etapas. Desse modo, Freud (1905/1996) assevera que ninguém contesta a realidade de que as experiências dos primeiros anos de nossa infância deixam traços inalienáveis nas profundezas de nossa psique.

Em consonância com esse pensamento, Groddeck (2011) aponta que na infância ocorrem as mais principais experiências, os mais importantes acontecimentos são vivenciados nos primeiros três, quatro anos de idade: o nascimento, o crescimento e formação do organismo e suas partes (sistema digestivo, sistema respiratório, etc); ou seja, o aprendizado das funções vitais, a respiração, a alimentação, a visão, o pensamento, o andar, a fala, o reconhecimento do ambiente e de certas relações com o meio etc. O autor acrescenta a lembrança crucial de que o bebê não pode existir por si, depende do auxílio alheio, sobretudo da mãe, reconhecendo, com isso, a dependência absoluta inicial do bebê em relação à figura materna para fundamentar a sua saúde psicossomática.

O pediatra e psicanalista D. W. Winnicott foi um dos autores que buscou compreender o relacionamento mãe-bebê, principalmente no tocante à saúde psicossomática. Lembramos que Winnicott não construiu a teoria da mãe suficientemente boa para elogiar e agradar as mães, mas, sim, para descrever condições favoráveis para o desenvolvimento humano. Assim, Winnicott (2011a) assegura que o bebê nasce com tendências herdadas ao crescimento. Essas propensões inatas ao amadurecimento vêm do interior do menino ou da menina. Esses processos de crescimento, entretanto, não podem acontecer sem um ambiente facilitador, sobretudo no começo, quando há uma situação de dependência absoluta do recém-nascido em relação aos seus cuidadores.

No princípio, a totalidade do processo de desenvolvimento ocorre devido a tendências herdadas tremendamente vitais rumo ao crescimento, integração, ao desenvolvimento: o fator que um dia faz a criança ansiar andar e assim por diante. Se houver uma provisão ambiental satisfatória, a integração e o amadurecimento acontecem com a criança (Winnicott, 2011a; Silva, & Pinheiro, 2010).

Vejamos nas palavras de McDougall (2013, p. 34):

Quando a relação mãe-filho é "good-enough" (conforme a terminologia winnicottiana) a partir da matriz somatopsíquica original, vai se desenvolver então uma diferenciação progressiva na estruturação psíquica da criança pequena, entre o seu próprio mundo externo que é o corpo materno, o "seio universal". Paralelamente, pouco a pouco, aquilo que é psíquico vai se diferenciando na mente da criança daquilo que é somático.

A mãe satisfatória inicia-se com um alto grau de adaptação às necessidades do bebê. É isso que significa ser "satisfatória": a tremenda habilidade que as mães normalmente têm de se devotar com seu/sua filho/a à criação de laço emocional - essa capacidade de construir um vínculo afetivo com outra pessoa. Freud (1921/1996) conceituou de "identificação" o que posteriormente Winnicott indicará que ocorre quando a gravidez está chegando ao final e no princípio da vida do bebê; se assistidas apropriadamente por seus companheiros e pela provisão social, ou por ambos, as mães estarão prontas para uma experiência na qual sabem muitíssimo bem quais são as necessidades dos bebês.

As mães são de tal modo identificadas com os bebês que elas praticamente sabem como eles estão se sentindo, de tal maneira que podem se adaptar às demandas deles e, outrossim, tais demandas serão satisfeitas. O bebê torna-se apto a dar continuidade ao seu desenvolvimento, que é o começo da saúde. A mãe está estabelecendo a base para a saúde psíquica do bebê e, mais do que a saúde, para a plenitude e a riqueza, com todos os perigos e conflitos que elas acarretam e com todo o incômodo e a falta de jeito característicos do crescimento e do desenvolvimento (Winnicott, 2011a; Maia, & Pinheiro, 2009).

A totalidade do processo de desenvolvimento psicossomático requer os elementos do relacionamento psicossomático (mãe-bebê) em termos dos frutos das fantasias tanto conscientes como inconscientes dessa fusão, ou seja, empatia, que gera reciprocidade e subjetividade compartilhadas (Brazelton, & Cramer, 1992). Essa conexão psicossomática -mãe-filho, Spitz (2013) intitulou de sistema fechado.

Spitz (2013) denomina o afeto materno de clima emocional, sendo esse importante para a criança, ou seja, o amor, a afeição e o interesse persistentes da mãe para com o bebê proporcionam a ele a orientação de seus afetos e confere qualidade de vida às suas experiências.

