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Tempo psicanalitico
versão impressa ISSN 0101-4838versão On-line ISSN 2316-6576
Tempo psicanal. vol.54 no.1 Rio de Janeiro jan./jun. 2022
ARTIGOS
Do ato médico ao ato analítico: considerações sobre o psicanalista no hospital
From the medical act to the analytical act: considerations about the psychoanalyst in the hospital
Del acto médico al acto analítico: consideraciones sobre el psicoanalista en el hospital
Monica Marchese SwinerdI*; Vinicius Anciães DarribaI**
IUniversidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ - Brasil
RESUMO
Este artigo pretende abordar as consequências que podem ser extraídas da presença do psicanalista no trabalho em hospital, a partir da experiência clínica em uma instituição pública. Partindo da predominância do discurso médico na equipe, pretendemos trazer o que se passa na escuta analítica e, na equipe, por uma transferência de trabalho. Em meio aos protocolos, o ato analítico aposta em fazer surgir o sujeito. A partir de fragmentos clínicos, interrogamos quais foram os efeitos da presença do analista. O que sua presença na equipe veio a atestar? A análise dos fragmentos vem demonstrar que a presença do psicanalista não conferiu um saber a mais, mas, ao contrário, com seu menos de saber pode operar fazendo girar os discursos dominantes na cena médica. Diferentemente do ato médico, que aponta para o tratamento e a cura voltados para um corpo lido em sua dimensão biológica, o ato analítico tem valor de intervenção significante, é aí que ele produz efeitos no tratamento.
Palavras-chave: Psicanálise, hospital, trabalho em equipe, transferência, ato analítico.
ABSTRACT
This article intends to address the consequences that can be extracted for the presence of the psychoanalyst in hospital work, from the clinical experience in the public institution. Starting from the predominance of medical discourse in the team, we intend to bring what happens in the analytical listening and in the transference of teamwork. From clinical fragments, we ask what the effects of the analyst's presence were. What did his presence on the team attest to? The analysis of the fragments demonstrates that the psychoanalyst's presence did not confer an extra knowledge, but, on the contrary, with his lesser knowledge he can operate by turning the dominant discourses in the medical scene. Unlike the medical act, which points to treatment and cure aimed at a body read in its biological dimension, the analytical act has significant intervention value, this is where it produces effects in the treatment.
Keywords: Psychoanalysis, hospital, teamwork, transference, analytic act.
RESUMEN
Este artículo pretende abordar las consecuencias que pueden extraerse de la presencia del psicoanalista en el trabajo en hospital, a partir de la experiencia clínica en una institución pública. Partiendo del predominio del discurso médico en el equipo, pretendemos aportar lo que sucede en la escucha analítica y en el equipo, a partir de la transferencia del trabajo. En medio de los protocolos, el acto analítico apuesta por hacer aparecer al sujeto. A partir de fragmentos clínicos, preguntamos cuáles fueron los efectos de la presencia del analista. ¿Qué atestiguó tu presencia en el equipo? El análisis de los fragmentos demuestra que la presencia del psicoanalista no le confirió un conocimiento adicional, sino que, por el contrario, con su menor conocimiento puede operar girando los discursos dominantes en la escena médica. A diferencia del acto médico, que apunta al tratamiento y la cura dirigida a una lectura corporal en su dimensión biológica, el acto analítico tiene un valor de intervención significante, aquí es donde produce efectos en el tratamiento.
Palabras clave: Psicoanálisis, hospital, trabajo en equipo, transferencia, acto analítico.
Introdução
O presente artigo traz como questão discutir os efeitos do ato analítico a partir da presença de um psicanalista no trabalho em equipe em hospital. Trata-se de um hospital público da esfera federal, lugar de referência em assistência e pesquisa em sua área. Além das ações de assistência médica e multiprofissional, tem um papel fundamental na formação profissional qualificada através das ações de ensino e formação técnica especializada, em nível médio (cursos técnicos especializados) e em nível de pós-graduação lato sensu (cursos de residência médica, multiprofissional e de física médica), e stricto sensu (mestrado e doutorado). Tal complexidade coloca essa instituição como um lugar onde os pacientes que ali se tratam depositam suas expectativas de cura, quando conseguem uma vaga neste hospital, por ser considerado o lugar dos "especialistas", ou "o melhor lugar para tratar essa doença". Para os profissionais, a demanda de serem "especialistas" em suas ações. Indagaremos aqui, sobre os efeitos disso para o praticante da psicanálise.
As equipes multidisciplinares são compostas por diferentes categorias profissionais: médicos, enfermeiros, farmacêuticos, fisioterapeutas, fonoaudiólogos, assistentes sociais, psicólogos, nutricionistas, dentistas e técnicos de diversas áreas (radioterapia, laboratório etc.), que se dividem nas diferentes clínicas, conforme a localização e o tipo de doença, entre elas: Urologia, Abdômen, Cabeça e Pescoço, Neurocirurgia, Tórax, Dermatologia, Endocrinologia, Ginecologia, Mama, Tecido Ósseo-Conectivo, Pediatria, Hematologia, Oncologia Clínica, Clínica da Dor, e Cuidados Paliativos, sendo a única unidade de cuidados paliativos no Estado do Rio de Janeiro. Em cada hospital há uma equipe multidisciplinar própria de cada clínica e de referência para o paciente, que é matriculado inicialmente conforme o tipo e localização de sua doença, de maneira que este possa ser acolhido e atendido em suas múltiplas demandas, de uma maneira integral, conforme preconizado pelo SUS.
