Serviços Personalizados
Journal
artigo
Indicadores
Compartilhar
Tempo psicanalitico
versão impressa ISSN 0101-4838versão On-line ISSN 2316-6576
Tempo psicanal. vol.53 no.1 Rio de Janeiro jan./jun. 2021
ARTIGOS
Neurose obsessiva: a construção de uma psiconeurose
Obsessive neurosis: the construction of psychoneurosis
Névrose obsessive: la construction de la psychonévrose
Stephanie Brum*
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro - PUC-Rio - Brasil
RESUMO
A neurose obsessiva é uma das duas psiconeuroses de defesa descritas por Freud e sobre as quais se baseou fundamentalmente a construção e desenvolvimento de seu modelo de aparelho psíquico. No presente artigo, nos propomos promover um estudo sobre a neurose obsessiva, sua dinâmica e mecanismos de defesa. Para tal, desenvolveremos uma revisão de literatura sobre o tema tomando como ponto de partida a consideração angular de Castel (2011), segundo a qual teria sido a neurose obsessiva e não a histeria a responsável pelo surgimento das bases da psicanálise e da construção da ideia de um aparelho psíquico. A fim de circunscrever a ideia proposta por Castel, nos dedicaremos prioritariamente a um percurso sobre a construção da neurose obsessiva pautados nas proposições freudianas. Seguiremos a linha temporal buscando lançar luz sobre o desenvolvimento de uma forma de organização própria a essa neurose e sua dinâmica do desejo em pauta. Por fim, apresentaremos as considerações de Abraham a partir das quais desenvolveremos a ideia de um movimento de regressão libidinal posta em questão nesses casos, e não uma lógica de fixação a um estágio específico do desenvolvimento libidinal.
Palavras-chave: Neurose obsessiva, desejo, regressão, mecanismos de defesa, libido.
ABSTRACT
Obsessive neurosis is one of the two defense psychoneuroses described by Freud and on which the construction and development of his model of psychic apparatus was fundamentally based. In this article, we propose to promote a study on obsessional neurosis, its dynamics and defense mechanisms. To this end, we will develop a literature review on the subject taking Castel's (2011) angular consideration as a starting point, according to which it was obsessive neurosis and not hysteria that was responsible for the emergence of the bases of psychoanalysis and the construction of the idea of a psychic apparatus. In order to circumscribe the idea proposed by Castel, we will dedicate ourselves primarily to a journey on the construction of obsessional neurosis based on Freudian propositions. We will follow the timeline seeking to shed light on the development of a form of organization specific to this neurosis and its dynamics of desire on the agenda. Finally, we will present Abraham's considerations from which we will develop the idea of a libidinal regression movement in question in these cases and not a logic of fixation to a specific stage of libidinal development.
Keywords: Obsessive neurosis, wish, regression, mechanisms of defense, libido.
RÉSUMÉ
La névrose obsessionnelle est l'une des deux psychonévroses de défense décrites par Freud et sur lesquelles reposait fondamentalement la construction et le développement de son modèle d'appareil psychique. Dans cet article, nous proposons de promouvoir une étude sur la névrose obsessionnelle, sa dynamique et ses mécanismes de défense. Pour cela, nous développerons une revue de la littérature sur le sujet en prenant comme point de départ la considération angulaire de Castel (2011), selon laquelle c'est la névrose obsessionnelle et non l'hystérie qui a été responsable de l'émergence des bases de la psychanalyse et de la construction de l'idée d'un appareil psychique. Afin de circonscrire l'idée proposée par Castel, nous nous consacrerons principalement à un voyage sur la construction de la névrose obsessionnelle à partir de propositions freudiennes. Nous suivrons la chronologie cherchant à éclairer le développement d'une forme d'organisation propre à cette névrose et sa dynamique du désir à l'ordre du jour. Enfin, nous présenterons les considérations d'Abraham à partir desquelles nous développerons l'idée d'un mouvement de régression libidinale en question dans ces cas et non une logique de fixation à un stade spécifique du développement libidinal.
Mots-clés: Névrose obsessionnelle, souhait, régression, mécanismes de défense, libido.
Introdução
Ao voltarmo-nos para a obra freudiana, nos deparamos com todo um arcabouço clínico e teórico que se ergueu sobre a problemática da histeria. Decerto o próprio surgimento da psicanálise deve muito aos questionamentos de Freud suscitados por seu período ao lado de Charcot no hospital Salpêtrière, no qual se dedicou ao estudo da prática da hipnose. Contudo com o desenvolvimento dessa disciplina para um campo mais amplo no qual o sintoma ganha em si um lugar de reconhecimento ao ser-lhe atribuído um sentido, a psicanálise se desenvolve na criação de um modelo de aparelho psíquico e de uma metapsicologia que lhe é própria.
Apesar dos créditos iniciais concedidos à histeria, Castel (2011) atribui grande parte dos louros do desenvolvimento da teoria psicanalítica à criação da neurose obsessiva por Freud. Afinal, teria sido a partir da formulação dessa psiconeurose que o pai da psicanálise conseguiu encontrar as bases para a proposição de seu modelo de aparelho psíquico (Castel, 2011). Tal ponto concede ao estudo da neurose obsessiva, sua dinâmica psíquica e mecanismos de defesa predominantes um lugar de destaque no que tange ao entendimento do funcionamento do próprio aparelho psíquico.
Desse modo, partiremos de alguns pontos apresentados por Castel na defesa de sua tese para que, em seguida, possamos adentrar no estudo dessa psiconeurose, lançando luz sobre o desenvolvimento das principais modificações sofridas ao longo da obra freudiana. Essa formulação nos convida a um percurso frutífero em torno da circunscrição da neurose obsessiva, o que nos permitirá entender a tese central de Castel e, consequentemente, alguns pontos fundamentais na compreensão do funcionamento do psiquismo.
O florescer de um modelo de aparelho psíquico
Podemos atribuir o surgimento da categoria de neurose obsessiva, formulado por Freud, a uma série de circunstâncias próprias de seu contexto histórico e cultural. Embora o terreno para a articulação entre compulsões e obsessões sob o reinado de uma única patologia fosse fértil, foi Freud o responsável pela organização daquilo que até então era tido como um conjunto de sintomas desordenados, em uma dinâmica psíquica própria (Castel, 2011).
Na Alemanha e na Áustria do século XIX, questões referentes aos sonhos e enigmas da sexualidade ganhavam grande ênfase. Isso se devia, em parte, às diferenças suscitadas pelo contraponto entre protestantismo e catolicismo, a ideia de uma individualidade subjetiva e a noção de intimidade. A partir desse contexto, o pai da psicanálise teria observado uma série de atos dotados de sentido e formas de expressão de uma subjetividade particular pela qual o desenvolvimento de sua clínica lhe permitiu articular tais ações a toda uma vivência fantasmática vinculada a uma sexualidade reprimida. A essas formações que denunciam uma vida interior à qual o sujeito não poderia ter acesso senão de forma indireta, Castel (2011) relaciona a ideia de certo "constrangimento interior", o qual, para o autor, limitar-se-ia inicialmente ao campo da ação. Esse movimento se configura a partir da presença de uma limitação interna - um constrangimento interno - que se opõe aos atos do indivíduo, freando e distorcendo seu impulso inicial, acarretando uma mudança de curso da ação e paralisado o sujeito. É importante termos em mente que os termos obsessões - enquanto referência a pensamentos que assolam o sujeito - e compulsões - enquanto uma série de atos autoimpostos e repetitivos - são relativamente recentes. Sendo ambos derivados dessa ideia de um constrangimento interior à ação, a construção desses conceitos é proveniente de uma historicidade muito anterior.