Segundo Winnicott (2013) e Spitz (2013), já antes do nascimento, cogita-se na dependência absoluta do bebê simplesmente em termos físicos ou corporais. Dessa forma, poderíamos conjecturar que as últimas semanas de vida do bebê no útero repercutem seu desenvolvimento corporal e é plausível pensar no início de uma sensação de segurança (ou insegurança), que varia conforme o estado mental do bebê ainda não nascido, o qual, naturalmente, tem uma potencialidade de operação muito restrita nesse estágio inicial, uma vez que o cérebro ainda não se encontra completamente desenvolvido.

Conforme assevera Winnicott (2013), o nível de consciência antes do nascimento e durante o processo de nascimento também varia de acordo com os efeitos causais que advêm do estado em que a mãe se encontra e de sua capacidade de superar as agonias alarmantes, perigosas e, em geral, recompensadoras dos estágios da gravidez. É relevante reconhecer o fato da dependência. A dependência real é tão evidente que os bebês e as crianças não conseguem sobreviver sozinhos e as simples ocorrências de dependência passam facilmente despercebidas (Winnicott, 2013). Brazelton e Cramer (1992) afirmam que durante o período de gravidez a mãe passa por uma preparação psicossomática para alicerçar a saúde psicossomática do bebê.

 

O efeito da primeira mamada teórica para a elaboração psíquica da função psicossomática

A intimidade entre mãe-filho/a faz-se importantíssima para que a criança tenha noção de seu corpo inteiro e saiba de suas possibilidades, de suas demandas e de suas competências e desenvolva uma ótima relação com ele. Tendo percebido esta realidade, Winnicott (2013) constata que não há qualquer dúvida de que um número vasto de pessoas se desenvolveu satisfatoriamente sem que tenha passado pela experiência da amamentação. Isso prova que existem outras maneiras pelas quais um bebê pode experimentar um contato físico íntimo com a mãe.

Para Winnicott (2013), a pauta da amamentação é, por certo, uma parte e uma minúscula parcela dessa ampla vivência; parte das pessoas que iniciam bem sua vida tiveram os recursos ambientais de que se pode dispor suficientemente bons. Os psicanalistas que elaboraram a teoria do desenvolvimento emocional do indivíduo foram responsáveis, até um certo ponto, pelo relativo exagero com o que seio materno foi colocado em evidência. Não estavam errados.

Contudo, para Winnicott (2013), com o passar do tempo, o "seio bom" tornou-se um jargão que, de modo geral, significa uma maternidade e uma paternidade satisfatória. Enquanto indícios dos cuidados prestados ao bebê indicam que o ato de segurá-lo e manipulá-lo é mais importante, em termos vitais, do que a experiência concreta da amamentação.

De acordo com Winnicott (2013), também é uma verdade bem conhecida que muitos bebês vivenciam o que parece ser uma experiência bem-sucedida de amamentação e, entretanto, são malsucedidos, no sentido de uma deficiência observável em seu processo de desenvolvimento, assim como em sua capacidade de relacionamento com as pessoas e utilização de objetos - uma deficiência provinda do fato de terem sido segurados e manipulados de forma insatisfatória.

Assim, Winnicott (2013) afirma que, quanto ao ensino de médicos e enfermeiros sobre esse tema, ele deve consistir em levar esses profissionais a compreenderem que são necessários, e muito, quando as coisas vão mal do ponto vista físico, por outro não são especialistas nas questões relativas à intimidade que são vitais tanto para a mãe quanto para o bebê, é preciso que médicos e enfermeiros lembrem que eles têm muito a aprender, pois as exigências da medicina e das cirurgias modernas são de fato muito grandes.

Se os profissionais começarem a dar conselhos sobre essa intimidade, estarão pisando em solo perigoso e pernicioso, pois nem a mãe nem o bebê precisam de conselho. Em vez de conselhos, eles precisam de recursos ambientais que incentivem a confiança da mãe em si própria. O fato cada vez mais comum de o pai estar presente no momento do nascimento do filho é um avanço, pois o pai pode enriquecer a situação com um entendimento da importância dos primeiros instantes, assim como quando a mãe pode dar uma olhada em seu bebê antes de repousar (Winnicott, 2013).

Cabe aos pais conhecerem suas necessidades e preocuparem-se com elas nesse estágio inicial, são eles também que devem decidir sobre a insistência em busca de autorrealização. Apenas quando os pais encontram médicos e enfermeiros que compreendem qual é a sua função específica e qual é a dos pais, o trabalho conjunto de ambos poderá resultar em um desfecho feliz. Há, naturalmente, mães que têm dificuldades pessoais devido aos conflitos internos, dificuldades que talvez estejam ligadas às experiências pelas quais passaram quando crianças (Winnicott, 2013).