Como uma instituição hospitalar, encontramos um lugar com práticas distintas e enquadres bem-marcados, protocolos e rotinas institucionais, que nos remetem ao que Foucault (1979) afirmava sobre as instituições, sobre a disciplina dos corpos, sobre o nascimento da medicina, apoiada no rigor do que pode ser visto, baseado nas evidências científicas, baseado no modelo de uma anatomia como mapa que conduz à cura. O que pretendemos trazer para a discussão, à luz do seminário de Lacan sobre o ato psicanalítico (1967-1968), são indagações que surgem a partir de nossa inserção nessa instituição hospitalar, considerando as múltiplas demandas ao profissional que lá está. Cabe informar, que os dados e falas de pacientes aqui mencionados, fazem parte de projeto de pesquisa de doutorado submetido e aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Instituição, sob o número CAAE 03759818.5.0000.5282.
De partida, somos convocados a responder a três demandas: a da instituição, com sua demanda de um saber especializado e seu mandato de cura e remissão de sintomas; a do paciente, com sua demanda por um saber que o livre do sofrimento e cure seu corpo doente ; e a nossa demanda, interrogados pela convocação a ocupar um lugar de savoir-faire, de especialistas, ao mesmo tempo em que estamos advertidos pela psicanálise que é de outro lugar que nos situamos. Como afirma François Ansermet (2014), o psicanalista "não está ali para acrescentar sua especialidade à dos outros" (p. 4). O mal-entendido é assim sintetizado: "a psicanálise é convocada para o campo da medicina a partir de universais, ao passo que a operação analítica procede apenas do particular" (p. 4).
Estar confrontado com os limites do tratamento, com o imponderável do corpo, com o sofrimento alheio, e com a morte, remete inevitavelmente a nossos próprios limites. Segundo Malengrau (1995), a questão que se poderia endereçar ao psicanalista é: "a maneira pela qual a psicanálise inclui em sua própria experiência os limites que ela encontra; será ela capaz de oferecer alguma referência a uma prática tendo por objetivo, não curar, mas atenuar o irredutível de um real?" (p. 87). Assim interrogamos: quais os efeitos da presença do psicanalista em uma equipe no hospital? Lacan (1968-1969/2008) l embra que u ma das condições da psicanálise é que se extraia alguma consequência de seu discurso.
Partimos, assim, da constatação de que cada um que está nesse contexto de trabalho também está remetido às suas próprias questões com a finitude e, em ato, responde com suas defesas ao impossível diante da morte. É comum, do lugar da psicanálise, apontarmos sempre para a subjetividade, ou como costumamos dizer, de uma subjetividade que muitas vezes fica excluída do tratamento médico. Nesse caso, costumamos nos referir à subjetividade do paciente. Mas e quanto àquele que está no lugar de quem trata? Aqui poderíamos localizar o médico, o enfermeiro, o psicólogo, e inclusive nós os psicanalistas.
Para abordar o que se passava entre médico e paciente, Freud (1905; 1912 /1996) propôs o conceito de transferência, um dos conceitos indicados por Lacan (1964/1998) como fundamentais para a psicanálise. Freud se depar ou com o fenômeno da transferência d desde o final do século anterior (1895-1895), mas foi no caso conhecido como caso Dora, no tratamento de uma jovem paciente, que Freud (1905 [1904] /1996) pôde se deparar com esse fenômeno em toda sua centralidade na experiência analítica. Aliás foi nesse ponto que Freud localizou o fracasso do tratamento de Dora, que durou apenas três meses, e que o levou a concluir que na situação analítica a transferência, até então a força mais poderosa do sucesso do tratamento, pode se transformar, ao mesmo tempo, no meio mais forte de resistência (Freud, 1912/2019). A transferência é, assim, esse fator de "inimaginável importância" que se revela na situação analítica como um "recurso auxiliar de valor insubstituível" e, ao mesmo tempo, "como uma fonte de sérios perigos" (Freud, 1938/2018, p. 93). Vejamos de que maneira ela pode aparecer no trabalho do psicanalista no hospital.
Interessa-nos destacar a distinção que era cara a Freud (1912/2019) entre duas vertentes do fenômeno da transferência: uma que se apresenta como favorável, isto é, a expressão de sentimentos afetivos amorosos em relação ao médico ou outra pessoa, sentimentos que favorecem a confiança, por exemplo; e outra que pode tornar-se desfavorável na situação de tratamento, funcionando como resistência ao mesmo. É nesses termos que Freud designa uma transferência positiva e outra negativa, afirmando "a irrupção da transferência negativa, aliás, é bastante frequente em instituições. O doente, justamente, deixa a instituição sem se transformar ou tem recidivas assim que entra no domínio da transferência negativa" (Freud, 1912/2019, p. 116). Retornaremos a essa referência quando tratarmos da presença do psicanalista na equipe.
Sabemos que o hospital é o lugar das técnicas e dos protocolos, e o trabalho em equipe multiprofissional traz, em seu bojo, a ideia de "compartilhamento", de "soma" de saberes que venham dar conta de um todo, da integralidade do indivíduo (Darriba, 2019). Nesse sentido, a equipe parece estar marcada por um certo ideal de completude, onde nada falte ao paciente, e onde o profissional não estaria só, onde "todos falem uma mesma língua", como dito certa vez por um profissional na equipe. Será que é disso que se trata? Será possível a mesma língua para os diferentes profissionais? A experiência que temos nesse trabalho é que o "multi" de uma equipe não dá conta da solidão a que cada profissional está remetido em sua clínica, nem tampouco da totalidade do sujeito. Há algo que não pode ser compartilhado, que para a psicanálise se associa à divisão do sujeito. Cada um que está nessa partida, está por sua própria conta e risco. Ainda que se possa fazer uma discussão de caso, um round interdisciplinar, por exemplo, é o médico que deverá estar lá para dizer algo para o paciente, e sobre o paciente. Essa posição solitária, que não pode ser compartilhada ou integrada é o que toca justamente na questão do inconsciente, como excluído da cena médica. A divisão não pode aparecer. Mas e quando aparece?
