SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.52 número2Patologias sociais e a gestão ideológica do mal-estarUm lugar ético para o adulto na relação com crianças e adolescentes: Bernfeld e o para além da patologização índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

artigo

Indicadores

Compartilhar


Tempo psicanalitico

versão impressa ISSN 0101-4838versão On-line ISSN 2316-6576

Tempo psicanal. vol.52 no.2 Rio de Janeiro jul./dez. 2020

 

DOSSIÊ

 

Psicanálise e Educação em tempos de indisfarçada brutalidade

 

Psychoanalysis and Education in times of undisguised brutality

 

Psicoanálisis y educación en tiempos de brutalidad sin disfraz

 

 

Cristiana CarneiroI*; Daniela ViolaI**; Margareth DinizII***

ISociedade de Psicanálise Iracy Doyle - SPID - Brasil
IIUniversidade Federal de Ouro Preto - UFOP - Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este trabalho propõe uma reflexão sobre a importância da escuta psicanalítica dos ruídos do tempo, num momento em que os acontecimentos da pandemia ainda estão em curso, logo, em que ainda estamos numa posição de obscuridade em relação à subjetividade da época. Nesse sentido, propõe pensar a "brutalidade" - significante extraído por Freud e Mbembe das pandemias de suas épocas -, que perpassa o discurso atual, numa espécie de língua pandêmica. A partir disso, introduz a relevância do presente dossiê, como contribuição provisória de uma rede internacional de psicanalistas aos desafios atuais da interface Psicanálise e Educação.

Palavras-chave: Psicanálise, Educação, Pandemia.


ABSTRACT

This work proposes a reflection on the importance of psychoanalytic listening to the noise of the time, at a time when the events of the pandemic are still ongoing, therefore, in which we are still in a position of obscurity in relation to the subjectivity of the time. In this sense, this work proposes to think about "brutality" - signifier extracted by Freud and Mbembe from the pandemics of their times -, that runs through the current discourse, in a kind of pandemic language. From these considerations, the paper introduces the importance of this dossier, as an interim contribution of an international network of psychoanalysts to the current challenges of Psychoanalysis and Education interface.

Keywords: Psychoanalysis, Education, Pandemic.


RESUMEN

Este trabajo propone una reflexión sobre la importancia de la escucha psicoanalítica de los ruidos del tiempo, en un momento en que los eventos de la pandemia aún continúan, por tanto, en un momento en que todavía estamos en una posición de oscuridad en relación con la subjetividad del tiempo. En este sentido, propone pensar en la "brutalidad" - significante extraído por Freud y Mbembe de las pandemias de sus tiempos - que recorre el discurso actual, en una especie de lenguaje pandémico. A partir de estas consideraciones, introduce la relevancia del presente dossier, como contribución provisional de una red internacional de psicoanalistas a los desafíos actuales de la interfaz entre Psicoanálisis y Educación.

Palabras clave: Psicoanálisis, Educación, Pandemia.


 

 

Introdução: tempos brutais

Há pouco mais de 100 anos, em 26 de janeiro de 1920, numa carta muito conhecida, Freud escreve para sua mãe: "Tenho uma notícia triste para a senhora hoje. Ontem de manhã nossa querida Sofia morreu de gripe e pneumonia galopantes." (Freud, 1920-1939/1982, p. 382) O trágico acontecimento pessoal se deu em meio a uma tragédia global, a pandemia de influenza, mais conhecida como gripe espanhola, que se alastrou pelo mundo entre 1918 e 1920, matando um número insondável de pessoas1. Na carta à mãe, o comedido relato dos fatos termina com palavras de reconforto: "Espero que receba a notícia com calma; a tragédia, afinal, tem que ser aceita. Mas chorar essa menina esplêndida, cheia de vida, que era tão feliz com seu marido e seus filhos, naturalmente é permitido." (idem) No dia seguinte, num tom menos contido, escreve ao amigo Pfister: "A indisfarçada brutalidade do nosso tempo está pesando demais sobre nós. Amanhã ela deverá ser cremada, nossa pobre menina de domingo!" [...] "A perda de uma filha parece um ferimento sério e narcisístico; o que se conhece como luto provavelmente só virá depois." (Freud, 1920-1939/1982, p. 383).