No caso em que a mãe tem dificuldade de amamentar, será um erro forçar uma atividade que tem uma extensa chance de fracassar, de ser uma catástrofe. Portanto, ter uma ideia preconcebida sobre a amamentação é uma prática muito desaconselhável para os profissionais atuantes no caso. É muito frequente que uma mãe desista rapidamente e estabeleça outro tipo de alimentação. Nas circunstâncias em que um bebê não possa ser amamentado, existem muitos outros jeitos de as mães estabelecerem a intimidade física com seus bebês (Winnicott, 2013).

Uma das formas possíveis de os bebês vivenciarem o vínculo físico com suas mães é por meio de um objeto especial. Quem tem contato com bebê e com criança já deve ter reparado que, muitas vezes, esse objeto não pode ser esquecido em lugar nenhum, tanto pela criança quanto pelos pais, e que geralmente não é lavado: é esse patrimônio tão particular que Winnicott (2011a) denominou de objeto transicional.

Segundo Winnicott (2011b), o objeto transicional é algo que a criança acabou de notar, pode ser um pedaço de pano que foi do berço, um cobertor, até mesmo a fita do cabelo da mãe. É o primeiro símbolo e representa a confiança na união do bebê e da mãe baseada na experiência de confiabilidade e da habilidade dessa mãe de saber o que esse bebê precisa por meio da sua identificação para com ele. Esse objeto é criado pela criança, apesar de esse objeto existir previamente à criação pela criança. Retornando ao tema da amamentação e fazendo a ponte desse objeto transicional, Winnicott (1990) nos recorda que, por todo o tempo, ao abordarmos o assunto, temos em mente o bebê.

Quando surge a necessidade da alimentação há uma crescente tensão instintiva. Podemos imaginar uma primeira mamada teórica na qual se produz uma expectativa, um estado de coisas no qual o bebê está pronto para encontrar algo em algum lugar, mas sem saber o quê. Não há expectativa semelhante no estado tranquilo ou não-excitado. Mais ou menos na hora certa, a mãe oferece o seio ou a mamadeira. Essa primeira mamada é também a primeira mamada real, exceto pelo fato de que a experiência real não é tanto um acontecimento singular quanto uma construção do evento a partir da memória. É possível dizer que, em função da extrema imaturidade do bebê recém-nascido, a primeira mamada não pode ser significativa como experiência emocional.

Entretanto, sem dúvida que, se a primeira mamada é bem-sucedida, estabelece-se um contato, de forma que o padrão das mamadas se desenvolve a partir dessa primeira experiência. Nessa primeira mamada (teórica), o bebê está preparado para criar e a mãe propicia a situação pela qual o bebê tem a ilusão de que o seio e aquilo que o seio representa foram criados pelo impulso originado na necessidade. Obviamente, aquilo que o bebê criou não foi aquilo que a mãe forneceu, mas a mãe, por meio de sua identificação com o bebê, está apta a permitir que ele tenha essa ilusão. Aqui a criança está numa condição de criar o mundo. A razão é a transformação de necessidade em desejo (Winnicott, 1990).

Faz-se crucial que a mãe proporcione ao bebê a condição de ser, no decorrer do período apropriado, aquela situação que Freud (1914/1996) definiu como "Sua Majestade o Bebê". Como Groddeck (2011) asseverou: a criança é o senhor absoluto do pequeno mundo em que vive. A sensação de onipotência é consequência inevitável dessa condição.

Winnicott (1990), em concordância com Freud, denomina instinto como poderosas forças biológicas que vêm e voltam na vida do bebê ou da criança e que requerem ação. A excitação do instinto leva o indivíduo a preparar-se para a satisfação quando o mesmo atinge seu estágio de máxima exigência. Se a satisfação é encontrada no instante culminante da exigência, surge a recompensa do prazer e também o alívio temporário do instinto. A insatisfação incompleta ou mal sincronizada engendra alívio incompleto, desconforto e a ausência de um período de descanso muito necessária entre duas ondas de exigência.

Assim, de acordo com as ideias de Freud, Winnicott (1990) corrobora que todas as funções e sensações orgásticas são indispensáveis para a integração psicossomática ao dizer que o alicerce do desenvolvimento saudável é o crescimento físico e, também, as transformações no funcionamento dos órgãos infantis em função da passagem do tempo. Acontece uma mudança de ênfase, tal como a da dominância dos processos alimentares para a prevalência dos fenômenos genitais.