Sobre essa relação entre psicanálise e medicina, Lacan teceu considerações importantes em uma conferência dirigida aos médicos, intitulada O lugar da psicanálise na medicina (1966/2001), um texto no qual percebemos que lugar temos, enquanto psicanalistas, em meio às questões da medicina. Se tradicionalmente a medicina tinha seu prestígio pela relação médico-paciente, chegando mesmo Balint (1984) a afirmar que em um tratamento a droga mais eficaz é o médico, figura de autoridade, com o avanço tecnológico e científico, cada vez mais essa relação passa a ser permeada por outras questões impostas pela ciência. O médico se encontra face a "novos problemas", novas demandas pelas evidências e eficácia que, conforme Lacan afirma (1966, p. 9), "é do exterior de sua função, especialmente da organização industrial, que lhe são fornecidos os meios, ao mesmo tempo que as questões, para introduzir as medidas de controle quantitativo, os gráficos, as escalas". O médico passa a ser um "agente distribuidor" dos novos produtos terapêuticos, químicos, biológicos. Responder, e a maneira como responde, é o que coloca a especificidade do médico em relação à psicanálise.
Mas há algo que escapa à possibilidade de ser respondido pelo discurso médico, tal como Lacan (1966) formula: "quando o doente é enviado ao médico ou quando o aborda, não digam que ele espera pura e simplesmente a cura. Ele põe o médico à prova de tirá-lo de sua condição de doente, o que é totalmente diferente" (p. 10). Isso faz lembrar a fala de um paciente que procura atendimento psicológico após a consulta médica, trazendo a seguinte questão: "o médico diz que eu estou curado, que não tenho mais doença ativa, estou assintomático, mas eu não consigo seguir em frente, eu não sou mais o mesmo, a minha vida não anda". A medicina quer que a coisa ande, funcione. Mas a vida desse paciente não andava. Essa fala não foi dirigida ao médico, porque ali não podia ser escutada, pois o que ela aponta é justamente para uma estrutura de falha entre a demanda e o desejo, o que Lacan nomeia nesse importante trabalho de "falha epistemo-somática" (Lacan, 1966, p. 11).
No percurso desse trabalho deparamo-nos com as frustrações dos médicos, assim como de outros profissionais, quando o caso clínico contraria o que se espera com base nas evidências científicas. Deparamo-nos, ainda, com os pacientes internados que, a despeito da presença do psicanalista ali, dele nada demandam. Também temos que lidar com a situação dos pacientes que, no dia seguinte de um atendimento, recebem alta ou vão a óbito, sem que uma conclusão pudesse ser vislumbrada. Diante desse contexto clínico particular, perguntamo-nos: qual o trabalho do psicanalista nesse lugar? Mais ainda, qual seu lugar nesse hospital, nessa equipe, para esse paciente?
Pretende-se tomar essas perguntas aqui segundo a orientação estabelecida desde Freud de que a psicanálise se reinaugure ao se deparar com o inédito que cada novo caso comporta, pois como ele mesmo afirma: "o psíquico é algo tão especificamente único que nenhuma comparação individual poderá reproduzir a sua natureza" (Freud, 1919 [1918]/2019, p. 194).Cabe lembrar de suas recomendações ao praticante da psicanálise, no trabalho Sobre o início do tratamento (1912/2019), ao comparar a situação analítica com o jogo de xadrez. Ali Freud afirma que as regras podem se aplicar para as jogadas iniciais e finais, mas o que se passa nesse intervalo, não pode ser representado de forma padronizada, pois "a diversidade extraordinária das constelações psíquicas em questão, a plasticidade de todos os processos anímicos e a riqueza de fatores determinantes também se opõem a uma mecanização da técnica" (p. 121). É diante do que não pode ser previsto, que nos deparamos com cada novo paciente que recebemos em atendimento.
Lacan (1953-1954/1986) afirma, ao comentar os artigos de Freud sobre a técnica da psicanálise, que "trata-se a cada vez, para ele, da apreensão de um caso· singular" (p. 21), ressaltando o valor do que se pode apreender da leitura de Freud acerca da singularidade de cada paciente. O caso não é algo que está lá, pronto e à espera de um saber que possa decifrá-lo, mas ao contrário o que a clínica psicanalítica propõe é que ali seja o lugar onde um saber será produzido. Como afirmam Iannini e Tavares (2019), "o fazer clínico não pode ser limitado à leitura de textos, mas sim essencialmente transmitido pela experiência do encontro com o analista, no divã ou fora dele" (p. 10), o que nos permite afirmar que, se há o caso clínico, é porque aí houve o encontro com o analista, colocando uma nova questão: existe o analista fora da clínica?
Na enfermaria confrontamo-nos com o mal-estar da equipe, por vezes exposto diante da gravidade de algum paciente, como aconteceu certa vez no round, quando um médico relatava a sua conversa com uma paciente que padecia de um câncer muito agressivo e avançado, em função do qual teria que ser submetida a alguns ciclos de quimioterapia. O médico sabia ali, naquele momento, do prognóstico ruim, e das poucas chances daquela paciente, e ele precisava dizer a ela que, apesar da quimioterapia ser uma aposta naquele momento para conter o avanço da doença, tratava-se de um procedimento paliativo. Ocorre que a paciente estava grávida, com indicação de aborto imediato. Durante o round, o médico disse "fui eu quem tive que dar o diagnóstico, falar do tratamento, da gravidade, disse isso tudo para ela, mas essa notícia [do aborto]... eu não pude, essa eu não vou dar". O que impediu aquele médico de comunicar o que ainda faltava dizer, de dar essa notícia após ter dado todas as outras? A sistemática de circulação de saber do round médico, que parece velar a angústia ali, encontra um limite quando se trata do que sucede a cada um.