Um século depois, a correspondência de Freud chega também aos destinatários de uma outra pandemia. Sabemos, pelas diversas biografias do psicanalista, o quanto essa perda o impactou. Para além dos aspectos biográficos, as sombras da "indisfarçada brutalidade" do tempo certamente recaíram sobre suas produções teóricas daquele período em diante, trazendo importantes efeitos para a Psicanálise e demonstrando a impossibilidade de um(a) psicanalista se separar, ou mesmo se esquivar, da subjetividade de sua época - efeito do real sem sentido que acomete os seres falantes num contexto sócio-histórico, precipitando-se no discurso de um tempo, sempre marcado por certas formas coletivas de sofrimento.

Não é simples, nem fácil, estar "à altura" de seu tempo, como sugere Agamben no ensaio "O que é o contemporâneo?" (2009). Esse filósofo é perspicaz ao localizar nas "trevas" do presente um ponto de miragem do real de uma época, paradoxalmente, anacrônico, descentrado, deslocado ou mesmo fora de lugar. "Pode dizer-se contemporâneo a apenas quem não se deixa cegar pelas luzes do século e consegue entrever nessas a parte da sombra, a sua íntima obscuridade." (Agamben, 2009, p. 63). Para ele, é preciso neutralizar as luzes que a época irradia "para descobrir suas trevas, seu escuro especial, que não é, no entanto, separável daquelas luzes." (p. 63). E esse escuro concerne diretamente ao sujeito que, ao não se deixar cegar pelo esplendor do novo e do atual, "recebe em pleno rosto o facho de trevas que provém do seu tempo." (p. 64). O sujeito contemporâneo é aquele que se percebe numa fratura do tempo, cavidade aonde dificilmente a luz chega, logo, tem grandes dificuldades em nomear o real que incide em seu claro instante.

É notável o fato de que Lacan também se vale do significante "trevas", muito antes de Agamben, ao abordar o real de uma época em sua solene proposição ética sobre "a obra do psicanalista", ou seja, sua práxis, à qual se chega por meio de uma "longa ascese subjetiva":

Que antes renuncie a isso, portanto, quem não conseguir alcançar em seu horizonte a subjetividade de sua época. Pois, como poderia fazer de seu ser o eixo de tantas vidas quem nada soubesse da dialética que o compromete com essas vidas num movimento simbólico. Que ele conheça bem a espiral a que o arrasta sua época na obra contínua de Babel, e que conheça sua função de intérprete na discórdia das línguas. Quanto às trevas do mundus ao redor do qual se enrosca a imensa torre, que ele deixe à visão mística a tarefa de ver elevar-se ali, sobre um bosque eterno, a serpente putrefaciente da vida. (Lacan, 1953/1998, p. 322).

Vale lembrar esse parágrafo tão citado dos Escritos em tempos pandêmicos. Sempre repetida à exaustão, talvez essa proposição nunca tenha se colocado diante da atual geração de psicanalistas com a radicalidade de agora. Lacan vai ao centro do que se trata ao relacionar a subjetividade de uma época não somente à discórdia das línguas, isto é, ao tecido discursivo que compõe o laço social contemporâneo, mas também às "trevas do mundus ao redor" de Babel, ao real brutal que perturba a vida.

E é justamente um elemento perturbador da vida que entra em cena no alvorecer de 2020. Do espaço inconcebível ao redor do discurso, surge o mais elementar dos acontecimentos: um vírus, que detona toda uma cadeia de desdobramentos sem precedentes em um século - aquele que nos separa da outra pandemia, que Freud testemunhou. O espalhamento do vírus não propaga apenas sua potência letal, transposta em números impensáveis. À parte dos campos do saber que vêm lidando com os aspectos biológicos, médicos e estatísticos do vírus, cabe aos psicanalistas lidar com um espalhamento de outra ordem, mais perceptível ao instrumento de que dispõem, a escuta. No olho do furacão em que ainda estamos - um olho cego, onde não há claridade o suficiente para que os semblantes operem com sua habitual consistência -, resta o ouvido. E o que escutamos é uma perturbação inédita no discurso, com efeitos imprevisíveis para o laço social, já percebidos, de maneira retumbante, na clínica e em suas interfaces, como a Educação.