Há uma elaboração imaginativa, por parte da criança, do funcionamento corporal que se forma em fantasias que são qualitativamente determinadas pela localização no corpo, mas que são particulares da pessoa devido à hereditariedade e à experiência. Dependendo do lugar de onde esteja a ênfase, se na ingestão ou na excreção, ou mesmo na excitação genital, a preparação para a experiência orgástica dependerá do tipo de fantasia dominante no momento do clímax, seja este um organismo (boca, esfíncteres e genitais) ou uma relação sexual (Winnicott, 1990).

Winnicott (1990) assegura que a psique é formada a partir do material fornecido pela elaboração imaginativa das funções corporais (que, por sua vez, depende da saúde e da capacidade de um órgão específico - o cérebro). Durante o período de latência o bebê aprende a amar outras pessoas que a ajudam em seu desamparo (dependência) e satisfazem suas necessidades e o faz segundo protótipo de relação de lactante com a mãe e dando continuidade a ele.

De acordo com o autor, talvez se conteste a identificação do amor sexual com os sentimentos ternos e estima da criança pelas pessoas que cuidam dela, mas Freud (1905/1996) pensava que uma investigação psicológica mais rigorosa certificaria essa identificação acima de qualquer dúvida. O trato da criança com a pessoa que a assiste é, para ela, uma fonte incessante de excitação e satisfações advindas das zonas erógenas, ainda mais que essa pessoa - a mãe - beneficia a criança com os sentimentos derivados de sua vida sexual: ela a acaricia, beija e embala e é perfeitamente óbvio que a trata como um substituto do objeto sexual totalmente legítimo.

A mãe provavelmente se escandalizaria se lhe fosse esclarecido que, com todas as suas expressões de ternura, ela está despertando a pulsão sexual de seu filho e preparando o uso posterior desta. Ela classifica seu procedimento como um amor "puro", assexual, já que evita cuidadosamente levar aos genitais da criança mais excitações do que as inevitáveis no cuidado com o corpo. Entretanto, a pulsão sexual não é despertada somente pela excitação da zona genital; aquilo que é conhecido como ternura um dia exercerá seus efeitos, infalivelmente, também sobre as zonas genitais (Freud, 1905/1996).

Freud (1905/1996) refere que, se a mãe compreendesse melhor a extrema importância das pulsões para a vida anímica como um todo, para as realizações éticas e psíquicas, ela se pouparia das autorrecriminações mesmo depois desse esclarecimento. Quando ensina seu filho a amar, está apenas cumprindo sua tarefa, afinal ele deve transformar-se num ser humano capaz, dotado de uma vigorosa necessidade sexual e com possibilidade de realizar em sua vida tudo aquilo a que o ser humano é impelido pela pulsão.

 

As etapas rumo à independência e à conquista do eu-sou

Talvez o leitor tenha, ao ler esta produção, a impressão de que irei focar-me apenas na infância; mas já adiantei que para pensarmos numa vida saudável temos que examinar um propulsor chamado puerícia. Dessarte, Winnicott (1983) assim como Maia e Pinheiro (2009) consideram que a meninice consiste em uma evolução, com o auxílio da provisão ambiental, permitindo a passagem da dependência para a independência. Winnicott (1983) aponta uma série de níveis de dependência:

A. Dependência extrema ou absoluta. Nesta fase as condições devem ser suficientemente boas, senão o lactante não pode iniciar seu desenvolvimento inato. O cuidado materno é profilático. A criança não possui noção do cuidado materno.
B. Dependência relativa. Nesta etapa o bebê tem ideia da dedicação materna.
C. Mescla dependência-independência. Nessa circunstância a criança necessita provar a condição de dependência assim como a de independência.
D. Independência-dependência. Neste estado ocorre a prevalência da independência.
E. Independência. A criança introjeta os cuidados maternos, consegue ter autonomia através das recordações desses cuidados e do estabelecimento de confiança com o meio.
F. Sentido social. A pessoa identifica-se com adultos, com o grupo social e com a sociedade sem perda imensa da originalidade ou da individualidade, dos ímpetos agressivos e destrutivos que se satisfaçam em formas deslocadas.

A adaptação materna vai reduzindo em conformidade com a progressiva demanda que o bebê possui de experimentar reações à frustração. A mãe saudável pode postergar paulatinamente sua função de adaptação para que o bebê tenha a capacidade de reagir com raiva em vez de se traumatizar pelas ausências de satisfação proporcionadas pela mãe. Trauma significa ruptura de continuidade na existência do ser humano (Winnicott, 2011a).