Castel (2011) afirma que a restrição ao agir seria algo inerente ao próprio ato uma vez que não seria possível pensarmos uma ação que não carregue consigo certa ressalva. Nesse ponto, Castel afirma também a importância de o sujeito sentir-se agente de seus atos e propositor de seu discurso, o que viria a requerer certa superação dessas resistências interiores e autolocalização enquanto agente de seus atos. Tal ponto implicaria um movimento refratário em decorrência da realização da ação, o que, por outro lado, desencadearia tanto certo sofrimento quanto um deixar-se afetar pelas consequências de seu agir. Ou seja, a custa do agir estaria referida a uma apropriação da intencionalidade de sua ação e assunção da responsabilidade sobre esta. "Rien ne se fait tout à fait sans angoisse, sans anticipation d'un regret ou d'un remords, sans l'inquiétude de ne pas pouvoir reprendre son action ni revenir au statu quo ante, une fois qu'on l'a entreprise"1 (Castel, 2011, p. 18). É justamente esse papel do agir no que tange à apropriação de si que faz com que esta se coloque como fruto da condição humana em si. Nesse ponto, nos deparamos com o supracitado lugar conferido ao individualismo nessa limitação do agir.
O surgimento de uma subjetividade individualista lança o sujeito em um terreno de responsabilização por seus atos, tornando-o foco de uma pressão social direcionada tanto a seus atos quanto às intenções conferidas a estes. Aqui, a religião ganha espaço como a propositora de uma moralidade que cola o constrangimento da ação ao coração da problemática da existência. Esse movimento se dá na medida em que é a partir da religião que o movimento de regulação não necessitaria de um controle externo a fim de circunscrever os atos e intenções do indivíduo, estes seriam internamente vigiados e regulados. É a partir dessa regulação autorrealizada proveniente da aquisição de um cuidado moral instituído que passa a habitar a esfera psíquica que nos deparamos com o início de uma consciência moral. Esse percurso acarreta um desenvolvimento da experiência de si, assim como aprofundamento e multiplicação de maneiras de se afetar por suas ações. Embora nos últimos anos possamos pensar em um afastamento progressivo da religião, Castel (2011) afirma que não podemos deixar de pensar nos efeitos psíquicos dessa dinâmica já constituída; afinal, as barreiras propositoras da moralidade promotora de conflito já teria se deslocado para uma série de objetos e dinâmicas, não se restringindo à lei potencial de uma divindade reguladora.
Outro ponto importante ao qual devemos atentar refere-se à localização do estado de dúvida enquanto referido a uma vertente afetiva. Nesse ponto nos vemos diante de impossibilidade de estabelecer uma continuidade entre emoção, intelecto e ação, uma vez que a dúvida passa a ser concebida como um obstáculo radical à ação, conduzindo à abolição das reações impulsivas. Nesse ponto, Castel (2011) acrescenta ainda que, a partir da concepção de Krafft-Ebing, o cérebro seria o ponto de ligação entre a excitação sensorial e a emoção, gerando efeitos paradoxais da lei de contraste da mente cansada. Por um lado, temos que essas considerações lançam as obsessões em um lugar de previsibilidade. Por outro, as obsessões passam a ser referidas a representações intelectuais de sentimentos e desejos. A argumentação apresentada por Castel (2011) nos apresentam uma nosologia das obsessões como não referidas a um momento histórico específico, ao invés disso como provenientes de uma série de construções e influências que deixariam suas marcas na vida mental. Seguindo essa linha, Castel (2011) aproxima as obsessões e pequenas fobias aos sonhos, propondo que essas formações - dadas as especificidades de cada uma - seriam universais. Dessa forma, não se restringiriam a um meio cultural específico, mas à própria dinâmica humana. Tal ponto suscita a afirmação construída pelo autor de que é a partir da aproximação traçada entre os sonhos e as obsessões que se dá a elaboração da grande proposição freudiana de um modelo de aparelho psíquico dotado de uma dinâmica própria.
Um dos pontos fundamentais da doutrina freudiana que contribuiu para a construção da neurose obsessiva seria a separação da neurastenia em dois complexos de sintomas distintos. De um lado teríamos as neurose de angústia e de outro as obsessões e fobias. Essa diferenciação se deve à consideração de que as verdadeiras obsessões para Freud carregam em si afetos outros que não a angústia, trazendo à cena também a dúvida, o remorso e a culpa por exemplo. Estes afetos seriam desencadeados principalmente pela tensão sexual provocada por uma limitação interna. E aqui nos vemos diante de um entrelaçamento entre um constrangimento interior e a sexualidade. Desse modo, o trabalho das obsessões consiste em forjar substitutos para os objetos suscitadores do afeto promotor de tensão a fim de poupar o sujeito da incidência deles. Já as fobias ignorariam esses substitutos em sua relação com a neurose de angústia. Ao contrário, o que condiciona o afeto na verdadeira obsessão é a cena sexual que inspira o início da censura, cólera ou remorso. Desse modo, podemos pensar em uma relação entre fobia e obsessão, na medida em que, se tomarmos como ponto de referência as antecipações próprias da fobia, na qual a angústia é proveniente do reencontro com o objeto vinculado ao afeto inicial ou realização de um ato que conduza a ele, podemos facilmente ser direcionados ao conteúdo mental de uma obsessão. De maneira recíproca, a obsessão apresenta uma marca imediatamente fóbica ao encontrar o objeto promotor de angústia.
É a partir do entrelaçamento entre a dinâmica por trás das obsessões e a formulação da ideia de censura proposta na neurose obsessiva que se torna possível ao pai da psicanálise relacionar obsessões e compulsões sob uma unidade sistemática, historicamente estável e aceitável psicologicamente (Castel, 2011). Assim, ao articular obsessões e compulsões, Freud teria oferecido meios definitivos de restringir a proliferação excêntrica do termo Zwang (compulsão) a uma série de sintomas reunidos com o fim de constituir, mais que uma síndrome, uma dinâmica psíquica e mecanismos que lhe são específicos. Logo, é com Freud que a leitura das obsessões ganha um caráter preciso, com intencionalidade e profundidade e tendo por base a relação da sintomatologia das obsessões. A compulsão torna-se uma forma de agir que denuncia um impulso à ação e a inibição deste. Afinal, a partir dessa modalidade de agir somos capazes de nos deparar com o próprio desejo do sujeito e a espessura afetiva de sua subjetividade. Nesse contexto, as compulsões tornam-se formações defensivas atuando frente à incidência das obsessões. Desse modo, a formulação da categoria de neurose obsessiva é atribuída a Freud na medida em que o autor foi capaz de propor toda uma dinâmica e mecanismos que lhe são específicos. Assim, se pensarmos na neurose obsessiva dentro da obra freudiana, vemos que esta passou por inúmeras alterações no que tange a sua formação. No entanto, um ponto que parece constante ao longo dos anos é a relação entre obsessão e compulsão. As ideias obsessivas aparecem como pensamentos angustiantes para o sujeito dos quais ele não consegue se livrar. A partir daí haveria então o surgimento de uma ação que seria realizada de forma compulsiva como tentativa de defesa contra as obsessões que assolam o sujeito (Freud, 1907/2015; 1909/2013; Green, 1967/2005). Essa ação seria também dotada de significado uma vez que seria a partir dela que o sujeito reviveria no ato o que foi recalcado.
Segundo Castel (2011), a teoria psicanalítica seria fruto de todo esse contexto que florescia na Alemanha e a partir do qual Freud teria integrado as ideias referentes às fobias, às obsessões e à angústia e formulado sua técnica psicanalítica. Assim, a psicanálise poderia ser situada como um ponto de vista independente no panorama histórico das obsessões. "Se détachant du contexte historique qui lui avait donné naissance, la psychanalyse force alors plutôt l'époque à se situer par rapport à elle"2 (Castel, 2011, p. 392). Logo, é com Freud que a leitura das obsessões ganha um caráter preciso, com intencionalidade e profundidade, tendo por base a relação da sintomatologia das compulsões. Nessa linha, Castel (2011) aponta que teria sido a neurose obsessiva, e não a histeria, a inspiração de Freud para a proposição de seu modelo de aparelho e dinâmicas psíquicas, nos quais a própria dinâmica do desejo, como podemos pensar, se espelharia, por exemplo no movimento de deslocamento constante - mecanismo próprio dessa psiconeurose.