É na clínica, na escuta de sujeitos - em sua maioria, do outro lado de uma tela ou de uma linha telefônica - que temos escutado os ruídos de uma língua nova, efeito colateral da Covid - 19, a infectar os corpos falantes. Confinados ou não em suas casas, os sujeitos estão expostos a um bombardeio de signos estranhos à Babel de Lacan, uma espécie de idioma genérico, desenraizado, asséptico. Seus signos, extraídos de um léxico esterilizado, espalham-se como o vírus aos quatro cantos do mundo, transcendendo todas as barreiras linguísticas e chegando aos corpos dos sujeitos, por vezes implacavelmente. Sars-CoV-2; OMS; CDC; PCR-RT; N95, PFF2; etc. Essas e muitas outras siglas se tornaram estranhamente frequentes na fala, rompendo barreiras de idioma, tornando-se uma língua comum, a língua da pandemia. Expressões e palavras como "máscara", "quarentena", "negacionismo", "álcool em gel", "linha de frente", "distanciamento social", "nova cepa", "insumo", "segunda onda", "resposta imunológica", "boletim epidemiológico", "Butantã", "Fiocruz", "Imperial College London", ou mesmo "Pfizer", entre tantas outras, fazem parte das conversas mais triviais. A língua da pandemia concerne a todos, não apenas aos profissionais da saúde. Acompanha-se na mídia uma profusão de números diários, as últimas produções científicas, as deliberações políticas, todos os acontecimentos provocados pelo vírus. A perspectiva geográfica varia desde os lugares, privilegiados no globo, em que a vida humana foi priorizada e as ações políticas se voltaram com seriedade para o enfrentamento da crise, até as periferias do planeta, em que à pandemia juntou-se uma política da morte - como o é a atual política de estado do governo brasileiro. Em comum na diversidade de vidas dos atuais habitantes do planeta Terra, uma língua asséptica, codificada, que pauta o empobrecimento das experiências humanas. O confinamento, em seus variados níveis, vai além das paredes dos lares e invade o espaço público, trazendo uma perturbação ao laço social da qual as transformações discursivas são sinais. É sinal, inclusive, a cacofonia dos grupos de negacionistas que se recusam a aderir às medidas restritivas, não em nome de uma "aproximação social" ou da "queda das máscaras", mas sim, como sabemos, da segregação e do obscurantismo.

Propomos abordar essas perturbações que têm afetado os corpos falantes, como testemunhamos na clínica psicanalítica e nos espaços que restaram à Educação, a partir do significante "brutalidade", escrito por Freud ao nomear a pandemia de sua época. São tempos brutais, em que as sutilezas de antes foram perdidas e o real está escancaradamente à espreita. Se até outro dia falávamos do desvelamento da inexistência do Outro, hoje, talvez, esse "abrir das cortinas" já não se aplique mais. Talvez por isso, ainda com Agamben, nossas elaborações teóricas sobre o contemporâneo e o laço social pré-covid possam parecer anacrônicas, um tanto defasadas ou, até mesmo, precipitadas. É claro que já se antevia a precariedade do tão almejado véu da "leveza", semblante desgastado de tanto uso na última década, a ponto de Lipovetsky (2016), sociólogo especialmente atento às hipertrofias do discurso, ter lhe dedicado todo um ensaio. Mas sua queda brutal foi prevista por poucos.

Na tentativa de descrição destes tempos pandêmicos, num mundo cada vez mais assombrado pelas incertezas e pela possibilidade de seu fim, Mbembe (2020) também se refere à brutalidade da época. Assim como Freud, que aponta a "indisfarçada brutalidade" de seu tempo precisamente quando está às voltas com o conceito fundamental de pulsão de morte (Freud, 1920/2020), é o filósofo da Necropolítica quem nos ensina sobre o "brutalismo" de hoje.

Para além das suas origens no movimento arquitetônico de meados do século XX, definíamos brutalismo como o processo contemporâneo "pelo qual o poder agora se constitui, se expressa, se reconfigura, age e se reproduz como força geomórfica". Isto se dá através de processos de "fraturação e fissuração", de "enxugamento das veias", de "perfuração" e "esvaziamento das substâncias orgânicas". Em suma, pelo que chamamos de "depleção". (Mbembe, 2020a, s.p., com citações de outro trabalho seu, também de 2020b)

E acrescenta: "Nós chamávamos a atenção, justificadamente, para a dimensão molecular, química e até radioativa desses processos". (idem) É a vida - e não somente a humana - que está em jogo nesse movimento. Para Mbembe (2016), a Necropolítica - talvez a mais precisa definição da política de gestão da morte destes tempos - diz respeito às formas contemporâneas que subjugam a vida ao poder da morte. Trata-se da expressão máxima da soberania, que reside, em grande medida, no poder e na capacidade de ditar quem pode viver e quem deve morrer. E é com a força de seu brutalismo que o necropoder atinge os corpos. A brutalidade das relações de poder que perpassa a gestão planetária da pandemia é a mais escancarada manifestação da Necropolítica.