A partir do que pudemos indagar até aqui, coloca-se a questão de até que ponto é possível manter alhures a subjetividade de quem cuida? No trabalho em equipe muitas vezes estamos ali simplesmente para dizer que não é possível calcular, a priori, os efeitos de uma fala ou de uma comunicação dada pelo médico, mas que podemos, em razão disso, estar ali para recolher o que o paciente pôde escutar. Encontrar-nos-emos, por vezes, inevitavelmente expostos às feridas, às dores, ao horror do que deveria estar velado. Frente a esse cotidiano de notícias difíceis a serem dadas e a serem escutadas é comum presenciar, nas equipes, profissionais isolados em seus territórios de saber, ou ter notícias de abandonos do trabalho, da profissão, da escolha por determinada especialidade e, não raro, de passagens ao ato. Há um real que implica, na ausência de um dispositivo que o trate, que algo da ordem da precipitação se imponha.
Se, no contexto do que se propõe como uma prática multiprofissional na enfermaria, a questão que retorna é o que faz o psicanalista e os possíveis efeitos de seu ato, no trabalho em ambulatório verificamos lidar com o que resta para cada um do tratamento de um câncer. No ambulatório é comum escutar dos pacientes: "Eu já concluí todo o tratamento, não era para eu estar assim, o médico diz que eu estou ótimo, não tenho doença, mas a verdade é que não estou ótimo, minha vida não é mais a mesma..."; ou ainda: "as pessoas me olham e dizem que estou linda, estou bem, que nem pareço que tive um câncer, mas essa não sou eu". Há um descompasso entre o que pode ser visto, capturado pelo olhar, comprovado por exames, e o que comparece na fala de cada sujeito. Descompasso, mal-entendido entre dois discursos: a medicina, atestando a cura a ausência de doença, a condição assintomática, "sem nada"; e o dispositivo da psicanálise, atestando a presença de um sujeito dividido, às voltas com seus sintomas, por vezes devastado pela presença do câncer em sua vida. Face a isso, damo-nos conta de que a psicanálise tem com que contribuir, à condição da aposta de que se trata de um outro discurso.
A psicanálise nos adverte que não se trata de um "recobrimento", ou de "quem sabe mais sobre o paciente", pois, como aponta Moretto (2019, p. 25), é na sustentação das diferenças discursivas entre psicanálise e medicina que é possível a abertura "para as conexões produtivas entre os dois campos e para a ocorrência de um trabalho legitimamente interdisciplinar e produtivo". A aposta que desejamos ressaltar aqui é a de que a presença do psicanalista é capaz de fazer girar as operações discursivas que são dominantes no hospital. O apontamento do lugar de sujeito como lugar de um saber a ser produzido não visa à dominância do discurso analítico na instituição é antes um ato que permite a abertura para outra cena, a do inconsciente.
O psicanalista e seu ato
No Seminário O ato psicanalítico (1967-1968, inédito), importante seminário pelo contexto em que se dá, após a Proposição de 9 de outubro sobre o psicanalista da Escola (1967/2003), percebemos a preocupação de Lacan em apresentar os eixos que permitem cernir o que é o analista, e em que consiste seu ato e sua ação. Diferente de pensar que o analista é aquele que se habilitou previamente com um saber, que foi outorgado com um título, Lacan (1967-1968) vai demonstrar ao longo desse seminário que, ao contrário, ele se apresenta como "substância da qual ele é jogo e manipulação no fazer analítico" (p. 97), afirmando: "se algo caracteriza a posição do psicanalista, é muito precisamente que ele não age senão no campo de intervenção significante" (p. 105). O ato tem valor de significante, e o significante é o que representa o sujeito para outro significante. Portanto, com seu ato pretende-se ter acesso ao sujeito, esse ato sendo o que institui ao mesmo tempo o sujeito do inconsciente e o analista (que não é prévio ao ato, porque não existe fora dele). O psicanalista que está ali antes é aquele que se intitula como tal, o que não garante que o seja, e Lacan deixa claro que o psicanalista é aquele que não faz disso uma profissão. Isso nos leva a dizer que não há psicanalista sem psicanalisando, "é propriamente insustentável que o sujeito suposto saber preexista à sua operação" (Lacan, 1967-1968 p. 147). Isso recoloca a questão abordada na Introdução, sobre a transferência.
A transferência que se estabelece em uma equipe pode possibilitar que algum endereçamento se dê frente ao que é impossível para cada um. Quando o lugar do saber e da mestria cedem, o sujeito pode aparecer, e não se trata, é importante frisar, como afirma Darriba (2017) "do fracasso do saber ou da ineficácia da prática que nele se apoia, mas do reconhecimento de uma impossibilidade que propomos tornar-se evidente quando está em jogo um sujeito" (p. 39). Aquilo que podemos denominar de transferência de trabalho é também o ponto em que se verifica uma torção do discurso do mestre, esse que se dirige ao saber. Nesse tipo de transferência, o saber se desloca, e no lugar deste advém um sujeito, o que nos faz afirmar que o savoir-faire com o qual os profissionais estão identificados, funciona como um anteparo frente ao que não se pode dar conta.