Um olhar inicial a partir da teoria da sedução
Não é novidade que em meio às suas primeiras considerações sobre as formas de adoecimentos psíquicos, Freud acreditava que a origem destes se encontraria remetida a uma raiz traumática. Dessa forma, o pai da psicanálise propôs a ideia de um trauma psíquico precoce que não acessível à consciência do sujeito em um primeiro momento. Esse evento traumático seria de ordem sexual e remetido a um período infantil do desenvolvimento, sendo este ainda desprovido de sexualidade (Freud, 1896/1990). A teoria da sedução foi elaborada em decorrência de evidências clínicas a fim de explicar a problemática dos sintomas psiconeuróticos. A importância de sua elaboração se encontra em sua construção enquanto uma "tentativa muito elaborada para explicar o mecanismo do recalque na sua origem" (Laplanche, & Pontalis, 1982/2012, p. 469).
A teoria da sedução de Freud foi pautada na ideia de que as psiconeuroses seriam formas de expressão próprias de um sujeito vítima de um trauma sexual precoce, dotado de dois tempos. Em um primeiro momento, a criança - ainda não dotada de uma vivência sexualizada da experiência - seria vítima de um abuso sexual. No entanto, como o infante ainda não se encontra inserido no registro do sexual, a experiência não provoca nele nenhuma resposta ou eco em outras representações também sexuais. Por isso é dito que o evento é vivenciado passivamente, pois se trata de um registro no qual o sujeito ainda não se encontra inserido.
Com o advento da puberdade e a ocorrência de alguma experiência sexual atual, esse sujeito - adentrando agora o terreno da sexualidade - é remetido à experiência de abuso. Tal retorno ao momento traumático faz com que o ocorrido na infância seja atualizado a partir de um olhar sexualizado, atribuindo ao evento uma dimensão erótica que o sujeito não possuía no quando de sua experiência. O indivíduo, tomado pela culpa e pela vergonha, próprias de alguém que seduziu uma figura proibida, sofre uma cisão entre a atividade mental consciente e a inconsciente, que seria denominada de recalque (Freud, 1915/2010). Temos que, a partir da divisão psíquica provocada pela incidência do evento traumático, entrará em cena um mecanismo de defesa que buscará manter longe da consciência o ocorrido - pelo qual a criança acredita ter sido responsável. No entanto, esse movimento defensivo não apresenta êxito total e, assim, o que foi cindido insiste em retornar à consciência, agora sob a forma de sintoma.
Já nesse momento inicial da obra freudiana nos deparamos com a positividade atribuída aos sintomas na medida em que estes seriam dotados de sentido. Tal ponto lança o sintoma no lugar de narrador da história daquele indivíduo em particular. "Freud deu ao sintoma um caráter histórico através de um peculiar manejo do tempo segundo o qual o passado está de certa forma na dependência do futuro" (Barros, 2012, p. 23). Tal consideração já está presente em "Estudos sobre a histeria" (Breuer, & Freud -1895/2016, p. 20) texto no qual Freud afirma que "[...] com muita frequência são acontecimentos da infância que produziram um fenômeno patológico de maior ou menor gravidade, por todos os anos subsequentes".
Sem mais delongas, retornaremos agora à teoria da sedução. Naquele período inicial, o adoecimento psíquico se daria do seguinte modo: 1) a criança é vitima de uma sedução que se configura como uma experiência real de abuso sexual. No entanto, esta é vivenciada com prazer pelo infante. Esse evento deixa uma marca psíquica, ou seja, um signo perceptivo, o qual o sujeito ainda não poderia remeter ao registro da sexualidade por não se encontrar inserido nele (cena I); 2) com o advento da puberdade e a inserção desse indivíduo no registro da sexualidade, o sujeito se depara com um segundo evento (cena II), que o remete a essa experiência de abuso na infância; 3) a cena II é associada à cena I, lhe conferindo um caráter sexual que não possuía quando ocorreu. Devido a uma relação entre a cena I e a cena II, a cena I é interpretada nesse segundo momento agora sob o olhar de um sujeito sexualizado que confere à cena I um caráter sexual que ela não possuía no momento do ocorrido. Assim, o traumático aqui seria o efeito da cena II sobre a cena I, que culminaria no retorno do recalcado sob a forma de sintoma. Nesse contexto, o que justifica o problema da escolha da neurose é que diante do advento da cena II, neurose obsessiva e histeria se configurariam de forma diferente, tendo também afetos distintos como motor do processo de recalcamento.
Na histeria, após a associação entre a sedução sofrida na infância e o conteúdo sexualizado da adolescência, a fantasia histérica se constitui a partir da atribuição de responsabilidade, o que confere à cena primária um sentimento de desprazer e passividade. Na histeria, o sujeito se apropria desse lugar de passividade, e o afeto desprazeroso é direcionado ao corpo sob a forma de conversão histérica. O corpo, inserido nessa lógica fantasmática, é tomado como forma de representação de um ocorrido que não pode ser recordado através do processo de rememoração.
No que tange a nossas considerações sobre a neurose obsessiva, nesta a fantasia se constitui a partir de uma saída do lugar de seduzido para sedutor. Ou seja, embora a cena primária do obsessivo seja dotada de desprazer, ela seria de certa forma encoberta por uma cena posterior, que seria associada à cena primária na qual a criança, agora mais velha, atribui à experiência de ordem sexual um sentimento de prazer, assumindo assim um lugar de atividade que associa o prazer atual a um desprazer inicial. Podemos inferir que, devido a esse lugar de atividade no qual o prazer se encontra vinculado a um desprazer inicial, ocorre a separação desse afeto de suas representações de origem, o que não resultaria no esquecimento do evento em si, mas na retirada do componente afetivo que seria fonte de conflito desse ocorrido. O afeto seria então deslocado para outros representantes análogos que não fossem fonte de conflito.
Dessa forma, a neurose obsessiva seria composta então por uma complexa teia temporal na qual, apesar de contar com uma cena secundária que expressa sua atividade e prazer relacionados, estaria vinculada a uma cena anterior cuja questão central continua referida à passividade e desprazer vivenciados. Ou seja, apesar da mudança de uma posição passiva para uma posição ativa, ambas as cenas estariam vinculadas na cadeia associativa. Tendo isso em vista, o que levaria ao recalque específico dessa neurose seria o fato de a experiência de prazer se pautar em uma vivência anterior de desprazer. Dessa forma, podemos pensar que a neurose obsessiva teria como fundo uma configuração histérica, devido à sua posição de subordinação primária a esta. Green (1964/2005) considera que, embora a neurose obsessiva não apresente a possibilidade de conversão do afeto, é justamente a partir da problemática inerente ao destino dessa ideia, que não pôde ser liquidada, que Freud observa a presença de "[...] tendências para a multiplicação das defesas e para a criação de novos sintomas num sentido evolutivo" (Green, 1964/2005, p. 173).
Outra distinção importante entre essas duas psiconeuroses foi feita em 1896, no "Manuscrito K", texto no qual Freud aponta que, enquanto a histeria seria fruto de um conflito, a neurose obsessiva teria como centro uma culpabilização. Podemos remeter tal distinção ao par prazer-desprazer relacionado à passividade-atividade entendidos como o esquema-chave para o adoecimento neurótico. Tendo em vista as considerações apresentadas no "Manuscrito K", Castel (2011) aponta que, nesse texto, Freud considera dois tipos diferentes de neurose obsessiva. No primeiro tipo seria enfatizada a lembrança da cena primária, fruto de uma deformação na qual o que estaria em evidência seriam os processos de substituição e disfarce dessa cena. No segundo tipo, a ênfase se encontraria no movimento de autoacusação. Segundo o autor, a separação em duas categorias distintas de neurose obsessiva nos possibilitaria compreender por que em um momento posterior essa acusação daria lugar a uma angústia decorrente de um afeto desligado de representação, podendo se transformar em uma enorme gama de sentimentos ou sintomas. "Essa dosagem entre esquecimento e lembrança é bem característica da neurose obsessiva: o sujeito se lembra de ter cometido o ato, mas não se reconhece propriamente como seu autor" (Barros, 2012, p. 34).