É também escancarada a brutalidade do outro tempo pandêmico, cuja queda dos disfarces é apontada por Freud. Naquele contexto, os processos brutais se alastravam não apenas pela disseminação de um vírus, mas também pela propagação e pelo fortalecimento do discurso nazi-fascista, extremamente ruidoso - cujos arremedos contemporâneos são indissociáveis dos efeitos devastadores da atual pandemia. Uma das características da pulsão de morte é o silêncio de seu trabalho constante de desagregação psíquica (Freud, 1920/2020). No entanto, paradoxalmente, a brutalidade refere-se ao barulho surdo da pulsão de morte, à expressão manifesta de seu triunfo. Também hoje, na impossibilidade de nos orientarmos pelas luzes do presente, resta aos ouvidos essa antinomia, um barulho silencioso, e, muitas vezes, letal. A brutalidade é o ruído da pulsão de morte em seu triunfo, com consequências mortificantes para os corpos humanos. Estes, empobrecidos de seu acolchoamento linguístico - severamente afetado pelo distanciamento social, pela escassez dos encontros, pela perda do toque do outro, e também, decerto, pela difusão discursiva do ódio e da segregação - sucumbem a uma depleção de desejo, correlata ao desligamento psíquico que é um rastro do trabalho da pulsão de morte.

Relacionamos, por hipótese, essas formas de desligamento e de esvaziamento a uma espécie de "neutralização da linguagem", tal como Lacan (1953/1998) aponta ao fazer uma distinção entre a fala e a informação. "Por uma antinomia inversa, observa-se que, quanto mais o ofício da linguagem se neutraliza, aproximando-se da informação, mais lhe são imputadas redundâncias" (p. 300). De acordo com ele, "a função da linguagem não é informar, mas evocar. O que busco na fala é a resposta do outro. O que me constitui como sujeito é minha pergunta." (idem). Supomos que a atual neutralização da linguagem proporcionada pela pandemia - com seu idioma redundante, codificado e avesso a dialetizações - provoca uma precarização em curso no nível da fala, ocasionando graves efeitos de sofrimento psíquico e adoecimentos diversos.

Essa perturbação discursiva, indissociável das perdas libidinais decorrentes de tudo que envolve um imperativo de distanciamento entre os corpos, atinge em cheio a vida das crianças, adolescentes e jovens, distantes uns dos outros num novo formato de escola e de universidade. Atinge também os educadores e gestores escolares, assim como as famílias, que têm, todos eles, que se virar às pressas e improvisar em tempo real uma fórmula de seguir em frente com um trabalho que se torna, para muitos, cada vez mais extenuante e brutal. Diante desse estado de coisas, que se converte em urgência subjetiva generalizada - a outra face da pandemia -, as redes, comunidades e coletivos de psicanalistas não recuam e se põem a trabalho, ainda que tenham que tatear, às cegas, no olho do furacão.

 

Ainda, tempos psicanalíticos

A ideia deste dossiê, organizado pelas autoras do presente trabalho, surge, portanto, em tempos de pandemia e de anomia política, e nos convoca a pensar sobre os efeitos de uma crise civilizatória sem precedentes, gerada por tais tempos. Em razão disso, urge que repensemos nossas atividades clínicas, científicas e pedagógicas nestes momentos incertos. Reafirmamos a necessidade da presença do psicanalista por meio de espaços de fala e de escuta, de conversações, de pesquisa-intervenção, de teorização do singular, entre outros modos de trabalho, para buscar sistematizar saberes e práticas no que concerne aos sintomas educativos da infância, da adolescência e da docência, bem como aos efeitos de mal-estar surgidos da relação entre o sujeito, a política e a cultura. Frente à brutalidade da época, que debilita o desejo e esgota os corpos, apostamos, ainda, na potência de afabilidade das palavras, um quantum mínimo de delicadeza necessário a qualquer abertura alteritária e dialetização.