Em um primeiro momento poderíamos identificar esse endereçamento, a transferência estabelecida entre o médico e o psicanalista, ou outro profissional de saúde, como transferência de saber, porque apontaria para o que o outro sabe, na medida em que algo do seu saber falha. Todavia, como aponta Lacan sobre o ato analítico, no Seminário De um Outro ao outro (1968-1969/2008), essa transferência tem a dimensão de um ato, pois trata-se antes de uma "incitação de saber" (p. 33). Cabe lembrar que esse saber não se confunde com o saber universitário, sinônimo de acúmulo de conhecimento, um saber a mais, mas sim um saber inconsciente. O que nos permite dizer que a presença do psicanalista na equipe tem a dimensão de um ato é a transferência que se estabelece, e que podemos localizar, com Lacan, como transferência de trabalho.
A transferência de trabalho é algo que concerne à transmissão, o que não coincide com ensinar. Não é do lugar do discurso universitário, do lugar do saber, ainda que haja um saber em jogo, mas outro saber. É alguma coisa que se transmite a cada vez, e um a um, não no geral, transmissão que pode ser entendida como um translado, algo que se desloca de um ponto a outro (Herrera-Altamirano, 2012). A transferência é propriamente a colocação em ato do inconsciente. Se olharmos para a etimologia da palavra ato, em sua origem do francês acte (Lacan, 1967-1968), a mesma pode ser lida de duas maneiras: ato e ata. É possível afirmar então que através da transferência, o endereçamento daquilo que faz questão, que aparece como conflito, pode ter um lugar e uma inscrição, e podemos arriscar dizer, ser autenticado pelo outro que acusa recebimento, tal como uma ata. Uma ata é o que confere valor ao que está escrito, pelo ato de um dizer.
No que toca a prática do psicanalista nesse campo que é o hospital (e Lacan utiliza essa palavra "prática"), é que esta o coloca num campo que lhes assegura um lugar, como qualquer outro profissional. Quanto a isso Lacan (1967-1968) afirma: "deste ato, enquanto faz-se dele uma profissão, resulta uma posição da qual é natural sentir-se assegurado pelo que se sabe, pelo que se guarda de sua experiência" (p. 22). Mas Lacan continua e alerta que "o ato psicanalítico diz respeito, e muito diretamente, em primeiro lugar, eu diria, aos que não fazem dele uma profissão" (p. 22). No contexto hospitalar essa questão é muito importante e até determinante, pois talvez possamos situar aí o que diferencia o psicólogo do psicanalista.
Em várias situações é o psicólogo que é chamado a intervir, seja para tentar "convencer" o paciente sobre algum procedimento, seja para auxiliar e "dar suporte" em um momento de choro ou luto, bem como em situações em que a equipe se vê diante de um impasse. É com certo empuxo ao agir e ao fazer que esse profissional é convocado. O psicanalista é aquele que, contudo, está advertido de seu lugar de saber não todo, pois, como afirma Ansermet (2014), "só o sujeito pode saber o que constitui seu impasse" (p. 1). Então aqui temos um importante corte entre fazer e saber. É claro que o psicanalista faz alguma coisa, mas nesse caso não se trata de um saber fazer que está pronto e que é válido para todos.
Um dos achados que podemos apontar nesse trabalho é que algo se transmite com a presença do psicanalista. Se estar em equipe pode por um lado apaziguar, um pouco, o sentimento de solidão que cada um experimenta frente aos limites do tratamento, como uma tentativa de escamotear o desamparo, por outro lado não há como escapar no hospital do real da clínica, do real como algo que escapole, no que se manifesta de "inassimilável", a forma que Lacan (1964/1998) dá ao trauma. Algo de particular se circunscreve para cada um diante da vivência de adoecimento. O ato de transformar o sofrimento em palavra implica o endereçamento ao sujeito. A presença do psicanalista pode, então, recolher os efeitos do que escapa e "trazer o que é da ordem do sofrimento e da dor para o regime da palavra" (Jorge e Ferreira, 2005, p. 58).
Receber um pedido de parecer, ou ser chamado a intervir em alguma situação pode ser um importante passaporte para entrada no caso. Entretanto, segundo Fagundes (2014), "responder aos encaminhamentos não equivale diretamente à demanda de saber" (p. 34), e nesse sentido é que se pode dizer que a inserção do analista na cena médica é da ordem do ato, cujos efeitos só se sabe a posteriori. O saber é efeito do encontro de um analista com o sujeito no lugar de quem o produz como verdade, ele não pode vir antes, ele está franqueado à presença de um sujeito, como o que afirma Darriba (2017): "ao nos referirmos à impossibilidade de o saber vir a saber tudo, à questão do sujeito residir justamente nesse limite, indicamos que o saber que concerne ao sujeito consiste sempre em um saber por vir" (p. 39).
É fundamental, portanto, entender o ato analítico como um ato decisivo na medida em que ele não é anterior à colocação em ato, na transferência, do inconsciente. Conforme Lacan nos ensina, "se o psicanalista se confunde com a produção do fazer, do trabalho do psicanalisando, podemos efetivamente dizer que o psicanalisando banca o psicanalista, no sentido forte do termo" (Lacan, 1968-1969/ 2008, p. 340).