Em 1896, Freud apresenta mais algumas contribuições ao lugar de atividade sobre as vivências sexuais conferidas à neurose obsessiva. Nesse sentido, o pai da psicanálise afirma que as ideias obsessivas presentes nesta neurose possuem o caráter de autoacusação que denuncia algum ato sexual praticado com prazer na infância. Em um movimento de defesa bem sucedido sintomas emergem a fim de substituir a autoacusação. Aqui, teríamos a conscienciosidade, a vergonha e a autodesconfiança como marca deste desconforto interno proveniente de um prazer experienciado anteriormente e que agora ganha o caráter de proibido. Uma marca dos movimentos defensivos freudianos é que estes são sempre fadados ao fracasso, uma vez que algo do recalcado sempre escapa a censura, mesmo que sob a ordenação de uma formação de compromisso. E o mesmo acontece aqui. Nesse contexto, as obsessões surgem como marca de uma formação defensiva primária fonte do processo de recalcamento. Além destas formas de expressão sintomática, a neurose obsessiva conta com uma defesa secundária na tentativa de afastas os derivados do recalcamento, a estas formações estariam referidas as ações compulsivas. Nesse sentido teríamos o processo de recalcamento enquanto defesa primária o qual, diante de suas falhas, desencadearia os pensamentos obsessivos e os atos compulsivos na tentativa de afastar o sujeito do objeto primário do conflito.
Após tecermos os fios principais do panorama apresentado até o momento, podemos perceber que o papel conferido à separação entre afetos e representações tira a neurose obsessiva do hall de um adoecimento de cunho moral. E graças às constatações freudianas, a consciência moral passa a ser um motivo entre vários para o recalcamento ao promover um conflito entre um desejo inconsciente e uma limitação a este. Esta ideia conflitual seria a promotora de um descompasso na economia do prazer e do desprazer. Este ponto lança o adoecer psíquico em um lugar diretamente ligado a questões referentes à economia psíquica (Freud, 1895/2006).
Tendo isso em vista, na neurose obsessiva se formaria - em um primeiro momento - um "contrassintoma" original, o qual traria consigo um sentimento de culpa dissociado de representação, ou seja, sem conteúdo. Um ponto importante a ser ressaltado, é que, devido ao mecanismo que separa as representações dos afetos e a importância conferida à segunda cena na neurose obsessiva, esta não é tratada como um não ocorrido. Ao invés disso, o que é negado são as representações para as quais o afeto e tudo que dele se aproxima é deslocado. Dessa forma se dá o desenvolvimento de defesas secundárias a partir das quais os substitutos do que não pode ser lembrado, sentido ou feito remontam ao recalque primordial para o surgimento dessa neurose. Nesse sentido, a existência de uma ideia que será passível de sofrer modificações enquanto o afeto atrelado anteriormente a ela permanece imutável é um ponto ressaltado por Green (1964/2005) como traço dominante para a caracterização da neurose obsessiva. Mas é claro que devemos ter em mente que, a partir do caminho percorrido pelo afeto ao se deslocar entre as representações, seria possível retornar à representação original uma vez que tal afeto se encontraria sempre secretamente orientado para o foco do recalque primitivo. Tal concepção sobre a gênese das psiconeuroses só sofreu modificações diante da proposição de uma teoria da fantasia em 1900 e de uma sexualidade infantil em 1905.
Mudanças promovidas pelo advento da sexualidade infantil
Com a publicação de "A interpretação dos sonhos" em 1900, fica clara a mudança de Freud sobre o ponto de vista da sua neurótica. Agora, não seriam mais os traumas sexuais reais que justificariam o movimento de defesa que apresentariam como efeito os sintomas psíquicos próprios da neurose, estes seriam fruto de um conteúdo fantasmático proveniente de uma realidade psíquica. Embora aqui a problemática ainda esteja remetida à dinâmica da sexualidade, é apenas em 1905 que esta passa a dizer respeito a uma sexualidade infantil. É somente a partir de "Três ensaios sobre a teoria da sexualidade" (1905/2016) que é posta em questão a capacidade das crianças de fantasiar acerca de cenas e conteúdo da ordem do sexual como algo próprio do desenvolvimento psíquico pré-genital. Nesse sentido, a proposição de uma sexualidade infantil teria por base um corpo composto por zonas erógenas, ou seja, o desenvolvimento da libido se encontraria ancorado particularmente em zonas distintas em cada fase do desenvolvimento pré-genital. Com o passar dos anos e o desenvolvimento de sua teoria, Freud considera que cada forma de adoecimento psíquico estaria vinculada à fixação da libido a uma fase específica do desenvolvimento. Essa fixação da libido ditaria não apenas a zona erógena associada, mas também a forma através da qual o prazer é alcançado a partir dos diferentes modos de relação objetal, próprias de cada fase do desenvolvimento (Abraham, 1965/1970).
Tendo em vista tais considerações, o neurótico obsessivo apresentaria uma fixação da libido na fase anal. Os sujeitos remetidos a essa fase se relacionariam com o objeto de forma parcial e ambivalente. As pulsões anais em vigor remetem o sujeito a sua antiga relação com o excremento, não mais a uma relação de incorporação do objeto (como na fase oral), mas a uma tentativa de domínio do objeto já reconhecido como exterior (Abraham, 1965/1970). Dessa forma, à fase anal estaria referido o movimento de controle dos esfíncteres que se encontraria relacionado ao estado de onipotência, ponto importante na dinâmica obsessiva. Da mesma forma, o movimento de eliminação dos conteúdos internos a partir das fezes relaciona-se ao movimento de agressão posto fantasmaticamente na ambivalência do obsessivo.
Por isso o sujeito obsessivo seria marcado por um eterno dilema no qual nada quer perder, afundando-se assim em ruminações para, por fim, não tomar uma decisão sobre o que o atormenta, ou, como no caso de "O homem dos ratos" (Freud, 1909/2013), agir como que retirando uma pedra para em seguida pô-la novamente no mesmo lugar. Da mesma forma a ambivalência é uma forte marca dos obsessivos, que sentem de forma concomitante amor e ódio pelo objeto que se tem. É justamente nesse ponto que encontramos a culpa do obsessivo. Afinal, como se pode desejar fazer mal a um objeto tão amado? E então surgem os atos compulsivos, com a finalidade de anular tais pensamentos obsessivos que perseguem esse sujeito. Ora, eles tentam constantemente justificar seus desejos ambivalentes com relação a seus objetos de amor através do pensamento.
Principais mecanismos de defesa da neurose obsessiva
O pensamento possui nessa neurose uma importância especial, afinal a dinâmica do obsessivo é quase que exclusivamente regida pelo pensamento, o que coloca o corpo em um plano secundário. Nesse sentido, Barros (2012, p. 37) aponta que o obsessivo realiza um processo de erotização do pensamento "[...] que significa tratar o pensamento à maneira de um corpo erógeno cujo limite é a angústia". Tal processo acarreta, por exemplo, uma supervalorização dos rituais, dos desejos em forma de profecia, dos termos aparentemente descabidos e do pensamento mágico.
No discurso do obsessivo não são comuns os lapsos, sua memória não foi recalcada, o mecanismo em ação aqui é de outra ordem. Nesses pacientes, os afetos são cindidos das representações, retirando da consciência as relações entre o objeto amado e o ódio por este. O afeto gerador de conflito é então ligado a uma representação que não traga à tona seu caráter agressivo e ambivalente. Contudo, como resquício dessas relações inconscientes, emergem sentimentos como a culpa e a vergonha. Estes denunciariam a veracidade das experiências fantasmáticas obsessivas, assim como o prazer proveniente das relações de compromisso estabelecidas e a partir das quais tais desejos podem emergir na consciência.