Vejamos a ideia de Spitz (2013, p. 149) sobre o assunto: "Em contato com essas frustrações que se repetem, a criança atinge um grau crescente de independência e torna-se cada vez mais ativa em suas relações com o mundo exterior, animado ou inanimado".

Somente por meio de uma continuidade no existir surge o sentido do self, de se sentir real, que uma característica da personalidade da pessoa se estabelecerá. Para uma criança seria muito decepcionante permanecer na situação de onipotência quando ela já porta mecanismos que lhe anuem conviver com as frustrações e as dificuldades de seu meio ambiente, conseguindo viver, assim, um sentimento de raiva que não se transforma em desespero, pode trazer muita satisfação (Winnicott, 2011b).

Winnicott (1983) nos lembra que a independência nunca é absoluta. O indivíduo sadio não se torna isolado, mas se torna relacionado ao ambiente de um jeito que o indivíduo e o ambiente tornam-se interdependentes.

Winnicott (2011a) ratifica que o cuidado materno ramifica-se em um cuidado fornecido por ambos os pais que, juntos, assumem a responsabilidade por seu bebê e pela relação entre todos os filhos. Além disso, têm a obrigação de receber as "contribuições" oferecidas pelas crianças saudáveis da família. A assistência propiciada pelos pais avança para a família e esta engloba os avós, primos etc, além de pessoas que têm valor especial pela proximidade, como, por exemplo, os padrinhos, os professores e os amigos, ou seja, o clima emocional de Spitz (2013) é ampliado.

Freud (1910/1996) afirma que a primeira escolha de objeto feita pelo bebê é dependente de sua demanda de amparo. Essa escolha direciona-se a princípio a todas pessoas que lidam com a criança e depois aos genitores. A relação entre criança e pais não é totalmente livre de elementos de excitação sexual.

A criança toma ambos os pais e, especialmente, um deles, como objeto de seus desejos eróticos. Em geral a estimulação advém dos próprios pais, cuja ternura possui o nítido caráter de atividade sexual, embora inibidos em suas finalidades. O pai normalmente tem predileção pela filha, a mãe, pelo filho; a criança reage almejando o lugar do pai se é menino, o da mãe se se trata da filha. Os sentimentos nascidos dessas relações entre pais e filhos e entre um irmão e outros não são apenas de natureza positiva, de ternura, mas também negativos, de hostilidade (Freud, 1910/1996).

Loparic (2016) aponta que a teoria winnicottiana é uma teoria não-edipiana já que foca na relação dual mãe-bebê, dentro-fora, integração-não-integração. Discordo, pois, como já asseveramos, a maternagem suficientemente boa envolve o segmento pai-mãe-família, o indivíduo necessita dessa estrutura para alcançar sua integração psicossomática, sua autonomia e sua sexualidade plenamente saudável. O indivíduo precisa compreender que além de dois existem mais. Aliás, toda mãe sadia deseja a autonomia do filho por mais ambivalente que seja esse seu sentimento.

Winnicott (2011a) e Maia e Pinheiro (2009) ressaltam que a integração psicossomática conquistada pelo processo maturacional guiado pelo progresso da dependência à independência conduz o bebê à categoria unitária, ao pronome pessoal "eu", ao número um; isto torna possível o EU SOU. A criança adquire um interior, é apta a cavalgar em suas tempestades instituais e também é capaz de conter as pressões e os estresses ocasionados na realidade psíquica interna. A criança tornou-se capaz de se sentir deprimida. Essa é uma aquisição do crescimento individual.

 

O resultado da permanência da não-integração entre psique e soma: a consequência da ausência do holding e do ambiente facilitador para o processo de maturação

Até agora abarcamos os pilares da união psicossomática e, neste momento, partiremos para a carência dessa estrutura e seus danos para a saúde psicossomática. Outrossim, Winnicott (2013, 1983) como igualmente Silva e Pinheiro (2010) afirmam que, quando existe a escassez do holding adequado, ou seja, se a criança não tiver uma mãe identificada com ela que promova a satisfação de suas necessidades básicas em termos físicos e emocionais apropriadamente e que, somente em conformidade com o surgimento de sua demanda, introduza a espera de satisfação de necessidades e frustrações, corretamente haverá uma ansiedade inimaginável que pode ser descrita em: 1) Ser feito em pedaços. 2) Cair para sempre. 3) Completo isolamento devido à inexistência de qualquer forma de comunicação. 4) Disjunção entre soma e psique. 5) Perder todos os sinais de esperança de renovação de contatos. 6) Morrer, morrer, morrer. 7) Perda de orientação.