O fazer do qual se trata em psicanálise é um fazer de pura palavra, e por isso de valor significante. Para isso Lacan se utiliza, no Seminário sobre o ato analítico, da lógica aristotélica do universal e do particular. Em sua leitura, a medicina opera sobre o universal, na lógica do "para todos", ao passo que a psicanálise se dirige ao particular, através da negação do universal (para não todo). A dimensão propriamente inédita da psicanálise se baseia na negação do todo (quantificador universal) que implica não a exceção, mas o não-todo. Assim Lacan (1967-1968) se exprime:
Porque uma negação incide sobre o universal, algo surge da existência de um particular e que, da mesma forma, porque não todo não é afetado por um não, coisa mais forte ainda, existe os que, como se diz, fazendo surgir uma existência positiva particular de uma dupla negação, aquela de uma verdade que, retirada do todo por não ser, faria existir dele uma existência particular (p. 243).
Se é pela transferência que o paciente pode endereçar algo de seu sintoma, é também pela transferência de trabalho que uma equipe pode seguir trabalhando e incluindo os seus limites. Nesse sentido dizemos que a posição do psicanalista em uma equipe é uma posição de extimidade, pois, ainda que inserido na equipe, é de outro lugar, "fora" do todo, mantendo uma exterioridade com o saber, que ele está situado. A ideia de extimidade pode ser encontrada em vários momentos no ensino de Lacan, mas é no Seminário, livro 7, A ética da Psicanálise (Lacan, 1959-60/1995), onde ele apresenta esse conceito ao se referir a das Ding, a Coisa freudiana, como "esse lugar central, essa exterioridade íntima, essa extimidade, que é a Coisa" (p. 173), e acrescenta:
Pois esse das Ding está justamente no centro, no sentido de estar excluído. Quer dizer que, na realidade, ele deve ser estabelecido como exterior, esse das Ding, esse Outro pré-histórico impossível de esquecer, do qual Freud afirma a necessidade da posição primeira sob a forma de alguma coisa que é entfremdet, alheia a mim, embora esteja no âmago desse eu, alguma coisa que, no nível do inconsciente, só uma representação representa. (Lacan 1959-60/1995, p. 92).
Também no Seminário A angústia (1962-1963/2005), podemos encontrar esse conceito, lá apresentado a partir de uma figura topológica, a banda de Moebius, para se referir a um espaço de continuidade entre o dentro e o fora, o exterior e o interior, sem que haja um limite de início e término. Ideia interessante que nos permite pensar o lugar do psicanalista na instituição como um dentro-fora, ou como "uma posição de exterioridade em relação ao significante mestre" (Zbru n, 2004, p. 137). Talvez seja justamente estar nessa posição o que permite que o sujeito possa advir, considerando que é a partir do lugar da falta no Outro, do que falha nesse discurso Outro, lugar êxtimo, que o sujeito pode aparecer. Dessa forma podemos afirmar que o trabalho em equipe não garante que daremos conta do todo, ainda que haja o "multi". A complementariedade constituída pelas múltiplas categorias profissionais não é sinônimo de completude, pois inclui o nosso próprio vazio. É com as hiâncias entre os discursos que seguimos na tentativa de construção de laços que possibilitem as relações entre aqueles que se ocupam de tratar do paciente.
Podemos dizer que, diante de certas urgências no hospital, o que temos podido verificar é que a presença do psicanalista pode ter como efeito o aparecimento do sujeito do inconsciente, em sua mais íntima divisão, e que essa presença tem a dimensão de ato analítico, na medida em que "um ato se mede pelas coordenadas simbólicas, não representa nenhuma ação, nenhum gasto físico" (Brodsky, 2004, p. 17). Por isso, constatamos com Lacan que o ato não é da ordem do fazer, mas antes da ordem do que causa, em seu valor de dizer.
Ato e urgência no hospital
Paulo era um paciente de 36 anos em tratamento de uma LMA (leucemia mieloide aguda), um tipo de leucemia que demanda internação e intervenção rápida, sob o risco de morte do paciente, configurando-a como uma doença aguda. O protocolo de tratamento de uma LMA consiste em uma primeira internação muito longa, na qual o paciente é submetido a alguns protocolos de quimioterapia, e em decorrência disso o paciente fica um bom tempo sem defesas imunológicas. Isso determina que ele permaneça no mínimo trinta dias internado, nesta primeira etapa. É esperado que alguns pacientes desenvolvam diferentes tipos de toxicidade ao tratamento ou fiquem vulneráveis a diversas infecções, devido a essa condição de ‘aplasia’ (ausência de células de defesa). Nesses casos, o tempo de internação pode se elevar a bem mais que um mês. O meu primeiro encontro com Paulo foi no momento inicial de sua doença, cuja proposta de tratamento consistia em quimioterapia.
Sempre rodeado de familiares, esposa, irmãos, Paulo conseguiu realizar o tratamento conforme o protocolo. Mas a recaída veio precocemente (menos de seis meses após o término de tratamento quimioterápico), e nesse caso havia indicação de um transplante de medula óssea. Paulo estava com sorte, pois um dos seus irmãos era compatível, seria ele seu doador. Ele realiza o transplante e, pouco tempo depois, nova recaída, nova internação para mais um protocolo de tratamento, porém agora com bem menos chances de cura.