A partir das mudanças desencadeadas pelo advento da sexualidade infantil, também é reafirmado o papel criativo da libido na formulação e veracidade conferidas ao conteúdo fantasmático. Isso se justifica na medida em que para o inconsciente não haveria diferença entre uma cena real e um conteúdo ficcional investido libidinalmente. Além disso, o espaço entre as representações substitutas promovido pelo processo de deslocamento faz com que a única constante seja a vertente afetiva. Logo, na neurose obsessiva o objeto oferecido à consciência pela representação associada à compulsão não existe verdadeiramente como um objeto exterior, que se ancora mesmo que secretamente nas representações obsessivas. Ao invés disso, ele será produto de uma criação fantasmática, o que põe em cena o surgimento de um sujeito cujo centro de gravidade não se refere mais à consciência e à vontade como formas de empoderamento de si, mas a um sujeito habitado por pulsões e fantasias. Tal mudança de paradigmas põe em xeque a autoridade do Eu. Nesse ponto, podemos identificar como germe central da formação neurótica o conflito proveniente da relação entre desejo sexual e proibição.
A separação entre os afetos e suas representações geradoras de um conflito psíquico faz com que, para o obsessivo, os rituais adquiram um caráter de "meras formalidades" (Freud, 1907/2015), muitas vezes não reconhecendo neles, de imediato, um sentido subjacente. Ao mesmo tempo, esses pacientes se veem impossibilitados de fugir à realização do cerimonial, visto que sua não realização é geradora de intenso sentimento e angústia. Mais uma vez, é importante ressaltarmos que, embora as raízes do pensamento freudiano se nutram da visão de um sujeito influenciado pela moral da religiosidade cristã, o sentimento de culpa e a angústia estão sempre presentes. Podemos atribuir a angústia em formações típicas da neurose obsessiva à impossibilidade de escoamento libidinal quando esse afeto não se encontra vinculado a nenhuma representação não conflituosa. Da mesma forma, localizamos o sentimento de desprazer do obsessivo não apenas nessa vinculação conflitual entre ideia e afeto, mas também na não vinculação afetiva, que impede que ocorra um movimento de descarga que promoveria sensações de prazer.
Barros (2012) afirma que o obsessivo almeja que o analista lhe diga que ele não é culpado da falta pela qual ele próprio se acusa. A partir disso podemos pensar que há no sujeito obsessivo certo não reconhecer-se em seu agir, o que podemos remeter à tentativa do sujeito de manter-se afastado do afeto que seria fonte de sofrimento. Afinal, reconhecer-se como sujeito de sua ação implicaria justamente em deixar-se afetar por ela (Castel, 2011), o que desencadeia o movimento de defesa do obsessivo.
Desse modo, a dinâmica à qual o obsessivo se encontra remetido conta também com alguns mecanismos de defesa que lhe são próprios, sendo eles: 1) deslocamento; 2) anulação retroativa; 3) formação reativa. Pensando na cadeia representacional e na formação sintomática a partir dela, podemos considerar que o deslocamento seja o mecanismo de defesa que dinamicamente marca de forma mais clara as distinções entre neurose obsessiva e histeria. As formações obsessivas, diferentes das histéricas, teriam sua origem no deslocamento dos afetos que, desconectados de suas representações ambivalentes de origem, se conectariam a outras representações. O mecanismo do deslocamento cria uma cadeia sintomática vinculada à representação ambivalente inicial que pode alcançar amplitude ao ponto de paralisar toda a vida do sujeito - estando este regredido a uma dinâmica onipotente. Podemos considerar que o modo de funcionamento da cadeia criada a partir dos deslocamentos próprios da neurose obsessiva - na qual o afeto transitaria rapidamente por uma série de representações - seria extremamente similar à cadeia desejante, porém no sentido inverso. Esse movimento de inversão se deve ao fato de essas representações estarem vinculadas entre si, no entanto o principal objetivo da cadeia desejante seria alcançar a satisfação do conteúdo reprimido na ausência do objeto foco do conflito, ou seja, afastando o objeto inicial do objeto sobre o qual o desejo poderá ser realizado. Nesse ponto nos remetemos à anulação retroativa a partir da qual o sujeito tenta desfazer algo que disse ou fez, utilizando- se de atos ou palavras que adquirem um caráter de certa forma mágico. O último mecanismo de defesa a ser citado é o da formação reativa, no qual o sujeito atua de forma contrária a um desejo que lhe seria conflituoso.
Em todos esses mecanismos de defesa podemos ver a faceta onipotente desses pacientes que acreditam em nada precisar renunciar. Remetido às questões referentes à ambivalência de seus desejos, o obsessivo não consegue escolher apenas um impulso - amor ou ódio -, postergando ao máximo tal escolha, o que o manteria preso nessa dinâmica contínua.
Ao nos depararmos com as consequências da proposição de um inconsciente e uma realidade psíquica, nos vemos diante de movimentos que são capazes de promover uma mudança no que tange ao centro de gravidade do homem moderno. Antes, poderíamos localizá-lo como inserido em um ideal individualista próprio de uma prática cristã, a qual colocava o sujeito comum em um lugar de responsabilização sobre suas ações. Agora, graças às premissas sobre o inconsciente e à influência que este tem sobre a vida do sujeito, temos: 1) um consciente que se defende de desejos conflituosos; 2) um inconsciente que recalca os conteúdos conflitantes que não podem assim advir à consciência; 3) e uma autolimitação psíquica que surge como efeito mecânico desse conflito interno primordial (Castel, 2011). Nesse contexto somos levados a pensar que, na neurose obsessiva, teríamos um sujeito que se culpa e responsabiliza não apenas por seu agir, mas também pelos desejos proibidos, mesmo estes lhe escapando à consciência, nos apresentando assim um sujeito constantemente culpado por um não cometido.
A partir de mudanças de paradigmas do próprio sujeito, a ideia de uma culpa, referida não apenas a ele próprio, mas como marca universal, se torna algo central na formação da psicanálise. No entanto, como agora a culpabilização não se encontra mais remetida às entranhas do individualismo, pensaremos nessa culpa como natural uma vez que se enuncia como marca de influências e limitações que atravessam o próprio surgimento do sujeito e sua constituição psíquica. Tal mudança de perspectiva se dá a partir da naturalização da ideia de uma culpa universal que levaria à substituição do mito cristão da falta pelo mito do Édipo, o qual teria seu destino marcado pelas marcas de um desejo profético do qual não pôde esquivar-se. Assim, em 1900, Freud se apropria de uma mitologia a fim de explicar a dinâmica conflitual que estaria em questão na dinâmica psíquica das neuroses, trazendo à cena o mito do Édipo e promovendo uma mudança de paradigmas no que tange à formação neurótica. Embora a primeira apresentação de que a neurose teria por base um conflito edípico - no qual haveria amor dirigido ao genitor do mesmo sexo enquanto ao outro seria direcionado um sentimento de ódio - tenha se dado antes da proposição de uma sexualidade infantil propriamente dita, o desenvolvimento do conceito se deu em textos posteriores, nos quais inclusive o autor descreve um complexo mais elaborado no caso das mulheres (Freud, 1924/2011).
Com a proposição de um Complexo de Édipo temos que o sintoma neurótico não seria fruto de um conflito proveniente da relação entre um desejo e uma proibição quaisquer. Ao invés disso, o desejo estaria relacionado a uma figura de amor, a qual seria também uma figura proibida, e relacionado ao ódio referente à outra figura do par parental - normalmente o genitor do sexo oposto. No que tange à neurose obsessiva propriamente, o papel da ambivalência e dos desejos contraditórios ganham especial relevância. Eles passam a ser motivadores da separação entre afetos e representações a partir da qual esses afetos hostis com relação à figura amada seriam recalcados, só podendo retornar à consciência vinculados a outras representações.
Podemos situar o que Castel (2011) chama de um "inconsciente edipiano", que se referiria a esse estádio enquanto fenômeno universal, promovendo, em contrapartida, um novo tipo de igualdade entre os indivíduos, fundando assim uma nova antropologia da culpa e da angústia. Castel (2011) completa suas considerações afirmando que Freud teria oferecido aos indivíduos um mundo fora dos encantos presentes no reinado da religião, levando-os a deparar-se com os paradoxos e as dores inerentes a um retrocesso à individualidade.