Conforme aponta McDougall (2013, p. 36), "Qualquer fracasso nesse processo fundamental vai comprometer a capacidade da criança de integrar e reconhecer como seus o seu corpo, os seus pensamentos e os seus afetos".

Para Winnicott (1983) há distinção entre o início da vida de um bebê cuja mãe pode exercer sua função suficientemente bem e um bebê cuja mãe não possa. Quando a mãe não é suficientemente boa a criança não é apta a iniciar a maturação do ego, ou então, ao fazê-lo, esse desenvolvimento ocorre distorcido em certos aspectos vitais.

Esse pensamento de Winnicott é corroborado por Freud (1926/1996), que refere à ausência da mãe no período em que a criança sente que ela é a única pessoa que pode satisfazer sua necessidade como um perigo, ou seja, um trauma. É uma situação de ansiedade se essa satisfação não ocorrer.

Bowlby (2004) também aponta que estados de angústia e depressão que se manifestam na vida adulta, assim como condições psicóticas, podem ser vinculados, de forma sistemática, à privação da figura materna. Ele indica que novo impasse decorre do fato de que a mãe pode estar fisicamente presente, mas "emocionalmente" ausente. Isso significa, evidentemente, que a mãe está fisicamente junto do filho, mas não reage aos seus desejos de receber atenções e carinhos. Essa privação de receptividade pode relacionar-se a numerosas condições - depressão, rejeição, preocupação com outros assuntos. Em relação ao filho, todavia, a mãe está meio presente, seja qual for a razão de sua falta de receptividade.

De acordo com Bowlby (2004), o fato de uma criança ou um adulto encontrar-se em estado de segurança, de angústia ou de aflição fica determinado, em ampla margem, pela acessibilidade e receptividade de sua principal figura de apego. O autor ratifica que na vida madura é extremamente difícil, muitas vezes, perceber que todo um distúrbio emocional está ligado às experiências pessoais, sejam do momento, sejam do passado. No estágio da primeira infância, porém, as relações entre circunstâncias emocionais e as experiências simultâneas ou do passado recente se colocam com clareza cristalina e o autor acrescenta que é nesses estados de perturbação da primeira infância que se tornam discerníveis os protótipos de inúmeras patologias dos anos posteriores.

Embora a fusão psicossomática seja indispensável para que a pessoa tenha uma boa saúde, nem sempre a ligação do psicossoma é conquistada devido à falta de condições necessariamente imprescindíveis chamadas de maternagem suficientemente boa e por ameaça de perda inadequada dessas condições. Destarte, Winnicott (1983) assegura que a doença psicossomática é, muitas vezes, um pouco mais do que o reforço desse vínculo psicossomático frente à ameaça de ruptura do mesmo; essa ruptura produz vários quadros clínicos denominados "despersonalização" deflagrados no inverso do desenvolvimento, ou seja, em estados que reconhecemos como doença mental, especificamente "despersonalização", ou doença psicossomática que a oculta.

Relacionando o self verdadeiro ou central com o padecimento psicossomático, Winnicott (1983) ressalta que o self central poderia ser compreendido como o potencial herdado em que a criança vivencia a continuidade da existência e obtendo ao seu modo e em seu passo uma realidade psíquica pessoal e o esquema corporal.

Winnicott (1983) destaca o isolamento desse self verdadeiro como um aspecto da saúde; enfatiza que qualquer ameaça a esse isolamento do self central consiste em uma ansiedade maior nessa fase precoce e que as defesas da infância mais precoce derivaram de erros de cuidado materno para evitar irritações que poderiam perturbar esse isolamento. As irritações poderiam ser recebidas e manejadas pela organização do ego, incluídas na onipotência do lactante e sentidas como projeções. Por um lado, essa defesa pode ser vencida, ainda que a criança receba auxílio ao ego promovido pela mãe, afetando o núcleo central do ego e produzindo uma ansiedade de natureza psicótica.

A pessoa, normalmente, fica vulnerável e, se fatores externos a irritam, ocorre um novo grau de ansiedade e qualidade no ocultamento do self central. Em relação a isso, a melhor defesa é a organização de um falso self. A satisfação instintiva e as relações objetais instituem uma ameaça ao vir a ser pessoal do indivíduo (Winnicott, 1983). O autor afirma ainda que, quando a adaptação da mãe não é suficientemente boa de início, se pode esperar que o bebê morra fisicamente porque a catexia de objeto não é iniciada. A criança permanece isolada. Na prática o bebê sobrevive, entretanto sobrevive falsamente. O protesto contra ser obrigado a uma falsa existência pode ser notado desde os estágios iniciais. O quadro clínico é o de irritabilidade generalizada e distúrbios de alimentação e outras funções que podem, contudo, desaparecer clinicamente, mas apenas para ressurgir de maneira severa em fases posteriores.