Nesse sentido, compartilhar parte do trabalho dos membros da rede RUEPSY (Réseau Universitaire International d'Études d'Éducation et de Psychanalyse) com a Revista Tempo Psicanalítico, da Sociedade de Psicanálise Iracy Doyle, referência nacional no âmbito da psicanálise, é congregar esforços na sustentação e diálogo da psicanálise entre os pares e os outros campos do saber.

A invenção da psicanálise não cessa de produzir efeitos na vida em sociedade, mesmo tendo sido considerada por Freud (1937/2017), relendo Kant, como ofício impossível, junto à política e à educação. Entre outros motivos, analisar, governar e educar são considerados ofícios que lidam com a palavra e, portanto, tomados pela impossibilidade de se controlar os efeitos da intervenção. Ao reconhecer esse caráter de impossibilidade e atuar como psicanalistas no campo da Educação e da Formação, e diante do nosso ato mesmo de transmissão, somos sujeitos implicados na construção do destino que nos constitui e nos faz estabelecer em rede interuniversitária e internacional.

Assim como se deram as profícuas intervenções no âmbito do evento da RUEPSY2, que reuniu seus integrantes para seu relançamento, formalizamos por meio deste Dossiê uma efetiva e substancial "problematização do real" com base nas iniciativas e intercâmbios acadêmicos de seus reconhecidos pesquisadores, clínicos e docentes. Os tempos incertos e brutais reivindicam nosso protagonismo e, com o Dossiê, teremos a chance de construir aportes para se pensar a subjetividade de nosso presente, como nos convida Lacan (1953/1998), e de contribuir para "renovar o mundo comum", como nos convoca Arendt (2007, p. 246).

Desta forma, apresentamos aos leitores/as os artigos que compõem esse dossiê. O primeiro deles, nomeado como "Um lugar ético para o adulto na relação com crianças e adolescentes: Bernfeld e o para-além da patologização", de autoria de Cristiana Carneiro (Sociedade de Psicanálise Iracy Doyle e Universidade Federal do Rio de Janeiro), Mariana Scrinzi (Universidad Autónoma de Entre Ríos - Argentina) e Perla Zelmanovich (Facultad Latinoamericana de Ciencias Sociales - FLACSO - Sede Argentina), discute a articulação entre Educação e Psicanálise a partir de Siegfried Bernfeld, fundador da Colônia Infantil de Baumgarten, uma experiência educacional de ponta na qual deu as boas-vindas aos órfãos de guerra, instituindo um espaço para além da brutalidade já vivida por eles. As autoras resgatam seu trabalho no sentido de refletir sobre o mal-estar do psicanalista e educador diante da criança ou adolescente que não corresponde ao que se espera. Advertindo-nos de que o mal-estar do adulto diante da criança e adolescente fora do esperado pode instaurar defesas autoritárias e patologizantes, Bernfeld advoga um outro lugar, ético e expectante, na relação adulto-criança. Resgatar as concepções desse pioneiro objetiva incrementar a reflexão sobre o crescente movimento de patologização no cenário contemporâneo, como destacam as autoras: O "não querer saber", marca de todo adulto, poderia, assim, abrir algumas lacunas no querer saber sobre o mal-estar e a inquietação que a criança e o adolescente não modelares nos causam. Tanto o psicanalista quanto o educador não têm certeza, nem podem prever os resultados de suas intervenções, mas somente quando o educador reconhece e aceita seus próprios limites será possível criar uma nova pedagogia, uma pedagogia dos limites contra a onipotência dos pedagogos, advertem as autoras.

O segundo artigo, "Aspectos económicos del psiquismo en pandemia. Displacer de percepción en una realidad inesperada", de autoría de Ana Bloj (Centro de Estudios Históricos del Psicoanálisis en Argentina - CEHPA), retoma textos de Freud publicados durante a Primeira Guerra Mundial e no seu pós-guerra (1915-1925) com o objetivo de abordar algumas contribuições conceituais produzidas pelo autor em meio ao referido evento. Tem o objetivo de estabelecer diálogos e tensões entre essas produções e o que tem observado, ouvido e analisado da prática clínica na modalidade virtual e no trabalho institucional transmitido em supervisões de situações clínicas por colegas que realizam suas práticas na cidade de Rosário, Argentina. Destaca especialmente as possibilidades de intervenção com meninos e meninas nesse contexto, levando em consideração o modelo econômico proposto por Freud em 1920, em seu livro "Além do princípio do prazer", exatamente um século atrás. A análise centra-se na construção de algumas hipóteses que permitem à autora pensar na conjugação desses desenvolvimentos para analisar do ponto de vista econômico os movimentos pulsionais e as barreiras psíquicas que podem ocorrer no quadro da pandemia de Covid-19. A partir da leitura da pandemia como um dano coletivo que atinge todos e cada um dos sujeitos, a autora nos convida a percorrer produções freudianas caras à reflexão destes novos tempos.