O obsessivo e seu desejo
Quando nos voltamos para o modo de funcionamento neurótico, temos que este estaria deveras remetido a um desejo ambivalente focalizado no par parental, o que Freud nomeou de "Complexo de Édipo". Na saída desse estádio, o sujeito seria castrado, visto que se depararia com renúncia e limitação de seu desejo em alguma ordem.
Nesse sentido, Dor (1991, p. 97) afirma que "[...] o obsessivo sente-se amado demais pela mãe", o que o colocaria em um lugar privilegiado de investimento materno na dinâmica edípica. O autor ainda afirma que, aos olhos da criança, se o pai é capaz de impor sua lei também à figura materna, seria porque esta deseja algo que ele tem e que falta para ela. Então, a mãe colocaria a criança em suposto lugar de suplência à satisfação de seu desejo. É claro que, aos olhos da criança, a mãe não pareceria completamente insatisfeita, mas também não estaria remetida a um estado de plenitude de seu desejo, o que a faria buscar um complemento junto ao infante, colocando-o no lugar onde o sujeito obsessivo acreditaria ter sido o do filho preferido. Essa dinâmica implicaria em um dilema: obedecer à lei paterna, que restringe o vínculo com a mãe, ou permanecer nesse lugar privilegiado de investimento materno?
"Por mais que este retorno ao ser [como lugar do desejo materno] seja fortemente cobiçado em vista da satisfação falha do discurso materno, ele nunca é plenamente conseguido" (Dor, 1991, p. 99). E aqui nos deparamos com o lugar da dúvida do obsessivo com relação a seu desejo, que expressa um desejo de nada perder e remete o sujeito a seu fantasmático lugar de não castrado. Afinal, para o obsessivo, a perda está vinculada à falha. Esta última, por sua vez, traz à tona a castração como ferida a seu narcisismo inflado pelo investimento materno. Barros (2012) afirma que o sentimento de dúvida vivenciado pelo obsessivo diante da necessidade de escolha entre dois objetos de amor distintos seria também uma marca da indistinção que estes adquirem para o sujeito. Afinal, os objetos seriam sempre tratados, comparativamente, remetendo-se um ao outro. Tal dinâmica levaria ao tamponamento das falhas de um pelas qualidades do outro e vice-versa. Com a ênfase colocada nas qualidades do objeto, a dimensão da falta é tirada de pauta, possibilitando que esses sujeitos se relacionem fantasmaticamente com um único objeto constituído de qualidades dos dois primeiros. Desse modo, os sujeitos inseridos nessa dinâmica buscariam a todo custo um estado desejante que não trouxesse consigo a dimensão da falta que denunciaria sua própria ferida narcísica. É importante nesse ponto destacarmos o lugar da figura paterna na triangulação edípica enquanto representante de uma instância reguladora que, nesse momento, limita a relação entre mãe e infante a partir da ameaça de castração. Ao voltarmo-nos ao lugar específico que o obsessivo ocupa na dinâmica materna, podemos pensar que a ameaça de castração se refere justamente a uma ameaça a seu estado de onipotência a partir do qual o obsessivo não apenas se reconhece como o portador do desejo materno como também se vê acometido a não sofrer perdas, mantendo sua onipotência.
No entanto, o desejo carrega em si uma falha, a qual podemos entender enquanto subjacente ao desejo, como algo inerente ao princípio de realidade. Afinal, a cadeia desejante se constitui tendo em vista a experiência mítica de satisfação e a tentativa de revivê-la. No entanto, por mais que os desejos subsequentes sejam satisfeitos: 1) eles nunca alcançaram, na realidade, fidedignidade às fantasias do sujeito; 2) o sujeito não será capaz de retornar ao estado de plenitude idealizado primariamente. Seguindo essa linha, o obsessivo tentará negar a falha inerente ao desejo em sua busca por um estado de nada desejar. Nesse ponto a anulação retroativa emerge como um importante mecanismo de defesa a partir do qual se tornaria possível escapar ao desejo e ao mesmo tempo anulá-lo. Já a movimentação proveniente do mecanismo de deslocamento se encontraria vinculado a uma ideia de afastamento do seu desejo. "[...] o ideal para o obsessivo é que esse movimento fosse infinito, que nunca houvesse um ponto de parada, pois, enquanto se mantém o deslizamento não se impõe para ele a questão do seu desejo, que pode se manter como impossível" (Barros, 2012, p. 49). Ao mesmo tempo, o autor ainda afirma que essa estratégia impediria o surgimento de um objeto sem equivalente, o qual interromperia o deslocamento contínuo e acabaria por remeter o obsessivo à dimensão de seu desejo. Esse objeto único estaria referido à demanda do outro, dimensão que, ao mesmo em tempo que seria buscada também seria evitada por lhe apontar sua castração.
Devido a essa relação primordial com a mãe, na qual esta coloca o obsessivo em um lugar de suplência de seu desejo insatisfeito, a passagem de um desejo pautado na necessidade para a organização e elaboração de uma formação desejante - fruto de uma demanda - não se daria por completo. Sobre isso, Green (1964/2005) traça a diferenciação entre necessidade e demanda, apontando que, enquanto a necessidade implica algo que deve ser satisfeito, a demanda se configura como a produção de algo que, por se encontrar referido à ordem da fantasia, deve permanecer insatisfeito. Dessa forma, a partir do advento da castração e a consequente construção de uma barreira ao desejo neurótico, o sujeito se tornaria refém de um outro capaz de articular o que ele anseia e não pode demandar.
Esse vínculo com o outro nos mostra que nas relações amorosas o obsessivo seria capaz de tudo para satisfazer os desejos de seu objeto de amor. Afinal, esgotando-se as possibilidades de desejo do outro, este se torna um objeto morto, remetido a um estado de não desejo (Dor, 1991). A única restrição à qual o obsessivo não consegue renunciar é a diretiva de nada perder. Da mesma forma, Ramos (2012) aponta que, no que diz respeito à dinâmica do desejo na neurose obsessiva, o sujeito tentaria a todo custo se livrar do desejo, tendo como objetivo principal o desejo de nada desejar, o qual seria alcançado pelo escoamento libidinal próprio das compulsões. Esse vazio desejante produziria no sujeito uma sensação de congelamento do tempo e se assemelharia a morte.
A partir das considerações sobre a dinâmica do desejo na neurose obsessiva, afirmamos que, para os sujeitos referidos a essa forma de organização, o prazer seria proveniente de formações que equilibrem sua dinâmica dual que se expressa a todo o momento, seja no investimento ambivalente ou em sua própria relação com o desejo. Dessa forma, seus sintomas trariam consigo suas duas faces, representando ao mesmo tempo o desejo reprimido e a própria limitação a este em uma mesma formação. A dinâmica sintomática do obsessivo poderia exprimir em si a tão marcante ambivalência presente nesta neurose, expressando não apenas um sentido original, mas, também, aquele que lhe seria diretamente contrário (Freud, 1926/2014). Assim, o prazer para o obsessivo estaria remetido a poder ocupar esse lugar privilegiado de desejo e ao mesmo tempo não descumprir os limites de uma lei superior.
Ramos (2012) afirma que o que estaria em jogo seria uma dinâmica edipiana regida por uma regressão da libido a um estado de analidade. Contudo, ao nos debruçarmos sobre essa tendência regressiva da libido a partir das considerações de Abraham (1965/1970), nos vemos diante de questões não apenas remetidas ao Édipo e à sexualidade, mas ao próprio modelo relacional e à forma como este se expressa.