Galván (2007), em consonância com Winnicott, coloca que é importante observar que um empobrecimento na integração psicossomática não engendra a continuidade do amadurecimento pessoal. Os obstáculos para a integração e a manutenção da condição de unidade trazem danos significativos ao ser humano em seu desenvolvimento e em suas possibilidades de relacionamento.

Também Maia e Pinheiro (2010) e Pinheiro (2008) concordam com a visão winnicottiana em relação ao apontamento psicossomático de um distanciamento entre soma e psique presente nas patologias e que estas trariam o sinal de uma reivindicação, de uma esperança: que não se aquiesça à separação total entre psique e soma e que se possa, com a retomada das assistências ambientais, recolocar em marcha o processo de integração psico-soma.

 

O significado do somatizar e do "psiquizar" como mensagem de unidade entre psique e soma

Ainda que Winnicott (1990) pontue que as doenças psicossomáticas são um distúrbio do desenvolvimento ocasionado por vicissitudes ambientais, elas não deixam de ser o que Freud (1915/1996) assevera sobre os sintomas neuróticos, sobre as parapraxias e sobre os sonhos: um reflexo da vida do indivíduo possuindo uma conexão com as experiências pessoais e tendo um sentido.

McDougall (2013) afirma que esse sentido é da esfera pré-simbólica; o ser humano não possui conhecimento dessa linguagem particular do corpo: quando nossas defesas costumeiras falham, somatizamos com as nossas dores psíquicas. Segundo a autora, o soma enlouquece.

Nessa direção está o pensamento de Groddeck (2011), pai da psicossomática psicanalítica, que considera uma visão totalmente fora do contexto, que pode trazer consequências graves, achar que apenas a pessoa que tem um distúrbio emocional fica doente propositadamente, pois o Isso (inconsciente), que é a essência que anima o indivíduo, que lhe dá vida, utiliza todos os meios possíveis para atingir o seu objetivo que é o de pôr a pessoa para refletir, simbolizar e experimentar suas vivências e experiências, seus sentimentos. Assim, a enfermidade, seja ela psíquica ou orgânica, é uma obra de arte do Isso que concede vazão a afetos para coagir o ser que é habitado por ele a lidar com questões próprias.

Do mesmo modo, podemos dizer que a saúde também é produzida por esse mesmo Isso, sendo consequência de reações do indivíduo frente às exigências dele. Equivalente a essa condição é a vida. Por vida compreendemos a relação harmônica com uma esfera de relacionamentos, modo de ser, condições, adversidades e sensações (Groddeck, 2011).

Outrossim, podemos afirmar que para Groddeck (2011) o funcionamento, tanto psíquico como somático (saudável ou patológico), é gerido pelo inconsciente; isso quer dizer que a estrutura psicossomática é sempre maciça, um segmento inquebrável e, devido a essa condição, não existem fenômenos puramente físicos ou puramente psicológicos, ambos são simultaneamente físicos e psicológicos, ou seja, são fenômenos psicofísicos e seus causadores químicos, biológicos, fisiológicos etc não agem somente por forças biológicas, fisiológicas, automáticas, mecânicas, acidentais etc, mas, também, por forças emocionais, subjetivas em que o Isso é o responsável, o desejoso e o regente desta orquestra chamada psicossoma.

Um estado subjetivo biforme de queixa somática - dores e fadigas e queixa psíquica, angústias - constitui a enfermidade. Vejamos a descrição de Ávila (2002, p. 187) sobre a importante característica da enfermidade de ser feita de dois componentes:

O sintoma em sua dupla face: como queixa "orgânica", "quase orgânica", "aparentemente orgânica", "psicossomática", "nervosa", "emocional", "devida ao stress" etc... Como quer que se chame. Sua outra face é de ser uma questão subjetiva. O sintoma psicossomático é, simultaneamente, uma queixa e uma questão subjetiva.

De acordo com Ávila (2002), a não indagação da pessoa sobre sua patologia, sobre seus sintomas, sobre sua vida e sua morte e a ausência de fuga desse aglomerado de significações no qual ela está inserida é caracterizada como questão subjetiva. Talvez a procura de alienação sobre sua questão subjetiva, por parte do indivíduo, seja exatamente uma peculiaridade desse sintoma. A questão subjetiva se manifesta nos atos, nos sonhos da pessoa, enunciando-se no seu estilo de vida, nas suas amizades, em seu casamento, em seus trabalhos, nos moldes que sua vida delineia. Como assevera McDougall (2013), as patologias psicossomáticas são tentativas de autocura.