No segundo momento do tratamento, Paulo ficou por quase dois meses internado, período no qual podia expressar o quanto estava difícil ficar no hospital, chegando no limite do que podia suportar. Há dois meses sem conseguir ir para casa, "qual o sentido de tudo aquilo?", ele se perguntava. Essa recaída, e a necessidade de nova internação, coincidiram com a morte de seu irmão (de forma abrupta e violenta), o mesmo irmão que fora seu doador, o único entre cinco irmãos que era compatível. De luto, sem doador, e sem muitas esperanças quanto ao tratamento, Paulo só conseguia desejar ir para casa. Tinha plena noção e compreensão da doença, consciência dos riscos, mas não falava diretamente sobre a possibilidade da morte; ao contrário, queria voltar para casa, para sua rotina de vida, onde podia de fato se sentir seguro, vivo. Falava de sua urgência, do tempo que não podia esperar, de um tempo que não é o mesmo tempo dos protocolos e procedimentos hospitalares (medicamentos, transfusão, recuperação de defesas...). Paulo falava de seu desespero, dos momentos em que pensava abandonar tudo, retirar o cateter por conta própria, voltar para casa. Certa noite fora tomado por um "desespero", uma "agonia", precisava e queria sair dali de qualquer jeito. Ameaçava retirar o cateter e todos os acessos venosos, pedia para ir embora. Chamou a médica e pediu para assinar a sua própria alta. Com a morte do irmão, seu doador, havia morrido também a esperança. Desprovido de tudo, apenas com um corpo que insistia em adoecer, Paulo queria se manter na condução de sua vida. A esposa chora, pede para que ele se acalme. Liga para os familiares que lhe dizem para "não colocar tudo a perder". Mas Paulo já estava perdendo. Ao contrário do que as pessoas normalmente pensam, o "tudo" para Paulo não estava ali dentro, mas sim fora dali. O que não sabiam é que sair do hospital significava para ele uma possibilidade de ganhar, e não perder, a vida.
Enquanto referência de Paulo na Psicologia, fomos chamados pela equipe. Escutávamos: "estou com uma angústia aqui", enquanto apontava para o corpo, para o peito. Afeto no corpo, esse afeto que não engana, (Lacan, 1962-1963/2005), a angústia coloca o sujeito diante do real, desvelando o desamparo mais primordial, frente ao qual não há significantes que possam enganar. Lacan (1962-1963/2005) afirma que "a verdadeira substância da angústia, é o aquilo que não engana, o que está fora de dúvida" (p. 88).
Estávamos diante de um homem triste, mas com uma certeza, não queria estar ali. Pela manhã, a médica veio fazer visita e atendimento como de costume e Paulo queria saber tudo sobre seu tratamento, a doença, a evolução, suas chances e o real prognóstico. A médica lhe diz. A doença estava em franca atividade, a despeito de todo o tratamento tentado até ali (transplante de medula, diferentes quimioterápicos...). O corpo de Paulo não respondia a nenhum tratamento, a doença avançava. Sem proposta de tratamento, os procedimentos consistiam em tratar as infecções e dar suporte clínico. Paulo tinha um prognóstico muito limitado e muito reservado. Neste dia, a médica lhe conta tudo, inclusive suas chances mínimas de sobreviver. Tarefa difícil. Paulo está grave, sem defesas, com infecções importantes, ele não tem indicação de sair do hospital. Ele se desespera, chama a psicóloga.
Encontramos Paulo, que dizia "é isso". Olhos amarelos, mostrava suas feridas, sua dor no corpo. Falava de sua urgência. É nítido que Paulo já sabia, antes mesmo da comunicação de sua médica. Em seu seminário sobre o ato analítico, vemos Lacan afirmar
O analista é aquele que rodeia toda uma zona em que frequentemente é chamado pelo paciente à intervenção enquanto ato, e não apenas na medida em que possa ser chamado, ocasionalmente, a tomar partido, a estar do lado de seu paciente com relação a um próximo (ou qualquer outro), ou até, simplesmente, a fazer essa espécie de ato (com efeito, bem que é um) que consiste em intervir por uma aprovação ou, pelo contrário, em aconselhar; é isso, muito precisamente, o que a estrutura da psicanálise deixa em branco. (Lacan, 1967-1968, p. 117).
Como sua internação não fora programada, e sim pela emergência, ele foi internado onde havia leito vago, fora do andar de sua clínica. Conversamos com a equipe, a fim de levá-lo para a enfermaria de outro andar (Hematologia), onde já ficara antes, lugar com o qual possuía familiaridade e vínculo, tanto com a equipe, como com outros pacientes, um lugar onde conseguia se sentir um pouco mais seguro. Escutamos da supervisora do andar: "com todo respeito ao seu trabalho, eu entendo, mas esse paciente está morrendo e tem um monte de outros pacientes que estão lá embaixo para iniciar tratamento". A urgência do paciente não é a urgência do hospital, o que mostra que as rotinas, os procedimentos, e as urgências institucionais, fiéis a seus protocolos, anunciam a morte do paciente antes mesmo dele morrer. Paulo não foi transferido para outro andar, embora houvesse leito disponível.
Falar em urgência evoca dois termos: pressa e angústia. Paulo tinha pressa e deixava à mostra sua angústia. Por isso a urgência convoca ao ato, uma intervenção que não pode ser adiada, porque o ato diz precisamente de um instante. Assim, conversamos com sua médica que, ainda que com muita resistência quanto a não cumprir o protocolo para aquela situação clínica, mas podendo dividir com o paciente, com a equipe e com a família, pareceu se sentir mais confortável com uma decisão que não é mais só sua. Ainda que a alta seja um ato médico, nesse momento decidiu-se pela ida para casa. Essa alta permitiu a Paulo ficar quatro dias ao lado de sua família, no que ele insistira por tanto tempo. Em emergência ele retorna ao hospital, dessa vez para não mais sair.