O movimento regressivo da libido
Desde a publicação de "Três ensaios sobre a teoria da sexualidade" (1905/2016) - em sua última edição - Freud define o movimento de desenvolvimento libidinal a partir de um conjunto de zonas erógenas que seriam fonte de prazer para o sujeito. Embora essas partes do corpo capazes de promover sensações prazerosas se encontrem interligadas, ainda não constituem uma unidade corporal capaz de promover o sentimento de integração. Ao longo do desenvolvimento, cada zona erógena seria de certo modo privilegiada em determinado momento, o que criaria as ditas fases de desenvolvimento da libido. Com a proposição de um desenvolvimento psicossexual a partir das diferentes fases de investimento libidinal Freud conseguiu manter a sexualidade como um conceito chave em sua obra. O pai da psicanálise associa - inicialmente - a dinâmica obsessiva a uma fixação da libido na fase anal durante o desenvolvimento. Mais tarde, essa consideração foi revista, propondo-se então uma regressão a esse modo de relação e não a uma fixação (Freud, 1926/2014). A ideia de fixação traria consigo um não desenvolvimento das fases subsequentes, enquanto o movimento regressivo da libido indicaria um retorno da mesma a um estado anterior do desenvolvimento.
Tendo em vista esses pontos iniciais, percebemos que, embora Freud diferencie desde o início as formações sintomáticas presentes na neurose obsessiva e as observadas na histeria, até 1926 ambas eram fruto do processo de recalcamento. Apenas em 1926, Freud afirma que na neurose obsessiva o recalcamento não apresenta um papel tão fundamental quanto na histeria, possuindo, essa neurose, outras defesas mais eficientes. Assim, embora Freud (1926/2014) aponte uma semelhança no objetivo da defesa entre ambas as neuroses de transferência, também fica marcada a distinção e separação de sua forma de atuação e do desenvolvimento de seus processos.
Sobre isso, Verztman (2016) afirma que, embora na primeira tópica a regressão seja uma ocorrência geral das neuroses a partir da qual podemos observar um forte enlaçamento entre os mecanismos de recalque, fixação e regressão, esse processo expressaria um colorido particular para cada sujeito regredido ao terreno que lhe seria mais familiar. Com o advento da segunda tópica esses enlaces se tornam consideravelmente mais frouxos e, embora o recalcamento mantenha seu papel fundamental no que tange à histeria, o mesmo não ocorre com a neurose obsessiva. A formação sintomática dessa neurose passa a ter por base um mecanismo regressivo. Verztman (2016) ainda aponta que, na segunda tópica, a regressão à qual a formação sintomática dessa neurose estaria remetida seria da ordem de uma transformação da própria dinâmica pulsional, que se encontraria referida a uma separação entre as pulsões de vida e de morte que agora também estariam presentes na equação. Essa nova dinâmica em jogo na neurose obsessiva estaria em conformidade com os investimentos ambivalentes promovidos pelo obsessivo. Do mesmo modo, nos vemos também diante de uma relação particular com o pano de fundo desejante, que traz consigo a polaridade entre um estado de vinculação privilegiado, que seria almejado, e a fuga constante deste, o que acarreta o anseio por um estado de nada desejar.
Voltemos às ideias desenvolvidas por Abraham (1965/1970), que traz à tona alguns pontos-chave para uma abertura de panorama com relação à neurose obsessiva no que tange à dinâmica psíquica e relações objetais. Em seu livro Teoria psicanalítica da libido (1965/1970), Abraham propõe que o surgimento de determinado quadro psicopatológico seria definido por um movimento de regressão da libido a um ponto chave do desenvolvimento do sujeito. Vale a pena destacar que, até o momento, o que se propunha era uma fixação na fase anal nos pacientes obsessivos, o que difere da proposta de uma regressão na medida em que no movimento regressivo não haveria uma estagnação do desenvolvimento libidinal; ao invés disso, esse desenvolvimento seria marcado por pontos defixação aos quais o sujeito poderia regredir em um momento posterior devido a um movimento defensivo de seu aparelho psíquico.
Essas fases de desenvolvimento da libido representariam para Abraham a forma pela qual o prazer é encontrado em cada fase, nunca sendo abandonadas completamente. Nesse sentido, temos que a ideia de regressão traz à tona não apenas um movimento regressivo da libido àquela zona erógena, mas, à forma de relação objetal vivenciada nesse período. Do mesmo modo, é possível traçarmos certa correspondência entre as fases de desenvolvimento libidinal e o desenvolvimento do Eu (Abraham, 1965/1970), o que pode corroborar a ideia de que os sintomas obsessivos atuam no sentido de garantir a integridade do Eu (Ramos, 2012).
A fase anal, à qual o sujeito obsessivo se encontraria regredido, traria à tona a questão da ambivalência, referida a uma capacidade do sujeito de se relacionar com o objeto como um todo e não mais como um objeto cindido em negativo e positivo. Tal ponto nos lança diante de uma oscilação entre os polos opostos, amor-ódio, que aponta para uma tentativa desses sujeitos de manter relações com a realidade (Bouvet, 1952/2005). A questão da onipotência também estaria referida à fase anal, na qual poderíamos encontrar a representação na relação da criança com as fezes. Essa correlação se dá na medida em que, assim como cria os excrementos e os controla a partir dos esfíncteres, na fase anal o sujeito acredita ser o criador do mundo. Outra problemática própria da fase é a separação Eu x mundo. Tendo acabado de fazer a transição da fase anal anterior - na qual o objeto se encontrava cindido em bom ou mau, sendo a parte boa incorporada e a má rechaçada - na fase anal posterior - na qual a relação do sujeito com o mundo não se dá mais via incorporação -, os limites entre o que é meu e o que sou eu e o que é mundo e o que pertence a ele, ainda estão em construção. Isso nos leva a pensar no controle do obsessivo como um medo de esvaziamento de seu próprio mundo interno.
É importante notarmos que Abraham (1965/1970) ainda nos apresenta considerações importantes no que tange a uma proximidade entre a neurose obsessiva e o modelo de neurose narcísica apresentado por Freud em 1915. Tal ponto se enuncia uma vez que nos direcionamos à melancolia. Esta seria uma patologia relacionada à fase sádico-anal primitiva na qual, embora o sujeito já se encontre referido a uma dinâmica ambivalente, também estaria deveras próximo do estágio anterior, cujo foco seriam questões do desenvolvimento narcísico. Não devemos perder de vista que, ao citarmos questões narcísicas, nos referimos a um movimento de incorporação total dos objetos próprio de um estado psicótico. Dessa forma, a fase sádico-anal primitiva, a qual se encontraria remetida à melancolia, seria como um período de transição entre a fase oral posterior e a fase sádico-anal posterior, à qual estaria regredida a neurose obsessiva. A neurose obsessiva se encontraria então remetida a uma dinâmica de apropriação e dominação do objeto como exterior e não um movimento de identificação e introjeção.
Logo, sujeitos regredidos à fase sádico-anal posterior já teriam sua existência reconhecida e assegurada para além de si mesmos. Ou seja, o sujeito obsessivo não necessita mais introjetar os objetos para que estes se mantenham existentes, esse trabalho já foi realizado nas fases anteriores. O reconhecimento da existência do objeto enquanto exterior - movimento que pode ser observado diante de sua perda - nos coloca diante das diferenças entre neurose obsessiva e melancolia. Sobre isso, Bouvert (1952/2005) aponta que a técnica obsessiva, pautada na separação entre ideias e representações, permite a esses sujeitos manter, através de um complexo jogo psicológico, as relações de objeto "concretas e estáveis".
A defesa obsessiva também atuaria como forma de proteção contra o adoecimento psicótico. A esse respeito, Ramos (2012) afirma que a tendência à reparação observada na neurose obsessiva indica não apenas uma tentativa de reparar o objeto ao qual é dirigido seu ódio - o que promove um intenso sentimento de culpa no sujeito obsessivo, mas também uma tentativa de reparação de si mesmo. Do mesmo modo, a tentativa de controle sobre os objetos ditaria as linhas para considerarmos uma dinâmica que traz à cena um controle que seria lançado também sobre si, algo que escapa a esses sujeitos. Seria então nesse entrelaçamento entre relações de objeto e questões referentes ao controle e reparação de si que Bouvert (1952/2005, p. 59) afirma que: "[...] a neurose obsessiva é uma boa garantia contra a psicose". Afinal, é a partir de relações reais, que para estes sujeitos apresentam uma importância vital, que se constrói uma barragem que impede que o movimento regressivo da libido leve o obsessivo a estados anteriores do desenvolvimento.