Segundo Ávila (2002), faz-se necessário reconhecer a enfermidade como experiência particular, "doença é coisa pessoal", mesmo sendo configurada enquanto "entidade nosológica". É inegável que, qualquer que seja o diagnóstico, a evolução conhecida da patologia, o prognóstico e os recursos terapêuticos administrados, a pessoa, inevitavelmente, concede um processo peculiar ao seu adoecer designando sentido à sua doença, ao médico, ao tratamento e à circunstância toda. Mesmo que a medicina seja aquiescida como um conhecimento objetivo pelos processos típicos e pela evolução específica do quadro, também há inúmeras distinções particulares que não podem ser consideradas como exceções e, menos ainda, como novas condições clínicas. A enfermidade é "construída" pela pessoa, assim como o êxito ou fracasso no tratamento administrado é optado pelo indivíduo e, de certa forma, a vida ou a morte.

Assim, Freud (1910/1996) denomina de complacência somática os fundamentos orgânicos das afecções psíquicas. Em consonância com esse pensamento podemos falar em fundamentos psíquicos das patologias somáticas, ou seja, complacência psíquica.

 

Conclusão

As principais contribuições de Donald Woods Winnicott para o estudo da psicossomática estão fundamentadas no âmago das palavras empatia e confiança: a pessoa nasce com condições para se fundir em uma unidade, porém faz-se imprescindível o auxílio do ambiente, a interação necessária entre dois indivíduos, um deles já (parcialmente) inteiro, possuindo a capacidade de ajudar o outro a colocar sua tendência a amadurecer em funcionamento. Isso não se restringe apenas aos pais, se estende também aos profissionais da saúde e da educação.

A maternagem suficientemente boa faz-se indispensável para a conquista do desenvolvimento e da saúde psicossomática, mas é necessário o auxílio de profissionais da saúde e da educação para que esse acontecimento benéfico se concretize. Um desses profissionais é, muitas vezes, o profissional mais acessível e procurado por sua atuação e pela idealização que o imaginário coletivo possui dele; podemos considerá-lo o profissional protagonista na área da saúde: o médico. A ajuda do médico é sempre necessária: em algumas ocasiões, essa assistência é demandada sob a forma de suporte e orientações de pais e de indivíduos para que a pessoa em questão se desenvolva e mantenha a sua integração psicossomática em termos de relação entre soma e psique bem-sucedida e, ou sob, a forma de tratamento, porque, como já vimos, a pessoa que venha conquistar a unidade psicossomática também adoece; em outras ocasiões o auxílio médico junto com outros profissionais, como, por exemplo, professores e terapeutas, torna-se necessário porque a pessoa não teve a felicidade de ter condições fundamentais para que essa união e saúde psicossomática viesse ocorrer.

De acordo com a nossa compreensão da teoria winnicottiana e dos pensamentos de alguns outros autores da psicossomática psicanalítica, as relações iniciais saudáveis de cuidado e de proteção são o fundamento da saúde psicossomática. O indivíduo íntegro é a personificação do psicossoma. As doenças orgânicas ou psíquicas são a busca pela saúde, além de serem um reflexo da vida. A pessoa é, de certa forma, autora de saúde ou de sua patologia; é responsável pela sua história. Isso deve ser levado em conta por aqueles que desejam ajudá-la a ter autonomia para escrevê-la de maneira satisfatória.

Assim também é no ambiente escolar, a pessoa não é somente um receptor de conteúdos transmitidos pelo educador, ela é a criadora de seus pensamentos e sentimentos; necessitando de incentivos e motivações para desenvolver a sua autonomia e ser o agente de sua história. Dessa forma, o discente é também responsável pelo aprimoramento de suas habilidades e competências, pelos seus fracassos e sucessos. A eficácia do ensino suficientemente bom não depende apenas do holding do educador, mas também do desejo do educando.

 

 

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Artigo recebido em: 08/05/2019
Aprovado para publicação em: 24/05/2020

Endereço para correspondência
Gabriela Garcia Ceron
E-mail: ggarciaceron@gmail.com

 

 

*Psicóloga pela UNORP; Especialista em Educação Especial e Inclusiva pela UNIRP; Mestra em Psicologia e Saúde pela FAMERP; Poeta e Coautora dos livros: Catarses. Os alunos com falhas na subjetivação no ensino regular um olhar psicanalítico. Atualmente está se especializando em psicopedagogia institucional e clínica, neuropsicologia e psicanálise.

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