Poder escutar Paulo, e estar ali junto com a equipe, dividindo os riscos, os dilemas e a angústia diante de uma decisão difícil, permitiu que a médica consentisse em dar alta, o que não foi fácil, dar alta em condições de risco para o paciente. Ao mesmo tempo, poder falar de sua fragilidade como médica, diante do impossível de tratar, permitiu que ela pudesse dividir um pouco essa decisão com o paciente e outros membros da equipe, colocar em suspenso a certeza do que significava deixá-lo sair. Deixar que o paciente pudesse concluir alguma coisa sobre sua vida naquele momento foi o possível a ser feito. Como Lacan (1967-1968) afirma, "a pressa é justamente o que deixa escapar a verdade, isso nos permite viver, de outro lugar" (p. 88). A presença do psicanalista na equipe também exerceu certa função de "dar garantias" - ainda que saibamos que isso não é possível. Nesse caso, o médico sentiu-se "autorizado", ou "avalizado" em seu ato, nos termos em que, segundo França (2014, p. 8), "o papel do analista é justamente apagar os efeitos da instituição para que algo do sujeito emerja.".
Se nesse caso pode-se atestar, pela transferência do paciente, a existência de um sujeito para além dos protocolos, também pode-se dizer que foi por uma transferência do médico com o psicanalista naquela equipe que foi possível tornar um pouco mais suportáveis os limites de um tratamento. Nesse ponto, podemos verificar que a transferência de trabalho é também onde se verifica uma torção do discurso do mestre, esse que se dirige a um puro saber. O saber dos protocolos, ali, não dava conta do sofrimento da equipe, e do paciente.
Na transferência de trabalho, tal como apontado por Miller (2001) em seu curso o Banquete dos Analistas, o que se transfere é propriamente o trabalho. É apontar para o lugar do outro como o lugar de quem trabalha, o sujeito, esse mesmo que poderá produzir um saber no lugar da verdade. Pôr em suspenso o saber médico, permitindo se dirigir ao sujeito, que pode então ser lido como um dos efeitos do ato analítico em uma equipe. Em outro trabalho, Miller afirma sobre a prática da psicanálise: "pode mobilizar toda uma biblioteca de saberes, mas ela se mantém orientada pela noção de que o que conta para o analista é um estado de vacuidade, um estado zen de disponibilidade ao inesperado e o espírito de oportunidade" (Miller, 2003, p. 132). O que parece estar apontado aí é que, para que tenha um analista, o saber deve estar em outro lugar.
Conclusão
Freud (1921/1996), ao escrever o trabalho Psicologia das massas e análise do eu, afirmava que "a essência de um grupo reside nos laços libidinais que nele existem" (p. 107). Contudo, como lembra, usando a comparação com o porco-espinho, há um mal-estar inerente às relações, e a proximidade deve garantir uma certa distância, caso contrário o dano é inevitável. Todo grupo está permeado por seus duplos, relações permeadas pelo especular, marcadas por disputas, rivalidades, "antipatias e aversões indisfarçadas" (Freud, 1921/1996, p. 107). Conforme Rêgo Barros (2012),
A ação do analista, sua intervenção, tem alguma chance de ser elevada à altura de um ato, do qual se pode julgar a eficácia graças a seus efeitos do discurso no real e o alcance obtido sobre o sofrimento do sujeito a partir do uso das palavras (p. 21).
Com esse trabalho, talvez já se possa estabelecer algumas considerações. Uma delas é que algo se transmite com a presença do psicanalista, pois nesse cotidiano não há como escapar do real da clínica, e a psicanálise inclui desde sempre esse real, aquilo que nos escapa, o que nos faz esbarrar muitas vezes com os limites de uma prática. Se é pela transferência que o analisante se põe a trabalhar, colocando em cena o saber inconsciente; é também pela transferência que a equipe pode seguir trabalhando e incluindo os seus limites, e os vazios. Quando Lacan fala da transferência de trabalho, ele aponta para a transmissão a um outro do que a análise ensina: "exatamente que o trabalho seja transferido de um a um" (Miller, 2001, p. 172), o que não comporta o todos. Em 1975, em uma série de conferências em universidades americanas, Lacan falava para médicos, e ali afirmava que a psicanálise é o lugar onde a medicina pode repousar, pois em outros ela tornara-se científica demais. Isso designa bem o fato de que a psicanálise soube ser um refúgio para o discurso da ciência, "a psicanálise tomou a seu cargo o resíduo não científico da medicina" (Miller, 2002, p. 7).
Seguimos, então, na direção que nos é dada pela psicanálise, na concepção de tratamento que inclui a palavra, e os efeitos da palavra, levando às consequências de uma prática que inclui o real. Do lado do praticante, a aplicação da psicanálise interroga a formação, a transmissão e a autorização de seu ato, e assim é pela psicanálise aplicada à terapêutica que a prática psicanalítica institucional contribui na direção de corroborar que não há psicanálise aplicada sem psicanálise pura (Rêgo Barros, 2012).
Assim, concluímos que o ato analítico é o que atesta ao mesmo tempo a presença do analista e o do sujeito do inconsciente. A transferência posta em cena entre sujeito do inconsciente e sujeito suposto saber é o que dialeticamente atesta a presença do analista. O ato é portanto para o sujeito, mas é também para o analista, aquilo que marca a ruptura entre um antes e um depois. A cada ato, o analista é legitimado segundo a afirmação lacaniana de que ele só se autoriza por si próprio, por sua conta e risco, mas também pelo saber inconsciente que ali se produz.
Referências
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Artigo recebido em: 23/05/2020
Aprovado para publicação em: 30/06/2021
Endereço para correspondência
Monica Marchese Swinerd
E-mail: monicamarchese@globo.com
Vinicius Anciães Darriba
E-mail: viniciusdarriba@gmail.com
*Psicóloga do Hospital do Câncer I/INCA, Doutoranda em Psicanálise pela UERJ; Psicanalista.
**Professor Associado do Instituto de Psicologia da UERJ; Doutor em Teoria Psicanalítica pela UFRJ; Psicanalista.