Considerações finais
Como vimos ao longo do presente artigo, a categoria neurose obsessiva foi criada por Freud em meio a um contexto histórico e cultural propício não somente à expressão dessa forma de sofrimento, mas também à sua delimitação enquanto dinâmica psíquica própria. Podemos atribuir o surgimento da categoria neurose obsessiva a uma série de circunstâncias específicas de seu tempo, tais como: 1) o enfoque conferido à neurastenia na época enquanto uma patologia física cuja origem era atribuída a causas nervosas; 2) o desenvolvimento das praticas de si - promovidas pela religião - que desembocaram no desenvolvimento de um sentimento de interioridade; 3) surgimento de uma moral religiosa que, juntamente com os ideais individualistas, lança o sujeito moderno em um lugar de responsabilização por suas ações e intenções. Devemos então ter em mente que: "Os sintomas não são desligados do que ocorre no mundo: isto é o que nos permite, sejamos nós psicanalistas ou não, reconhecer um sintoma como característico de determinada época" (Barros, 2012, p. 108). Embora a histeria receba destaque como a patologia fundadora da psicanálise, podemos já de início reconhecer que a neurose obsessiva trouxe para essa disciplina um contraponto importante em relação à histeria no referente à questão da ação e sua inibição, além de considerações fundamentais ao entendimento e elaboração do próprio aparelho psíquico (Castel, 2011).
A neurose obsessiva ocupa um lugar de destaque não apenas dentre as neuroses de transferência freudianas. Essa psiconeurose inscreve sua importância também em sua própria dinâmica psíquica e mecanismos de defesa particulares que podem ser reconhecidos como base para a constituição da ideia de um aparelho psíquico e os movimentos inerentes (Castel, 2011). A dinâmica do desejo na neurose obsessiva, por exemplo, nos direciona a uma organização com um forte viés relacional. A ideia de regressão da libido na neurose obsessiva, seguindo a perspectiva apresentada por Abraham, nos coloca diante dessa neurose como uma dinâmica que de certo modo protegeria o sujeito do rompimento psicótico com a realidade, o que lança questionamentos sobre a questão da escolha da neurose, ou mesmo sobre a relação entre sintoma e dinâmica psíquica.
Além disso, embora a neurose obsessiva não se utilize classicamente do corpo tal qual a histeria, a própria relação entre corpo e pensamento ganha relevo. Aqui, o corpo assume o papel de diretor e orquestrador de uma peça narrada em atos, sendo estes também dotados de sentido. Do mesmo modo, a corporeidade na neurose obsessiva enuncia sua relevância no estudo das compulsões contemporâneas, as quais por vezes parecem desatreladas de uma teia fantasmática ou pensamentos obsessivos que justifiquem tais ações (Gondar, 2001). Assim, percebemos que promover um estudo sobre a neurose obsessiva muito além de uma revisão de literatura se configura como a construção de um pensamento mais abrangente sobre o psiquismo e mesmo sobre as formações sintomáticas e dinâmicas psíquicas contemporâneas.
Referências
Abraham, K. (1970). Teoria psicanalítica da libido. Rio de Janeiro: Imago. (Original publicado em 1965) [ Links ]
Barros, R. (2012). Compulsões e obsessões, uma neurose de futuro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. [ Links ]
Bouvet, M. (2005). O ego na neurose obsessiva. Relação de objeto e mecanismos de defesa. In Berlink M. T. (Org.), Obsessiva neurose, p. 51-123. São Paulo: Escuta. (Original em 1952) [ Links ]
Castel, P. H. (2011). Âmes scrupuleuses, vies d'angoisse, tristes obsédés. Paris: Ithaque. [ Links ]
Dor, J. (1991). Estruturas e clínica psicanalítica. Rio de Janeiro: Taurus-Timbre Editores. [ Links ]
Breuer, J., Freud, S. (2016), Estudos sobre a histeria. In Breuer, J., Freud, S. [Autores], Obras completas, v. II. São Paulo: Companhia das Letras. (Original publicado em 1885 [1893] [ Links ])
Freud, S. (1990). Observações adicionais sobre as neuropsicoses de defesa. In Freud, S. [Autor], Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, v. 1. Rio de Janeiro: Imago. (Original publicado em 1896) [ Links ]
Freud, S. (2006). Projeto para uma psicologia científica. In Freud, S. [Autor], Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, v. I. Rio de Janeiro: Imago. (Original publicado em 1895) [ Links ]
Freud, S. (2010). A repressão. In Freud, S. [Autor], Obras completas, v. XII. São Paulo: Companhia das letras. (Original publicado em 1915) [ Links ]
Freud, S. (2011). A dissolução do complexo de Édipo. In Freud, S. [Autor], Obras completas, v. XVI. São Paulo: Companhia das letras. (Original publicado em 1924) [ Links ]
Freud, S. (2013). O homem dos ratos. In Freud, S. [Autor], Obras completas, v. IX. São Paulo: Companhia das Letras. (Original publicado em 1909) [ Links ]
Freud, S. (2014). Inibição, sintoma e angústia. In Freud, S. [Autor], Obras completas, v. XVII. São Paulo: Companhia das Letras. (Original publicado em 1926) [ Links ]
Freud, S. (2015). Atos compulsivos e práticas religiosas. In Freud, S. [Autor], Obras completas, v. VIII. São Paulo: Companhia das Letras. (Original publicado em 1907) [ Links ]
Freud, S. (2016). Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. In Freud, S. [Autor], Obras completas, v. VI. São Paulo: Companhia das Letras. (Original publicado em 1905) [ Links ]
Gondar, J. (2001). Sobre as compulsões e o dispositivo psicanalítico. Ágora, 4(2), p. 25-35. [ Links ]
Green, A. (1964/2005). Neurose obsessiva e histeria: suas relações em Freud e a partir de Freud estudo clínico, crítico e estrutural. In Berlinck, T., M. (Org.), Obsessiva neurose, p. 165-236. São Paulo: Escuta. [ Links ]
Green, A. (2005). Metapsicologia da neurose obsessiva. In Berlinck T., M (Org.). Obsessiva neurose, p. 215-236. São Paulo: Escuta. (Original publicado em 1967) [ Links ]
Laplanche, J., & Pontalis, J. (2012). Vocabulário da psicanálise. São Paulo: Martins Fontes. (Original publicado em 1982) [ Links ]
Ramos, G. A. (2012). Obsessão e psicanálise depois de Freud. São Paulo: Editora Campinas. [ Links ]
Verztman, J. S. (2016). Édipo, narciso e o sintoma compulsivo em Freud. In Birman, J., Fulgêncio, L., Kupermann, D., & Cunha, E. L. (Orgs.), Amar a si mesmo e amar o outro: narcisismo e sexualidade na psicanálise contemporânea, p. 202-214. São Paulo: Zagodoni. [ Links ]
Artigo recebido em: 17/05/2019
Aprovado para publicação em: 12/11/2020
Endereço para correspondência
Stephanie Brum
E-mail: stephanie-brum@hotmail.com
*Psicóloga, formada com honras pela UFRJ. Mestre em Teoria Psicanalítica pela UFRJ. Doutoranda em Psicologia Clínica pela PUC-Rio. Membro do Grupo de Estudos e Pesquisa Nebulosa Marginal. Atende em Consultório particular no Rio de Janeiro.
1"Nada é feito sem ansiedade, sem antecipação de um arrependimento ou remorso, sem a preocupação de não poder retomar a ação ou retornar ao status quo ante, uma vez que tenha sido realizada." (Tradução nossa)
2Destacando-se do contexto histórico que lhe deu nascimento, a psicanálise força então a época a se situar em relação a ela.