O terceiro artigo, "O ato infracional como ato anti-hamletiano de adolescentes sob condição de indignação e revolta", de Cássio Eduardo Soares Miranda (Universidade Federal do Piauí - UFPI) e Marcelo Ricardo Pereira (Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG), parte da noção de indignação e revolta, com base nas análises freudo-lacanianas de Hamlet, de Shakespeare, visando discutir a relação entre desinserção social e ato infracional de adolescentes em conflito com a lei. Para isso, remonta ao conceito de adolescência e de desorientação simbólica para analisar como esses sujeitos, à diferença do personagem shakespeariano, são impelidos a agir mediante a revolta, mesmo que seu ato possa levá-los ao pior. Por meio do caso José, concluem a discussão mostrando uma saída possível para esses adolescentes que não se reduza nem à paralisia neurótica nem ao ato não dialetizável.

Cristina M. Ronchese (Facultad de Psicología - Universidad Nacional de Rosario - Argentina) produz o quarto artigo, intitulado "El porvenir de una desilusión. Desafíos psíquicos en tiempos de pandemia", discutindo algumas particularidades da situação da pandemia e consequente confinamento, a partir de diversas dimensões, destacando sua complexidade. Na perspectiva psicanalítica destaca aspectos do impacto psíquico que ambos geram nos sujeitos e apresenta algumas posições acerca do posicionamento do analista e sua prática clínica nesse contexto.

"Tiempos de incertidumbre: ¿Nuevas soledades?" é o nome do quinto artigo. Produzido por Susana Brignoni (Universidad Autónoma de Barcelona - Espanha), mostra a prática de uma equipe de psicanalistas em Barcelona que trabalha num dispositivo de Saúde Mental, a Fundação Nou Barris para a Saúde Mental. O dispositivo apoia a articulação entre a Psicanálise e a Educação social para tratar os vários problemas que surgem em crianças e adolescentes sob tutela devido a um diagnóstico de desamparo. Explora aquilo a que chama "dom da fala", privilegiando a prática da conversa, e visa dar conta do atual momento de incerteza introduzido pela pandemia e da forma como os psicanalistas leem essa incerteza. Explora, ainda, a diferença entre isolamento e solidão, que são duas figuras-chave no momento do confinamento.

O sexto artigo do dossiê, intitulado "Educação não é sinônimo de aprendizagem: uma interlocução entre Educação, Psicanálise e Filosofia", de autoria de Kelly Cristina Brandão da Silva (Departamento de Desenvolvimento Humano e Reabilitação - Universidade Estadual de Campinas - Unicamp), discute, a partir da interface Psicanálise e Educação, em interlocução com alguns pressupostos filosóficos, sobretudo no que concerne às teorizações de Hannah Arendt e Gert Biesta, algumas hipóteses acerca da atual primazia da aprendizagem e do suposto protagonismo do aluno, com o consequente apagamento do lugar do professor e do ensino. Com o reducionismo do direito constitucional à educação em direito à aprendizagem, sob a influência de organizações internacionais, como a OCDE, marcadas por uma lógica neoliberal, algumas políticas públicas obedecem à lógica de eficiência do mundo empresarial. Com metas mensuráveis, focadas em resultados, a complexidade do fenômeno educativo se reduz à performance e ao desempenho. Nessa perspectiva, quaisquer percalços na empreitada educativa são entendidos como um problema de gestão. Entretanto, como uma tarefa eminentemente humana, a Educação convive, paradoxalmente, com a impossibilidade de sua realização, visto que nunca alcança a totalidade da sua intenção, sempre não-toda. A tensão estrutural relativa ao enigmático (des)encontro entre o novo e o instituído obriga a Educação a lidar continuamente com o mal-estar. A autora defende em seu artigo que a educação seja vista como um bem comum que se efetiva em um campo eminentemente relacional e, portanto, tenso, imprevisível, artesanal, avesso a determinações generalistas e, seguindo a tradição freudiana, impossível.

No último artigo do presente dossiê, as autoras Rose Gurski, Stéphanie Strzykalski e Cláudia Maria Perrone, todas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), apresentam uma discussão importante sobre a adolescência contemporânea. Objetivando aprofundar e visibilizar aspectos clínicos e educacionais que envolvem a adolescência hoje, apontam questões de ordem ético-política, social e individual. Retomando o episódio do Massacre de Suzano, buscam problematizar o aumento preocupante do mal-estar juvenil de nosso tempo, revelado por crescentes índices de depressão e suicídio de jovens brasileiros.

Por fim, convidamos o leitor e a leitora a percorrer esses trabalhos, acreditando no potencial da psicanálise como discurso de resistência ante à propagação de discursos de ódio e de apagamento do subjetivo.

 

 

Referências

Arendt, H. (2007). Entre o passado e o futuro. São Paulo, SP: Perspectiva. 2007.         [ Links ]

Agamben, G. (2009). O que é o Contemporâneo? e outros ensaios. (V. N. Honesko, trad.) Chapecó, SC: Argos. 2009.         [ Links ]

Freud, S. (1873-1939/1982). Correspondência de amor e outras cartas (Edição preparada por Ernst L. Freud) (A. Santos, trad.). Rio de Janeiro: Nova Fronteira. 1982.         [ Links ]

Freud, S. (1920/2020). Além do princípio do prazer. S. Freud. Além do princípio de prazer [Jenseits des Lustprinzips] - Edição crítica Bilingue (Obras incompletas de Sigmund Freud). (M. Moraes, trad.). Belo Horizonte: Autêntica Editora. 2020.         [ Links ]

Freud, S. (1937/2017). A análise finita e a infinita. S. Freud. Fundamentos da clínica psicanalítica (Obras incompletas de Sigmund Freud). (C. Dornbusch, trad.). Belo Horizonte: Autêntica Editora. 2017.         [ Links ]

Lacan, J. (1953/1998). Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. pp. 238-324. 1998.         [ Links ]

Lipovetsky, G. (2016). Da leveza: rumo a uma civilização sem peso. (I. Lopes, trad.) Barueri, SP: Manole. 2016.         [ Links ]

Mbembe, A. (2016). Necropolítica. Arte & Ensaios. Revista do PPGAV- EBA- UFRJ. n. 32. dez. 2016.         [ Links ]

Mbembe, A. (2020a). O direito universal à respiração. (A. Braga, trad.). Publicação digital da n-1edições. https://www.n-1edicoes.org/textos/53        [ Links ]

Mbembe, A. (2020b). Brutalisme. Paris: La Decouverte.         [ Links ]

Taubenberger, J, Morens, D. (2006). Influenza: the mother of all pandemics. Emerging Infectious Diseases. 12(1): 15-22. doi: 10.3201/eid1201.050979        [ Links ]

 

Endereço para correspondência
Cristiana Carneiro
E-mail: cristianacarneiro13@gmail.com
Daniela Viola
E-mail: daniela.dutraviola@gmail.com
Margareth Diniz
E-mail: dinizmargareth@gmail.com

 

 

*Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ - Brasil. Coordenadora do Núcleo Interdisciplinar de Pesquisa e Intercâmbio para a Infância e Adolescência Contemporâneas - NIPIAC; Coordenadora do GT da ANPEPP - Psicanálise e Educação. Membro da Sociedade de Psicanálise Iracy Doyle. Membro da Rede INFEIES e RUEPSY.
**Psicanalista. Doutora em Psicologia pela UFMG, com período de estágio doutoral na Université Paris 8. Pós-doutorado na PUC Minas. Membro do LEPSI Minas e da RUEPSY.
***Psicanalista. Professora no Programa de Pós-graduação em Educação e em Direito da Universidade Federal de Ouro Preto - UFOP - Brasil. Membro do LEPSI Minas e da RUEPSY.
1Estima-se que morreram entre 17 e 100 milhões de pessoas em decorrência da pandemia de gripe espanhola. (Taubenberger, Morens, 2006).
2O encontro aconteceu na ocasião do 13º Colóquio Internacional do LEPSI, na cidade de Ouro Preto, em novembro de 2019.

Creative Commons License Todo o conteúdo deste periódico, exceto onde está identificado, está licenciado sob uma Licença Creative Commons